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Função cautelar: a cessação da eficácia das tutelas cautelares em face de direitos individuais indisponíveis

Função cautelar: a cessação da eficácia das tutelas cautelares em face de direitos individuais indisponíveis

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RESUMO

O artigo busca, através da análise de princípios constitucionais e processuais, auxiliar os operadores do direito na formação de jurisprudência sólida quanto à possibilidade de serem relativizadas as regras de cessação da eficácia das tutelas cautelares quando em face de direitos individuais indisponíveis, constitucionalmente definidos como ilimitáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e invioláveis, para que o Estado não seja conivente com essas transgressões, quando sequer deveria ser necessário provimento judicial para assegurar tais direitos.

Palavras-chave: Processo Cautelar. Medida Cautelar. Cessação. Eficácia. Direitos Indisponíveis.

ABSTRACT

This article seeks, thru the analysis of constitutional and procedural principles, to help law professionals with the formation of a solid jurisprudence about the possibilities of relativizing the preventive injection effectiveness ceasing rules, when facing inalienable individual rights, constitutionally set as unlimited, imprescriptible, indispensable, and inviolable, so the State won’t be connivent with these transgression, when a judicial provision should never be necessary.

Key words: Preventive Injection. Writ of Prevention. Ceasing Rules. Effectiveness. Inalienable Rights.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO 1. TUTELA CAUTELAR. Características da Tutela Cautelar. Condições e Requisitos Indispensáveis. Causas de Cessação da Eficácia das Medidas Cautelares. CAPÍTULO 2. DIREITOS INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS. Os Direitos Individuais Indisponíveis. Garantias Constitucionais. CAPÍTULO 3. RELATIVIZAÇÃO DA CESSAÇÃO DA EFICÁCIA DAS TUTELAS CAUTELARES. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

Em observância aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, entende-se de suma importância analisar os efeitos jurídicos da cessação da tutela cautelar em face de direitos individuais indisponíveis. Isso porque, tratando-se de medidas cautelares cujos efeitos são regidos pelo art. 808 do Código de Processo Civil, mostra-se fundamental a contraposição dessas determinações quando as cautelares forem deferidas em questões que versem sobre direitos pessoais ou personalíssimos, fundamentalmente protegidos.

Nesse sentido, o tema proposto se justifica para que se possa investigar o grau de imperatividade das causas de cessação dos efeitos das medidas cautelares, já que, em princípio, a cogência da norma insculpida no dispositivo citado deve ser relativizada quando o objeto da ação principal versar sobre direitos individuais indisponíveis, assegurados no art. 5º da Constituição Federal de 1988, que, como tal, são imprescritíveis, intransmissíveis, irrenunciáveis e ilimitáveis. Não se busca, logicamente, o esgotamento do tema, mas o exame da viabilidade de tal mitigação através da análise das características que norteiam o processo cautelar (como autonomia, instrumentalidade, acessoriedade, provisoriedade, sumariedade, preventividade e fungibilidade) e dos princípios do processo civil em si (como efetividade, adequação e instrumentalidade das formas).

Bem se sabe que a tutela cautelar, em uma perspectiva tradicional, deve ser entendida como uma medida preventiva apta a evitar a consumação de um dano, autorizando que o magistrado decida rapidamente, de forma provisória e reversível, com base em cognição sumária. Protege-se, com isso, de forma indireta, o direito ameaçado, através da materialização de condições de efetividade ao processo. Nas cautelares, pretende-se a segurança do processo, não do direito material (ainda que este também acabe sendo indiretamente protegido). Essa decisão, portanto, servirá como mero instrumento processual, dependendo, sempre, da instauração de um processo de conhecimento e/ou de execução principais. Desse conceito, extraem-se as duas principais características da tutela cautelar: provisoriedade e instrumentalidade [01].

Assim, quando obtida por procedimento cautelar autônomo, o Código de Processo Civil, em seu art. 808, determinou causas de cessação da eficácia de medida cautelar deferida em Processo Cautelar:

I - se a parte não intentar a ação no prazo estabelecido no art. 806 ("[...] 30 (trinta) dias, contados da data da efetivação da medida cautelar, quando esta for concedida em procedimento preparatório");

II - se não for executada dentro de 30 (trinta) dias;

III - se o juiz declarar extinto o processo principal, com ou sem julgamento do mérito.

Ocorre que a cogência dessa norma deve ser relativizada em determinadas situações. Galeno Lacerda [02] defende que o prazo preclusivo do artigo 806 incide, em princípio, somente sobre as cautelas que importem constrição judicial, com vistas a garantir a execução. Ou seja, alude que o prazo previsto no art. 806 do CPC, in casu quanto à produção antecipada de provas, que não é medida constritiva de direitos, não estaria sujeita à caducidade prevista, "não perdendo, pois, sua validade, ainda que a ação principal não seja proposta em trinta dias" [03].

