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A inconstitucionalidade da vedação absoluta à concessão de liberdade provisória

A inconstitucionalidade da vedação absoluta à concessão de liberdade provisória

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O legislador adota medidas que, em vez de equacionar as mazelas do Estado, prestam-se ao desserviço de vulnerar direitos fundamentais.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal consagra no seu rol de direitos fundamentais, o direito do acusado de responder em liberdade o processo movido em seu desfavor, nas hipóteses em que a lei admitir a liberdade provisória. A fim de delimitar as hipóteses em que é cabível a liberdade provisória do acusado, o Código de Processo Penal nos oferece como referências as hipóteses elencadas para os crimes afiançáveis, bem como, no caso dos crimes inafiançáveis, quando restar demonstrada a desnecessidade de prisão preventiva do acusado.

Assim, a Constituição passou a exigir motivação idônea e interesse instrumental do processo para segregar cautelarmente o acusado de cometer uma infração penal, traçando de modo inequívoco os rumos que a política criminal brasileira deveria seguir neste sentido. Em tese, o status libertatis do indivíduo só poderia ser tolhido mediante fundamentada decisão do juiz da causa.

Entretanto, em resposta à crescente necessidade de demonstração de esforços concretos por parte do Estado para resolução satisfatória dos problemas atinentes a segurança pública, cada vez mais desacreditada, o legislador brasileiro, inspirado em disposições de constitucionalidade duvidosa constantes na lei dos crimes hediondos, passou a tutelar, por meio de leis especiais, diversas condutas criminosas de notável potencial lesivo como a formação de quadrilha, o tráfico de drogas, o tráfico internacional de armas e a lavagem de capitais. Ocorre que no tratamento dispensado aos acusados por delitos desse escol, o legislador agiu inadvertidamente, violando direitos fundamentais de primeira grandeza consagrados no texto constitucional.

Nessa linha, é impossível não divisar a dose de oportunismo do legislador ao adotar medidas que antes de verdadeiramente equacionar as mazelas do Estado, prestam-se ao desserviço de vulnerar direitos fundamentais que ainda tomam forma neste novo constitucionalismo brasileiro. Eis que tal fenômeno ganhou até nome: "legislação do pânico". Em um regime democrático forjado para reduzir as desigualdades sociais, promover a justiça e certificar a dignidade da pessoa humana, a edição de diversos diplomas jurídicos que vedam em caráter absoluto a concessão de liberdade provisória, baseados apenas pela lesividade abstrata de determinadas infrações penais, se opõe leviana e diametralmente aos princípios mais nobres propugnados por esse novo modelo de Estado, o que já vem sendo combatido pela Corte guardiã da Constituição Federal.À vista disso tudo, apresentamos o resultado de extensa pesquisa bibliográfica, em face da necessidade de construção do tema, o qual foi erigido a partir dos aspectos examinados.

Dessa forma, buscamos inicialmente oferecer o conceito de direito fundamental e sua dimensão ao longo dos séculos, através de um escorço histórico, enfocando o seu destacado papel no fortalecimento dos Estados democráticos e no restabelecimento do primado do homem. Assim, foi imprescindível a análise do desenvolvimento dos direitos fundamentais, especialmente do direito à liberdade. Além de versarmos sobre as hipóteses autorizadoras de prisão cautelar no direito brasileiro para comprovar com maior aporte os abusos perpetrados pelo legislador em diplomas ordinários. Para tanto, procedemos a sua contextualização com a revolução doutrinária e jurisprudencial ocorrida ao longo do século XX, denominada de neoconstitucionalismo, que ensejou o fomento de novos meios de interpretação e aplicação da norma jurídica para além dos limites legalismo formal, precisamente voltada para a proteção das garantias individuais em contraponto aos avassaladores interesses estatais.

No segundo capítulo, dedicamo-nos a análise do espírito normativo comum a todas as leis proibitivas à liberdade provisória, a fim de demonstrarmos a impropriedade de se subtrair da autoridade judiciária a tutela das necessidades acautelatórias do processo por meio de norma jurídica de conteúdo absoluto, haja vista que enquanto a norma se apresenta dotada de generalidade e abstração, ao mesmo tempo revela-se incapaz de tutelar situações que transcendem o caráter hipotético de suas disposições. Nesse diapasão, mister se fez a análise da lei 11.464/07 que introjetou importantes modificações na lei dos crimes hediondos, diploma modelo das demais codificações extremadas, possibilitando desta forma uma reinterpretação do papel normativo de todos esses textos legais no tema liberdade provisória, além do dissenso entre doutrina e jurisprudência acerca de seu efetivo alcance .

Por fim, reservamos ao terceiro capítulo, a curial distinção entre inafiançabilidade e liberdade provisória, cujo equivocado entendimento de seus significados tem contribuído largamente para a confusão criada acerca da constitucionalidade da vedação total desta última. Outrossim, analisamos as razões apresentadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 3112/DF, manejada contra diversos dispositivos do Estatuto do Desarmamento, dentre os quais, a vedação absoluta à liberdade provisória, declarada na oportunidade incompatível com a Constituição por aquela corte por ofensa a princípios regentes dos direitos fundamentais . Consignamos ainda as razões que nos faz acreditar que, com base na teoria dos motivos determinantes, o entendimento manifestado naquele julgamento em sede de controle concentrado deveria ter seus efeitos estendidos aos demais diplomas infraconstitucionais de igual teor para coibir os abusos pirotécnicos do Poder Público, de modo a prestigiar os efeitos vinculantes da jurisdição constitucional.


CAPÍTULO I - Liberdade, direitos fundamentais e neoconstitucionalismo.

1.1. O conceito de direitos fundamentais no neoconstitucionalismo

Em meados do século XX, notadamente após a segunda guerra mundial, o constitucionalismo passou a enfocar os direitos fundamentais do ser humano, forjados com maior vigor após a consagração da dignidade da pessoa humana como valor orientador da produção normativa, de forma mais direta e efetiva.

Urgiu nesse período a necessidade de se projetar uma nova gama de direitos, capazes de assegurar o desenvolvimento, a paz social, um meio ambiente sustentável, dentre outras aspirações. Contudo, malgrado, o escancaramento das necessidades do ser humano do século XX pós-guerra, havia antes que se sedimentar os direitos de primeira e segunda gerações, anteriormente conquistados e contemplados nas Cartas Constitucionais, mas desvestidos, especialmente os de segunda geração, de qualquer carga de exigibilidade do Estado, conquanto normas de natureza programática.

Aliás, passou-se a denominar as gerações de tais direitos de dimensões, pois o vocábulo geração depreende a ideia de sucessão temporal, quando, de fato, tais direitos, agregaram-se admiravelmente, formando o feixe de atributos de que dispõe o cidadão contra o arbítrio estatal. Assim, a efetivação dos direitos políticos e sociais exigia uma reinterpretação dos direitos fundamentais a fim de garantir o êxito desse novo formato ambicionado de constitucionalismo.

Como já dito, a dignidade da pessoa humana constituiu a pedra de toque dessa nova roupagem dos direitos fundamentais, propugnada com mais destaque na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e reproduzida à exaustão pelos textos constitucionais a partir de então, e nos países onde vigora o sistema da Common Law, passou a ser adotada como critério objetivo de valoração. Mas é de se indagar, em que consiste a dignidade da pessoa humana?

Didaticamente, não é momento de nos preocuparmos com a resposta, incumbindo-nos demonstrar com essa simples indagação o incremento do caráter principiológico das normas jurídicas insculpidas nas Constituições modernas, cujas características essenciais, especialmente no campo dos direitos fundamentais, incluem a maior abstração de suas disposições, abertura interpretativa, e consequentemente, sua menor densidade normativa.

A necessidade de concretização dos direitos fundamentais dotou os princípios constitucionais de uma força normativa até então inexistente, em razão da insuficiência apresentada pela dinâmica do positivismo para satisfação das necessidades do homem de forma justa e igualitária. Assim, a nova hermenêutica da Constituição passou a colher e aplicar o substrato de seus princípios como normas indeléveis e cogentes, alargando o arcabouço normativo para além das normas positivadas e condicionando a validade destas à conformação material com aquelas. Ou seja, a evolução encetada teve como pressuposto justamente o resgate da noção de princípio como conjunto de valores sensíveis que alinham toda a construção do ordenamento jurídico, servindo-lhe de base.

Essa superação do positivismo, ante a indispensabilidade da valorização do ser humano em sua dignidade, acarretou no conceito tido por pós positivismo. Com efeito, a eficácia normativa do texto constitucional passou a convolar posições jurídicas carentes de norma específica, escudando-as sob o manto da supremacia do texto constitucional. Nesse sentido, preciosas são palavras de Bonavides (2006; p.588):

Com efeito, os direitos fundamentais, ao extrapolarem aquela relação cidadão-Estado adquirem, segundo Böckenförde, uma dimensão até ignorada – a de norma objetiva, de validade universal, de conteúdo indeterminado e aberto, e que não pertence nem ao direito público, nem ao direito privado, mas compõe a abobada de todo o ordenamento jurídico enquanto direito constitucional de cúpula.

Como a ciência jurídica não se confunde com justiça, malgrado ser esta o seu substrato moral, o positivismo se contentava com a subsunção da norma ao fato concretamente apresentado, sem observar se o conteúdo valorativo ou axiológico da mesma restou inapropriado. De modo que o conteúdo legislativo, revestido em fórmula jurídica, deveria ser irremediavelmente aplicado, pois, de acordo com o modelo de repartição de poderes, caberia ao Poder Legislativo promanar a norma jurídica, limitando-se o Judiciário à função de "boca da lei". Mais do que a revisão dos matizes jurídicos, a segunda metade do século XX foi o momento de se repensar o próprio modelo de Estado. Desta feita, o Estado Legislativo, escravo do legalismo estrito e exacerbado, deu lugar ao Estado Constitucional de Direito, como acentua Cunha Júnior, respaldado pelas ideias de Ferrajoli (2008; p.10):

Para Ferrajoli, a validade das leis, que no paradigma do Estado Legislativo de Direito estava dissociada da justiça, se dissocia agora também da validez, sendo possível que uma lei formalmente válida seja substancialmente inválida pelo contraste de seu significado com os valores prestigiados pela Constituição. Isso porque, conclui o autor italiano, no paradigma do Estado Constitucional de Direito, a Constituição não apenas disciplina a forma de produção legislativa como também impõe proibições e obrigações de conteúdo, correlativas umas aos direitos de liberdade e outras aos direitos sociais, cuja violação gera antinomias ou lacunas que a ciência jurídica tem o dever de constatar para que sejam eliminadas ou corrigidas.

Destarte, os direitos fundamentais identificados nas Cartas constitucionais passaram a integrar a copa da pirâmide normativa, traduzindo os bens jurídicos mais caros, reaproximando assim o direito da ética e da justiça, ao espraiar sua eficácia por todo ordenamento jurídico.

Com efeito, os direitos fundamentais passaram a ostentar uma dupla face. No auge do positivismo, enquanto normas programáticas garantidoras de direitos subjetivos, tais direitos já asseguravam ao cidadão sua margem intangível contra o arbítrio de quem quer que fosse, verificando-se ainda o condão de invalidar automaticamente as demais normas que contrariassem seus mandamentos, uma vez que a supremacia da Constituição sempre foi tida como sagrada, apesar dos direitos fundamentais não serem então autoaplicáveis. Hodiernamente, pela força normativa conferida aos princípios constitucionais, realçando ainda mais o campo de incidência dos direitos fundamentais, esses direitos assumiram o papel de norma objetiva, uma vez consagrados expressamente no texto magno e dotados de aplicação imediata, como bem observa Mendes (2002; p. 02):

Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais - tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo, quanto aquele outros, concebidos como garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático

Portanto, impõe-se a todos os Estados, dentre os quais o Estado brasileiro, que seus poderes curvem-se à preponderância de suas normas de caráter essencial para higidez do Estado Democrático de Direito. Assim, o Poder Executivo deve obedecer e promover integralmente os direitos fundamentais; ao Legislativo, impõe-se o respeito aos limites formal e materialmente traçados pela Carta Política, e ao Judiciário, o dever de zelar pelo seu estrito cumprimento, retificando os abusos existentes, extraindo da forma mais valorosa possível a adequação teleológica e semântica dos termos empregados para descrição dos direitos essenciais ao ser humano.Só assim, torna-se possível propiciar a efetivação de tais direitos, que não por acaso são denominados fundamentais, porquanto indispensáveis ao bem estar do ser humano, que, afortunadamente, recuperou o status perdido desde a época renascentista de centro do universo. Tudo isso como corolário do conceito de dignidade da pessoa humana, consagrada pelo direito, como adverte Bonavides (2006; p. 587):

Os direitos fundamentais são a sintaxe da liberdade nas Constituições. Com eles, o constitucionalismo do século XX logrou a sua posição mais consistente, mais nítida, mais característica. [...] Coroam-se, assim, os valores da pessoa humana no seu mais elevado grau de juridicidade e se estabelece o primado do Homem no seio da ordem jurídica, enquanto titular e destinatário em última instância, de todas as regras de poder.

