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O fenômeno jurídico na antiguidade

O fenômeno jurídico na antiguidade

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SUMÁRIO:1. Considerações preliminares. 2- Introdução. 3. As culturas do Oriente Médio. 3.1. Sociedade e direito babilônico. 3.2. Aspectos da primitiva sociedade hebraica. 3.2.1. O direito hebreu. 4. A sociedade grega. 4.1. Formação étnica. 4.2. Periodização. 4.3. A civilização cretense. 4.4. A civilização aquéia (ou micênica). 4.5. A organização gentílica. 4.6. A Grécia arcaica. 4.6.1. O despertar da democracia ateniense: Drácon e Sólon. 4.7. O período clássico e seu legado jurídico-político. 4.7.1. O governo de Clístenes. 4.7.2. Péricles e o apogeu democrático. 5. A decadência das Cidades-Estado e o Helenismo. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.


1- Considerações preliminares

A cultura científica sedimentada no ocidente sempre exigiu do cientista a posse de aprofundadoconhecimento do ofício. Nas recentes décadas, com a imposição de novos paradigmas de leitura do mundo, tem-se buscado o equilibrado conhecimento do ofício, porquanto o saber aprofundado há muito se confundiu a especializado, tornando-se, então, sinônimo de saber estanque, compartimentalizado e fragmentário. E um saber assim constituído acha-se inarredavelmente aprisionado em estreitos limites, porquanto quanto mais se vê em profundidade, menos se vê em extensão.

Como sucede no país – afora inexpressivas exceções - o ensino jurídico hoje ministrado nas academias ainda perpetua práticas acadêmicas fragmentárias, herança do fracassado paradigma científico moderno propagado, entre tantos, pelos adeptos do taylorismo. Em oposição aos fortes resquícios desse modelo, a construção do saber está a pugnar práticas pedagógicas holísticas, inter e transdisciplinares, bem assim a repartição do saber-poder, realidade ainda distante de muitas instituições educacionais.

Efetivamente, o império da cultura pragmática e imediatista em todos os setores da vida social não haveria que poupar o ensino universitário. Por tal razão, o embate com seus princípios há muito cristalizados é árdua, porém indispensável missão, haja vista que o seu enfrentamento contribuirá para a formação alunos-sujeito, pensadores da vida e do direito.

Em termos práticos, em se pretendendo a promoção de mudanças comportamentais, impõe substituir práticas pedagógicas e metodologias anacrônicas que ainda persistem aplicadas a todo o processo de ensino, em todas as suas disciplinas. Vale dizer: em substituição da simplista fórmula do saber fazer impõe acrescentar o como, por que e para que fazer. Em troca de métodos e modelos autocráticos de ensinar, impõe suscitar a dialogicidade pedagógica e a filosófica amizade pela pesquisa. Tudo isso em resgate do saber-sabor do aprender.

Portanto, na contramão do insciente paradigma inaugurado na modernidade, os desafios do tempo presente estão a reclamar a atuação de profissionais munidos de novas competências, habilidades e saberes os quais se demonstrem capazes de romper os clássicos e aparentemente inconciliáveis dualismos inaugurados pelo cartesianismo. Noutra expressão: o tempo está a reivindicar capacidade de reatar, em necessário equilíbrio, a dimensão teórica à prática, a dimensão cognitiva à afetiva, a pessoalidade à sociabilidade e o doméstico ao político, sobretudo nesses dias em que prevalece tão drástico narcisismo. Tais tendências impelem o ensino jurídico, como, de resto, as demais modalidades de ensino, à reestruturação de sua dinâmica e à reorientação de seus fins.

Por essas razões, aos estudantes de direito, atuais e futuros cientistas da ciência jurídica, incumbe a inarredável vocação da re-flexão, do (filosófico) estranhamento diante das muitas certezas im-postas pela experiência sócio-profissional e, muitas vezes, também pelas lições acadêmicas. Para tanto, precisarão desvendar os princípios, os fundamentos ou a ratio essendi da ciência jurídica, e não há como fazê-lo senão mediante o diálogo, a interação e, muitas vezes, a solitária pesquisa. Noutros termos, aos alunos se impõe o constante exercício da cogitação acerca dos derradeiros fins que fazem a essência do saber jurídico, de modo a perseguirem, com a devida autonomia intelectual, uma ontologia e uma deontologia do direito, o que, aliás, lhes possibilitará transitar do papel de meros repetidores de textos legais para o profícuo papel de juristas. Desse modo, reitere-se, ao lado do (necessário) apelo praticista impregnado nas academias e manifesto na pragmática indagação do "pra que serve", impõe resgatar o que e por que algo é, e para que fins ele se orienta. Afinal, o direito é saber instrumental, cuja existência deve servir à harmonização social.

Ademais, a empreitada da reflexão sobre os fundamentos científicos é tarefa que se dirige ao ensino em geral e não apenas a determinado conjunto de disciplinas batizadas no meio acadêmico de disciplinas teóricas, históricas ou filosóficas, termos – diga-se - costumeira e equivocadamente adotados com certo sentido pejorativo, como "reflexão despida de significado prático".

Concorrentes para a alteração de todo esse quadro, embora ainda inseridas dentro de limitadas e seccionadas referências pedagógicas, encontram-se "disciplinas" como a Filosofia, o Direito Romano e a História do Direito, a Ética, além das chamadas "teorias gerais", cujo rol engloba a Teoria Geral do Direito, a Teoria Geral do Estado e a Teoria Geral do Processo. Ao contrário do que se pensa, o aprendizado fomentado por tais disciplinas revela-se condição fundamental à práxis profissional cotidiana, haja vista que essas, assim como outros conteúdos – tal como as atividades de prática jurídica - constituem momentos de fermentação dos componentes teórico-práticos e desempenham relevante papel convergente e sintetizador dos vários e dispersivos saberes adquiridos no percurso acadêmico, esmerando-se, enfim, por capturar o ser e o dever-ser do Direito.


2- Introdução

A experiência jurídica é coetânea à vida cultural urdida pelo homem. Ao longo do tempo, todas os agrupamentos humanos, desde os mais primevos aos contemporâneos, ocuparam-se de edificar determinado conjunto de normas com vistas a reger o convívio, a normatizar a dimensão essencialmente social do ser humano. Assim o fizeram antigos mesopotâmicos, hebreus, indus, gregos e romanos, entre outros povos. Experiências sintetizáveis no conhecido brocardo latino ubi homo, ibi jus, ou seja, onde está o homem, aí estará o direito.

Com suporte nessa premissa, o presente estudo pretende visitar, ainda que brevemente, a dinâmica social peculiar a algumas culturas da antiguidade destacando-se, por razões peculiares ao curso, os efeitos jurígenos que nascem da dimensão social humana. Nesse sentido, neste estudo serão tratados breves aspectos da cultura e do direito hebraico-cristão, do direito egípcio e, enfim, da clássica experiência jurídica greco-romana de cujo desfecho resultaram modernas instituições do direito público e privado ocidental, legado tardiamente trazido ao Brasil por força da empresa colonial lusitana do século XVI.

Frise-se que o empreendimento ora abraçado pretende transcender ao mero conhecimento de institutos localizados na prática jurídica contemporânea. Objetiva mais: inteligir [01] as bases culturais (políticas, econômicas e sociais) sobre as quais se edificou a experiência civilizatória do mundo ocidental. A par dessa realidade, serão abordados os elementos constitutivos da sociedade grega – sua formação, estruturação, desenvolvimento e declínio – com vistas a aí verificar a organização do fenômeno jurídico possível àquele espaço e tempo.

Quanto ao sistema jurídico erigido pelos romanos – em face de sua capital influência na configuração do direito privado nacional - será tratado em capítulo ulterior.


3- As culturas do Oriente Médio

A região a que se denomina Oriente Médio compreende geograficamente as áreas ao leste do mediterrâneo, da Turquia ao Egito, estendendo-se até o Irã e a Península Arábica. No remoto passado, nessa região desenvolveram-se grandes civilizações como a egípcia, a babilônica e a hebraica.

Por ora, serão estudados alguns aspectos da organização social babilônica e hebraica: da primeira, em face do vanguardismo jurídico vislumbrado na compilação de leis efetuada por Hamurábi e seus reflexos sobre a cultura e o direito hebraico primitivo; da segunda, em função da influência exercida sobre as instituições político-jurídicas do mundo ocidental, plasmado à luz da cultura judaico-cristã.

3.1- Sociedade e direito babilônico

A Babilônia foi uma das principais cidades da Mesopotâmia, região situada entre os rios Tigre e Eufrates em que conviviam várias e independentes cidades-Estado. Por volta de 2.000 a C. a cidade da Babilônia, sob a liderança do rei Hamurábi, unificou a maior parte dos mesopotâmicos vindo a formar o Império Babilônico. Essa unificação política encontra seus fundamentos, entre outras variáveis, na própria centralização jurídica e administrativa empreendida por Hamurábi. Então, com vistas a comandar extensa e diversificada população, Hamurábi fez reunir e gravar em pedra, ao final de seu reinado, vários mandamentos então conhecidos e praticados, instituindo a famosa codificação [02] que levara o seu nome.

A base da sociedade mesopotâmica era o clã. A sociedade marcava-se por profundas desigualdades entre classes, dividindo-se a população em três camadas: nobreza, homens livres, servos e escravos. Na economia prevalecia a atividade agrícola, ao lado do comércio e artesanato, cujo controle incumbia ao governante.

De um modo geral, várias sociedades orientais praticaram a teocracia nas quais os governantes atuavam como arautos do desígnio divino. No Egito, o faraó era considerado filho do deus Hórus; na Pérsia, o rei era representante de Ahura-Masda; na Mesopotâmia, era o sacerdote de Anu, deus do Céu. Nessas civilizações, o regime político era teocrático e a forma de governo a monarquia absoluta. Quanto aos mesopotâmicos, praticavam uma religiosidade politeísta e muitas de suas divindades representavam forças da natureza. Assim como noutras sociedades antigas, na sociedade babilônica, embora houvesse separação entre poder político (rei) e religioso (sacerdotes), o direito sofria fortes implicações da religiosidade. Esses entrelaçamentos estão dispostos em documentos da época. Num deles, gravado em pedra, o próprio rei Hamurábi deixara um depoimento em que revela ter sido escolhido pela divindade Marduk para distribuir a justiça e promover o bem-estar de seu povo:

"Para que o forte não oprima o fraco, para dar direitos ao órfão e à viúva, (...) para decidir as decisões do país, para fazer justiça ao oprimido. Eu sou o rei que transcende entre os reis, minhas palavras são escolhidas. Minha inteligência não tem rival. Por ordem de Shamash, o grande juiz dos céus e da terra, que meu direito resplandeça pelo país pela palavra de Marduk, meu Senhor, que ninguém apague meu brilho (apague minha imagem!) na Esagil, que amo, que meu nome seja sempre celebrado (com benevolência), com bençãos. Autopanegírico de Hamurábi, §59-53 ". [03](sic)

Composto de 282 artigos, o código de Hamurábi reunia preceitos de direto penal, civil, comercial e processual: homicídio, lesão corporal, roubo, indenizações civis, regras contratuais e escravistas, inclusive a escravidão por dívidas. Várias disposições do código revelam o princípio de talião conhecido pelo brocardo "olho por olho, dente por dente", princípio que representou, à época, significativa mudança na aplicação do direito porquanto inaugurara a idéia de proporcionalidade, de dosimetria na equação delito-sanção. Por força do princípio, adequava-se a sanção, em intensidade e extensidade, ao dano causado à vítima, prática até então inexistente vez que se adotava o livre arbítrio e a força bruta na reparação das contendas interpessoais e intertribais.

O código baseava-se, ademais, na casuística. Estruturava-se em um rol de eventos, fatos e situações do cotidiano instituindo-lhes correspondentes sanções. Por não se ocuparem de caracterizações gerais dos delitos, os artigos descreviam casos específicos e não tinham, necessariamente, a função de standards ou padrões a serem seguidos em situações semelhantes. Nesse particular, releva destacar que a sociedade babilônica era rigorosamente estratificada e que a atribuição de direitos e obrigações operava na medida da desigualdade de seus membros. Assim, era comum que a lei contivesse sanções diversas para mesma categoria de delito, distinção que se ancorava no status civil e na capacidade econômica dos destinatários sociais da norma. De qualquer modo, prevalecia naquele regime o princípio de que o responsável por danos causados a terceiros não ficava incólume.

Na esfera do direito do consumidor as regras assemelhavam-se (em parte) às atuais: quem houvesse vendido mercadoria estragada sujeitava-se à apreensão da mercadoria, bem assim ao castigo físico e moral mediante exposição social da punição aplicada. Na época, era comum que comerciantes fossem condenados ao suplício público por chibatadas, desferindo-lhes tantas chibatadas quantas fossem necessárias ao cobrimento do preço da mercadoria adulterada.

Quanto aos crimes contra o patrimônio, como o furto, a legislação era severíssima. Previa pena de morte ao criminoso apanhado em flagrante delito. Na esfera do direito familiar, mesma sanção sofria a mulher adúltera condenada ao lançamento no rio, algumas vezes atada ao seu cúmplice. [04]

Tais preceitos revelam a insopitável vocação do direito por ofertar respostas aos desafios sociais, constituindo-se ciência que surge, se conforma e expande com suporte na moldura sócio-econômica de determinada comunidade. A evolução do direito obedece, pois, a imperativos espaço-temporais, ao dinamismo da vida social e das forças aí atuantes. Desse modo, a compilação hamurabiana visava a regular o complexo das relações econômicas e intersubjetivas com vistas a evitar a anomia e o caos social provocado pelo agir arbitrário e desmedido na solução dos conflitos. Objetiva, enfim, coibir o exercício da vingança privada e seus efeitos desestabilizadores da vida social.