Dessa forma, sabendo ser entendimento majoritário, na doutrina e na jurisprudência, que as regras do art. 808 do Código de Processo Civil não são absolutas, desde que se trate de cautelar de antecipação de provas e de alguma das medidas conservativas de direitos [04], justamente por não importarem em constrição judicial, cabe analisar, ainda, se essa relativização poderia, ou não, ser viável quando se tratar de processo cautelar que verse sobre direitos individuais indisponíveis.

Nas palavras de Washington de Barros Monteiro [05], os direitos indisponíveis são normas de ordem pública que disciplinam o estado das pessoas, imodificáveis pelas partes, e não suscetíveis às liberalidades próprias das relações patrimoniais dispositivas.

Destarte, deve-se analisar até que ponto a regra do Código de Processo Civil pode, ou não, ser relativizada, definindo-se variáveis com fulcro nos princípios norteadores do Direito, para que se possa apresentar subsídios que justifiquem e limitem os efeitos da inobservância dos parâmetros do art. 808 quando o objeto da pretensão for direito indisponível

Na estruturação do trabalho, buscou-se tratar, primeiramente, da tutela cautelar em si, conceituando-a e apresentando suas principais características, condições e requisitos, apresentando-se, ao final, as causas de cessação da eficácia das medidas.

Convém, ainda, destacar que, nestes estudos, as expressões "tutela cautelar", "medida cautelar", "providência cautelar" e "provimento cautelar" serão utilizadas como sinônimos, por serem comumente assim empregadas na doutrina. Não haverá, portanto, incursão quanto às nomenclaturas acima.

Tampouco se adentrará no mérito quanto à existência, ou não, de um "processo cautelar" autônomo, definido pela doutrina tradicional, assim como tratado no Capítulo III do Código de Processo Civil, em contraposição aos processos de conhecimento e de execução. Considerar-se-á, por conseguinte, como o meio pelo qual se formula pedido de tutela jurisdicional provisória, no intuito de se acautelar um direito que ainda será discutido em outra atuação jurisdicional principal.

Seguindo, dedicou-se o segundo capítulo a uma breve análise dos direitos individuais indisponíveis, enumerando-os e discorrendo sobre suas garantias constitucionais. Trata-se de matéria de suma importância já que, representando a base para a vida em sociedade, deverá o Estado garanti-los sempre, seja em face de terceiros, seja em face dele próprio.

Por fim, procedeu-se à análise propriamente dita quanto à possibilidade de relativização da cessação da eficácia das tutelas cautelares, principalmente quando estiver em xeque a manutenção de direito individual indisponível.

Com isso, espera-se poder auxiliar os operadores do direito na confecção de jurisprudência sólida, em busca da segurança jurídica que tanto se almeja.


1. Tutela Cautelar

Entre as medidas previstas no Livro III do Código de Processo Civil, que tratam da Tutela Cautelar, distinguem-se, dentre as várias classificações doutrinárias: as chamadas "cautelares nominadas" (especiais/específicas), constantes nos artigos 813 a 889 do Código de Processo Civil; e as "cautelares inominadas" (comuns), previstas nos artigos 801 a 803 do mesmo codex.

Ocorre que, considerando que os estudos que seguem se balizaram nos fundamentos do direito processual civil e em uma "teoria geral da tutela cautelar", analisar-se-á, apenas, as cautelares do segundo grupo, deixando-se de lado as demais figuras que integram o Livro III do Código de Processo Civil. Essas "cautelares genéricas" é que serão, no bojo do estudo que se segue, denominadas de "tutelas cautelares", em consonância com a proposta metodológica ora adotada. Isso, justamente, para evitar, ao máximo, maiores confusões entre figuras bastante diferentes e que repelem, se não totalmente, ao menos em parte, muito das ideias expostas, bem como em razão da inviabilidade de se abordar minuciosamente cada uma das tantas cautelares nominadas [06].

Feitas as devidas ressalvas, passa-se ao estudo propriamente dito. As medidas cautelares, passíveis de obtenção mediante um "processo cautelar", são meios de prevenção aptos a evitar a consumação de um dano, autorizando aos magistrados que decidam quanto ao pedido formulado rapidamente, com base em cognição sumária, de forma provisória e reversível, sempre no intuito de dar condições de efetividade ao processo principal.

1.1. Características da Tutela Cautelar

Do conceito, extraem-se as principais características da tutela cautelar: autonomia, instrumentalidade, acessoriedade, provisoriedade, sumariedade, preventividade e fungibilidade, que devem ser analisadas, ainda que de forma sucinta, apenas para enriquecer a discussão que se segue.