1.2 O direito à liberdade do acusado em face dos interesses acautelatórios do processo

Dentre os decantados direitos fundamentais situa-se o direito à liberdade, objeto central das ciências penais, cujas normas gravitam em torno de sua manutenção ou segregação. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso LXVI, erige a liberdade do indivíduo como garantia constitucional, sendo esta a regra, senão vejamos: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança."

Ao balizar as restrições à liberdade do cidadão, preconiza a Constituição brasileira que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei."

Defere-se assim ao cidadão, a par de princípios do escol da presunção de inocência e do contraditório e ampla defesa, a primazia de responder um processo criminal em liberdade, sendo a sua prisão no curso do processo uma medida excepcional, a qual exige detida fundamentação. E nas hipóteses em que a prisão se der em flagrante delito, o magistrado exercerá o controle jurisdicional sobre a prisão a posteriori. Em todo caso, deve o magistrado especificar as razões que ensejam a adoção da medida de exceção, que é a constrição da liberdade.A segregação do acusado no curso do processo deve então atender impreterivelmente aos interesses acautelatórios deste. Para tanto, além do acusado não preencher os requisitos necessários à concessão de sua liberdade provisória, ou seja, vinculada à relação processual estabelecida, mister se faz que contra ele recaia uma das hipóteses legais autorizadoras da prisão processual, embasada em algum elemento concreto, que faça crer que a sua liberdade acarretará maiores prejuízos para o regular desenvolvimento do feito e para a busca da verdade real do que a sua prisão. Como obtempera Fernandes (1999; p. 302/303):

[...] O primeiro princípio é o da legalidade, segundo o qual, preenchidos os requisitos da lei, tem o réu o direito subjetivo à liberdade provisória, não ficando sujeito à discricionariedade do juiz. Ainda, por força desse mesmo princípio, só será possível negar a liberdade provisória se o acusado incidir em alguma vedação legal ou não satisfizer os requisitos.

É nesta zona de tensão entre o direito individual do acusado e o direito da sociedade de restar em segurança, que o magistrado verificará qual o interesse preponderante a ser salvaguardado. De tudo quanto exposto, percebe-se que a necessidade de fundamentação da custódia cautelar é curial não só para cumprir com o direito fundamental do acusado à motivação de sua prisão, mas, essencialmente, para possibilitar o controle de legalidade e proporcionalidade, ante o caso concreto, da medida constritiva. Ou seja, é imprescindível que o decreto prisional mencione os fatos empíricos que confiram idoneidade à medida cautelar, a qual, para tanto, deve estar estribada em fatos concretos, e não em conjecturas projetadas sem o menor lastro indutivo ou probatório.

Entretanto, em total assimetria com os imperativos constitucionais, observa-se que a legislação ordinária cada vez mais produz diplomas jurídicos que, de modo apriorístico, orientando-se apenas pela lesividade abstrata de determinadas infrações penais, cominam a restrição da liberdade do acusado como medida acautelatória obrigatória. Se o ordenamento jurídico brasileiro agasalha alguma espécie de automatismo, este, certamente, milita em prol do acusado, em virtude dos direitos fundamentais que lhe são conferidos. Em plena era de consagração da força normativa dos princípios e valores integrantes dos direitos fundamentais, constata-se que tais direitos têm sido sistematicamente solapados por normas de menor envergadura, sob o pálio de um positivismo estanque e ultrapassado. Nesse sentido, leciona Feitoza (2009; p. 884):

A legalidade referida às leis processuais penais infraconstitucionais não está cumprindo a função de garantir os direitos fundamentais, mas a de obstar a efetividade dos direitos fundamentais. Isto nos parece juridicamente inadmissível, tendo em vista o princípio da supremacia constitucional, ou seja, as normas constitucionais de direitos fundamentais, de nível jurídico-hierárquico superior, devem impor a sua força normativa às normas infraconstitucionais.

Mais grave ainda é perceber que a vedação apriorística da liberdade do acusado em determinados diplomas legais exclui a manifestação do Estado-juiz, de acordo com a letra fria da lei. Não é o momento de nos debruçarmos acerca do princípio da inafastabilidade da jurisdicional, sobre o qual versaremos no próximo tópico, mas de constatarmos que em decorrência dessa supressão indevida, o legislador ordinário sub-rogou-se na função de juiz e passou a determinar a necessidade de aplicação de prisão cautelar, da forma mais equivocada possível, conquanto as normas são veiculadas em fórmula abstrata, de natureza geral, em total oposição às medidas cautelares, que constituem normas de caráter individual.Essa chaga legiferante tem sido um traço dissonante à consolidação do neoconstitucionalismo brasileiro, o qual é bastante prematuro, vez que a Carta Política vigente ostenta pouco mais de 20 anos. Desta feita, sob pena de usurpação de competência institucional, o Poder Legislativo não pode se arvorar impor limitações a direitos individuais, especialmente quando revestidos de imutabilidade, conforme se depreende do art. 60, §4, IV da Constituição brasileira.Os interesses acautelatórios do processo, justamente por dizer respeito a uma relação processual, são de incumbência exclusiva do Juiz de direito. A adoção de medidas cautelares, apesar da legislação penal não prevê-las além da medida de prisão, faz pressupor ainda assim a detença de poder geral de cautela por parte do magistrado. Enquanto o projeto de lei 4.208/2001, que prevê a introdução de medidas cautelares distintas da prisão, não tem recebido a devida atenção do legislador, por outro lado, com fulcro nos direitos fundamentais plasmados na Constituição, é possível e factível que o juiz, respaldado no poder geral de cautela, escolha a medida mais compatível à tutela do caso concreto, ou seja, poderá optar por meios alternativos à constrição de liberdade, o que torna ainda mais absurda ação recente do legislador brasileiro.Portanto, a supressão apriorística do direito à liberdade efetuada pelo legislador ordinário em leis como a do crime organizado, lei de lavagem de dinheiro, estatuto do desarmamento a nova lei de drogas não possui brecha para subsistir na atual ordem jurídica brasileira. A pretexto de combater efetivamente à violência e o crime organizado, cada vez mais crescentes, é possível a modificação de alguns paradigmas da relação processual, todavia, não há como se sacrificar no atual estádio civilizatório garantias individuais consolidadas, por meio de fórmulas genéricas e abstratas, como destaca, como destaca Feitoza (2009: p. 906):

Na atual ordem constitucional, talvez o mais longe que o legislador infraconstitucional possa chegar seja à previsão da prisão provisória, em crimes graves, com a inversão do ônus para a defesa, mas explicitando legalmente as presunções da necessidade da prisão. Dessa forma, a defesa sempre poderá tentar provar que concretamente, a presunção não está presente, o que significará que não será excluída a apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça ao direito de liberdade.

1.3 A inafastabilidade da jurisdição: como direito fundamental

A imposição automática da prisão cautelar do acusado por um comando normativo emanado do legislador tem como consequência imediata o engessamento de um direito fundamental (liberdade), garantia dorsal do Estado Democrático de Direito em que se afigura a República brasileira, conforme acabamos de demonstrar. Contudo, os efeitos indesejados não cessam neste ponto, pois, vigorando a presunção de não culpabilidade do acusado, a privação de sua liberdade está condicionada a uma decisão judicial, ou nos casos de flagrante delito, sua manutenção ou não. Desta feita, a prisão ou a liberdade provisória não podem ser excluídas do crivo do juiz de direito, como deixa claro que o artigo 5º, inciso LXVI da Constituição Federal.Depreende-se, por conseguinte, o papel indispensável outorgado ao Poder Judiciário como guardião dos direitos públicos subjetivos pela própria Constituição. A fim de não deixar nenhuma margem para dúvidas, o constituinte originário preocupou-se em consagrar a inafastabilidade da jurisdição, como elemento essencial à higidez do Estado Democrático de Direito então instituído. Dessa forma, estampou no rol de garantias individuais, precisamente no inciso XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito." Se a prisão "antecipada" do acusado tem por único escopo atender a satisfação de interesses instrumentais, ou seja, relacionados ao regular desenvolvimento do processo, a quem incumbe conduzi-lo bem como decidir as suas questões incidentais senão o juiz de direito? Logo, essa espécie de interferência legislativa afronta diversas normas constitucionais de cunho objetivo, além de não se coadunar com a ideologia dos princípios norteadores do texto fundamental, sucessivamente, seja pela forma como se imiscui em terreno exclusivo do Poder Judiciário, seja pelas ofensas materiais que empreende.Inicialmente, percebe-se clara ofensa ao princípio do devido processo legal, malgrado a (i)legalidade propugnada, conquanto no vácuo de uma relação jurídica processual estabelecida e da valoração das circunstâncias do caso concreto, o legislador já estabelece uma medida restritiva sobre direito fundamental de modo arbitrário e apriorístico, subvertendo outro direito basilar que é o da presunção de inocência.Aliás, o legislador termina por ceifá-la ao impedir que o judiciário conheça o pedido de liberdade do acusado ante a vedação legal nesse sentido, impedindo a prestação jurisdicional ao jurisdicionado, apartando o meio de seu fim em si mesmo. Tal gesto, se acoitado, reabre uma senda para o positivismo autômato, autoritário e impeditivo ao aplicador do direito de descortinar os fins a que a lei se destina e sua adequação perante todo o ordenamento, tornando ainda despicienda a atividade hermenêutica, o que é desastroso não só para os direitos fundamentais, mas para os pilares da ordem jurídica.Tais normas são tão nocivamente inconstitucionais que se prestam, sem exagero algum, a aniquilar a investidura reservada pelo constituinte originário aos membros do Poder Judiciário. A autonomia da atividade judicante resta tolhida quando o controle acerca da necessidade de prisão no caso concreto é antecipado e generalizado pelo legislador ordinário. Além do mais, nega-se ao cidadão o acesso à tutela jurisdicional adequada, calcada em juízo de proporcionalidade, quando de fato, o direito a tal tutela verdadeiramente se perfilha como um dos elementos do chamado mínimo existencial. Neste sentido, vale anotar o preciso magistério de Câmara (2005, p. 49):

O princípio da inafastabilidade da jurisdição, pois, tem como corolário o direito, por ele assegurado, à tutela jurisdicional adequada, devendo ser considerada inconstitucional qualquer norma que impeça o Judiciário de tutelar de forma efetiva os direitos lesados ou ameaçados que a ele são levados em busca de proteção.

A vedação legal à liberdade provisória traduz na realidade valores que são repelidos veementemente pela Constituição brasileira. Infelizmente, disseminou-se no Brasil a chamada "legislação pânico", impelindo o poder público a adotar medidas emergenciais – e por que não pirotécnicas – mais para satisfazer os interesses midiáticos do que propriamente buscar equacionar os problemas vivenciados, mormente, quando se está comprovado que um direito penal altamente repressivo e garantista por si só é incapaz de reduzir a violência.