Esse diálogo entre o sistema jurídico e demais sistemas sociais é corroborado pelas lições de Flamarion (1995:48), ao referir-se à força das relações econômicas sobre o sistema jurídico, bem assim à intervenção do poder político sobre regras jurídicas, com vistas a amainar os rigores da vida social:

"... Os mercadores formavam, na Babilônia, uma corporação subordinada ao Estado, e faziam negócios a mando do governo. Mas também negociavam em proveito próprio (...) dentro e fora da Mesopotâmia; praticavam, ainda, o empréstimo a juros, formavam sociedades mercantis, compravam terras e escravos. Um dos sinais de que tais atividades tinham importância considerável é o desenvolvimento do direito privado, em especial de Hammurabi (1792-1750 a.C). Outro sinal é a frequência com que, a prazos irregulares e sem aviso prévio – para não interromper as atividades de crédito – os reis decretavam a misharum ("justiça"), edito que anulava as dívidas e a escravidão por dívidas, o que era uma forma de proteger a pequena propriedade privada da terra ..."( g.n) [05]

Se por um lado essa interatividade entre o sistema jurídico e os demais sistemas sociais serve a produzir relativa equalização social, por outro, pode também se destinar a intentos legitimatórios de certos grupos sociais instalados no poder estatal. Nessa hipótese funciona então o direito como sustentáculo da dominação de classes, como instrumento de manutenção do status quo em face do constante antagonismo de classes existente na história humana. Nesse sentido, dizia Marx e Engels no Manifesto;

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; (...). Nas mais remotas épocas da História verificamos, quase por toda parte, uma completa estruturação da sociedade em classes distintas, uma múltipla gradação de posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres de corporações, aprendizes, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, outras gradações particulares.(...)." [06]

Dedicada a verificar a gênese, o funcionamento e os antagonismos do modo de produção capitalista, a análise social empreendida por Marx não se limita aos fenômenos econômicos, mas observa os fenômenos sociais em sua totalidade, sobressaindo-se as relações econômicas e políticas como focos fundamentais, porém não exclusivos, de sua análise.

Releva sublinhar que para desnudar as contradições do modo de produção capitalista Marx remontara à organização econômico-social das sociedades primitivas, investigando as estruturas mestras dos modos de produção asiático, feudal e burguês. Sua perspectiva pretendia demonstrar, ao contrário do que cria Hegel, que é a realidade que determina a consciência humana, que o "ideal não é senão o material traduzido e transposto na mente do homem". Desse modo, sua teoria social desvelava as relações e influências existentes entre as condições reais de existência e as representações sobre o existir projetadas pelo homem concreto, real, situado no mundo da produção.

"Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a realidade, é a realidade que determina a consciência." [07]

Corroborando essa perspectiva, Marx deixara transparecer que o direito, sistema resultante das condições materiais de existência, a tais condições se inclina, em servil obediência. Portanto, o direito, emblemática expressão da ordem cultural e simbólica, seria emanação dos anseios da classe dominante haja vista que "as idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante". (Marx, 1946:30)

O viés analítico marxiano sustenta, pois, a inevitabilidade de conflitos entre as forças materiais da sociedade com as relações de produção e, enfim, com as relações de apropriação da propriedade até então socialmente desenvolvidas. Isso porque a realidade natural e social evoluiria a partir das próprias contradições internas, de modo dialético. [08]. Nesse diapasão, não haveria idéias, leis e direito desvinculado de uma práxis social. Efetivamente, não restam dúvidas que o direito, parte integrante da abrangente realidade humana, forma-se com base em múltiplas e recíprocas determinações (culturais, sociais, naturais) derivadas dessa complexa realidade.

A lição que nos vem da teoria marxiana consiste no resgate da autorização do homem enquanto agente, autor e ator da história. Suas idéias contribuíram e contribuem para a concepção do humano como projeto, como vir-a-ser, e a concepção da história como fruto da ação humana consciente, não mais escrita ou ditada pelos "deuses", quer antigos ou modernos. No decurso da histórica realidade, o homem, entidade histórica, se descobriu determinado pelas condições objetivas de sua existência, mas também capaz de influir no curso da história – pessoal e coletiva – modificando-a por meio da práxis política, haja vista que toda ação humana envolve-se em relações de poder socialmente estabelecidas.

Emprestada, pois, a perspectiva marxiana para iluminar a realidade em estudo, resta-nos concluir que o direito babilônico – como de resto os demais sistemas que futuramente estudaremos - espelhou as marcantes características da sociedade do Oriente Próximo: uma sociedade escravagista, agrária, estratificada e profundamente enlaçada pelas representações religiosas. Seu conjunto normativo notabilizou-se, como não podia ser diferente, como instrumento fundamental de controle social manejado pela classe dos homens livres (sacerdotes, comerciantes, guerreiros, burocratas) em face do campesinato e da grande massa de escravos.

3.2-Aspectos da primitiva sociedade hebraica

As regras fundamentais do direito hebreu, inclusive aquelas atinentes ao culto sagrado, acham-se esparsamente dispostas em cinco livros: Êxodo, Gênesis, Levítico, Deuteronômio e Números, o conjunto chamado pentateuco. Antes de se verificar alguns elementos desse quadro normativo, impõe visitar a história jurídico-política dos hebreus manifesta em três grandes períodos: o patriarcado, o juizado e a monarquia. Esse percurso faz-se necessário porquanto se crê impossível apreender a experiência jurídica de um povo olvidando-se o substrato social do qual ela emerge. Tal suposição é sobremaneira válida em face dos hebreus haja vista que o direito desse povo afirmou-se justamente quando Israel surgiu, se organizou e se reconheceu com identidade própria, como povo, como nação.

A história dos hebreus remonta ao ano 2000 a C e situa-se em Canaã. [09] Nessa região, por volta do ano 2.000 a C, viviam os cananeus, descendentes dos amoritas, entre os quais encontramos variados povos mesopotâmicos como Abraão e seu grupo, vindos de Ur, na Caldéia, como também os clãs de Isaac e Jacó, todos chamados patriarcas do povo hebreu. A forma de organização social típica dessa época era a família patriarcal, um grande agrupamento de pessoas que incluía, além de pai, mãe e filhos, a prole casada e sua família, concubinas e escravos. Esse povo organizou-se inicialmente em tribos nômades e cada uma delas tinha como líder um patriarca com poderes sacerdotais e judiciários. Como a agricultura era ainda incipiente, transitavam pelas planícies mesopotâmicas em busca de água e pastagens, tendo, portanto, como base econômica a pecuária.

Naquela época, as cidades haviam-se constituído nas planícies férteis, próximas ao mar, e ali iniciaram ampla dominação sobre os camponeses. Assim, por volta de 1500 a C, as cidades-estado hebréias mantinham-se por meio de exaustiva tributação incidente sobre a massa camponesa, os quais, além do pagamento de impostos in natura, obrigavam-se ao trabalho forçado para o rei, a corvéia. De um modo geral, as cidades dominavam a vida no campo e não era incomum que as cidades-estado, para protegerem-se umas das outras e da pirataria generalizada, recorressem à proteção das milícias do faraó egípcio renunciando, para obtê-la, à autonomia econômica e política.

Nesse cenário, como reação à exploração econômica, à pobreza causada por conflitos intertribais e pelas dificuldades naturais, levas de trabalhadores rurais, buscando escapar ao controle político, refugiavam-se no campo, mantendo distância do poder real radicado nos núcleos urbanos palestinos. Outros grupos migravam para terras egípcias acalentados pela esperança de trabalho e sucesso. A respeito, e segundo conta a Bíblia, esses migrantes encontravam inspiração na experiência de José, um dos filhos de Jacó, que então vivia com êxito e prestígio na corte egípcia. Já outra parcela de trabalhadores preferia permanecer em Canaã, porém resistindo à exploração. Para tanto, organizavam-se em bandos armados (os hapiru, vocábulo utilizado para designar grupos errantes, socialmente marginalizados, não protegidos pela ordem social) com vistas a promover saques às rotas comerciais. Note-se que tanto o distanciamento da esfera de influência do poder governamental (o êxodo urbano), quanto o ataque ao seu funcionamento (a marginalidade criminosa) revelam as contundentes contradições sócio-econômicas praticadas na comunidade hebréia primitiva.

Após a organização patriarcal, os clãs hebreus reuniram-se em tribos, ampliando a sua organização sócio-econômica que passa a basear-se em interesses vários e não mais nos laços de consaguinidade. A posse de terras conduz à sedentarização e a criação de novos papéis sociais. Para zelar pela comunidade e administrar a justiça surge a figura dos juízes. Durante o juizado, prevalecera certa harmonia social: as terras eram distribuídas por sorteio cuja propriedade era coletiva, das tribos, o poder político era compartido e as leis criadas comunitariamente.

Durante o período da monarquia (cerca do ano 1000 a.C) a situação desse povo era bem diversa: a gradual apropriação de melhores e maiores porções agrárias havia criado latifúndios e irreparáveis distinções de classe; as cidades haviam-se formado em torno do poder real que instituíra pesada tributação sobre os camponeses; os núcleos urbanos fomentavam práticas de exploração, corrupção, idolatria religiosa, além de fornecerem amplo deleite a funcionários estatais e milícias reais em oposição à dura vida e à pobreza dominante no campo. Em conseqüência desses e de outros fatores, no século VIII, Israel dividiu-se em duas, Israel e Judá, essa última dominada, no ano VI, pela Babilônia.

Quanto ao ideal de justiça, na era patriarcal identificado como sinal de fidelidade a Deus e afeição ao próximo, fora ofuscado na época monárquica quando a corrupção do sistema administrativo e judiciário tomou dimensões absurdas. Rebelando-se contra a deformidade do sistema jurídico e político muitas vozes se rebelaram. Merece destaque a contundente denúncia do movimento profético, capitaneado por profetas como Isaías, Jeremias, Amós e tantos outros.

3.2.1- O direito hebreu

Narra a Bíblia que durante o Patriarcado os hebreus foram dominados pelos egípcios. Como dito, naquela época era comum que em períodos de secas os camponeses migrassem para as férteis terras banhadas pelo Nilo em busca de trabalho. Lá eram recebidos ao custo de se submeterem a trabalhos em obras do faraó, sob severo regime de escravidão [10].

Com o tempo, decepcionados com as falsas promessas de sucesso fora da terra de origem e esgotados pela exploração, os migrantes cananeus arquitetaram a fuga do Egito outorgando, no curso do longo regresso, a liderança de tal feito a Moisés. Por ocasião da volta à terra prometida e em função da necessidade de impor regras à difícil convivência da ampla e dispersiva multidão camponesa, é que surgiram os Dez Mandamentos ou o Decálogo, importante conjunto de preceitos ditados por Deus a Moisés os quais se destinavam a reger as relações de um aglomerado de pessoas de raças, culturas, línguas e regiões diferentes, uma "multidão misturada," como qualificara o livro do Êxodo.

A verificação dos relatos bíblicos autoriza inferir que a constituição do direito hebreu defluiu de três fatores capitais: a) da carismática liderança exercida por Moisés à frente de um grupo rebelde e heterogêneo, b) da necessidade de enfrentar os imponderáveis riscos da perigosa travessia do deserto e a inerente conflitividade decorrente da longa convivência social e c) da paulatina consolidação da crença num deus único, atuante na história e cultuado como divindade libertadora da opressão.

Efetivamente, Moisés fora um paradigma de liderança. Soubera conduzir, com êxito, um grupo de estranhos identificados inicialmente apenas pelo ideal da fuga. A unidade desse povo seria conseguida somente depois, a duras penas, a partir da convivência no deserto. Naquele momento, além da hostilidade natural e dos variados conflitos internos, pairava sobre os migrantes o risco de ataque de piratas. Desse húmus histórico é que surgiriam leis cuja observância se tornaria imprescindível à penosa travessia. Tais leis foram concebidas como uma Aliança celebrada entre Deus e o povo cujo arauto fora Moisés:

"E Deus falou todas essas palavras, dizendo: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão: não terás outros deuses diante de mim (...) honra teu pai e tua mãe, a fim de que teus dias se prolonguem sobre a terra que o Senhor, teu Deus, de dá. Não cometerás homicídio. Não cometerás adultério. Não raptarás. Não prestarás testemunho mentiroso contra teu próximo. Não cobiçarás a casa de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o teu servo, sua serva, seu boi ou seu jumento, nada que pertença a teu próximo." [11]

Destaque-se que os hebreus distinguiam as noções de direito e justiça, identificando essa com o desígnio divino e, portanto, como sentimento superior àquele. De um modo geral, o sentimento de justiça, entendida como amparo aos pobres, como fraternidade e obediência à vontade divina, envolvia, em essência, todo o sistema jurídico hebreu. Nessa direção aponta o magistério do biblista Léon Epsztein que aponta a existência de dois vocábulos naquela cultura para se referir à justiça: mishpat e çedeq. O primeiro, usavam para se referirem tanto ao direito quanto à justiça. A raiz desse vocábulo (shapat) evoca a idéia de julgar, de pronunciar uma sentença, referindo-se à justiça aplicada pelos tribunais. Por força da atuação dos profetas, esse termo imiscuiu-se em profundo conteúdo religioso. Já a palavra çedeq vinculava-se à prática da equidade nos julgamentos. Era evidente a prevalência do ideal de justiça-equidade sobre o direito ou leis materiais e processuais do direito hebreu. Nas palavras do referido biblista, isso significava apreciar as leis com vistas a alcançar o ideal de transcendentalidade nelas contida. Várias passagens ilustram o desiderato hebreu de justiça:

"(...) Os juízes não deveriam julgar com parcialidade, mas com justiça (Lv 19,15; Dt 1,16) e seus veredictos têm de ser justos ( Pr 31,19; Dt 16,18.20); o processo ilegal derruba a justiça (Am 5,7) e transforma o direito em veneno (Am 6,12); a corrupção da justiça deturpa os processos justos e os direitos do inocente ( Is 5, 23)" [12]

Veja que o ideal moral da justiça prevalecia e informava o regramento legal, as normas e sua aplicação. Mckenzie [13], citado por Sella (2003:71), aduz que a idéia hebraica de justiça consistia tanto na reivindicação de um direito, quanto na prática justa de um processo pelo qual se reivindicava o próprio direito ou se afirmava a própria inocência. Resgata ainda Sella as teses de outro estudioso, Pinzetta, para afirmar a predominância da religiosidade sobre o direito, demonstrando a confusão da terminologia jurídica com a teológica. Naquele sistema jurídico, Pinzetta, "é Deus que dá a sentença. Ele é o ponto de referência. Se a sentença do juiz não for de acordo com a sua, não há justiça (cedaqah). Portanto, para haver a çedaqah é preciso agir conforme a Lei de Deus". [14]

Citando variadas passagens do Antigo Testamento, Sella (2003:73) demonstra que o ideal do justo na antiga sociedade hebraica manifestava-se sob quatro formas básicas: a) compromisso da autoridade (juiz, rei) de fazer justiça, integrando o pobre no seu direito; b) manutenção de conduta compatível com os preceitos divinos; c) busca da sabedoria, ou seja, a justiça como sendo a sabedoria posta em prática; d) a justiça como sendo o reconhecimento divino pelas boas obras, uma recompensa devida aos justos.

