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Transtorno de personalidade antissocial e criminalidade: pena ou tratamento?

Transtorno de personalidade antissocial e criminalidade: pena ou tratamento?

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No capítulo da Psicopatologia, um transtorno se destaca pelas implicações que pode suscitar no campo da ciência jurídico-penal. Trata-se do transtorno de personalidade antissocial (TPAS), cuja característica fundamental é a existência de um padrão invasivo de desconsideração e violação aos direitos alheios. Esse transtorno tem início na infância ou adolescência e continua ao longo da vida adulta.

O aspecto central do transtorno de personalidade antissocial envolve a capacidade de envolver outras pessoas em engodos e manipulações, e se manifesta a partir de um padrão de comportamento típico, caracterizado pela repetição e persistência de violação aos direitos de outras pessoas ou de regras sociais importantes, que, no mais das vezes, incluem desde a agressão a pessoas ou animais, até a destruição de propriedade, furtos, e outros comportamentos desviantes.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), o padrão de comportamento antissocial persiste ao longo da vida adulta e os indivíduos portadores desse transtorno não conseguem se conformar às regras e normas pertinentes ao comportamento dentro de parâmetros legais. Aponta-se como sintoma mais importante do Transtorno de Personalidade Antissocial a completa ausência de ansiedade ou sua manutenção em baixos níveis a partir de uma estratégia de evitação ou controle dessa ansiedade ou de culpa. Em razão dessa característica, os indivíduos com este transtorno tendem a ser impulsivos e passam a ter atitudes temerárias, além de um padrão de intolerância à frustração que, por sua vez, determina um padrão de agressão reativa. Além disso, costumam ser rotuladas como hedonistas, apresentam superficialidade de sentimentos e carência de apegos emocionais a outras pessoas. Não obstante este elenco de sintomas de humor, apresentam-se bastante inteligentes e mantêm habilidades verbais e sociais bem desenvolvidas. Do ponto de vista cognitivo, a principal observação a ser é feita é que "a maioria das pessoas com Transtorno de Personalidade Antissocial parece incapaz de beneficiar-se de punição" (HOLMES, 1999). Quando são punidas, a punição não parece exercer nenhum efeito, independentemente de sua severidade. Outro sintoma que merece destaque é o comportamento voltado à busca de sensações e, não raro, portadores do transtorno de personalidade antissocial envolvem-se em atividades ilícitas sem que haja um fim a atingir, agindo mais pela "aventura" que por um propósito determinado. Não é difícil vislumbrar que tais comportamentos determinam prejuízos emocionais e materiais a outras pessoas, na vida em sociedade.

Transpondo a problemática do transtorno de personalidade antissocial ao campo jurídico, a questão que se impõe refere-se a qual tratamento deve-se dispensar ao portador de tal transtorno autor de ilícito penal, porquanto se é certo que se o mesmo, nessas circunstâncias, parece comportar-se dentro dos padrões do que se convencionou chamar de normalidade, não é menos certo que seu comportamento é significativamente condicionado pela sua patologia psiquiátrica. O impasse ganha contornos interessantes se se cogita acerca de sua imputabilidade penal.

O artigo 26 do Código Penal determina que é isento de pena o agente que é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de comportar-se conforme tal entendimento, em razão de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado. É preciso, pois, especular acerca do que a lei considera como doença mental. Delmanto (2002), afirma que a expressão inclui as moléstias mentais de qualquer origem. Na mesma linha de raciocínio, Mirabete (2001), afirma que a expressão inclui todas as alterações mórbidas à saúde mental, desde as de origem orgânica, às tóxicas ou funcionais. De igual modo, Damásio de Jesus (1999), assevera que em se tratando de um pressuposto biológico da inimputabilidade, a expressão abrange diversos transtornos, aos quais definiu de maneira igualmente ampla, como psicoses, esquizofrenia, loucura, histeria, paranoia. A partir dessas considerações, não parece pairar dúvidas de que o Transtorno de Personalidade Antissocial estaria incluído no âmbito da expressão "doença mental", embora não haja uma certa alienação mental que talvez seja concebida ao se falar em doença mental, assim como não seja tão evidente as manifestações da patologia, porquanto a sintomatologia do transtorno já envolve comportamentos transgressores, costumeiramente confundidos com o comportamento puramente criminoso, isto é, sem o componente patológico determinante. Nessa perspectiva, o agente antissocial seria inimputável, ou, pelo menos semi-imputável.