Mesmo assim, normas teratológicas continuam vindo a lume. A eficácia normativa conferidas às normas veiculadoras de direitos fundamentais subordina de tal forma a legislação infraconstitucional que, nem mesmo mediante uma interpretação conforme a Constituição, essa proposição normativa poderia vingar, pois como arremata Barroso (2004, p. 195): "Há um último ponto digno de registro. Toda atividade legislativa ordinária nada mais é, em última análise, do que um instrumento de atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e realização de seus fins".

Não obstante todos os argumentos colacionados, impende demonstrar que a vedação automática à liberdade do acusado está também absolutamente dissociada do contexto histórico-político vigente, em que se notabiliza o ativismo judicial. Desta feita, o Poder Judiciário tem atuado de forma mais proativa no sentido de realizar no plano prático os valores incrustados na Constituição. Nesse diapasão, as palavras de Barroso são novamente esclarecedoras (2008; p.6):

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

Assim, o refreamento do acesso à jurisdição é antagônico à realidade vivenciada. Do mesmo modo, acresce-se ainda a consolidação do entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a aplicação da prisão provisória requer a demonstração concreta do fumus comissi delicti e do periculum libertatis do acusado, o que não pode ser constatado através de um mero enunciado normativo, de caráter geral e abstrato. Na escolha entre abstração e concretude, esta última certamente deverá ser privilegiada, até por razões lógicas, pois, somente as peculiaridades apresentadas pelo caso concreto é que possibilitarão um efetivo controle jurisdicional, principalmente, quando se refere a um direito fundamentalíssimo como a liberdade, como adverte Oliveira (2001, p. 322):

Em tema de garantias fundamentais, e particularmente, no campo da liberdade individual, o Poder Judiciário não pode ser excluído da apreciação da necessidade de prisão, sobretudo porque nosso ordenamento somente admite a privação de liberdade subordinada aos escopos (jurisdicionais) do processo, ou seja, para a proteção de sua efetividade.

O que desafortunadamente se verifica é que o legislador brasileiro deveria ser o maior interessado na manutenção da supremacia da Constituição Federal por todo o seu significado jurídico-político, em vez de detratá-la como por vezes tem feito, especialmente no tema objeto do presente trabalho. A discussão atual sobre ativismo judicial versus auto-contenção, sobre a politização devida ou indevida da justiça, sobre o redimensionamento da tripartição dos poderes, se deve essencialmente à postura paquidérmica do legislativo nacional, que parece ainda não ter se dado conta da relevância insofismável dos direitos fundamentais e do fomento às políticas públicas que permitam a sua potencialização.

1.4 As espécies de prisão cautelar no processo penal brasileiro

As espécies de prisão cautelar admitidas no direito brasileiro atualmente são quatro: a) prisão em flagrante, b) prisão temporária, c) prisão preventiva e d) condução coercitiva de acusado, vítima, testemunha ou outrem que sem justa razão deixe de comparecer a ato judicial ou perante a autoridade policial quando previamente convocado. As prisões decorrentes da sentença de pronúncia e da sentença penal condenatória recorrível foram abolidas do Código de Processo Penal (CPP), por influxo da reforma processual penal introduzida em meados de 2008 pelas leis 11.689, que modificou o rito do Tribunal do Júri e da lei 11.719, que reformou os demais procedimentos criminais.

Tais medidas constritivas têm por finalidade preservar a colheita do acervo probatório relacionado ao caso para instruí-lo da melhor e mais rápida forma possível, com vistas a assegurar a utilidade do provimento final do Estado juiz. Cada uma das modalidades supra elencadas tutela de modo específico um intervalo, seja da fase pré processual, em que geralmente é necessário o aporte probatório mínimo colhido pela polícia judiciária, seja da persecução criminal propriamente dita.

O manejo de quaisquer das espécies depende antes da conjunção de dois fatores que devem cuidadosamente analisados antes da imposição da medida constritiva: a prova da materialidade do crime e a existência de indícios suficientes de autoria em desfavor do acusado. Essa aferição, frise-se novamente, é tarefa indeclinável e privativa do magistrado por força constitucional, não comportando assim margem para ingerências externas. São elas: PRISÃO EM FLAGRANTE: a prisão em flagrante pressupõe o ato de detenção do acusado durante a execução do crime ou após a sua consumação, ou seja, a prática do fato reputado como delituoso é tão latente que se torna dispensável o mandado judicial para importar na prisão do agente, por isso ostenta natureza administrativa, e não judicial, apesar de ser homologada pelo órgão judicante posteriormente. Objetiva-se assim obstaculizar a fuga do agente bem como capturar os elementos probatórios suficientes à aferição de sua culpabilidade. Exige-se apenas o requisito da tipicidade da conduta em norma penal para incidência desta modalidade prisional, como adverte Nucci (2006; p. 548): "assim, exige-se apenas a aparência da tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração sobre a ilicitude ou culpabilidade, outros dois requisitos para configuração de crime. É a tipicidade o fumus boni juris (fumaça do bom direito)." Vale destacar ainda que sua vigência não aponta um prazo legal hermeticamente fechado, aplicando-se, contudo, a sua substituição pela prisão preventiva quando a necessidade acautelatória permanece, o que se depreende da própria dicção do art. 310 do CPP.

PRISÃO TEMPORÁRIA: regulada pela lei 7960/89, essa modalidade de prisão provisória se destina à garantia da eficácia da investigação policial em crimes de natureza grave, elencados no seu art. 1º, III bem como no art. 1º da lei dos crimes hediondos (lei 8.072/90). Tem como pressupostos a imprescindibilidade da medida para as investigações além de fundadas razões de autoria ou participação do acusado nos crimes de que trata. Outra característica inolvidável refere-se ao seu período de vigência, que é de 5 dias, prorrogável uma única vez , desde que por imperiosa necessidade. Na lei dos crimes hediondos tal prazo se dilata para 30 dias, prorrogáveis por igual período. Assim, é fácil constatar que a prisão temporária, por sua natureza jurídica, tem a sua eficácia limitada no tempo. É um instrumento, como se extrai do próprio nome, de índole passageira, que se exaure pelo decurso do prazo de sua vigência, independentemente dos resultados apresentados. Subsistindo os interesses acautelatórios, deve o juiz valer-se da prisão preventiva para atender a tal finalidade pelo tempo que entender necessário.PRISÃO PREVENTIVA: A prisão preventiva contempla um leque mais amplo de fundamentos para justificação da imposição da medida constritiva de liberdade, por isso, quando há manifestos interesses a serem preservados, as demais espécies de prisão são convertidas em preventiva. E desde logo, pode se inferir que é a espécie mais utilizada para acautelar os interesses processuais em razão de seus atributos. É medida que pode ser imposta em qualquer momento da fase policial como da processual, sem prazo de duração pré-estabelecido. Na verdade, como revela o art. 316 do CPP, sua incidência depende de acurada análise do caso concreto, pois, cessando o motivo que lhe deu origem o magistrado deve revogá-la, do mesmo que, surgindo fundamentos posteriores aptos a justificar a prisão de acusado então livre, deve efetuá-la.

Diferentemente da prisão temporária, pode ser decretada de ofício pelo magistrado, embora seja mais prudente que o mesmo seja instado a tal, em respeito aos princípios da inércia e do sistema acusatório atual, estampado no art. 129 da Constituição. Aplica-se a crimes de maior envergadura, pois se restringe aos crimes dolosos, desde que comprovada a materialidade do fato e diante da existência de indícios bastante de autoria ou participação. Neste aspecto, estará sempre embasada para resguardar qualquer destes interesses: garantia a ordem pública, garantia a ordem econômica, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal.

CONDUÇÃO COERCITIVA: A condução coercitiva é medida cautelar específica que visa garantir a boa marcha das investigações policiais e do processo judicial. De modo que o atendimento à solicitação da autoridade competente para esclarecimento ou elucidação do fato criminoso apurado é dever que se impõe a todos, pois o interesse público sobreleva nesses casos. A obstrução da justiça tem como conseqüência a condução forçada de quem quer que tenha dado causa ao fato, seja ele acusado, vítima, perito, testemunha ou outrem que sem justa razão deixe de comparecer a ato judicial ou perante a autoridade policial quando previamente convocado.

Apresentadas as modalidades de constrição cautelar, é momento de direcioná-las ao mote do presente trabalho. Quando a prisão se dá em flagrante delito, a norma jurídica fica bifurcada em dois caminhos antagônicos a ser decidido pelo magistrado: de um lado, a liberdade provisória do acusado vinculada a certas condições, do outro, a privação da liberdade, desde que estribada em qualquer dos fundamentos do art. 312 do CPP, senão vejamos a dicção do art. 310 e seu parágrafo único do CPP:

Art. 310. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312).

Da leitura do citado dispositivo em conjunto com as normas constitucionais sobre o tema, vemos que a liberdade do acusado sempre que possível deve ser preservada. Daí a preocupação dos Tribunais em rechaçar prisões embasadas em juízos especulativos ou orientadas pela gravidade abstrata do crime imputado. A extração constitucional concretizadora dos direitos fundamentais realmente modificou o paradigma de aplicação da prisão processual. Antes, partia-se da presunção de malícia e periculosidade do acusado, redundando posteriormente em sua condenação. A restituição de sua liberdade era uma benesse do Estado juiz, e não um direito público subjetivo, como assinala Oliveira (2009; p. 469):

Em sua redação primitiva, de 1941, pois, a prisão em flagrante tinha como conseqüência uma antecipação do resultado final do processo, fundada, sobretudo, na presunção d culpabilidade, decorrente do próprio flagrante, mas também de uma antecipação de um juízo de necessidade, decorrente de uma presunção de fuga. [...] A liberdade provisória, àquele tempo, era uma exceção à regra da prisão, concedida mediante certas garantias, não como direito do preso, mas como faculdade do Poder Público.

Hoje, a preservação de liberdade do acusado e a presunção de sua inocência são os marcos balizadores da relação processual penal. Com efeito, a aplicação de medidas restritivas contra o acusado requer motivação idônea e transcendental, apta a atender tão somente à supremacia dos interesses sociais. Malgrado toda essa evolução, assistimos a nova tentativa de usurpação de direitos individuais com a vedação absoluta à liberdade provisória preconizada em alguns diplomas legais, curiosamente todos eles instituídos sob a égide da Constituição que afrontam. Da forma como se apresentam, de certo, regressaremos à época da edição do Código de processo Penal, pois, torna-se a contemplar a prisão automática e gratuita, embasada num prejulgamento feito ilegitimamente por um poder incompetente, outro que não seja o Judiciário.Por fim, anote-se que o sistema de liberdade provisória, tal como encartado no texto fundamental e no CPP, está tão afinado com os princípios constitucionais que, em face da contradição encetada pela lei 6.416/77, que acrescentou o parágrafo único ao art. 310 do CPP, na qual o legislador contemplou a liberdade provisória sem o recolhimento de fiança para crimes reputados mais graves do que aqueles que exigem o seu o arbitramento, tem se entendido hodiernamente que o juiz deve dispensar o acusado de prestá-la, substituindo-a por outras condições vinculativas ao processo, o que mais uma vez denota que o senso de justiça e proporcionalidade preponderam na aplicação da norma positiva no direito brasileiro.


CAPÍTULO II – Normas jurídicas vedatórias: produção, validade, sentido e alcance.

2.1. Uma breve análise da ratio legis dos diplomas que vedam a liberdade provisória

As leis especiais que vedam a concessão de liberdade provisória são, a saber: lei do crime organizado (9.034/95) nos termos do seu art. 7º; lei da lavagem de capitais (9.613/98), conforme o seu art. 3º. Destacamos ainda a nova lei de drogas (11.343/06), que em seu art. 44 veda o benefício, mas que, contudo, perdeu efeito com a edição da lei 11.464/07, que modificou a lei dos crimes hediondos, apesar do dissenso da jurisprudência sobre tal revogação, matéria que versaremos mais a frente. Por fim, cite-se o estatuto do desarmamento (10.826/03), cujas disposições vedatórias à liberdade provisória foram declaradas inconstitucionais pela suprema corte em sede de controle concentrado, cuja análise será procedida no capítulo III deste trabalho.