Importa sublinhar que a totalidade dos exegetas reforça a constante preocupação social das leis semíticas manifesta na proteção do pobre e do injustiçado. Nessa direção, Sella (2003:74), agora com suporte na pesquisa de Léon Epsztein, reitera a prevalência da religiosidade sobre a experiência jurídica de Israel, de modo a submeter "o legislador (rei ou juiz) à vontade de Javé (...) porque ele recebeu de Deus as virtudes do direito e da justiça, mishpat e çedaqah ( Sl 72,1)". Esta prevalência traduz radical diferença entre o direito hebreu e os demais, como o egípcio, haja vista que naquele os reis e juízes eram concebidos como simples arautos da justiça divina e não os seus criadores. Nas palavras do autor:

As diferenças entre o rei em Israel e o faraó do Egito é que o rei israelita tem somente um papel instrumental e funcional à vontade de Javé, ou seja, uma função judiciária e sem criar o direito, pois a fonte de direito é Deus. Isto é, o rei israelita não tem um poder legislativo como o faraó. O papel do rei é restituir o direito sobretudo protegendo os fracos e os pobres, as viúvas e os órfãos. A outra diferença é que a justiça não é procurada pela vantagem econômica e política como era nos outros povos vizinhos. A justiça semita tem o próprio objetivo de fazer privilegiar o direito e, por isso, é fortemente marcada pela imparcialidade. Nesse sentido, os códigos israelitas são claros: "Não cometam injustiças no julgamento. Não seja parcial para favorecer o pobre ou para agradar o rico: julgue com justiça os concidadãos" (no Código de santidade: Lv 19,15); no Deuteronômio 1,17 está escrito: "Não façam acepção de pessoas no julgamento: escutem de maneira igual o pequeno e o grande". [15]

Afora essas e outras substanciais diferenças, o direito hebreu também guardava algumas semelhanças com a ordem jurídica de povos vizinhos. Tal se deve à proximidade geográfica de várias outras etnias, como também à dominação a que foram submetidos os hebreus ao longo de sua trajetória. Nesse sentido, demonstrando o peso da cultura sobre a configuração do sistema jurídico, o direito hebreu, tal como o mesopotâmico, previa penas severas, tal como a pena de morte, para atos como desacato moral ou agressão física à autoridade paterna ou materna. [16] De modo especial, por força da influência cultural mesopotâmica, os hebreus conheciam o princípio de talião, inserto no livro doÊxodo:

"Quem ferir mortalmente um homem será morto (...). E quando homens em briga ferirem uma mulher grávida, mas a criança nascer sem problema, será preciso pagar uma indenização, a ser imposta pelo marido da mulher e decidida por arbitragem. Mas se acontecer dano grave, pagarás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão." [17]

O livro do Êxodo traça ainda várias outras regras dedicadas a ordenar o uso de bens, a destinação da propriedade agrária e as obrigações em geral (como o empréstimo).

Na esfera familiar, embora consentisse na poligamia, aquele direito impunha indenização ao pai na hipótese de sedução de filha virgem por varão não compromissado ao casamento, sancionava mortalmente a zoofilia, condenava a homofilia e repelia o incesto. [18] Já no campo social, ocupava-se da proteção do migrante, da viúva e do órfão, bem como condenava veementemente a usura, disposição essa, conservada até hoje pelo direito canônico.

Interessante é que a corrupção também recebera tratativa naquele direito. Fenômeno ancestral, cuja prática e repressão se verifica em variados tempos e lugares [19], a corrupção desde sempre transita com desenvoltura no espaço público, manifestando-se nas funções de administração, legiferação e jurisdição. Em face dessa constatação é que vários trechos do Pentateuco admoestam para a observância da imparcialidade dos julgadores e a lealdade das partes no exercício de atos processuais, nos julgamentos, verbis:

"Não espalharás (ou receberás, se juiz) boatos sem fundamento. Não tomes o partido de um culpado, dando um testemunho falso. Não seguirás uma maioria que quer o mal, e não intervirás num processo inclinando-te em favor de uma maioria parcial. Não favorecerás com parcialidade um fraco no seu processo (...) Não falsificarás o direito do teu pobre no seu processo. Manterás distância de uma causa mentirosa (...) Não aceitarás propinas, pois a propina cega as pessoas lúcidas e compromete a causa dos justos". Após este excerto contido no Êxodo, adiante, no Levítico, outra regra (já citada alhures) dirige-se especificamente ao julgador: "não cometais injustiça nos vossos julgamentos: não dês vantagem ao fraco e não favoreças o grande, mas julga com justiça o teu compatriota." [20]

Ao estudarmos o direito hebreu urge considerar que uma das grandes questões desse grupo consistiu em haverem-se constituído como povo sem antes possuírem uma pátria. Fora justamente a partir da travessia do deserto – logo em terra estrangeira- que os hebreus se reconheceram como povo para, somente após, se enraizarem num território. E, ao que parece, apenas por ocasião do retorno do Egito – quando pactuaram o Código da Aliança – é que os hebreus se tornaram efetivamente sedentários e se reorganizaram em torno dos chefes militares chamados Juízes, lideranças guerreiras, políticas e religiosas.

Durante o juizado, estruturados de forma associativa, buscaram promover a defesa comum contra povos vizinhos e fomentaram a prosperidade econômica coletiva. Fizeram-no mediante a criação da denominada confederação das doze tribos de Israel, que durou cerca de 200 anos. Nessa confederação, as leis previam a propriedade coletiva da terra (porque cria-se que Deus era único dono dos bens), proteção aos pobres e a descentralização do poder político - compartilhado entre as famílias - as quais possuíam seus líderes, os anciãos. Em épocas de ameaça externa, escolhiam-se chefes militares, os chamados juízes. Todas as famílias participavam das decisões políticas mediante sua organização na assembléia ou no conselho das tribos. As leis não apenas garantiam o uso coletivo da terra e a defesa dos mais fracos, como órfãos e viúvas, mas também zelavam pela unidade do culto monoteísta, no qual os israelitas professavam a fé num deus presente na realidade cotidiana, um deus militante e libertador (isra-el, deus luta, em hebraico). O governo dos juízes assinalou o fim do período patriarcal. Os juízes mais conhecidos foram Gedeão, Sansão e Samuel, esse último, idealizador da instalação de um governo monárquico para os hebreus.

O declínio do equilíbrio (econômico, jurídico e político) típico do regime da Liga das Tribos viria findar-se graças à diferenciação econômico-social surgida entre as famílias. Seguindo a trilha das teses defendidas por Marx, o crescimento econômico obtido por algumas tribos faria surgir diferenças sociais, políticas e ideológicas intransponíveis no seio daquela confederação político-religiosa, trincando-lhe a harmonia. Também contribuíra para a queda da Liga a necessidade de segurança diante das constantes ameaças representadas por estrangeiros, bem assim o intuito expansionista e comercial promovido pela produção de excedentes econômicos por parte de famílias enriquecidas. Tais mudanças repercutiriam na organização do poder político então praticado. E como quem detém poder econômico detém poder político, a centralização do poder tornou-se inevitável: para corresponder às novas necessidades implantara-se o regime monárquico, em 1052 a C, sob a liderança de Saul. Entre outros principais monarcas, registra-se Davi e Salomão. Com a morte deste, o reino de Israel dividira-se em dois: o reino de Judá, ao sul, e o de Israel, ao norte.

A alternativa monárquica, que surgiu como saída para graves problemas, converteu-se em outro ainda maior. O advento do regime monárquico fez recrudescer a concentração de poder nas cidades, principalmente nas capitais Samaria e Jerusalém. Nesse período, as cidades voltaram a representar o pior da cultura daquele povo: núcleo irradiador de corrupção, da exploração dos pobres, da idolatria e muitas outras perversões. Na esfera do direito, a crença na justiça caíra em profundo descrédito. A justiça tornara-se instrumento legitimador do poder manifesta no desvirtuamento das leis, na prática de julgamentos tendenciosos os quais foram veementemente combatidos por pregadores (lideranças chamados profetas) como o campesino Amós que, exortando os governantes e magistrados, dizia:

"Vocês vendem o homem justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias. Vocês esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos. Vocês transformam o direito em veneno e derrubam a justiça." Em severa crítica à falsa justiça praticada pelos juízes do povo, à falta de retos critérios de afirmação do justo na conturbada sociedade israelita, dizia o profeta: " Acaso cavalos galopam sobre rochedos, e lavra-se aí com bois, para fazerdes com que o direito se torne veneno, e o fruto da justiça, uma cicuta?". [21]

Enfim, a derradeira decadência da sociedade hebraica tivera lugar no período monárquico. Com o tempo, tanto o reino do norte quanto o do sul, após sucessivas crises econômicas, sociais e religiosas, caíram sob o domínio de novas superpotências. O norte fora dominado pelos assírios por volta do século VIII a C e o sul, Judá, sucumbira ante o poder dos babilônicos, no século VI a C, promovendo-se, então, a primeira diáspora do povo hebreu. No século VI, os hebreus, libertos pelo rei Persa, Ciro, retornaram à Palestina e lá constituíram um pequeno Estado na região de Judá, sendo a partir de então chamados judeus. Posteriormente, os gregos, os macedônios e os romanos também dominaram a Palestina. [22]


4- A sociedade grega

A chamada cultura clássica é vasta. Por onde começar o seu estudo? Emprestando a resposta à Heidegger, com os gregos! Porque na Grécia estão as sólidas bases de toda a cultura ocidental. Efetivamente, com genial inventividade, lançaram os gregos as sementes da Física, da Matemática, da Retórica, da Política e da mãe de todas as ciências, a Filosofia. Foram também eles os primeiros a se habilitarem na definição do homem. Sócrates definira o homem como ser dotado de palavra e pensamento - zoon logikon echon. Aristóteles, na Política, definira o homem com suporte em sua aptidão para a coexistência social, em sua vocação política, segundo a participação na vida da pólis, portanto, como ser capaz de dar vida, de formar ou plasmar a sociedade - zoon politikon. [23]Vem-nos também dos gregos, precisamente de Aristóteles, a célebre tripartição de poderes resgatada na modernidade pelo Barão de Montesquieau. Entretanto, antes, de nuclearmos a alguns aspectos da cultura e do direito daquele povo, cuidemos primeiro de situá-los e apreender a sua formação.

A Grécia localiza-se na Península Balcânica, no Mediterrâneo oriental, entre os continentes europeu e asiático.Seu território divide-se em três regiões distintas: Grécia continental, peninsular e insular. O território grego apresenta topografia montanhosa, formando inúmeros vales. O litoral é recortado e apresenta vários portos naturais o que contribuiu para o desenvolvimento da navegação e do comércio.

A compreensão da formação sócio-cultural, política e jurídica dos gregos - assim como a dos romanos – acha-se permeada por elementos mítico-religiosos. A religião primitiva funcionou, naquelas sociedades, como fundamental amálgama a vincular (donde um dos sentidos do vocábulo religião derivado de re-ligare, verbo latino que significa encadear, unir, atar), com profundo significado, as variadas experiências sociais, tal como a experiência jurídica. Unindo o profano ao divino, a religião primitiva plasmou a forma da cidade-Estado antiga, centrada no culto sagrado. Essa é a perspectiva defendida por Fustel de Coulanges na Cidade Antiga, muito embora não atraia, nesse particular, a aceitação de significativa corrente de historiadores.

Ensina Cardoso (1987: 19) que a célula inicial da sociedade grega era o genos, família de nobres que agregava demais membros livres e escravos, além de variado conjunto de bens (terras, animais, edificações, plantações, víveres, etc), elementos humanos e materiais que se subordinavam a um chefe comum. Os genos eram também uma nucleação cultural e religiosa, de sorte que os membros desse grupo aristocrático criam descender de um herói ou de um deus. Ao entorno desse ampliado núcleo familiar, (também denominado oikos) viviam os trabalhadores que prestavam serviços de medicina, de artesanato especializado e outros ofícios.