De outro lado, é necessário salientar que o agente portador de transtorno de personalidade antissocial não perde a capacidade de compreensão do caráter ilícito de determinado comportamento transgressor. Todavia, por apresentar um comportamento impulsivo, é possível conjeturar acerca da impossibilidade que essas pessoas apresentam de comportar-se segundo esse entendimento. De qualquer forma, estaria incluído na regra da inimputabilidade penal (ou semi-imputabilidade) estampada no artigo 26 (ou no seu parágrafo único) do Código Penal, sendo possível raciocinar acerca da sujeição do agente nessas condições a uma medida de segurança.

Há, portanto, três possibilidades de enquadramento do portador de Transtorno de Personalidade Antissocial: considerá-lo inimputável, portanto, sujeito a uma medida de segurança; considera-lo semi-imputável, reduzindo-se a pena aplicada de um a dois terços, a teor do parágrafo único do artigo 26 do Código Penal; ou considerá-lo imputável e, portanto, plenamente capaz de suportar uma sanção corporal. Vejamos cada uma das possibilidades.

Considerando-o enquanto inimputável, é necessário ponderar que as medidas de segurança diferenciam-se das penas em razão de sua finalidade, destinando-se à cura ou tratamento do inimputável autor de ilícito penal. O ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê duas espécies de medidas de segurança, conforme determinação do artigo 96 do estatuto penal, quais sejam, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e a sujeição a tratamento ambulatorial, cuja aplicação de uma ou de outra espécie vincula-se à espécie de pena que seria imposta.

A partir da edição da lei nº 10.216/2001, que programou a reforma psiquiátrica brasileira, a aplicação da internação compulsória em hospitais de tratamento e custódia passou a ser (ou pelo menos deveria ser) a exceção, de rara aplicação, enfatizando métodos não asilares de tratamento de pacientes psiquiátricos. Assim sendo, não é absurdo pensar que o tratamento a ser dispensado neste caso seria exatamente pautado na perspectiva trilhada pela reforma psiquiátrica. Mas, a aplicação de uma sanção terapêutica importaria na cura ou adaptação do doente?

Há uma tendência em se considerar que as pessoas com Transtorno de Personalidade Antissocial são difíceis ou impossíveis de tratar. Haveria pouca ou nenhuma responsividade ao tratamento. Parece que o melhor a fazer é esperar que o transtorno se desgaste ao longo da vida, o que, conforme se observa na literatura especializada, ocorre por volta dos 30 a 40 anos de idade.

Considerando-se a imputabilidade penal do portador de Transtorno de Personalidade Antissocial autor de ilícito penal, naturalmente tem-se como resposta estatal ao seu comportamento desajustado a aplicação de uma pena. Aliás, em razão das dificuldades em se diagnosticar o transtorno, os portadores tendem a ser muito mais punidos. No entanto, a pena aparentemente possui um caráter de inadequação, pois não viabiliza a readaptação do doente. Assim sendo, as penas mostram-se ineficientes, sobretudo quando se reflete acerca das condições do sistema carcerário da atualidade, o que poderia contribuir para maior degenerescência e deformação da personalidade do agente.

Por fim, é possível enxergar o portador de TPAS sob o prisma da semi-imputabilidade. Conforme os dispositivos legais relativos à matéria, o acusado, nessas condições, seria julgado e, uma vez condenado, contaria com uma redução em sua pena variando de um a dois terços. Observe-se que o indivíduo continuaria a ser sujeito de uma pena corporal, embora diminuída em seu quantum. Assim sendo, a crítica que se pode fazer é a mesma da situação anterior. A única diferença seria em razão do lapso temporal, que, nesse caso, seria menor.

A dúvida persiste. E parece de difícil equacionamento. Porém, a temática não deixa de ser um campo ideal de diálogo entre as ciências jurídicas e as ciências da mente, para responder a demanda relativa a uma nova forma de considerar o homem em sofrimento, mais compatível com sua complexidade.


REFERÊNCIAS:

DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

DSM-IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

FRANÇA, Genival Veloso. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1999.

HOLMES, David. S. Psicologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Código Penal interpretado. São Paulo: Atlas, 2002.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONFESSOR JÚNIOR, Waldeci Gomes. Transtorno de personalidade antissocial e criminalidade: pena ou tratamento?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2830, 1 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18801. Acesso em: 29 mar. 2024.