Percebe-se que todos os referidos diplomas legais visam o combate de atividades extremamente perniciosas, tutelando bens jurídicos de valor transindividual. O crime organizado e a lavagem de capitais põem em risco a segurança pública e ensejam a movimentação financeira do produto do crime organizado e de outras atividades ilícitas, que muito provavelmente serão vertidas para o fomento de novas atividades antijurídicas, numa rota cíclica.

Independentemente da vigência de suas disposições vedatórias, analisemos também os crimes de tráfico de entorpecentes além das figuras típicas dos artigos 14, 15 e 21 do estatuto do desarmamento, visto que inicialmente impuseram tal limitação ao direito à liberdade. O tráfico de entorpecentes, por expressa disposição constitucional, constitui crime equiparado a hediondo, exigindo enérgica reprimenda estatal pelos notáveis males que dissemina, recrudescendo a violência e a despesa com saude pública para o atendimento dos dependentes químicos e especialmente por propiciar o desenvolvimento do crime organizado, que se estabelece como uma espécie de poder paralelo.

Por sua vez, o Estatuto do desarmamento veio a lume com o fim de tutelar o bem jurídico incolumidade pública, cuja definição nos é oferecida com muita propriedade por CAPEZ (2005; p. 159): "delitos que atentam contra a vida, o patrimônio, a segurança, a saude da sociedade como um todo, ou seja, de um número indeterminado de pessoas." No entanto, o Supremo Tribunal Federal, por conduto do voto do Ministro relator Ricardo Lewandowski, considerou a prisão ex lege atentatória a diversos princípios constitucionais bem como desproporcional no tocante a lei 10.826/03, visto que vedação recaia sobre crimes de mera conduta (porte e posse ilegal de arma), ofendendo também em seu art. 21 a presunção de inocência e o devido processo legal.

A necessidade de o Estado resguardar os bens jurídicos mais importantes, censurando os atos atentatórios contra eles com uma previsão punitiva mais severa não pode redundar na aplicação compulsória de instrumentos cautelares, tal como se fosse um consectário lógico, sob pena de ofensa ao sistema de garantias consagrado na Constituição. O sustentáculo jurídico em que se escudam os defensores da proibição legal à concessão de liberdade provisória está incrustado no próprio texto constitucional, precisamente em seu art. 5º, inciso XLIII, que preconiza:

A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

A fim de melhor ilustrar o raciocínio expendido por tal corrente, observemos os lúcidos apontamentos feitos por um jurista do escol de Nucci (2009; p. 635):

O constituinte originário, ao inserir no título dos direitos e garantias fundamentais, uma expressa recomendação para que a lei considere determinados tipos de delitos mais graves, tratando-os com mais rigor, teve a preocupação de salvaguardar com evidente zelo certos bens jurídicos, como a vida, a saude pública, a dignidade humana e sexual, entre outros. Assim raciocinando, deve-se buscar dar às vedações estipuladas acerca da ‘inafiançabilidade’ e de ‘insuscetibilidade de perdão do Estado’, uma interpretação extensiva, chegando à conclusão de que o acusado por crime hediondo não pode ter sua pena perdoada ou comutada de qualquer modo. A partir desse entendimento, é natural supor que as leis, cuidando de tortura, do terrorismo, de tráfico ilícito de entorpecentes e dos delitos hediondos devem ser rígidas, podendo trazer outras vedações compatíveis com o espírito constitucional nessa visão apresentado.

Como é sabido por todos, a afiançabilidade é espécie do gênero liberdade provisória, que por seu turno, também comporta a liberdade sem a prestação de garantia pecuniária, por opção do mesmo constituinte originário que recepcionou expressamente o instituto escalonado nessas espécies. Vale ressaltar ainda que a opção do constituinte originário foi absolutamente consciente, pois o desprestígio da fiança data de mais de uma década antes do advento da atual Constituição, visto que o parágrafo único do art. 310 do CPP foi editado pela lei 6.416/77. Portanto, a própria Constituição de 1988 agasalhou a modalidade de liberdade provisória sem fiança e atribuiu-lhe o condão de escape para garantia do direito fundamental à liberdade.

O argumento de imprecisão legislativa quanto à expressão inafiançabilidade, como sinônimo de liberdade provisória enquanto gênero, não se revela suficiente em virtude da possibilidade da liberdade provisória ser concedida com a imposição de uma série de medidas instrumentais diversas de dinheiro, e por certo mais eficazes. A nosso sentir, o constituinte originário apenas delimitou a atuação do legislador ordinário para não cominar uma sanção aquém do que merecem tais delitos, visto que no assimétrico sistema de liberdade provisória então existente e chancelado pela Constituição de 1988, crimes mais brandos preveem o pagamento de fiança, enquanto os crimes mais complexos não. Nesse diapasão, calha expor o escólio de Oliveira (2009; p. 475):

O fato de a liberdade com fiança não ser permitida para determinados crimes, daí serem inafiançáveis, não poderá significar nunca a impossibilidade da aplicação da liberdade provisória sem fiança, tal como admitida no próprio texto constitucional (art. 5º, LXVI), porque isso implicaria a interpretação da norma constitucional a partir da legislação ordinária, o que é absolutamente inadmissível e mesmo impensável.

Ademais, a vedação de graça, anistia e indulto não colide nem resvala em direitos fundamentais porque se referem a benesses declinatórias do jus puniendi concedidas pelo Estado. De fato seria ilógico arrochar a pretensão punitiva e oportunizar uma brecha para a clemência estatal, ao alvedrio do Presidente da República ou do Congresso Nacional a depender da espécie do benefício. Contudo, a par do sistema de garantias e valores propugnados pela Constituição Federal, como uma medida de natureza instrumental, afeita ao processo, pode ser decidida pelo legislador? Mais, se os delitos de formação de organização criminosa e lavagem de capitais não estão inscritos no rol dos crimes hediondos nem foram nominados pela Constituição no art. 5º, inciso XLIII, com que legitimidade se prestam a vedar compulsoriamente a concessão de liberdade provisória?

Como assinalado por Eugênio Pacelli de Oliveira na citação anterior, a liberdade provisória sem fiança foi recepcionada pela atual Constituição com a mesma envergadura que a liberdade mediante o arbitramento de fiança. A dicção do inciso XLIII art. 5º é curial para a correta compreensão do tema, todavia, não pode ser interpretada dissociadamente dos incisos LXI e LXVI, que lhe são complementares no tema da liberdade e suas hipóteses restritivas. Portanto, a inafiançabilidade para crimes hediondos e assemelhados não inviabiliza a sua concessão sem o pagamento de fiança, como reza atualmente a lei dos crimes hediondos.

A hipótese de a Constituição outorgar ao legislador ordinário a incumbência de restringir direitos individuais, quando a própria estabelece que tais medidas carecem de motivação idônea ante o caso em exame, a ser aferida por autoridade judiciária competente, se opõe drasticamente aos fins colimados além de gerar gargalos insuperáveis, capazes de semear insegurança jurídica na resolução prática das lides penais.Para tanto, utilizemos dois exemplos ilustrativos:

1) O Ministério Público propõe denúncia contra determinada pessoa pela suposta prática de um crime em que a liberdade provisória é vedada, e preenchidos os requisitos do art. 44 do CPP, o juiz recebe a denúncia, mas não vislumbra elementos que indiquem a necessidade de prisão cautelar. Terá então o juiz o seu livre convencimento motivado suprimido, atuando apenas como boca da lei? Sigamos adiante. Após o pedido de liberdade provisória da defesa, com base na jurisprudência atual das Cortes Superiores, a mera citação do dispositivo legal proibitivo constitui fundamento idôneo a justificar a manutenção da custódia cautelar?

Entendemos negativamente em ambos os casos. Estar-se-ia violando uma prerrogativa constitucionalmente conferida à magistratura, maculando a independência funcional do juiz, enfraquecendo, por conseguinte, as bases do Estado Democrático em que vivemos. Sem mencionar a ofensa ao direito do jurisdicionado de ter deduzidas as razões concretas que restringem sua liberdade, o que viola o princípio do devido processo legal na sua acepção material, que assegura alguma relevância e repercussão prática nas manifestações da parte integrante do pólo passivo da relação jurídica.

2) Em um processo hipotético que apura a prática de crime que veda a concessão de liberdade provisória, constata-se a ocorrência de excesso de prazo para conclusão da instrução processual, para o qual a defesa em nada contribuiu. Continuará o acusado preso aguardando o desenrolar da marcha processual? Terá um Habeas Corpus (HC) liberatório o condão de desfazer tal nó, se mesmo o juiz está legalmente proibido de conhecer tal pleito? (e como a redação é genérica não se pode inferir exceções).

A vedação imposta na abstração normativa, incapaz de alcançar todas as situações de fato, não pode cercear indistintamente um direito individual. Mesmo porque se um direito fundamental de aplicação imediata pudesse ser relativizado pelo poder de arrasto de lei ordinária – o que é impossível, uma ação de natureza constitucional certamente teria aptidão para restituir-lhe a completude.

Em todo caso, vê-se a necessidade de fugir ao paradigma estanque imposto por tais normas proibitivas para pensar as necessidades processuais de acordo com o caso concreto, como quer a Constituição Federal de 1988.

Assim, conclui-se que a ratio legis das mencionadas leis encontra óbice insuperável na tríade constituída no atual momento histórico-jurídico pela inafastabilidade da jurisdição, pela hermenêutica valorativa (pós positivismo) e pelo ativismo judicial.

2.2. A norma jurídica: uma análise de seus atributos essenciais e aplicação na vedação a direitos fundamentais

Para uma adequada interpretação da norma jurídica, mormente de normas veiculadoras de restrições a direitos sedimentados, é necessário um exame acerca de seus atributos básicos. A norma jurídica é essencialmente dotada de generalidade e abstração em suas disposições, indispensáveis à sua incidência sobre os atos e fatos jurídicos tutelados pelo ordenamento. Deste modo, resta evidente que o legislador não detém uma bola de cristal capaz de jurisdicizar todos os fatos produzidos em sociedade, o que, no entanto, não lhe escusa de prever tanto quanto possível todas as hipóteses factuais compatíveis de serem abrangidas pela incidência da norma a ser produzida a partir da matéria versada.A generalidade e a abstração são as características potencializadoras do direito codificado, pois a primeira torna destinatário da norma todos os cidadãos submetidos a um ordenamento jurídico, enquanto que a segunda, é o atributo que a norma detém para impor uma ação ou abstenção. De modo que a incidência da norma jurídica apresenta-se sempre como geral, abstrata, bilateral e coativa.O cotejo de tais elementos propiciam os meios para interpretação da norma, possibilitando assim a extração de seu sentido e alcance. Ademais, incumbe observar que a validade da norma não se exterioriza apenas com a satisfação dos requisitos de legalidade, apesar de tais requisitos por si só encerrarem a viabilidade do ordenamento jurídico. Importa ainda na sua adequação axiológica ao sistema orgânico que é o ordenamento, e o seu escopo de promover a justiça. Nesse sentido, merecem destaque as palavras de Bobbio (2007; p. 163):

Julgamos que o fato de considerar a generalidade e a abstração como requisitos essenciais da norma jurídica tem uma origem ideológica, e não lógica, ou seja, acreditamos que por trás dessa teoria existe um juízo de valor do seguinte tipo: ‘convém (é desejável) que todas as normas jurídicas sejam gerais e abstratas.’ Em outras palavras, pensamos que generalidade e abstração são requisitos não da norma jurídica como é, mas como deveria ser para corresponder ao ideal de justiça, para o qual todos os homens são iguais, todas as ações são certas; isto é, que são requisitos não tanto da norma jurídica (ou seja, da norma válida num determinado sistema), mas da norma justa.