Muitas são as teorias existentes acerca da formação da pólis grega. Porque não nos interessa tal polêmica, poder-se-ia afirmar que a cidade-Estado surgiu a partir da integração de plúrimos fatores como os conflitos agrários, a superpopulação, a crescente urbanização, a divisão do trabalho e o crescimento da atividade mercantil. A partir da progressiva conjugação desses elementos, a primitiva estrutura gentílica se transformaria na nucleação urbana, econômica, política e jurídica: a pólis grega.

Ao longo do tempo, destacaram-se, na Grécia continental, as cidades-estado de Tebas, Delfos e Atenas. Na região peninsular - separada do continente pelo golfo de Corinto – sobressaíram-se Esparta, Corinto e Olímpia. Já na Grécia insular, que compreende várias ilhas ao longo do mar Egeu e do Mediterrâneo, sobressaíram-se Creta, Lesbos e Eubéia. Entre todas as cidades, merece destaque a cidade de Atenas, a precursora da ordem político-democrática ocidental, o que se fará adiante.

4.1- Formação étnica

Vários foram os grupos que ao longo do tempo povoaram a península. Sabe-se que os primitivos habitantes da região eram povos seminômades, migrantes de origem indo-européia. Embora cressem serem autóctones, ou seja, originários da própria terra em que habitavam, os gregos compunham-se da miscigenação de povos vários. Os seus primeiros ocupantes viveram em Creta, por volta do ano 2000 a C. Um século depois, migrando da Ásia para a Península, chegaram os aqueus e, posteriormente, os jônios, os dórios e os eólios.

4.2- Periodização

Não se deve esquecer que toda periodização acerca do fenômeno histórico é arbitrária, haja vista que a História se processa num continuum em que os eventos se entrelaçam em inevitável corrente de relações. Desse modo, a divisão aqui adotada tem como suporte critérios sedimentados pela historiografia e objetiva tão-somente inteligir os fatos pretéritos e suas múltiplas interfaces: sociais, econômicas, religiosas, políticas, jurídicas e culturais.

Costumeiramente, divide-se o processar da civilização grega nos seguintes períodos:

- pré-homérico (século XX a XII a C), época da formação do povo grego, marcada pela vida agrária;

- homérico (século XII a VIII a C), período da organização gentílica (da vida nas gens);

-arcaico ( século VII e VI a C), que marca a transição entre a vida gentílica e rural para a formação da polis. Período quando ocorre a consolidação da oligarquia política ateniense;

- clássico ( século V - IV a C), consolidação da pólis e apogeu da vida político-jurídica grega, notadamente de Atenas;

- helenístico (século IV - II a C), fase de decadência político-econômica e conseqüente dominação grega pelos macedônicos.

4.3- A civilização cretense

Dos primórdios das civilizações egéias muito pouco se sabe, haja vista que a escrita primitiva daquelas populações ainda não fora suficientemente decifrada. Desse modo, as sínteses até hoje elaboradas sobre os primitivos gregos devem ser atribuídas aos esforços da arqueologia e do estudo de textos lendários como os de Homero. [24]

A ilha de Creta, situada ao sul da Península Balcânica, foi o primeiro centro cultural do mar Egeu. Provavelmente, entre o ano 1700 e 1450, verificou-se em Creta o florescimento de uma monarquia teocrática absolutista, o governo dos Minos. Dados arqueológicos revelam a construção de palácios, como o de Cnossos, cujos afrescos permitem certas inferências políticas e sociais. A julgar pelos elementos arqueológicos, acredita-se que do trono palacial (palácio de complicada arquitetura, como que um labirinto) o governante desempenhava funções variadas como a administração do Estado, do exército e do comércio, cuidando, ainda, da distribuição da justiça. Governando através de uma burocracia estatal própria, o soberano editava atos e os fazia gravar por escrito.

A experiência econômica cretense baseava-se no exercício da atividade comercial e em incursões imperialistas promovidas na Península Balcânica [25]

Quanto às práticas religiosas, vigorava entre os cretenses, por força da influência de outras culturas orientais, um princípio feminino de fecundidade expresso na representação da Grande-Mãe, deusa servida por outras sacerdotisas, revelando, assim, um autêntico culto à fertilidade. A vida social cretense notabilizou-se pela pequena distinção entre classes sociais, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e pela pouca importância atribuída à escravidão. Entre suas principais cidades cita-se Faístos, Cnossos, Haghia e Tríada.

4.4- A civilização aquéia (ou micênica)

Diga-se, preambularmente, que a civilização aquéia costuma ser estudada após a civilização cretense. Tal conduta tem natureza meramente metodológica, posto que não se pode olvidar que ambas as civilizações hajam coexistido por um certo tempo.

Os aqueus eram povos de origem indo-européia que ocuparam Cnossos por volta de 1450. Da fusão e evolução entre as culturas cretense e aquéia resultou a denominada civilização creto-micênica, em referência a mais importante das cidades aquéias, Micenas, sede do palácio real.

A principal atividade econômica dos micênicos era o comércio, então praticado com egípcios, mesopotâmicos e habitantes da Itália. Justamente em razão da expansão de seus interesses marítimo-comerciais é que os micênicos se envolveram, ao lado de Esparta e demais cidades, na fabulosa guerra de Tróia [26], cidade que ocupava estratégica posição econômico-comercial ao norte da Ásia Menor - banhada pelo mar Egeu e próxima ao mar Negro, o que facilitava o contacto com o ocidente pelo mediterrâneo e com o extremo oriente, pelo mar Negro.

4.5- A organização gentílica

A partir do século XVIII nova onda de povos imigrantes atinge a Grécia, destacando-se a pacífica chegada dos jônios e eólios os quais se misturam à organização social local. Migram os jônios para a Eubéia, Naxos e demais regiões próximas a Àtica e para a porção central da Ásia Menor. Essa região ficou depois conhecida por Jônia, local onde seria fundada posteriormente uma confederação de cidades.

Os dórios chegaram à região no século XII. Um povo dotado de sólida cultura. Ao suplantar a cultura dos aqueus, provocou-lhes a dispersão ao longo do mediterrâneo.

Não é demais reiterar que os dados acerca desse período são esparsos e precários e quase tudo que se sabe tem como fonte os poemas homéricos. Aliás, muito pouco se conhece sobre a formação da cidade-Estado grega, organização política que se constituiu no século VIII. [27] O que se sabe, com certeza, é que os povos que habitavam a Grécia praticavam formas sociais de organização político-familiar – as gens, as fratrias e as tribos – enredadas por determinante elemento religioso.

A organização social micênica assentava-se na gens, organização social baseada em grandes famílias cujos membros acreditavam descender de um mesmo antepassado. Os membros das gens tinham-se por parentes e cultuavam deuses comuns. A economia baseava-se na agricultura, na propriedade coletiva da terra e em uma incipiente atividade comercial alicerçada na troca. A religião era politeísta cujas cerimônias exaltavam e cultuavam os heróis e seus grandiosos feitos.

No campo do direito e da política, cada gens elegia um chefe que se revestia de atribuições militares, religiosas e jurídicas (basileu) cujo encargo era exercido sem qualquer remuneração ou privilégio. Naquele período, em que prevalecia o poder comunitário, com suporte nos clãs, poucos e relativamente singelos eram os conflitos de interesses verificados na sociedade grega. Contudo, nos séculos seguintes, o surgimento da propriedade privada, a concentração de terras e de demais riquezas nas mãos de poucos viria produzir grave conflitividade social demandando, pois, a instalação de um governo oligárquico. As classes abastadas, receosas quanto aos riscos representados pelas camadas excluídas, bem assim pela ação de grupos vizinhos, passaram a reivindicar a instalação de um governo de segurança, centralizado e forte.

É consentâneo o fato de que a civilização grega primitiva desconhecera regimes políticos absolutos. Mesmo na época da Monarquia, o rei (basileu) governava com apoio em duas importantes instituições, um conselho de anciãos, denominado gerusia (Esparta) e Areópago (Atenas), respectivamente, e uma assembléia popular formada por guerreiros. Entretanto, com o passar do tempo, o crescimento das forças produtivas imprimiria nova configuração às instituições jurídico-políticas. A expansão do comércio (na região da Àsia Menor), o crescimento do latifúndio familiar e o poderio bélico das camadas enriquecidas viria arruinar a organização monárquica em torno dos clãs. No novo cenário econômico delineado, a aplicação do direito funcionava como importante instrumento legitimatório e mantenedor do status social da emergente aristocracia. O impacto de tais mudanças sobre a vida jurídica fora assim assinalada por Petit:

"As grandes famílias dominavam o conselho dos Anciãos, distribuíam a justiça segundo as leis não escritas (a Têmis), uma justiça freqüentemente privada e baseada na "solidariedade familial" e eram as únicas a conhecer os arcanos da religião, o meio de conciliar para todos os favores dos deuses. O rei tendia a ser apenas um magistrado, de atribuições religiosas secundárias; os que não pertencessem a um genos eram explorados sem apelo." [28]

Com a paulatina desagregação da sociedade gentílica as fratrias tornaram-se aglomerados de destaque social. Em seu interior, importantes questões - casamento, filiação, maioridade, serviço do exército e atribuição de direitos cívicos - eram tratadas e decididas sempre aos cuidados dos deuses. Já as tribos representavam a agremiação de várias fratrias unidas pela adoção de um ancestral primitivo, e obedientes a um mesmo rei (phylobassileus). No interior das tribos a prestação da justiça incumbia ao basileu ou rei. Das fileiras tribais recrutavam-se os membros da magistratura, os participantes da assembléia conselheira da realeza e os servidores do exército.

A evolução dos fatores sócio-econômicos formataria novas instituições sociais e políticas. O declínio da vida comunitária e a paulatina apropriação e concentração dos meios de produção nas mãos de certas famílias ensejaria a consolidação de uma nova classe social, econômica e juridicamente preponderante: a aristocracia. Então, a vida na cidade suplantaria a vida no campo, a vida litorânea e comercial precederia à vida interiorana, restando, no campo, uma agricultura escassa e pauperizada. Nesse período, as cidades-Estado se afirmaram como centros independentes e autônomos nos aspectos políticos, religiosos e militares. A seguir, constituídas, organizadas e bem armadas elas dariam início a um grande movimento de expansão em toda a região balcânica entre os séculos VII e VI.

4.6- A Grécia Arcaica

As instituições aristocráticas típicas do regime monárquico prevaleceram durante séculos na Grécia Antiga. Enquanto durou o regime aristocrático, a aplicação do direito obedeceu a um regime de leis calcado na parcialidade, no privilégio de classes, na excludência e no poder exercido por uma minoria. Segundo informa Petit (1979: 79), as assembléias da Grécia arcaica eram formadas unicamente por proprietários os quais detinham prerrogativas como o de votar leis, por simples aclamação, e de eleger magistrados. Os conselhos, sempre restritos, compunham-se de antigos magistrados ricos e idosos, dotados de amplo poder decisório, enquanto outros magistrados – chamados pritanos, arcontes ou dikastai (juízes) - cuidavam da execução das decisões dos primeiros. Em cidades mais conservadoras, os juízes exerciam suas funções sob o regime da hereditariedade ou da vitaliciedade; noutras, mais democráticas (como Atenas), eram eleitos anualmente. De todo modo, era comum naquele regime o conluio das poderosas famílias com vistas a compartilharem os postos essenciais da vida pública.

Com o tempo, o dinamismo da vida sócio-econômica cuidaria de por fim à predominância política aristocrática. Entre os fatores explicativos da crise do regime oligárquico costuma-se citar o aparecimento de nova classe social emersa da colonização grega e da atividade comercial: uma burguesia mercantil enriquecida e ávida por tomar parte nos negócios públicos. Além desse importante fator, registra-se também o surgimento e a lenta difusão da moeda e de novas técnicas bélicas (como a substituição de lentos navios por ágeis naus de combate, movidas e equipadas por representantes de camadas populares, bem assim as inovações na técnica de combate em terra, substituindo-se o pesado lutador pelo soldado ágil, o hoplita, organizado em densas falanges). Essas novas circunstâncias promoveram a inclusão de grupos sociais marginais na ordem econômica e na defesa da pólis, de sorte que, por tais razões, passaram a também reivindicar real espaço na condução da vida política. Destaque-se que o processo de integração de tais camadas nas decisões políticas estendera-se no tempo e marcara-se por violentos conflitos civis cuja intensidade e duração variara de cidade para cidade, conforme a capacidade de resistência da privilegiada aristocracia de então.

Foi nesse cenário crítico que surgiriam as primeiras tentativas de condensação legislativa. O avanço das forças sócio-econômicas e produtivas, os conflitos de interesses entre povos e entre indivíduos de mesma raiz criariam a necessidade de objetivar, de se inscrever em formas e fórmulas o direito consuetudinário até então praticado. E para quê tal esforço?A objetivação do direito visava a controlar o exercício do poder dos julgadores, a findar com os privilégios no conhecimento das leis, tornando-as públicas, acessíveis ao povo, obedecendo, assim, às palavras Teseu, proferidas nas Suplicantes de Eurípedes, ao afirmar que "quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça social."Licurgo de Esparta, Drácon e Sólon de Atenas foram os mais conhecidos magistrados do período arcaico.

Como se tem verificado, as formas de governo na Antiga Grécia, antes de acederem à democracia, materializaram-se na monarquia (centrada no poder real e no conselho de nobres), depois na oligarquia aristocrática (em que os nobres proprietários governavam representados pelos arcontes) e, eventualmente, na tirania (governo de lideranças populistas que combatiam os privilégios da aristocracia agrária).

Relativamente a essas variadas formas de governo praticadas nas muitas cidades gregas, importantes contribuições foram legadas pelo ensino de Aristóteles, que viveu entre 384-322 a. C. Após estudar mais de uma centena de constituições, Aristóteles baseara-se na constituição de Atenas para formular sua teoria política (politéia, em grego, que significa Estado).