A norma jurídica deve assim expressar valores compatíveis com a promoção da justiça, fim em si mesmo da ciência jurídica. A vontade da lei, para efeitos de interpretação sistemática e integração do ordenamento, deve orientar-se pela essência valorativa revelada pelo texto constitucional (de feição rígida ou semi-rígida), afinal o destino de cada norma abstrata é a aplicação a uma situação individualizada, como observa Camargo (2003; p. 133):

A defesa pela vontade objetiva da lei, por sua vez, abre caminho para o método de interpretação teleológico-axiológico, uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intérprete para a busca do fim nela contido, mediante a investigação das condições sociais de seu tempo e valores preponderantes. Afinal, trata-se de encontrar a solução mais adequada e razoável para cada caso.

Com efeito, uma prescrição normativa inserida em uma fórmula geral e abstrata como é a roupagem de uma lei, mostra-se inapta à tarefa de extremar ou suavizar um outro direito, especialmente se tratando do direito fundamental à liberdade, pois a modulação de seus limites é tarefa que se impõe à autoridade judiciária competente, responsável pela construção da norma individual, materializada em uma decisão judicial. De modo que a norma jurídica serve para ser aplicada ao caso concreto e não para automática e indistintamente negar eficácia a outro preceito, ainda mais quando este último atua diretamente na realização da vontade suprema da Constituição.

Verifica-se assim, a impossibilidade de o legislador, por melhor intencionado que esteja, conferir um juízo definitivo acerca de uma medida que só pode ser determinada a partir da análise dos elementos cognitivos específicos do caso concreto.

Mesmo que a vedação legal à concessão de liberdade provisória fosse consagrada pelo art. 5º da Constituição, haveria ainda óbice a ser dirimido, sob pena de flagrante contradição sistemática: a necessidade de fundamentação das medidas acautelatórias. Inicialmente, não restam dúvidas de que a constrição de liberdade deve ser submetida ao crivo da autoridade judiciária para o controle da legalidade e oportunidade do ato. O art. 93 da Constituição, notadamente em seu inciso IX, estatui o dever-poder ao Estado-juiz de arrazoar todas as suas decisões, dentre elas o decreto da custódia cautelar. Vejamos:

Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Todavia, os diplomas legais que preconizam a vedação automática à concessão de liberdade provisória excluem do juiz qualquer campo para atuação e interpretação, devendo o mesmo apenas dar fiel cumprimento à disposição legal. Mas, por outro lado, como exige a própria Constituição, o dever de justificar a medida é indeclinável sob pena de nulidade do ato. Ou seja, o fato de a lei ordinária de vedar o benefício da liberdade provisória, a pretexto de efetivar a Constituição, não isenta o juiz do dever de motivar a prisão.E daí surge novamente a problemática apresentada em razão de uma norma hermeticamente fechada: o juiz mesmo não vislumbrando razões acautelatórias que justifiquem a medida instrumental da prisão provisória deve mantê-la. Mas como justificá-la? O juiz não pode se afastar de sua posição equidistante e imparcial entre os sujeitos do contraditório a ele submetido para vasculhar elementos justificadores da segregação cautelar. Malgrado o seu poder inquisitório para determinar a produção das provas que entender convenientes, sua posição exige a colheita de elementos para melhor instruir o caso, e não para favorecer ou prejudicar uma das partes. Cumpre advertir que o ativismo judicial não pode se estender ao ponto de tomar parte no sistema acusatório. Nesta senda, não encontrando elementos aptos a embasar o decreto prisional, a conseqüência que se impõe ao juiz é declinar o dispositivo legal como razão. Assim, ao menos viabilizar-se-ia um rito para atender à prescrição normativa. Ocorre que mesmo que se trate de acusado processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados, fundamento utilizado pelos defensores da constitucionalidade da medida vedatória (art. 5º, XLIII), a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem destacado que a gravidade abstrata do crime imputado não basta à justificação da prisão cautelar. De modo que todo e qualquer automatismo tem sido rechaçado por ofensa ao postulado de proporcionalidade além de vários princípios constitucionais já mencionados ao longo deste trabalho.

A fim de corroborar esse posicionamento, a título ilustrativo, destacamos os seguintes precedentes da Suprema Corte: HC 80.064/SP, Rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence; HC 92.299/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; HC 92824/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa; HC 93.427/PB, Rel. Min. Eros Grau; HC n. 97.976/MG, Rel. Min. Celso de Mello; RHC 71.954/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RHC 79.200/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence;

Destarte, está cabalmente demonstrada a impossibilidade da norma jurídica, a par dos seus atributos, subordinar a atuação concreta de sua aplicação, especialmente ao restringir outra norma de índole superior, porque a aferição de proporcionalidade de sua incidência no caso concreto é tarefa mesma do intérprete e do seu aplicador, pois a Constituição de 1988 não fraqueou tal poder extensivo ao legislador que lhe deu vida.

2.3 A revogação da vedação legal à liberdade provisória nos crimes hediondos

Se a mina explorada pelos cultores da possibilidade abstrata de proibição à liberdade provisória reside precisamente no art. 5º, XLIII da Carta Magna, há que se dizer que tal concepção sofreu um revés considerável, dessa vez no plano normativo. O retrocitado dispositivo constitucional refere-se a crimes hediondos e equiparados, os quais foram disciplinados na lei 8.072/90. Esta, por sua vez, com o advento da lei 11.464/07, afastou a vedação absoluta à liberdade provisória, mantendo apenas a restrição a concessão de fiança para os delitos nela compreendidos. Assim, o legislador mostrou querer reparar um instrumento normativo utilizado até então de forma lesiva aos direitos fundamentais, aclarando ainda qualquer suspicácia pendente, malgrado consagrada doutrina vaticinar há muito tempo que a interpretação conferida ao citado dispositivo constitucional não poderia autorizar tamanha restrição, como aduz Gomes (2009; s/n):

Lendo (e relendo) o art. 5°, inc. XLIII, da CF/88, não se encontra (nem implicitamente) a vedação da liberdade provisória nos crimes hediondos. Isso foi criação (inconstitucional) do legislador ordinário. Este, por força da Lei 8.072/1990, em sua redação original, proibiu, para os autores desses crimes (e equiparados), a concessão do referido benefício (liberdade que é concedida ao agente preso em flagrante, quando desnecessária a prisão cautelar).

De fato, as modificações recentes na lei dos crimes hediondos se prestaram a corrigir as incompatibilidades materiais de sua redação original para amoldar-se à simetria principiológica-valorativa da Constituição, dentre as quais, destaca-se a possibilidade de progressão de regime, a fixação de lapso temporal diferenciado para progressão de regime em relação aos crimes comuns e a possibilidade de concessão de liberdade provisória, como destacado.O art. 2º do citado diploma legal preceituava que os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo eram insuscetíveis de fiança e liberdade provisória. Agora, a lei só restringe a concessão de fiança. Prova-se assim que o legislador sempre diferiu fiança de liberdade provisória; mesmo não se valendo de uma conceituação estritamente técnica; a concessão de liberdade vinculada ao processo sempre foi possível, na medida em que o nosso sistema de liberdade provisória sempre foi de natureza dúplice, prescrevendo a inafiançabilidade de determinados crimes para atender à norma constitucional, que se limitou em conferir especial relevância dos delitos hediondos e equiparados sem abarcar questões pendentes de avaliação judicial..Hodiernamente, em sede jurisprudencial, discute-se extensão dos efeitos da lei 11.464/07 à lei 11.343/06, nova lei de repressão às drogas, apesar da ampla maioria já se posicionar em favor da admissibilidade. Os que se posicionam contrários a tal extensão aduzem a existência de conflito de normas.A fim de externamos tal corrente, reportamo-nos aos termos precisos da decisão monocrática proferida no HC 81.241/GO, da lavra do Ministro Felix Fischer do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu que apesar da inovação promovida pela lei 11.464/07, agregada à lei dos crimes hediondos, a mesma não alcança a nova lei de tóxicos, porquanto seja esta última uma lei especial, enquanto que aquela se afigura como lei geral. Tal interpretação, contudo, não pode prosperar por razões basilares do direito. Vejamos:

Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 da nova lei de tóxicos ‘são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos’ (art. 44 da Lei nº 11.343/06). Embora tenha a lei 11.464/07 suprimido do texto legal do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.072/90 a vedação à concessão de liberdade provisória aos acusados por crimes hediondos e equiparados, remanesce a proibição tendo em vista a especialidade da nova lei de tóxicos. Além do mais, o art. 5º, inciso XLIII, da Carta Magna, proibindo a concessão de fiança, evidencia que a liberdade provisória pretendida não pode ser concedida. Nessa linha os seguintes precedentes do Pretório Excelso (AgReg no HC 85711-6/ES, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86814-2/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa; HC 86703-1/ES, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 89183-7/MS, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86118-1/DF, 1ª Turma, Rel. Ministro Cezar Peluso; HC 79386-0/AP, 2ª Turma, Rel. Ministro Maurício Corrêa; HC 83468-0/ES, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 82695-4/RJ, 2ª Turma, Rel. Ministro Carlos Velloso). Denego, pois, a liminar. Solicitem-se informações ao e. Tribunal a quo. Após, vista ao MPF. P. e I.

O eminente relator vislumbrou um conflito de normas inexistente. A lei dos crimes hediondos dota de eficácia um preceito magno (art. 5º, inciso XLIII) carente de regulamentação para produção de efeitos concretizadores. Sendo assim, não há como se questionar o fato de que sua disciplina normativa se aplica a todos os crimes inscritos em seu bojo, de modo diferenciado das demais normas penais constantes no ordenamento. No universo das normas penais, a lei dos crimes hediondos é de natureza especial, devido às peculiaridades de suas disposições. Com efeito, a nova lei de tóxicos também exsurge como lei especial perante as demais normas penais. Nesse diapasão, observe-se que a referida é de 2006 e preconiza em seu art. 44 a vedação absoluta e apriorística à liberdade provisória. Em contrapartida, a lei 11.464 data de 2007: é mais recente, tem a mesma natureza jurídica e regula a mesma matéria em sentido diametralmente oposto. Logo, a norma posterior ab-rogou a anterior que dispunha em sentido incompatível ao seu teor. Ademais, permitir que a liberdade provisória para todos os crimes hediondos e equiparados e excetuá-la apenas o crime de tráfico ilícito de entorpecentes solapa o princípio o princípio da isonomia, pois, desde o direito romano consagrou-se que, onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direito (ubi eadem ratio, ubi eadem jus). Portanto, o fenômeno ocorrido foi a sucessão de leis penais no tempo, ao invés de um conflito aparente entre normas.Para que a nova lei de tóxicos pudesse ser considerada especial em relação à lei dos crimes hediondos, exigir-se-ia que apresentasse um elemento qualificador, um plus em relação a matéria singelamente versada na lei geral. Os preceitos de igual envergadura contidos em normas distintas obedecem aos critérios ordinários insculpidos no art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil. Neste sentido, calha observar os proficientes apontamentos de Diniz (2009; p. 41):

Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva e subjetiva, denominados especializantes. a norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando -se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também previsto no geral.

Deste modo, para admitíssemos a existência de conflito aparente de leis seria curial pressupor a existência contemporânea de duas normas válidas, sem as quais não há qualquer antinomia, como é o caso em exame. De fato, o ordenamento jurídico não tolera contradições entre seus preceitos. Entretanto, não há conflito há ser dirimido neste caso, pois como não se tratam de normas hierarquicamente díspares nem de cunho especializante, consideradas uma em razão da outra, equaciona-se o problema com a adoção do critério mais simples, que é o cronológico, prestigiando assim o princípio da posteridade.


CAPÍTULO III – Prisão e liberdade provisória: uma análise teórica e jurisprudencial.

3.1 A distinção entre inafiançabilidade e liberdade provisória

O instituto da liberdade provisória presta-se a regular o status libertatis do indivíduo sujeito à persecução criminal estatal. A partir do momento em que uma ação penal é recebida pelo magistrado nasce concomitantemente a possibilidade de restrição ao direito de liberdade do indivíduo, visto que a priori a privação de liberdade é reservada como efeito primário de uma eventual condenação. Nas prisões efetuadas em flagrante, das quase o remédio jurídico é o pedido de liberdade provisória, dispensa-se o mandado judicial para constrição de liberdade, a qual será submetida posteriormente a apreciação do juiz competente para análise da legalidade do ato e da necessidade acautelatória.