Evitando vislumbrar um regime político idealizado, concebido a priori, – como o fizera Platão na República – Aristóteles, partiu da realidade política concreta para então distinguir três tipos fundamentais de constituição: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Sem rejeitar qualquer uma delas, aduzia que todas essas formas de governo poderiam ser boas segundo a época, as condições e as necessidades dos povos. Contudo, não deixou Sócrates de preconizar um modelo ético para o Estado: para o estagirita, o Estado perfeito seria aquele fundado no equilíbrio (mesotes), no meio-termo, de modo a evitar os extremos, quer da opulência, quer da escassez. [29] Em termos políticos, esse meio-termo ou essa áurea mediocridade aristotélica apresentava como condição de virtude o evitar-se a prevalência dos muito ricos ou dos muito pobres na gestão do Estado. Desse modo, pretendendo a evitar a total exclusão de grupos por outros, o Estado aristotélico preconizava a prevalência do atendimento à diversidade de interesses sociais de modo a materializaria o virtuoso equilíbrio ético na gestão estatal.

As sempre oportunas reflexões aristotélicas impelem-nos à sua transcrição:

"Chamamos monarquia ao governo em que o poder, dirigido para o interesse comum, pertence a um só. Aristocracia àquele em que o poder é confiado a mais de um, isto é, a poucas pessoas, escolhidas entre as mais honestas, e que só têm em vista o bem comum do Estado e de seus membros. E democracia aquele governo em que o poder é do povo, que governa para a utilidade pública. Essas três formas de governo podem degenerar em governos viciados: a realeza em tirania, a aristocracia em oligarquia, a democracia em demagogia." E prossegue: "a tirania é a monarquia orientada para o interesse do rei; a oligarquia é a aristocracia voltada para o interesse dos ricos; e a demagogia só vê o interesse dos pobres; nenhuma dessas formas de governo se ocupa do interesse geral.

A aristocracia distribui as honras (os cargos públicos) segundo o merecimento das pessoas. A oligarquia os distribui segundo a riqueza, excluindo os pobres (...). Na democracia, o governo caminha segundo a lei. Mas onde as leis não têm força, aí aparecem os demagogos. Eles pisam as leis aos seus pés e fazem predominar os decretos." [30]

Como se vê, para Aristóteles a virtude objetivada no Estado é a justiça que, numa comunidade, significa tratamento com igualdade para todos os que se igualam, e que a busca do justo "é a busca do meio-termo; pois a lei é o meio-termo".

4.6.1- O despertar da democracia ateniense: Drácon e Sólon

Interessa aproximar da experiência política ateniense porque fora lá que emergiram os pilares do regime democrático contemporâneo. Entre os sustentáculos jurídico-políticos urdidos pelos cidadãos de Atenas estão os princípios da representação popular, o princípio da participatividade política, bem ainda os princípios da isonomia e da legalidade, todos retores do regime democrático moderno.

Atenas inaugurou o direito político, o que justifica dela se aproximar. Atenas fora fundada pelos jônios que se estabeleceram na península da Ática, região habitada pelos primitivos cretenses. Contam as lendas que os jônios, liderados por Teseu, dominaram as aldeias cretenses e lá fundaram uma cidade que batizaram de Atenas em homenagem à deusa da sabedoria, Atená. A primeira forma de governo de Atenas fora a monarquia. Nesse regime, o rei (basileu) desempenhava funções religiosas, jurídicas e administrativas e a participação no governo restringia-se aos eupátridas (os bem-nascidos, ou cidadãos) os quais tomavam parte do poder mediante a eleição de uma assembléia de representantes, chamados arcontes.

Por volta dos séculos VIII e VII a.C, o governo passou a ser exercido por um grupo de arcontes, magistrados eleitos entre membros da aristocracia, em número total de nove, os quais exerciam funções variadas: funções religiosas, outros militares, e outros ainda dotados de atribuições judiciárias. Entre os arcontes, seis incumbiam-se da jurisdicção e tinham por obrigação redigir e publicizar repertórios de decisões já proferidas e tornadas obrigatórias para toda a comunidade. Ao lado do arcontado, funcionava o Areópago, um conselho de anciãos formado por ex- arcontes, uma espécie de tribunal supremo e vitalício, zeloso pelo funcionamento do regime.

Ao tempo dos primeiros legisladores a situação em Atenas era conflituosa: aos fatores naturais, como a escassez de terras férteis e o aumento populacional, somavam-se outros, de ordem política, como a insatisfação popular com o regime aristocrático e o empobrecimento massivo dos camponeses cujas terras vinham sendo hipotecadas em face de crescentes dívidas contraídas junto à nobreza latifundiária. Nessa época, no campo se praticava a escravidão por dívidas. Como saídas para problemas como superpopulação e escassez alimentar, os gregos promoveram expansões ao longo do mediterrâneo em busca de novas terras. Tratava-se do colonialismo grego.

Em solução aos embates econômicos e políticos entre a nobreza e a multidão popular surgira a atividade legislativa que, em Atenas, inicia-se com Drácon, em 621 a.C. Além de consolidar o direito consuetudinalizado em leis, Drácon dotou-as de peculiar severidade. Pretendia, desse modo, coibir antigas vinditas familiares entre os nobres e ofertar maior proteção à prática dos negócios públicos. Escritas em pedras e colocadas na praça pública (ágora), as leis de Drácon tinham, entretanto, caráter conservador porquanto mantinham inalteradas as bases da organização social e política. Contudo, elas abrigavam inegável fator de equidade social porquanto retiravam das mãos dos eupátridas o privilégio do conhecimento das leis, e, conseqüentemente o poder de sua aplicação. As medidas abraçadas evitavam o arbítrio dos eupátridas na manipulação da aplicação das normas legais - prática comum em face do direito não escrito até então vivenciado - de sorte que ao conjunto das leis todos deviam obediência, ou seja, governantes, juízes e governados.Começava-se, então, a atribuir à prestação da justiça a um corpo de agentes tutelado pelo Estado. [31]

O governo conservador empreendido por Drácon manteve inalterada a estrutura político-social provocando revoltas que conduziram o legislador Sólon à magistratura. Eupátrida enriquecido pelo comércio, Sólon promoveu medidas jurídicas (de natureza eminentemente públicas) e econômicas do agrado da classe mercantil e dos camponeses: revogou a escravidão por dívidas (libertando os então cativos), impôs limites ao latifúndio, promoveu a liberação de hipotecas de endividados e incentivou a produção dos médios proprietários, fomentando, ademais, a atividade marítima mercantil.

A máxima do arconte Sólon fora "governar sem excessos". Esse legislador instituiu nova constituição e fez promulgar novas leis, de sorte que os atenienses abandonaram o código de Drácon, à exceção das leis sobre homicídio, mantidas por um certo tempo. O senso de equilíbrio almejado por seu governo pode ser captado na seguinte exortação aos ricos, lembrada por Aristóteles:

"Contenham em seus peitos os seus corações poderosos; vocês já possuem muito das boas coisas da vida; satisfaçam seu orgulho com o que é moderado, pois não iremos tolerar excessos nem reviraremos tudo da maneira que vocês querem". [32]

A democratização do exercício e do acesso à atividade jurídica dera-se também na magistratura de Sólon. Ao criar novas regras processuais, franqueou o acesso dos mais pobres (injustiçados) aos tribunais. É ainda Aristóteles quem se reporta às principais medidas adotadas no governo de Sólon:

"O que se segue parecem ser as três características mais populares da constituição de Sólon. A primeira e mais importante é que ninguém pode tomar dinheiro emprestado sob garantia da liberdade de alguém; a segunda é que ninguém pode tirar proveito daqueles que foram injustiçados; e a terceira, que dizem ter sido a que mais contribuiu para o fortalecimento da democracia, institui o direito de participar do dicastério, pois quando o povo tem o direito de votar nos tribunais, controla a constituição". [33]

No campo político, Sólon protagonizara a ulterior instauração da democracia ateniense. Embora haja também mantido a estrutura oligárquica, criou instituições cujo aperfeiçoamento marcaria o apogeu democrático ateniense. Opondo-se ao governo eugênico até então praticado, refutou o recenseamento social com base no nascimento e estabeleceu nova divisão censitária capaz de ampliar a participação na vida da pólis. Para tanto, dividiu os cidadãos atenienses em classes, com base na renda agrária anual. Mesmo tendo conservado os nobres no poder, a divisão censitária preconizada por esse legislador viria, depois, a admitir até mesmo a renda mobiliária para o cálculo do censo, permitindo, assim, a inclusão de comerciantes e armadores em altos cargos da vida política. [34]

Para institucionalizar a partilha do exercício do poder novos mecanismos de governo da vida coletiva foram criados. Sólon instituíra a Eclésia, assembléia popular aberta a todos os cidadãos, a Hélia ou Helieu, tribunal judiciário popular, e a Bulé, conselho composto de 400 membros representantes das tribos cuja função consistia no controle do Areópago, antiga instituição política formada pela nobreza aristocrática.

Entretanto, apesar das substanciais modificações políticas, as ações implementadas demonstraram-se insuficientes para solver os conflitos sócio-econômicos efervescentes na sociedade ateniense. E o insucesso das reformas legislativas na contenção das disputas sociais promoveria a ascensão de tiranos [35] ao governo, tendo sido Psístrato o primeiro deles. Aristocrata de raiz, Psístrato ascendera ao poder com suporte em sua fortuna pessoal e no apoio das insatisfeitas camadas populares. Seu governo teve como marcas o incentivo ao comércio marítimo, a construção de inúmeras obras públicas, o confisco de terras da nobreza para distribuição entre os camponeses e o patrocínio de variados eventos culturais, o que contribuiu para atrair a Atenas muitos poetas, filósofos e artistas.

4.7- O período clássico e seu legado jurídico-político

4.7.1- O governo de Clístenes

A tirania de Psístrato cedera ante as reações aristocráticas lideradas por Clístenes, político de raiz nobre que assumira o governo de Atenas a pretexto de introduzir amplas reformas políticas na condução da pólis. Seu governo se notabilizou pelas regras introduzidas no direito público.

A nota essencial do governo de Clístenes fora a afirmação da democracia. Poder-se-ia dizer que enquanto Sólon preparara a formação da democracia, Clístenes a consolidara. E o fizera neutralizando a força das facções regionais e o extremo poderio da aristocracia rural. Para tanto, substituiu a divisão social baseada em tribos étnicas, instituindo nova classificação fulcrada em dez tribos e 160 divisões administrativas, os demos, os quais, por sua vez, se repartiram em trinta circunscrições eleitorais. Tais circunscrições contemplavam as tribos do interior, da cidade e do litoral. Das demos se recrutavam os arcontes (magistrados em número de 10), os membros da Bulé, do exército (hoplitas e valeiros) e das demais instituições. Em geral, as medidas ampliaram a participação social nas decisões políticas, abolindo (?) a votação censitária instituída no governo de Sólon que privilegiava a atuação dos membros das grandes e poderosas famílias.

Em relação à Bulé, Clístenes elevara para 500 o número de seus participantes (cinqüenta por tribo, escolhidos à sorte), tornando-a a mais importante instituição governamental, porquanto dotada de atribuições administrativas, legislativas (preparação de projetos de lei), judiciárias (apreciação de alguns processos específicos, uma espécie de competência ratione materiae.) e ainda de competência para controlar o exercício das magistraturas.

As ações desse arconte não pararam aí. Alguns registros lhe atribuem a criação do ostracismo [36], bem como a ampliação dos poderes dos estrategos militares mediante a instituição de processos eletivos (ao invés da prática do sorteio) para acesso a tais funções. Tendo ou não sido obras de seu engenho, fato é que as ações empreendidas por esse legislador foram tão significativas que a historiografia costuma qualificar-lhe como sendo o "pai da democracia" clássica. Efetivamente, o governo de Clístenes teve como mérito a ampliação da participação popular na vida pública e a criação de mecanismos políticos destinados a afastar os riscos de retrocessos tirânicos e demagógicos no cenário público. Tais ações foram imprescindíveis ao ulterior aprimoramento democrático que despontaria no século seguinte.

4.7.2- Péricles e o apogeu democrático

Se com Clístenes nasceu a democracia, com Péricles ela evoluiu. Filho de família aristocrática, Péricles foi eleito estratego no século V a.C e governou Atenas por quatorze vezes, entre 443 e 429 a.C. A sua magnitude política fez projetar a qualificação de "o século de Péricles" a todo o período remanescente ao seu governo. Entre outras medidas, criou condições efetivas à participação dos cidadãos pobres e interioranos nos debates públicos da ágora - instaurando o princípio da isonomia no regime democrático grego - além de haver diminuído o poder do Areópago, instituição aristocrática, na condução da vida pública. [37]

Nesse período, o principal órgão político (ou seja, da pólis ateniense) era a Eclésia, reunião pública da qual todos os cidadãos maiores de 18 anos participavam debatendo e votando proposições [38]. À Eclésia competiam funções administrativas (a declaração de guerra ou os tratados de paz, a tomada de contas dos magistrados), judiciárias (julgamento de certos delitos), eleitorais (deliberação sobre a escolha de magistrados, os estrategos, responsáveis pela execução das leis) e legislativas (votação de leis). Paralelamente à Eclésia, funcionavam outras instituições como a Bulé, a Estratégia e aHeliae ou Helieu.. A Bulé era um conselho composto por quinhentos cidadãos representantes das demos eleitorais. Para oportunizar o acesso indiscriminado (de ricos e pobres) nesse conselho, seus membros eram recrutados por sorteio e exerciam o mandato por um ano. Porém, apenas assumiam a função após se submeterem a exame moral (dokimasia) efetuado por antigos membros do conselho, devendo, ademais, ao final do mandato, prestar contas da atividade exercida. A principal atribuição da Bulé era a elaboração de projetos de lei os quais se submetiam à apreciação da Eclésia. A Estratégia, outra instituição do período, era uma espécie de poder executivo composto por 10 estrategos eleitos anualmente pelos participantes da Eclésia, cuja reeleição era permitida. Os estrategos exerciam a atividade sem remuneração e, de início, tinham por função capital o comando do exército. Com o tempo, ao assumirem novas funções, se encarregaram de dar cumprimento às leis votadas pelo povo. A terceira instituição, a Heliae, respondia pela prestação da justiça. Era um tribunal popular composto por seis mil cidadãos sorteados pelos membros da Eclésia para mandato ânuo, sem possibilidade de reeleição. As magistraturas eram colegiadas (em geral dez membros por categoria) e classificadas por especialidades, tal como sucedia com o arconte-rei, (basileu) encarregado das funções religiosas e da presidência do Areópago, e os seis arcontes tesmótetas, incumbidos de presidir os tribunais e de compilar anualmente as leis atenienses. Além de zelar pela prática do culto, esse tribunal popular era responsável pela condução dos processos e pelo julgamento de variadas causas públicas ou privadas, à exceção dos crimes de sangue (vg, homicídios, envenenamento e incêndio), que permaneceram na competência do Areópago. [39]

Acerca da constituição e do funcionamento dessas instituições político-jurídicas no governo de Péricles, oportuno é o magistério do historiador Petit (1979:124)

"A constituição quase não foi modificada, cabendo o essencial dos poderes à Bulé clisteniana de 500 membros, a qual resolve os negócios correntes, dirige a diplomacia, julga os magistrados (com apelo da Eclésia) e tem a iniciativa legislativa pelos seus proboulemata (projetos de lei). A Assembléia, reunida mais de 40 vezes por ano, exprime diretamente (não há deputados) a vontade nacional: decide a respeito de tudo, a paz, a guerra, finanças, elege estrategos e tesoureiros (sendo os demais magistrados escolhidos por sorteio) e fiscaliza-os, vota leis e decretos, julga em grau de apelo certos crimes e diretamente os de Estado (traição, ilegalidade). Não há partidos organizados, cada um pode tomar a palavra, propor uma decisão ou uma emenda; mas, na prática, apenas os especialistas intervêm e a ameaça de acusação de ilegalidade evita as iniciativas inconvenientes ou perigosas. Os magistrados não são, como em Roma, os depositários da autoridade pública, mas os servidores do povo; tirados à sorte, uns são simples executantes; eleitos após docimasia (controle moral e político), os estrategos e tesoureiros são vigiadíssimos (prestações de contas) e expostos a múltiplas acusações, o que enfraquece o executivo. A justiça está igualmente nas mãos do povo: se os crimes de sangue e religiosos são de alçada do Areópago, e os pequenos delitos submetidos à arbitragem dos juízes dos demos, todo o resto passa diante do Helieu, formado de 10 tribunais de 500 jurados cada um; justiça popular, pouco corruptível por causa do número, por vezes mal esclarecida e sensível às paixões, políticas, sobretudo."

Enfim, os eventos marcantes do governo de Péricles poderiam ser agrupados da seguinte forma:

- extensão de direitos políticos a todos os cidadãos, ou seja, aos homens maiores e livres;

- instituição do princípio da isonomia, princípio indispensável ao exercício democrático;

- diminuição da influência política e jurídica da nobreza (Areópago), mediante a diminuição de seus poderes políticos e, conseqüentemente, o fortalecimento dos poderes da assembléia popular;

- atenção dispensada às camadas desassistidas da população pela implementação da filantropia que se concretizou em mecanismos como as misthoi, as indenizações e os benefícios pagos a viúvas, órfãos e mutilados em guerras, entre outros.

Em síntese, as principais características do direito grego residiram na valorização da oralidade na prática dos atos jurídicos, (donde o apreço à retórica), na popularidade dos tribunais, compostos por pessoas comuns, tirados à sorte e, ante a inexistência do instituto da representação judicial, na laicidade dos atores forenses, de sorte que a atuação nos tribunais era feita pelos próprios particulares interessados na causa. Releva ainda anotar que a constituição de tribunais populares em muito contribuiu para a formação da justiça por arbitragem naquela sociedade, levada a cabo por árbitros públicos e privados. Por último, em símile com a figura dos Juizados Especiais tão em voga na atualidade, os gregos também instituíram, a seu modo, juizados especiais itinerantes destinados a apreciar demandas de pequeno valor.

Compreendida enfim a formação, a estrutura e o funcionamento das instituições democráticas gregas, releva abordar os séculos que sucederam ao governo de Péricles. Séculos de crise, que marcaram o declínio do regime. Em breve termo, serão visitadas as causas de tanto.


5- A decadência das Cidades-Estado e o Helenismo

Sob a perspectiva desse breve estudo, os séculos V e IV a.C apresentam pouco interesse porquanto assinalam a decadência da civilização grega. E os principais fatores que promoveram essa situação podem ser agrupados em dois: a) as constantes guerras externas, sobretudo contra os persas e b) a política imperialista promovida pelas cidades-Estado, o que gerou enorme belicosidade entre as principais delas (como Atenas e Esparta) e, conseqüentemente, o enfraquecimento político e econômico do mundo grego.

A guerra do Peloponeso representara o estopim da decadência grega, iniciando-se com o ataque de Atenas a Corinto. Tal agressão produzira uma política de alianças recíprocas, gerando um estado geral de guerra entre os povos gregos. Ao aliar-se aos coríntios, os espartanos passaram a combater os atenienses, desencadeando cerca de trinta anos de lutas entre as cidades. A disseminação dessa belicosidade resultou no esgotamento da capacidade econômica – da navegação, do comércio, etc – do mundo grego.

Após sucessivos períodos de hegemonia política exercida pelas potências gregas (primeiro Atenas, depois Esparta e, por fim, Tebas) sobre as demais cidades, os gregos, politicamente divididos e economicamente fragilizados, foram dominados pelos macedônicos, povos que viviam ao norte da Grécia.

Sob a liderança de Filipe II e, depois, de seu filho Alexandre Magno, os macedônicos expandiram-se pela Ásia, Síria, Fenícia, Palestina, Egito, Pérsia e Índia fundindo a cultura oriental com a grega, originando o que se convencionou chamar helenismo. Mais tarde, com a morte de Alexandre, e a instauração de sucessivos conflitos entre os generais pelo controle do poder, o império macedônico caíra sob a conquista romana entre os séculos I e II a. C.


6- Conclusão

O Direito é fruto de seu tempo. É experiência-irmã da experiência política. Política e Direito alimentam-se reciprocamente, de sorte que esse nasce e se dinamiza com vistas a ofertar respostas capazes de possibilitar a harmônica convivência entre indivíduos, grupos e comunidades no espaço da pólis, no mundo. Direito é ciência-serviço, saber-instrumento, criatura vocacionada a solver os desafios ditados pela realidade de seu criador, pela cultura humana.

Como se viu, o direito antigo constituiu-se em face da predominante influência da religiosidade sobre sua estrutura e conteúdo e pelo apego ao sagrado como dimensão legitimadora de sua aplicação à ordem social. Desenvolvendo importante função apaziguadora, revelou-se um direito rigorosamente controlado e manipulado por governantes e classes sociais íntimas do poder.

As primeiras manifestações jurídicas se assentaram em normas costumeiras, socialmente reeditadas de geração em geração pela oralidade e pela força coesiva exercida sobre a comunidade. Apenas tardiamente, os governantes, premidos por pressões sociais, objetivaram as normas consuetudinárias. Assim sucedeu com o direito hebreu, mesopotâmico e grego.

A experiência grega destaca-se entre as até aqui estudadas em função da significativa contribuição dada à constituição da cultura jurídica ocidental, notadamente para o emolduramento dos regimes democráticos modernos. Embora primitivos elementos do direito hebreu tenham chegado até nós por força da cultura românico-cristã, a inventividade político-jurídica grega ressalta soberba e inusitada em muitos aspectos. Os gregos foram, dadas as suas condições materiais e culturais peculiares, magnânimos na criação do direito público, notadamente do direito político. Entre as variadas dimensões humanas, zelaram pela dimensão política que, segundo eles, peculiarizava o propriamente humano. Por tal razão, incitavam e favoreciam a participação do cidadão nos destinos da vida pública. E mais: alicerçaram a experiência democrática em leis ditadas pelo povo vindo a instaurar governos legais em oposição a governos ditados pelo arbítrio. E o fizeram porque criam ser um acinte à natureza humana o menosprezo à vida pública, à vivência comunitária na pólis.

Efetivamente, sábias são as lições gregas... sobretudo nesses dias em que os indivíduos escapam ao cenário coletivo recolhendo-se à falsa segurança doméstica ... dias em que os homens se desumanizam ao relegarem sua essencial vocação de ser-com-o-outro; quando se afastam, segregam, dividem-se. Em dias como os que vivemos, certamente os gregos nos apelariam ao retorno à agora e ao enfrentamento coletivo e solidário dos desafios da vida política, da vida em sociedade.

No regime do Estado Democrático de Direito, no qual todas as ações e transformações se operacionalizam sob a batuta da legitimidade (sócio-política) e da legalidade (obediência normativa), tais lições remanescem oportuníssimas. Ao apelo grego apenas acrescentaríamos a necessária fecundação do direito, e de sua aplicação, com as sementes da dignidade humana e da indistinta inclusão de todos ao abrigo da ordem jurídico-social.

E, como nos revela a mestra História, toda inclusão requer participação. E participar significa tomar parte de, tomar partido, opinar, agir. Significa escolher exercendo livre e soberanamente a consciência de que se vive junto com, de que se (con)vive associado e enredado numa mesma dinâmica nessa imensa pólis global cujos desafios reclamam a ação política de todos nós.

De fato, novamente, é preciso reconhecer aos gregos certa razão: a experiência jurídica continua sendo uma das mais refinadas expressões da vida política.