Com efeito, o que se deve ter em mente é que instaurada a relação processual imediatamente incidem restrições ao pleno direito de ir e vir do acusado, o qual, por exemplo, não poderá mudar de endereço sem comunicar previamente o juízo, ato corriqueiro para quem não responde a um processo. A apuração da existência de uma infração penal e de sua autoria detém parte da completude da liberdade de qualquer acusado, posto que se verifica uma vinculação mínima à persecução criminal deflagrada.

Neste interregno entre a apuração dos fatos apontados e a formação da coisa julgada, o direito à liberdade deve ser tutelado, respeitada a dignidade da pessoa humana do acusado, a partir das necessidades do processo, que revela um interesse transindividual, que é a descoberta da verdade real dos fatos além do resguardo à segurança da coletividade em tese violada. Nesta senda, tanto a prisão quanto a liberdade serão provisórios, ou seja, pendentes da escorreita apuração dos fatos pelo Estado juiz, daí o poder vinculante do processo frente ao acusado, o que não importa automaticamente na adoção da medida odiosa em observância ao princípio da presunção de não culpabilidade.

A noção de dignidade da pessoa humana referida espelha a necessidade de observância dos direitos fundamentais do acusado. A despeito de não serem absolutos, os direitos fundamentais comportam exceções bastante pragmáticas à sua aplicação. A privação prévia da liberdade só pode ser admitida se indispensável à manutenção da ordem social ou econômica, da boa marcha do processo ou da aplicação da lei penal.

De modo que o instituto da liberdade provisória teve sua feição reinventada e revigorada na atual ordem constitucional, ganhando força de regra geral a ser observada, com status de direito público subjetivo, sob pena de assumir o caráter de cumprimento antecipado de pena.Contudo nem sempre foi assim. A evolução desse instituto e de seu conteúdo assevera a carga valorativa agregada a partir da concepção neoconstitucionalista. Desde o seu primórdio na Constituição imperial de 1824 e no Código de Processo Criminal de 1832, a liberdade provisória resumia-se a espécie concedida pelo arbitramento de fiança, prestada por garantia real, ao alvedrio do Estado; a noção de direito público subjetivo inexistia em absoluto. Nesse diapasão, o Código de Processo Penal vigente, em sua redação original também só contemplou a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, cuja possibilidade jurídica cingia-se às hipóteses dos arts. 322 a 324, além dos casos de incidência de causa excludente de ilicitude, ou seja, cabiam apenas em crimes abstratamente menos graves ou perpetrados sob escusa legal.

A guinada para o atual estádio do instituto teve sua gênese apenas em 1977, com o advento da lei 6.416. O legislador sinalizando os rumos que a política criminal deveria seguir acrescentou um parágrafo único no art. 310 do CPP, no qual instituiu a possibilidade de liberdade provisória sem o pagamento de fiança para os acusados presos em flagrante delito. Esta contribuição revelou-se um marco na processualística penal brasileira ao retirar da lei a autodeterminação da prisão que só admitia exceções taxativamente previstas. A prisão era a regra e a liberdade, a exceção deferida em um estreito rol legal. Com a inserção deste parágrafo único inverteu-se o panorama.

Podemos classificar a liberdade provisória a partir de então em duas formas distintas: liberdade, mediante pagamento de fiança e liberdade sem o pagamento de fiança. E a modalidade sem a prestação de fiança apresentou muito mais benéfica, pois universalizou a liberdade provisória a todas as infrações penais existentes no arcabouço normativo brasileiro bem como diminuiu as reservas legais à sua concessão, as quais foram reduzidas às hipóteses de cabimento de prisão preventiva. Logo, a manutenção da prisão em flagrante ou a concessão de liberdade provisória deve ser aferida da conjugação dos interesses revelados pelos arts. 310 e 312 do CPP. A prisão provisória perdeu o caráter de punição antecipada ao acusado para ser compreendida enquanto medida cautelar, necessária ao deslinde do processo, interpretação que foi alçada ao patamar de cláusula pétrea na atual Constituição, expurgando-se de vez por todas a prisão automática, destituída de fundamentação específica.

Ocorre que todos os citados diplomas legais que proíbem a liberdade provisória são de natureza infraconstitucional e trazem invariavelmente em sua redação a restrição não só da liberdade provisória, mas também da concessão de fiança. Abominável erro terminológico! O instituto da liberdade provisória é gênero, do qual a liberdade mediante fiança é uma das espécies. Logo, não se tratam de institutos autônomos, mas que desenvolvem entre si relação de continência. A previsão de inafiançabilidade e vedação à liberdade provisória traduz uma desnecessária locução normativa, pois desde o direito romano impõe-se que as palavras empregadas nos textos legais devem ser compreendidas como detentoras de alguma eficácia (verba cum effectu sunt accipienda).Essa impropriedade terminológica acaba por oferecer a falsa impressão de que a Constituição, com base em seu art. 5º, XLIII, autorizou a ressurreição da prisão obrigatória no direito brasileiro, quando na verdade, apontou o maior cuidado que a prevenção/repressão dos crimes hediondos e assemelhados requereriam. O raciocínio encetado na esdrúxula fórmula adotada pelo legislador conduz ao seguinte: De início, o acusado não poderá responder em liberdade em razão da inafiançabilidade legal, doutra banda, tampouco poderá fazê-lo mediante liberdade provisória (sem fiança). Tudo isso por dicção legal, sem necessidade de manifestação da autoridade judiciária. Destarte, não há como o acusado responder o processo em liberdade, o que constitui grave equívoco, como bem lembra Feitoza (2009; p. 909):

Assim sendo, não é cabível, na vedação meramente legal da fiança, o raciocínio da vedação constitucional da fiança. A vedação da fiança, na norma infraconstitucional, não implica a vedação da liberdade provisória sem fiança. As razões constitucionais dessa implicação são diferentes das razões da referida opção legislativa infraconstitucional.

Se o sistema vigente só admite a constrição provisória da liberdade quando presente razão acautelatória, esses diplomas jurídicos impeditivos à liberdade provisória atuam na contramão da Constituição e dos valores introjetados no ordenamento em sua decorrência. Os anacronismos do legislador não podem ser acoimados pelos operadores do direito, especialmente, pelos magistrados que aplicam a lei. O argumento veiculado por eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal de que a Constituição conferiu à lei ordinária a tarefa de balizar os limites da inafiançabilidade em crimes hediondos e equiparados, não autoriza, a nosso sentir, a implantação de óbices insolúveis à liberdade, independentemente de um juízo de proporcionalidade ante o caso concreto. Da mesma ideia comunga Delmanto (2006; p. 575):

Não há óbice em nosso ordenamento constitucional que a lei ordinária estabeleça casos de inafiançabilidade. Todavia, a vedação da liberdade provisória quando ausentes os motivos cautelares taxativamente previstos para a prisão temporária ou preventiva, constitui manifesta inconstitucionalidade.

As ressalvas feitas pelo constituinte no art. 5º, incisos XLII e XLIII denotam a atenção especial destinada a um tratamento penal mais rigoroso a crimes que põem em risco o próprio Estado de direito. Mas, da interpretação sistemática dos princípios encartados na mesmo art. 5º, vê-se que o texto fundamental não partiu de uma presunção desfavorável ao acusado, denotando o espírito: "prenda-se porque o crime é grave e a Constituição prescreve um tratamento rigoroso." Logicamente é possível a supressão do direito à liberdade, mas essa necessidade extraordinária decorre da gravidade concreta dos elementos afetos ao crime apurado, e não da presunção de periculosidade apontada pela lei. A partir daí o legislador poderia repensar a necessidade acautelatória em harmonia com os princípios fundamentais regentes da liberdade e da presunção de inocência, sempre respeitando o contraditório que deve ser oportunizado ao acusado.

Ainda há na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendimento de que a vedação constitucional a concessão de fiança nos crime hediondos e assemelhados acarreta outrossim na vedação da liberdade provisória sem fiança. Se a Constituição veda uma modalidade de liberdade (com fiança) que em tese oferece maior poder vinculante ao processo em face do oferecimento de garantia pecuniária, por certo, outra modalidade menos efetiva não poderia surtir melhor efeito. O que, a nosso sentir, é uma ideia altamente discutível, pois o juiz investido de poder geral de cautela pode aplicar medidas simples ou combinadas, diversas de dinheiro, suficientemente eficazes para assegurar os interesses processuais, inclusive com precedentes na mesma Corte, Aliás, sendo possível preservar um direito fundamental do acusado, é dever-poder do juiz fazê-lo.

Parte-se do raciocínio de que inexiste qualquer violação ao texto constitucional, uma vez que a própria Constituição realizou a tarefa de sopesar os bens jurídicos que mereceriam uma tutela penal diferenciada, o que o fez nos incisos XLII e XLIII de seu art. 5º, exigindo maior vigor no combate aos crimes de racismo, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos.Nem mesmo a edição da lei 11.464/07, que retirou a vedação à liberdade provisória da lei dos crimes hediondos, foi inicialmente capaz de alterar tal interpretação do Pretório Excelso, pois foi compreendida como reparo à redundância estampada no art. 2º, II da lei dos crimes hediondos. Com as devidas vênias, parece-nos um argumento simplista e revestido de um garantismo exacerbado. Por exemplo, como já explicitado no final do capítulo II não há conflito de normas entre a lei revogadora da vedação à liberdade provisória para os crimes hediondos e a lei de tóxicos. Há sucessão de normas no tempo, e não conflito, posto que uma versa a matéria contida na outra. Mas pela magnitude do crime, o Tribunal reservou-se a uma interpretação do art. 5, XLIII, como se ele fosse o único comando legal atinente a tutela da liberdade provisória, posição que vem sendo devidamente revista.

A prisão ou liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória exige um juízo de ponderação para que direitos fundamentais não sejam levados a extremos, obstaculizando outros direitos de igual eficácia nem sendo aniquilados ao final, cautelas específicas impossíveis de defluir apenas do texto legal. A Constituição foi bastante explícita quando quis restringir direitos fundamentais, pois foi promulgada sob a sombra recente de uma trágica ditadura militar, que inobservou todo tipo de direitos e garantias individuais. Não haveria sentido em albergar duas modalidades de liberdade provisória, vedar expressamente uma delas para determinados crimes, e a pretexto de cumprir seu comando, interpretar a vedação da fiança como se de fato esta fosse a mesma coisa que liberdade provisória, e não uma de suas espécies. Sendo ela abarcada pelo instituto da liberdade provisória, esta subsiste em sua dimensão intocada pela Constituição, ou seja, concessível sem fiança. Do contrário, estaríamos a cogitar a existência de palavras despiciendas justamente na Constituição, cuja dogmática hermenêutica nos ensina que a Lei Maior diz precisamente aquilo que deve compor o ordenamento jurídico por ela instituído, pois como já aventado, verba cum effectu sunt accipienda, ou, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia.

Se a fiança é um direito público subjetivo do acusado que foi afastada expressamente em determinado crimes pelo constituinte, o mesmo não se diga da liberdade sem fiança, a qual não foi mencionada – a nosso ver intencionalmente – em caráter proibitivo, especialmente porque lei ordinária regulamentadora de dispositivo constitucional não pode limitar o que é intangível até mesmo para mesmo para emenda constitucional, conforme esclarece Delmanto (2006; p. 576):

O art. 5º, XLIII, de nossa lei maior, ao dispor que ‘a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...] não vedou nem poderia vedar, em absoluto, a liberdade provisória, posto que isto significaria a volta da prisão obrigatória. Por outro lado, interpretar que o seu art. 5º, LXVI, autorizaria, implicitamente, que a lei ordinária pudesse proibir por completo a liberdade provisória, e ainda para todo e qualquer crime (ninguém será levado a prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança), não condiz com o espírito do art. 5º. Este artigo, que cuida dos ‘direitos e garantias individuais’, cláusulas pétreas as quais sequer podem ser objeto de emenda constitucional (art. 60, §4, IV) há de ser interpretado de modo a ampliar esses direitos e garantias, não o contrário. Em outras palavras, o art. 5º da CR/88 não admite interpretação extensiva em desfavor da liberdade.