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Notas

  1. O vocábulo é aqui adotado no vigor de seu sentido literal, primitivo, formado pela preposição inter, com significado de entre, no meio, dentro de, acrescida da forma verbal primitiva ligere que significa ler. Portanto, a inteligência de algo consiste na sua leitura por dentro, na apreensão de seu núcleo de sentido, o que se dá mediante a análise e síntese de suas partes constitutivas, de modo que conhecer consiste em decompor as partes e investigar suas necessárias inter-relações tendo em vista compor o sentido de algo (síntese). Inteligir consiste, pois, em captar a rede de conexões que compõe um todo, as razões que determinam o sentido de algo.
  2. A adequação terminológica requer que se denomine condensação ou compilação - e não código - ao conjunto de regras agregadas e disseminadas naquela região. Explica-se: embora dotada de peculiar racionalidade, a atividade legislativa dos antigos legisladores em muito divergira das práticas de sistematização científica inerentes aos códigos surgidos na modernidade, a começar pela codificação empreendida na França pós-revolucionária. Os modernos movimentos codificatórios embasaram-se numa estruturalidade racional, coerente, coesa e uniforme no tratamento de temas, amparados, inclusive, por novos conhecimentos lingüísticos. Embora tenham raiz nas compilações já praticadas pelo direito canônico em fins da Idade Média, a estruturação moderna da legislação tem sede na codificação napoleônica e alemã. Note-se que, no Brasil, as codificações tardaram. As primeiras foram empreendidas apenas em fins do século XIX e início do século XX. Aqui, antes dos códigos penal, comercial, civil e processual, vigiam Cartas Régias, alvarás, leis, decretos imperiais e leis esparsas. Retornando-se, pois, ao chamado código de Hamurábi, compunha-se, na verdade, de um consolidado de regras empiricamente vividas e posteriormente gravadas em um bloco de pedra negra. Essa compilação fora encontrada em 1901, por ocasião de escavações arqueológicas feitas na cidade de Susa. Escrita em acádio, no alto da pedra há um relevo que demonstra o rei Hamurábi recebendo do deus Shamash (divindade representativa do sol e da justiça) o poder de elaborar e impor leis. A ligação estabelecida nesse código entre poder político-jurídico e religiosidade permite concluir o caráter sagrado do direito babilônico. Tal entrelaçamento pretendia obstar questionamentos ao poder instituído, haja vista que desacatar ao soberano – e suas leis – equivaleria a desobedecer aos deuses. Anote-se, enfim, que outras compilações legais precederam à de Hamurábi, tal como o código de Ur-Nammu, protótipo das leis sumerianas, babilônicas e assírias e que fora adotado na Suméria, na cidade de Ur, por volta de 2100 a.C., portanto cerca de três séculos antes do código de Hamurábi.
  3. PINSKY, 1991, p. 16. Importa considerar que as autocracias antigas conheceram também o poder das mulheres. Tanto na Mesopotâmia, quanto no antigo Egito, figuraram lendárias rainhas, poderosas por sua autoridade e conhecimento. Cite-se a rainha Nefertite no Egito e, na Mesopotâmia, as rainhas de Shibtu, de Mari, e Shudi-Ad, da cidade de Ur.
  4. Em ilustração, seguem algumas disposições do código. Sobre lesões corporais e outros delitos: " se um homem livre cegou o olho de um homem livre, o seu próprio olho será cegado; se um homem quebrou um osso de outro homem, o seu osso será quebrado; se ele cegou ou quebrou um osso a um plebeu, pagará uma mina de prata; se ele cegou o olho ou quebrou um osso de um escravo, pagará a metade do valor deste escravo; se um homem bateu na face de outro homem que é igual a ele, pagará uma mina de prata. Mas se bateu na face de um homem superior, será açoitado sessenta vezes com um chicote de couro; se um homem violentou uma mulher virgem e foi surpreendido, ele será morto e essa mulher estará isenta de culpa. Obrigações: se o inquilino pagou todo o aluguel de um ano e o proprietário da casa lhe disser para sair antes de terminar o prazo, o proprietário perderá a prata que o inquilino deu. Se um mercador emprestou a juros sem testemunhas ou sem contrato, perderá tudo o que tiver emprestado." Direito de família: " se um filho bateu no pai, as suas mãos serão cortadas; se um homem tomou uma esposa e não redigiu o seu contrato, essa mulher não será sua esposa; se a esposa de um homem for surpreendida com outro homem, eles serão amarrados e lançados à água. Mas se o marido perdoar sua esposa, então a deixará viver." Sobre responsabilidade civil:" se um médico tratar da ferida grave de um outro homem com punção de bronze, e se ele morrer, terá as mãos decepadas; se um arquiteto construir para um outro uma casa e não a fizer bastante sólida, se a casa cair, matando o dono, esse arquiteto é passível de morte. Se for o filho do dono da casa quem morrer, o filho do arquiteto também será morto."Direitos reais:" se um homem arrendar um campo para cultivo, mas não cultivá-lo e nada produzir, ele o devolverá ao proprietário e pagará a cevada correspondente à produção do campo; se um homem tem uma dívida, mas seu campo foi inundado ou secado por falta de água e por isso ali nada cresceu, então ele não dará cevada ao seu credor e nem pagará os juros desse ano; se um homem foi negligente em fortificar o dique de seu campo e por isso o dique se rompeu e as águas inundaram os campos vizinhos, então ele indenizará os que foram prejudicados. Se não puder indenizar, este homem será vendido junto com os seus bens e o total será divido entre os prejudicados."Note-se, por último, que o direito mesopotâmico não condescendia com a mentira, com a má fé, com condutas temerárias como o falso juramento. Considerava o falso testemunho e a acusação leviana crimes passíveis de aplicação da penalidade capital. Dispunha: "se um homem acusar o outro de assassinato mas não puder comprovar, então o acusador será morto."
  5. CARDOSO, 1995., p. 48
  6. MARX, 1995. p. 40
  7. MARX, K. 1946. p 30-31.
  8. A idéia do processo dialético remonta ao pensamento de Heráclito de Éfeso, na Grécia Antiga, para quem o princípio da realidade era o movimento, o constante devir. Esse pensamento fora resgatado no início do século XIX por Hegel quem concebeu o real, a história, como processo contínuo de mudança, de evolução a partir da contradição, ou seja, a partir da luta dos contrários, do conflito interno que subjaz no ser, na realidade. Vale dizer, a realidade contém em si um momento de afirmação, outro de negação e, outro, ainda, de superação do momento anterior. Esses três momentos convivem no real e constituem a chamada tríade dialética: a tese, antítese e a síntese. Para Hegel, a realidade evolui e se transforma a partir da contradição, em constante processar dialético. Como filósofo idealista e metafísico que era, Hegel acreditava que a dialética se processava tanto no real quanto no pensamento e que o ser e o pensar formavam uma unidade, de sorte que tanto a realidade natural quanto a social seriam apenas figuras do Espírito. É por isso que se diz que, em Hegel, o ideal é que explica e informa o real, não havendo distinção entre o real e o racional, entre ser e pensamento. Embora Marx tenha criticado essa posição metafísica, ainda assim do método dialético hegeliano se aproveitou para analisar tão-somente a realidade histórica, empírica, material. Marx buscou demonstrar que a realidade social é movida por contradições internas, e que a dialética é o motor do real. Como alhures se viu, para Marx são as condições materiais de vida que determinam o pensamento, a consciência. O real é que determina o ideal. São as concretas condições e relações sociais e econômicas que moldam a consciência humana, e não o contrário como defendia Hegel.
  9. Canaã era o nome de uma região situada entre o Egito e a Mesopotâmia, uma espécie de corredor comercial existente entre essas duas potências da Antiguidade. Note-se que muitas das civilizações antigas floresceram no Oriente Médio, na região da crescente fértil banhada pelos rios Nilo, Tigre e Eufrates. Ilustram-no o Egito, a Mesopotâmia (atual Iraque), a Pérsia (Irã), além de outras, vizinhas, como a Palestina (Israel), a Fenícia (Líbano) e Creta, além das mais distantes Índia e China. Observe que os hebreus, vindos primitivamente da Mesopotâmia, passaram, com o êxodo, a habitar a Palestina, região que primitivamente compreendia quase toda a costa leste do mar mediterrâneo.
  10. Interessa observar que enquanto egípcios e mesopotâmicos se unificaram em torno de governos centralizadores e despóticos, os hebreus uniram-se a partir da religiosidade, da crença em uma divindade única e comum, o javismo. Na Bíblia, o fenômeno da escravidão, bem assim a unidade religiosa desse povo, pode ser verificado em variadas passagens como Êxodo 1, 11; 2,10; 3,7-15; 3,18.
  11. BÍBLIA Sagrada, A.T. Êxodo, 20 1-17. São Paulo: Ed Loyola. 1995.p. 91
  12. EPSZTEIN, Leon. A justiça social no antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1990, p. 7. apud SELLA, Adriano. Ética da justiça. São Paulo: Paulus, 2003
  13. MCKENZIE, John. Justo, justiça, justificação. Em dicionário bíblico, 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1984
  14. PINZETTA, Inácio. Um projeto de defesa aos estrangeiros: a proposta de Deuteronômio." Em estudos bíblicos n. 27, Petrópolis: Vozes, 1990, p. 34
  15. SELLA, 2003, p. 74.
  16. BÍBLIA Sagrada, A.T. Êxodo, 21, 15;17. São Paulo: Ed Loyola. 1995.p. 93. Um basilar princípio compreensivo da cultura hebréia fora o princípio do patriarcalismo. Por ele, todas as relações sociais ordenavam-se ao entorno da figura masculina. Esse princípio, de natureza religiosa e moral, ainda agora permeia todo um conjunto de relações e papéis sociais vividos na sociedade hodierna de modo a configurar muitas das contemporâneas representações acerca do masculino e do feminino em nosso meio.
  17. BÍBLIA Sagrada, A.T. Êxodo 21, 22-25. O mesmo princípio é repetido em Levítico 24,19 e ss; e Deuteronômio 19,21. Já no Novo Testamento, precisamente no livro de Mateus (Mt 5,38) e Lucas (Lc 6, 29-30), a nova ética e o novo direito romano-cristão repudiaram a aplicação do princípio de talião ao recomendar o perdão ao agravo e a repulsa à violência como forma de promover a justiça.
  18. BÍBLIA Sagrada. A.T. Levítico 18, 6-24. São Paulo: Ed. Loyola, 1995.p. 138.
  19. A corrupção contra a qual tanto se luta, parece ser ôntica, subjacente à natureza humana, cuja manifestação desde remotas épocas, sempre fora jocosamente abordada na literatura e nas artes em geral. O conhecido cartunista Millôr Fernandes certa vez tratara do tema com peculiar ironia. Escrevera que a corrupção tivera início no Jardim do Éden quando os "proto-safados,"corrompidos pela serpente, desrespeitaram a Lei do Senhor e comeram do fruto proibido. Julgados, verificou-se o concurso de crimes: "uso indevido de bem público e formação de quadrilha". Como sanção, o Todo-Poderoso determinou-lhes a pena de exílio, a expulsão do Paraíso, além de outras sanções. Embora a abordagem do mito bíblico se dê em tom jocoso, o núcleo do relato parece conter uma constatação inafastável: que a gênese da corrupção deve ser buscada no interior do próprio homem, no desejo insaciável de auto-afirmação, no instinto de poder-potência em suas multifárias manifestações - poder político, poder financeiro, poder no exercício da sexualidade, etc. em termos políticos, já sabemos que a corrupção é filha do poder: era prática existente entre os antigos e comuníssima em Roma onde envolvia desde governadores e soldados a detentores de funções comezinhas na burocracia imperial. Lá, a corrupção, o nepotismo e o clientelismo eram condutas corriqueiras: exigia-se pagamento de propinas para quase tudo, de sorte que essas chegaram a ter seus valores como que "tabelados" pelo governo no período imperial. Na esfera da administração pública, era igualmente comum que cidadãos influentes indicassem amigos, parentes e protegidos de toda sorte para ocuparem cargos na estrutura estatal romana. No direito atual, a corrupção pública adquire expressões penais e civis: o peculato, a concussão, a corrupção passiva e a prevaricação, além dos crimes vinculados à improbidade administrativa, conforme previstos na Lei n.º 8.492/92, no Decreto-lei n.º 201/67 e noutros diplomas.
  20. Confira-se, a propósito, o livro do Êxodo, 23, 1-8; e Levítico 19,15.
  21. BÍBLIA Sagrada. A.T. Amós, 6, 12., São Paulo: Ed. Loyola, 1995.p. 653.
  22. A Palestina é uma região há muito marcada por conflitos. Durante a dominação romana, os judeus se revoltaram, em 70 d. C, com a destruição do templo de Jerusalém fato que ocasionou a sua posterior dispersão (diáspora) para variadas regiões do mediterrâneo. Mais tarde, por ocasião da divisão do Império Romano, no século IV d. C, a Palestina ficou sob o domínio do Império Bizantino. Depois, com a expansão do islamismo, a região foi dominada pelos árabes e, mais tarde, durante toda a Idade Moderna e parte da Contemporânea, fora dominada pelo Império Otomano. Ulteriormente, no século XIX, por influência de um jornalista austríaco de origem judaica, Theodor Herzl, os judeus dispersos pelo mundo foram motivados ao retorno à terra natal. Tratava-se do movimento sionista (porque preconizava o retorno a Sião) cujos apelos tiveram adesão imediata em todo o mundo. Assim, em fins desse mesmo século, milhares de judeus, sobretudo os que habitavam a Europa Central e Oriental, migraram de volta a Sião (Palestina). No início do século XX, logo após a Primeira Guerra Mundial, criou-se na região o Reino Hashemita, porém sob controle dos árabes locais. Com o advento da Segunda Guerra, o feroz genocídio judeu patrocinado por Hitler coagira as lideranças mundiais para a criação de um Estado judeu soberano, o que se efetuou em 27 de Novembro de 1947 mediante resolução da Organização das Nações Unidas, instalando-se o Estado de Israel no ano seguinte. Imediatamente após a criação do Estado judeu sobreveio a reação dos árabes locais mediante conflitos que perduraram até 1967 quando a guerra entre Egito e Israel se estendera à Jordânia e à Síria, ocasião em que os judeus, ao fim da Guerra dos Seis Dias, adquiriram o controle de toda a Península do Sinai, parte do Canal de Suez, a faixa de Gaza e as colinas de Golan, na Síria. Em 1973, surge novo conflito: a Guerra do Yon Kippur, em que Síria e Egito pretendiam retomar os territórios outrora ocupados. A cessação desse conflito dera-se graças à intervenção da ONU e dos Estados Unidos. De lá para cá, o desentendimento árabe-judeu parece não ter fim. Computando avanços e retrocessos e oscilando entre acordos e desacordos de paz selados sob o olhar (e patrocínio) de nações geopoliticamente interessadas na região, o mundo aguarda o momento de ver expirar o quase secular conflito.
  23. A filosofia grega tem periodização segundo a exponencial figura de Sócrates, pensador ateniense do século IV a.C. Divide-se em pré-socráticos, socráticos e pós-socráticos. Os primeiros, também chamados filósofos naturalistas, preocupavam-se em desvendar os segredos do universo buscando, para tanto, um princípio explicativo ou originador (arché) das coisas. Formavam várias escolas, como os Jônios (Tales, Heráclito e outros), os Eleatas ( Xenófanes, Parmênides, etc), os Pitagóricos (discípulos do matemático Pitágoras). Ao lado desse grupo, militavam outros filósofos cuja preocupação, ao contrário dos predecessores, era o humano e não mais a ordem cósmica, natural: foram chamados sofistas, os mestres da retórica, e tinham por expoente Protágoras de Abdera cujo pensamento gravitava em torno da máxima o homem é a medida de todas as coisas. No segundo grupo, temos, obviamente, Sócrates, Platão e, enfim, Aristóteles. De Sócrates sabemos que embora muito tenha ensinado, nada, porém escreveu. Seu pensamento chegou-nos pelas mãos de seguidores como Platão, nas obras Diálogos e nos Memoráveis, de Xenofonte. Quanto a Platão, suas idéias estão contidas nas obras República, Leis e no Político. Já a filosofia de Aristóteles está contida na Ética de Nicômaco, na Política, e noutros escritos. O terceiro grupo, os pós-socráticos, tem como pilares a filosofia estóica capitaneada por Zenão de Cipre, e a filosofia epicurista liderada por Epicuro de Samos.
  24. Apenas para dimensionar as lacunas na pesquisa e compreensão dessa cultura, tenha-se que os parcos conhecimentos obtidos não permitem sequer o reconhecimento e a denominação de personagens como os primeiros reis cretenses, de sorte que o termo Minos que se lhes aplica equivaleria a uma espécie de título social ou ao nome de uma dinastia.
  25. Desde sempre os mitos exerceram capital importância na formação das variadas culturas humanas. Todos os povos, em todos os tempos e lugares, se reconhecem nas metáforas que criam para explicarem-se e ao mundo que os encerra. O enorme poderio dos cretenses fora fabulosamente narrado no mito do Minotauro. Muito provavelmente, vincula-se esse relato à dominação imperialista exercida pelos cretenses sobre os demais habitantes da península, no período minóico. Conta o mito que havia em Creta um monstro - metade homem, e metade touro – que habitava um labirinto de onde ninguém jamais conseguira escapar, e a quem se ofertavam jovens em sacrifícios. Segundo a narrativa, o Minotauro fora derrotado pelo herói ateniense Teseu auxiliado por Ariadne, filha do rei de Creta, quem lhe dera um novelo de lã para demarcar o itinerário percorrido dentro do labirinto e, com isso, dele pudesse retornar. Note-se que a mitologia grega é riquíssima em imagens sociais e representações psíquicas ainda vívidas na cultura e no imaginário contemporâneo. A título de exemplo: para explicar a origem do cosmos (no relato de Nix e Èrebro) e do homem (no mito do titã Prometeu que roubara o fogo do Olimpo para transformar criaturas irracionais em homens) inventaram um universo de mitos povoados de deuses, semideuses, oráculos, crenças e cultos.
  26. Os conflitos existentes entre gregos e troianos marcaram de tal modo a vida cultural daquele povo, que fora objeto da principal obra poética grega, atribuída a Homero, a Ilíada (do grego, Ilion, Tróia). Conta essa obra que três deusas do Olimpo disputavam a conquista do título da mais fulgurante beleza: Afrodite, deusa do amor; Atena, deusa da sabedoria; e Hera, esposa de Zeus, principal deus grego. A disputa tinha como juiz um jovem mortal da cidade de Tróia, Páris. Para seduzir (corromper?) o príncipe-juiz, cada qual prometera-lhe benefícios: a primeira lhe daria a mulher mais bela do mundo; a segunda tornar-lhe-ia o homem mais sábio entre todos; a terceira, iria fazê-lo um rei. Colocado diante do dilema – a escolha entre o amor, a inteligência ou o poder – Páris optou pelo amor, elegendo e raptando a mais bela mulher, Helena, que, entretanto, era casada com Menelau, rei de Esparta. Para rever a belíssima esposa real, os espartanos iniciaram a famosa guerra. Outra importante obra do período antigo é a Odisséia (de Odisseus, Ulisses) que narra o desfecho do conflito – nela o relato da famosa estratégia do cavalo de Tróia - e o trajeto da longa viagem de retorno do herói Ulisses a Ítaca, sua terra natal. Importa frisar que embora freqüentemente utilizados pela historiografia, os poemas Ilíada e Odisséia, surgidos no século VIII, são, segundo o historiador Paul Petit, o resultado de um aglomerado de crenças, valores e visões de variados povos – aqueus, mesopotâmicos, fenícios – que fora em um certo momento coligido, não se tratando, pois, "de uma obra primitiva, mas do resultado de uma organização motivada por interesses vários, inclusive não expansionistas, que pretendiam"desencorajar a expansão grega para o ocidente", razão bastante para neles inserir o relato das trágicas aventuras de Ulisses nas proximidades da Sicília e da Itália Meridional. Ademais, o fantástico, o culto ao herói e as imprecisões que marcam esses poemas decorrem do fato de tratarem-se de obras de natureza literária, o que, obviamente, não lhes retira o mérito histórico. Aliás, como adverte Petit (1979:50), "os gregos, até o fim de sua história, admitiram serem os poemas homéricos, de certa forma, o seu patrimônio comum, o magnífico testemunho de sua unidade fundamental."
  27. As circunstâncias sócio-econômicas sugerem que a origem da pólis estaria ligada à disputas internas localizadas no seio da organização gentílica, notadamente pela posse de melhores terras, além dos constantes conflitos intertribais, o que requerera a centralização político-administrativa. Assim, para se protegerem, as gens teriam-se associado às fratrias de cujo conjunto formaram-se as tribos das quais se originaria um aglomerado urbano mais complexo, a cidade-Estado. Uma vez constituída, cada cidade representava uma ampla unidade: social, religiosa, moral, jurídico-política e econômica.
  28. PETIT, 1979, p. 43.
  29. Afirma na Política que no Estado a virtude objetivada é a justiça que, numa comunidade, significa tratamento com igualdade para todos os que se igualam, e que a busca do justo "é a busca do meio-termo; pois a lei é o meio-termo". ARISTÓTELES, Política, p. 234; 247.
  30. ARISTÓTELES. Tratado de política. Lisboa, p. 79-95.
  31. Esse efeito eqüitativo, produzido pela objetivação do direito (rejeitando-se o direito ditado pelos deuses ou imposto pelo costume de uma só classe social) fora igualmente produzido no século V, na Roma republicana, mediante a edição da Lei das XII Tábuas, compilação destinada a aplacar os ânimos revoltosos dos plebeus em face do direito da nobreza patrícia. Quanto aos efeitos da implantação do direito escrito entre os gregos, não prevalece consenso entre os historiadores. Para alguns, as reformas legislativas serviram para aumentar o controle político exercido pelos dirigentes da pólis sobre o grosso dos habitantes; para outros, aumentaram a participação popular na condução da vida pública. De qualquer modo, as circunstâncias indicam que as primeiras leis editadas tinham natureza eminentemente aristocrática. Apenas posteriormente, a partir de Sólon, é que viriam adquirir caráter democrático, deixando revelar a contínua passagem da autonomia da vida privad – como, por exemplo, a prática da autotutela -para a heteronomia típica da vida política, ocasião em que a prestação da justiça (a jurisdicção) tornou-se incumbência estatal e os cidadãos viram-se coagidos a participar da vida coletiva.
  32. ARISTÓTELES, A Constituição de Atenas, p. 258. Importa destacar que em Atenas o direito processual evoluiu substantivamente. Segundo relata Aristóteles, na obra aqui referenciada, os atenienses buscavam o juízo eqüitativo de árbitros (cujas decisões eram passíveis de apelo), bem ainda conheciam singela distinção entre ações públicas (graphé) e ações privadas (diké).
  33. ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas, p. 261.
  34. Ibidem, p. 259.
  35. O regime da tirania não é exclusividade de Atenas. Governos tirânicos foram amplamente praticados no mundo grego antigo. Importa destacar a respeito que, diversamente do que hoje se pensa, as tiranias gregas, embora exercidas pela força e constituídas de forma ilegítima, nem sempre eram alvo de reprovação popular, do grosso da sociedade. Isso se explica pelo fato de que as tiranias eram gestadas no torvelinho das variadas necessidades populares. Em geral, tais governos constituíam-se em épocas de crise, quando muitas lideranças despontavam como figuras messiânicas, capazes de ofertar saídas aos impasses vividos. Uma vez no poder, e quando dotados de habilidade política, os tiranos cuidavam de realizar grandes ações e importantes obras destinadas à manutenção do próprio regime. Para tanto, instalavam amigos e clientes em lugares e instituições estratégicas (assembléias, tribunais, conselhos); exerciam forte controle político-ideológico sobre o povo; perseguiam tenazmente os opositores do governo, inclusive mediante o confisco de propriedades e a condenação ao exílio ou mesmo à execução; em resposta ao anseio popular, promoviam certa equalização social; apoderavam-se, ainda, dos rituais sagrados e das festividades populares (festas dedicadas a Dionísio, a Atená, etc) com vistas a exercerem o controle das representações mentais dos sujeitos e a mantê-los placidamente divertidos. Na Grécia antiga, citam-se, sem prejuízo de outras, as conhecidas tiranias de Trasíbulo em Mileto, de Polícrates em Samos e de Psístrato, em Atenas, este, entre os séculos 545-527 a.C, cujo governo, nas palavras de Aristóteles, na Constituição de Atenas, se desenvolvera "muito mais com moderação e constitucionalismo do que com tirania."
  36. O ostracismo era sanção política votada em assembléia que objetivava impor a penalidade de exílio ao cidadão suspeito de conspirar contra o adequado funcionamento das instituições democráticas. A pena tinha duração de dez anos e era determinada após sufrágio feito em pedaços de cerâmica (chamados ostrakon, donde ostracismo) nosquais se escrevia o nome dos cidadãos a serem condenados por delitos como corrupção, ilegalidade, deserção militar, conspiração contra a segurança da cidade e também furto de bens públicos. Tais delitos tinham natureza de delitos públicos, porquanto representavam ameaça à ordem democrática, à vida da polis. Não é demais anotar que os gregos davam enorme importância à vida pública, ao cumprimento das normas ditadas pela participação coletiva. Para eles, desacatar as leis, as instituições da polis equivalia a desobedecer aos deuses da cidade, conduta que atraía, inclusive, sanções capitais como o exílio ou a morte. Ilustra o vigor desse elemento cultural sobre a vida jurídica, a famosa condenação de Sócrates, sentenciado a beber cicuta sob a acusação de perversão das leis da cidade e da juventude. Nesse evento, diante do impasse entre salvar-se, fugindo à condenação, ou enfrentar o vaticínio fatal, o filósofo prefere a morte a desobedecer à lei ditada pela cidade. No relato de Platão, precisamente no diálogo travado com Hípias, afirmou o filósofo, refletindo sobre o rigor das leis que o condenaram, que era preciso que homens bons cumprissem leis más, para que homens maus respeitassem leis sábias.
  37. A isonomia (vocábulo composto de dois radicais gregos, do prefixo iso, igual, semelhante, acrescido do substantivo nomos, lei) consistia na equalização das condições de participação na vida política. Note que a raiz desse princípio deve ser buscada na organização econômico-social do período: para comparecer às discussões públicas, muitos cidadãos precisavam ausentar-se de seus afazeres cotidianos, de modo que aqueles que não dispunham de mão-de-obra escrava, ou tinham-na insuficientemente, optavam, para não recolherem prejuízos, pela ausência aos debates evitando, também, a assunção de cargos públicos. Péricles, visando a resolver tal desequilíbrio, instituíra certa remuneração (chamada mistoforia) destinada a recompensar o exercício de certos cargos públicos. Aqui se impõe tecer singela observação: tendo várias vezes reportado à participatividade político-social, releva frisar que a tão decantada democracia ateniense tinha limites impostos pela cultura de então. Assim, do total de 400 mil habitantes da Ática, apenas 40 mil fruíam do status de cidadãos e, desses, somente 5 ou 6 mil, portanto, uma minoria, tomavam parte dos debates na Eclésia. Assim, era comum que o grosso da população, ou seja, os habitantes do interior e litoral e os ricos, não comparecesse à assembléia. Ausentavam-se, no primeiro caso, motivados por dificuldades econômicas e de transporte; no segundo, por certo sentimento de orgulho e vaidade diante da possibilidade de se misturarem ao povo. Afora isso, o regime democrático ainda excluía de seus benefícios os metecos (estrangeiros), em cerca de 70 mil pessoas, os escravos, em população aproximada de 200 mil servos, além de mulheres e crianças. Como se vê, trata-se de equívoca idealização crer que a democracia grega funcionava como um festival popular alicerçado na ampla opinião de todos sobre tudo que envolvia a vida cotidiana. Na verdade, além de se manter às custas do imperialismo econômico, da extensa carga tributária (inclusive mediante contribuições compulsórias incidentes sobre cidadãos abastados – eisphora) e, não raro, da belicosidade, a democracia direta prevalecera justamente (e paradoxalmente!!) em função de seu caráter restritivo lastreado em critérios econômicos, culturais, etários e de gênero.
  38. A retórica era o ensino artificioso do bem falar, era a arte da argumentação e da persuasão ministrada pelos sofistas a quem Sócrates tanto criticara qualificando-os de mercadores da palavra e ilusionistas, porquanto desapegados das "autênticas" questões filosóficas, porém atentos aos lucros advindos do ensino da argumentação. Note-se que os debates públicos travados na Eclésia (situados na agora) justificam o costumeiro apreço social pela retórica, saber tornado instrumento de êxito na vida pública, tornando-se, por vezes, pedra de apoio de políticos demagógicos e oportunistas. Ademais, não se pode olvidar a importantíssima função da retórica na experiência jurídica grega uma vez que tanto o regime processual quanto o jurisdicional dos gregos era conduzido por leigos, por cidadãos comuns. Os tribunais compunham-se de juízes leigos, os heliastas, indicados porsorteio, e as ações propostas eram conduzidas pelos próprios litigantes, quase sempre auxiliados por retóricos hábeis e experientes, os quais produziam postulações, defesas e discursos a serem apresentados pelas partes nos tribunais ou assembléias.

39.Os gregos produziram regras de direito material e processual, com nítida precedência do segundo sobre o primeiro. Ou seja, ao que parece, antes de escrever ou de inscrever o direito em leis escritas, habilitaram-se os gregos nos instrumentos de resolução de conflitos (regras de julgamento ou direito processual) mediante a aplicação do direito vivido. Ademais, criaram um direito político (processo legislativo, processo jurisdicional, direitos e deveres públicos), um direito mercantil - por força do colonialismo e típico da ágora, da praça pública - e um direito privado, doméstico, peculiar à oikos (regras de casamento, sucessão, adoção, divórcio, etc). Quanto às competências dos tribunais, a justiça penal era aplicada pelo Areópago; a civil, pela Heliae. A discussão de questões que envolvessem interesses da cidade-Estado competiam à Bulé e à Eclésia. Em face dos conhecidos riscos de corrupção nos julgamentos, os gregos, visando a evitá-los e a qualquer outro ardil, faziam, a cada julgamento, um novo sorteio entre os membros do tribunal, de sorte que algumas centenas deles eram habilitados a apreciar a lide. As sessões para julgamento chamavam-se dikasterias e os julgadores eram denominados diskastas. Nos julgamentos funcionava um magistrado que presidia os atos processuais, porém sem neles intervir. Ali, cada parte apresentava o seu esforço persuasivo, sua argumentação (diretamente) ao imenso tribunal cujos membros votavam ao final das exposições. Como alhures se referiu, porque não se conhecia a figura de intermediários ou de advogados nos tribunais, a parte amparava-se em peças processuais, textos e discursos produzidos por retóricos e entendidos das leis, os locógrafos, mercadores de discursos forenses.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Jairo Coelho. O fenômeno jurídico na antiguidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2828, 30 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18805. Acesso em: 25 abr. 2024.