3.2 Uma análise da ADI 3112: a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o estatuto do desarmamento.

Em 02 de maio de 2007, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3112/DF, proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro - PTB contra vários dispositivos do Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/03). Dentre as sustentações de inconstitucionalidade merece destaque a análise do posicionamento da Excelsa Corte acerca da inafiançabilidade dos crimes de porte ilegal de arma e disparo de arma de fogo (arts. 14 e 15 da referida lei) e a vedação absoluta à liberdade provisória contida em seu art. 21 (o qual remete aos arts. 16 a 18), os quais guardam intrínseca relação com o presente trabalho.Em atenção a garantia da segurança pública, dever primário do Estado, o legislador brasileiro buscou instrumentos para otimizar a regulamentação do comércio, porte e outras questões afetas às armas de fogo. Assim, a lei 10.826/03 é fruto de extenso processo legislativo, cujo espírito normativo presta-se a combater a escalada da criminalidade, notadamente em crimes contra a vida e o patrimônio. Nessa linha, os crimes capitulados em tal diploma legal foram dotados de rigor visível, em muitos aspectos ofensivos a direitos individuais.Constatou-se no julgamento da mencionada ADI que o legislador, ambicionando atender os anseios de uma sociedade cada vez mais assolada pela violência armada, não demonstrou proporcionalidade na valoração da necessidade constritiva do status libertatis do indivíduo, o que nos remonta novamente ao ideário da "legislação do pânico".No tocante a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos arts. 14 e 15 do Estatuto, entendeu o pleno daquela Corte, por conduto do voto do Ministro relator Ricardo Lewandowski, que a vedação à fiança é medida desarrazoada, visto que tais delitos não integram o rol de crimes insculpidos no art. 5º, XLIII da Constituição. Ademais, como assentou o eminente relator, trata-se de crimes de mera conduta, cuja lesividade embora perceptível não demonstra proporcionalidade em sentido estrito (adequação entre fins e meios) para com a vedação adotada.

É de se observar ainda que ambos os artigos têm pena de reclusão de 2 a 4 anos, logo, de acordo com a regra geral encartada no art. 323, I do CPP são a priori afiançáveis, malgrado a opção do legislador em denegar tal benefício, o que é perfeitamente factível, de acordo com a competência legislativa outorgada pela própria Constituição. Note-se então dois aspectos bastante conclusivos do voto do ministro relator: 1º) A Constituição traçou o parâmetro inafastável para imposição de inafiançabilidade no art. 5º, XLIII; 2º) Apesar de ao legislador ordinário competir a disciplina dos crimes em que incide a inafiançabilidade, o Poder Judiciário não pode se furtar a proceder o controle de adequação das vedações legais aos ditames da Constituição.As leis 9034/95 (lei do crime organizado) e lei 9618/98 (lei da lavagem de capitais), como já afirmado anteriormente, também não se inserem no rol do art. 5º, XLIII da Constituição Federal, mas continuam a produzir efeitos incontinenti, devido o seu escopo de combate a crimes de notória ofensividade. O legislador ordinário, na esteira da franquia constitucional para o combate a crimes hediondos e assemelhados, estendeu indevidamente o mandamento magno a outras leis ordinárias, o que deve ser prontamente revisto. Dentre suas abalizadas considerações, uma ponderação feita pelo eminente relator carece ser mais bem observada: a Constituição não autoriza prisão ex lege. Ou seja, é terminantemente proibida a vedação ao direito à liberdade por simples imposição legal. Tal raciocínio é expendido sem qualquer submissão ou referência ao art. 5º, XLIII da Constituição, de modo a ser interpretado então como regra plena. Não é mais concebível no ordenamento jurídico pátrio a aplicação de uma medida constritiva pessoal - ordem de prisão – emanada por um comando geral e automático, sem a devida fundamentação do órgão jurisdicional competente. Assim é correto dizer que a prisão ex lege equivale à prisão obrigatória, sendo esta categoricamente repelida pela Carta Republicana.

Desta feita, reconheceu a Suprema Corte a impossibilidade de cerceamento absoluto ao direito a liberdade provisória, o qual pode sofrer reduções, mas não decorrentes de opção legislativa, e sim de medida judicial na qual restem demonstradas as razões que recomendam a adoção da prisão cautelar em detrimento da presunção de não culpabilidade, o que é missão indeclinável do juiz de direito, conforme expressa dicção constitucional, como advertiu o Ministro relator em seu voto:

Em outras palavras, o magistrado pode, fundamentadamente, decretar a prisão cautelar, antes do trânsito em julgado da condenação, se presentes os pressupostos autorizadores, que são basicamente aqueles da prisão preventiva, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. É dizer, cumpre que o juiz demonstre, como em toda cautelar, a presença do fumus boni iuris, e do periculum in mora ou, no caso, do periculum libertatis.

Somente com esta postura é possível preservar os princípios fundamentais correlatos ao instituto da liberdade provisória. As ações do Poder Público não podem inverter a presunção da inocência do acusado - mesmo porque é atribuição do Ministério Público a colheita de acervo probatório para lastrear a ação penal - sob pena de subverter por conseqüência o sagrado direito do contraditório e da ampla defesa; em suma, do devido processo legal material que assegure a paridade de armas entre os litigantes. Do contrário, a mácula sobre a relação processual seria tão gritante a ponto de ensejar uma nulidade absoluta, a menos que todo tipo de ação seja permitida a pretexto de cumprir o bendito art. 5º, XLIII.

A atuação estatal, mormente do Poder Legislativo, como acentuou o Ministro Ricardo Lewandowski não é irrestrita, estando diretamente condicionada pelo princípio da proporcionalidade, que por sua vez, traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. Em razão disso, é que se verifica que o Supremo Tribunal Federal tem examinado com crescente acuidade a validade jurídica de atos normativos emanados do Poder Público para exercer o adequado controle de sua compatibilidade à Constituição, notadamente em tema de garantias individuais, como obtempera Mendes (2007; p. 117):

Portanto, o legislador não está apenas autorizado a fixar limites para determinados direitos individuais, como também está obrigado a observar rigorosamente os limites estabelecidos pela Constituição para imposição de restrições ou limitações.

Essa ressalva ao exercício do Poder Público sucede do fato de que os direitos fundamentais constituem verdadeiros direitos de defesa do indivíduo contra interferências arbitrárias de quaisquer dos poderes republicanos. O teor de direito fundamental insere-se no núcleo imutável da Constituição, que nas palavras de Gilmar Mendes constituem "garantia de eternidade", afinal, a ordem jurídica existe para consagrar em última instância a dignidade da pessoa humana, exercitada por intermédio de seus princípios instrumentais ou princípios agentes. E o pleno do STF mostrou exatamente a preocupação com mitigação de direitos fundamentais.

Se é fato inconteste que os direitos fundamentais não possuem eficácia absoluta, por outro lado, não menos certo é que suas restrições também não podem ser absolutas, especialmente quando se relacionam com norma de eficácia inferior. Pensar que a vedação à liberdade provisória tem caráter absoluto e decorre do art. 5º, XLIII, importa afastar a técnica da ponderação dos direitos fundamentais conforme o caso, para aplicar tais direitos sob forma de regra de aplicação cogente, algo que se afigura como improvável para a moderna hermenêutica constitucional.

3.3 A aplicação da Teoria dos Motivos Determinantes aos diplomas que vedam a liberdade provisória

Segundo a teoria geral do processo, a sentença ou acórdão são compostos dos seguintes elementos: relatório, fundamentação e dispositivo. De todos os elementos mencionados, de acordo com a teoria clássica, o único sobre o qual incidem os efeitos da coisa julgada material é o dispositivo, que carrega a deliberação do órgão jurisdicional. O provimento jurisdicional emana uma norma individual aplicada ao caso concreto oriunda da norma geral, que é a lei reguladora daquele direito levado à tutela estatal. De modo que todo o exposto refere-se à aplicação incidental, ou seja, do caso em exame, das normas jurídicas.A partir de então, em sede de relação processual incidental, surgiu a teoria da eficácia preclusiva das razões determinantes da sentença, segundo a qual as razões formadoras da convicção do magistrado, que conduziram ao teor do dispositivo, também são albergadas sob o manto da coisa julgada, que nada mais é do que uma qualidade que imuniza os efeitos da decisão judicial de nova rediscussão em processo futuro, visando conferir segurança jurídica à prestação jurisdicional. Tal formulação decorreu da insuficiência de instrumentos capazes de convolar o espírito da norma individual decorrente da sentença ou acórdão.No controle abstrato de leis, procedido pelo Supremo Tribunal Federal nas ações direta de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, a atuação da Excelsa Corte reveste-se de maior profundidade, pois se presta a examinar a adequação da norma impugnada à Constituição Federal. Essa tarefa infere uma interpretação sistemática da norma perante a organicidade de todo o ordenamento, submisso à concretização da vontade da Constituição Federal. Assim sendo, as decisões do STF possuem eficácia erga omnes, ou seja, incidem indistintamente sobre todos os jurisdicionados pela lei brasileira, além de ostentar caráter vinculante sobre todos os órgãos e agentes públicos bem como sobre a produção normativa futura, a partir dos fundamentos determinantes da decisão do STF.

A Compreensão do alcance das decisões proferidas em ações declaratórias de inconstitucionalidade depende diretamente da aferição das razões que conduziram a Suprema Corte a tal orientação. Essa missão torna-se impossível apenas da leitura apartada do dispositivo do acórdão. Por isso, a fundamentação utilizada pelo STF é imprescindível para a percepção e efetividade da transcendência dos motivos determinantes, haja vista que os seus efeitos serão potencializados em todo o ordenamento, já que o controle concentrado trata da aplicação virtual da norma. Nesse sentido, preleciona Barroso (2007. p. 184):

Por essa linha de entendimento, tem sido reconhecida eficácia vinculante não apenas à parte dispositiva do julgado, mas também a dos próprios fundamentos que embasaram a decisão. Em outras palavras: juízes e tribunais devem acatamento não apenas à conclusão do acórdão, mas igualmente às razões de decidir.

Aceita tal premissa, surge uma questão de notável relevo para evitar a disseminação de insegurança jurídica: Toda a fundamentação integra a coisa julgada? É de se esclarecer de antemão que, como se depreende do próprio nome, o que paira além da circunscrição da própria decisão são as razões determinantes que conduziram ao teor da parte dispositiva. Nada mais. De fato, a discussão doutrinária a esse respeito é bastante intensa, contudo, o intuito dessa contribuição acolhida pela jurisprudência, de raízes germânicas, é resguardar a integridade do texto constitucional e a incolumidade da ordem jurídica, da reiteração desnecessária de normas substancialmente idênticas àquela já declaradas ofensivas à Constituição pela Excelsa Corte, como ensina Mendes (1999; p. 2):

A doutrina constitucional alemã há muito vinha desenvolvendo esforços para ampliar os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada no âmbito da jurisdição estatal (Staatsgerichtsbarkeit). Importantes autores sustentaram, sob o império da Constituição de Weimar, que a força de lei não se limitava à questão julgada, contendo, igualmente, uma proibição de reiteração (Wiederholungsverbot) e uma imposição para que normas de teor idêntico, que não foram objeto da decisão judicial, também deixassem de ser aplicadas por força da eficácia geral. Essa concepção refletia, certamente, a idéia dominante à época de que a decisão proferida pela Corte teria não as qualidades de lei (Gesetzeseigenschaften), mas, efetivamente, a força de lei (Gesetzeskraft). Afirmava-se inclusive que o Tribunal assumia, nesse caso, as atribuições do Parlamento ou, ainda, que se cuidava de uma interpretação autêntica, tarefa típica do legislador.

Deste feita, o efeito vinculante conferido ao conteúdo da decisão em sede de controle abstrato tem dois destinatários imediatos: os tribunais, que devem observar sua extensão, aplicando-a todos os diplomas legais existentes que sejam incompatíveis com suas prescrições, e o Poder Legislativo, a quem se impõe a observância da limitação material a partir da interpretação que o tribunal conferiu à Constituição.A fim de melhor precisar os motivos determinantes, a doutrina pátria e a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal cunharam uma divisão bastante elucidativa para os fundamentos da decisão, dividindo-os em: 1) RATIO DECIDENDI, que corresponde aos fundamentos determinantes da deliberação da Corte, nos quais constam as razões jurídicas que ensejaram a decisão de validade ou invalidade de determinada norma legal; e 2) OBITER DICTUM, que corresponde a fundamentação acessória do julgamento, veiculando os argumentos usados de passagem, de menor envergadura, que fomentam as razões que alicerçam a decisão, de modo que a sua função é estimular a delimitação da ratio decidendi, haja vista que só esta última possui eficácia vinculante. Nesse diapasão, calha novamente lançar mão do magistério de Mendes (1999; p. 4):

Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas. Em suma, indaga-se, tal como em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão (Urteilstenor; Entscheidungsformel) ou se ele se estende também aos chamados fundamentos determinantes (tragende Gründe), ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta. Enquanto em relação à coisa julgada e à força de lei domina a idéia de que elas hão de se limitar à parte dispositiva da decisão (Tenor; Entscheidungsformel), sustenta o Bundesverfassungsgericht que o efeito vinculante se estende, igualmente, aos fundamentos determinantes da decisão (tragende Gründe). Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva (Tenor) e dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros.

Cumpre observar ainda que, como não poderia deixar de existir no direito brasileiro, há ainda um problema de ordem material a ser solvido para a plenitude da eficácia vinculante das decisões proferidas em sede de controle concentrado nas ações diretas de inconstitucionalidade. De acordo com o art. 52, X da Constituição, compete ao Senado Federal "suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal." Esse preceito encontra-se totalmente obsoleto, conquanto inspirado em um modelo de separação dos poderes que não espelha os ideais divulgados pela nova Constituição. As decisões do STF vinculam o Poder Legislativo, ao qual incumbiria apenas a tarefa administrativa de remoção da eficácia do ato normativo invalidado pela Excelsa Corte. Malgrado buscar funcionar como um salutar mecanismo de sistema de freios e contrapesos entre os poderes, tal norma é extremamente contraproducente e burocrática, principalmente se verificarmos a tônica que o constituinte deu ao controle concentrado de constitucionalidade, onde novamente citamos Mendes (2007; p. 271):

A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal federal mediante processo de controle abstrato de normas.

Após essas extensas considerações acerca da teoria dos motivos determinantes no direito pátrio, é momento de demonstrar que as razões destacadas para declaração de inconstitucionalidade da vedação apriorística à liberdade provisória na ADI 3112 devem repercutir sobre todas as normas em que se verifique a mesma ofensa ao direito fundamental à liberdade. O pleno do STF entendeu que a vedação absoluta à concessão de liberdade provisória, por mais grave que sejam os delitos cominados, viola insofismavelmente a Constituição brasileira escorando o decisum da seguinte forma: Inicialmente, o art. 21 do estatuto do desarmamento inverte a presunção de não culpabilidade do acusado, que é direito fundamental e inalienável. Nesta senda, modifica a estrutura vigente das regras do devido processo legal, conferindo um tratamento desigual na incidência de determinados tipos penais.A corte foi categórica ao asseverar que o texto constitucional não autoriza a prisão decorrente de lei (obrigatória), destituída de ordem fundamentada exarada por autoridade judiciária competente, sob pena de ofensa também aos princípios do contraditório e da ampla defesa, todos impregnados de uma notável carga de fundamentalidade.A decisão buscou condicionar essas espécies de vedação às regras processuais ordinárias, instituídas conforme os princípios constitucionais, dentre os quais a presunção de inocência e o direito à liberdade, que só podem sofrer mitigações de acordo com interesses processuais a par da demonstração empírica de razões acautelatórias, verificadas e declinadas pela autoridade judiciária. Assim, o que é realmente vedado é a legislação ordinária, sob o argumento de resguardar a segurança e a incolumidade pública, estabelecer formas de inutilizar direitos fundamentais, que compõem a dignidade da pessoa humana e dão sustentáculo ao Estado democrático de direito. De modo, que é inegável a aplicação dos citados fundamentados às disposições vedatórias contidas na lei do crime organizado, na lei de lavagem de capitais e mesmo na lei de tóxicos, para os que insistem não considerar a vedação à liberdade provisória para crimes hediondos revogada por influxo da lei 11.464.


CONCLUSÃO

De início, vislumbramos uma manifesta contradição entre o sistema de princípios cardeais da Constituição Federal e o garantismo delineado nas normas que vedavam de forma plena a concessão de liberdade provisória. Após extensa pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, encerramos aqui conclusões que já semeamos ao longo do trabalho, conforme cada tópico abordado. O constitucionalismo transmudou-se consideravelmente no século XX, conferindo aos direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensões uma força normativa, consubstanciada em seus princípios instrumentais, jamais vista. Com efeito, a Constituição Federal de 1988, tratou da questão de forma objetiva e pontual ao garantir no art. 5º, §1, a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, dentre os quais se avulta o direito à liberdade. Numa escala de importância dos bens jurídicos podemos afirmar que a liberdade só perde em complexidade para o bem jurídico vida, que é não só o seu pressuposto básico, mas como de todos os demais direitos do ser humano. Assim, o bem jurídico em questão, de relevante magnitude, foi transferido pela Constituição para o seu núcleo intangível, alçado ao status de cláusula pétrea. Tal disposição do constituinte originário só expressa a delicadeza que o manejo desse direito importa, de modo que a sua restrição é medida excepcional, e não automática, impedindo assim qualquer espécie de intervenção ilegítima e imoderada por parte do Poder Público, que deve curvar sua atuação à satisfação dos interesses da lei maior.Impende esclarecer que defendemos veementemente a inconstitucionalidade da vedação absoluta à concessão de liberdade provisória porque admitir uma restrição desta natureza significa permitir a supressão de um direito inapagável. Malgrado a Constituição fincar as bases protetivas dos direitos elementares do cidadão, a sua eficácia concretizadora está jungida à forma como a mesma é aplicada.Por isso, defendemos, por conseguinte, que a segregação de liberdade deve estar impreterivelmente condicionada aos seguintes pressupostos: 1º) existência de procedimento judicial, 2º) controle de legalidade e oportunidade do ato por juiz de direito competente, 3º) verificação de interesse processual indispensável da medida constritiva, 4º) decisão fundamentada, expondo concretamente a necessidade da medida acautelatória.

Respeitadas tais garantias, de certo, prestigiam-se princípios informadores do direito à liberdade, tais como do devido processo legal, da presunção de não culpabilidade, do contraditório e da ampla defesa, da inafastabilidade da jurisdição e da prestação da tutela jurisdicional adequada, apenas num primeiro plano. A Constituição enquanto pedra angular do ordenamento jurídico confere o substrato de validade a todas as demais normas integrantes do sistema, vinculando, por oportuno, a produção legislativa infraconstitucional. Impõe-se a harmonização do sentido e alcance das normas ordinárias com um sentido compatível com a Constituição, sob pena de aquelas serem expurgadas do ordenamento.

Aduzir a constitucionalidade dessa atentatória forma de violação ao direito à liberdade, invocando o art. 5º, XLIII, não convence tampouco satisfaz um intérprete mais atento. A vedação expressa contida em tal dispositivo reporta-se à fiança, espécie do gênero liberdade provisória, e não sobre o instituto liberdade provisória em si. Ao se argumentar em decorrência que o constituinte destinou um tratamento penal mais rigoroso para os crimes hediondos e assemelhados, há que se ter em mente que essa severidade é cominada na aplicação da lei penal, de caráter material. A única medida expressa de caráter instrumental que a Constituição não admite é a prestação de fiança, que, historicamente só é admissível para crimes abstratamente menos nocivos.

A interpretação de um direito fundamental só pode ser extensiva, se estiver predisposta a aperfeiçoá-lo, pois a se a Constituição não foi precisa ao estabelecer suas limitações não se infere a ninguém fazê-lo sob risco de promover enorme insegurança jurídica. Essa falaciosa interpretação extensiva, que ao vedar a fiança, conduz automaticamente à proibição de liberdade provisória sem fiança, resgata desse modo a prisão obrigatória no Brasil, a qual a Constituição rechaça de plano ao exigir que todos os atos restritivos de direito emanem de decisão arrazoada de autoridade judiciária competente, sob pena de nulidade.

Aliás, tal operação hermenêutica importaria na supressão da competência do Poder Judiciário, posto que deslocaria para o Poder Legislativo o juízo de proporcionalidade a ser feito ante o caso concreto. O argumento de que o juízo de proporcionalidade seria efetuado pelo próprio constituinte originário no citado dispositivo constitucional, ao censurar com mais vigor determinadas condutas criminosas, não é mais substancioso do que a flagrante constatação de uma contradição normativa que afetaria a racionalidade da Constituição ao excetuar implicitamente a necessidade de fundamentação das medidas restritivas de liberdade.

Destarte, aceitar essa relativização do direito à liberdade provisória, mesmo contra legem neste caso, lastreando-se apenas na forma hermenêutica, revela ainda assim, de modo inequívoco, que a norma constitucional pode ser aplicada para realização de seus interesses maiores em virtude sua carga eficacial pós positiva. E para tanto, lancemos mão dos fins teleológicos de nossa Carta Republicana. Se a presunção de não culpabilidade não admite mitigações até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não se pode pensar o processo penal com base em conjecturas ou abstrações, sendo possível mesmo assim resguardar os seus interesses. Se o devido processo legal universaliza os meios de desenvolvimento regular da relação processual, a sede de aplicação da lei a crimes mais graves não autoriza a cassação de um feixe de garantias individuais para descoberta da "verdade real". Se todo procedimento persecutório estabelece uma relação dialética entre os sujeitos submetidos à jurisdição, o contraditório e a ampla defesa não podem subsistir se a lei veda até mesmo a demonstração posterior de inexistência de razões acautelatórias por parte do acusado. Chancelar tal ideário a pretexto de fazer cumprir a Constituição não faz sentido algum, conquanto demonstrado o desatendimento aos fins constitucionais, subjetivizando-se o objetivo, numa odiosa equação!

Por último, ressalte-se a eficácia vinculante decorrente da manifestação do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mais precisamente, da aplicação virtual das leis. O Pretório Excelso foi categórico ao afirmar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3112/DF que a prisão ex lege, ou seja, por imposição legal é inconstitucional por contrariar os princípios da presunção de inocência, da necessidade de fundamentação das decisões judiciais, por inobservar o devido processo legal bem como o contraditório e a ampla defesa. Reitere-se que as decisões proferidas em sede de controle concentrado detêm eficácia erga omnes. A motivação esposada no mencionado julgado pelos eminentes Ministros do Supremo deve ser aplicada indistintamente a todos os diplomas legais ordinários que, como o Estatuto do desarmamento fazia, vedam de forma absoluta a concessão de liberdade provisória no ordenamento brasileiro, por influxo da incidência da teoria dos motivos determinantes, bem como pelo advento da lei 11.464/07, que possibilitou a liberdade provisória aos crimes hediondos e assemelhados. Portanto, a vedação à liberdade provisória, que tutela o direito fundamental à liberdade, jamais poderá ser incondicional, razão pela qual a lei do crime organizado, a lei da lavagem de capitais, a lei de tóxicos (para quem não a entende revogada pela nova redação da lei dos crimes hediondos) ou quaisquer outras que encetem a mesma espécie de proibição devem urgentemente ser reinterpretadas à luz dos princípios orientadores da Constituição Federal da República Federativa do Brasil.


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COSTA, Eduardo Henrique. A inconstitucionalidade da vedação absoluta à concessão de liberdade provisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2842, 13 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18895. Acesso em: 29 mar. 2024.