Nesse sentido, a autonomia diz respeito à sua classificação enquanto "processo", ao lado dos de conhecimento e os de execução, constante no Livro III do Código de Processo Civil.

Diz-se que a tutela cautelar é instrumental porque, diferentemente do processo de conhecimento e do de execução, não busca proteger o direito material em si, e sim a própria demanda, tutelando de forma indireta e mediata aquele direito (difere da instrumentalidade das formas, princípio do processo civil onde se objetiva o máximo de resultado na atuação do direito com o mínimo de atividades processuais). Disso, extrai-se que a tutela cautelar é acessória, conforme previsão do art. 796 do Código de Processo Civil, já que dependente de uma forma teleológica de um processo principal (a quem visa a proteger).

Também por esse motivo, a tutela cautelar é provisória, de forma que será devidamente substituída quando houver, na demanda principal, decisão final. Aliás, não apenas dará espaço à sentença prolatada nos autos principais, como também poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, sempre que verificados alterados os motivos que embasaram a cautelar deferida.

Vale dizer que muitas dessas características se devem à sumariedade da cognição empregada quando da análise da concessão, ou não, da tutela cautelar pretendida. Nesse momento, em razão da natureza urgente do pedido, o magistrado deverá se manifestar de forma superficial, com base, apenas, no fumus boni iuris e no periculum in mora.

Por sua vez, a sumariedade da tutela cautelar decorre da sua preventividade, característica constitucionalmente assegurada no art. 5º, XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito). Ou seja, a tutela cautelar pretende prevenir danos que poderiam ser eventualmente causados a bens da vida, garantindo a eficiência da cognição exauriente.

Enfim, a tutela cautelar é fungível em observância ao princípio da instrumentalidade das formas, permitindo ao magistrado conceder ao autor provimento diverso daquele inicialmente requerido, desde que lhe pareça mais adequado, sempre no intuito de assegurar amplo acesso à justiça e eficácia processual.

1.2. Condições e Requisitos Indispensáveis

As medidas cautelares, para serem deferidas pela autoridade judiciária nos termos dos artigos 798 e 799 do Código de Processo Civil, deverão ser requeridas em procedimento específico, sempre em conformidade com o previsto nos artigos 800 a 804 do mesmo Código.

Preliminarmente, como em toda demanda, a petição formulada deverá preencher condições da ação. Essas condições são as mesmas do processo de conhecimento e de execução, e a inobservância de quaisquer delas impedirá o exame do mérito. São elas:

a)possibilidade jurídica do pedido: refere-se à possibilidade, naquele momento, da concessão de tutela jurisdicional cautelar (sempre observando as características da ação cautelar - instrumentalidade, provisoriedade, sumariedade...);

b)legitimação para a causa: deve-se demonstrar que requerente e requerido compõem, ao menos em tese, a lide que ora se inicia (quando preparatória);

c)o interesse processual: trata-se da demonstração da utilidade do exercício da atividade estatal para a concessão da tutela cautelar e sua necessidade para auferir determinado objetivo, notadamente a proteção do bem da vida em questão.

Ainda, para o desenvolvimento válido e regular da actio, deverão estar presentes seus pressupostos processuais, constantes no art. 801 do Código de Processo Civil, e que dispensam maiores comentários:

Art. 801.  O requerente pleiteará a medida cautelar em petição escrita, que indicará:

I - a autoridade judiciária, a que for dirigida;

II - o nome, o estado civil, a profissão e a residência do requerente e do requerido;

III - a lide e seu fundamento;

IV - a exposição sumária do direito ameaçado e o receio da lesão;

V - as provas que serão produzidas.

Vale discorrer, também, sobre o fumus boni iuris e o periculum in mora.

Sucintamente, a "fumaça do bom direito" compreende uma probabilidade do direito aventado realmente existir, onde se fará juízo de hipótese e verossimilhança, deixando-se o reconhecimento do direito para um processo de cognição exauriente. Por sua vez, o "perigo na demora" se refere ao interesse na manutenção do status quo do bem da vida que se pretende resguardar, em vista da sua possível deterioração em decorrência da mora (e até morosidade) processual.

Ocorre que, ao contrário de alguns doutrinadores, o periculum in mora e o fumus boni iuris não são "condições específicas" da ação. Sobre o tema, destaca-se dos ensinamentos de Marcelo Lima Guerra:

[...] é unanimemente admitido, em doutrina e jurisprudência, que a presença de tais elementos na situação concreta à qual se solicita uma medida cautelar impõe a concessão da medida, da mesma forma que, vice-versa, a ausência de tais requisitos impõe a sua denegação. Ora, se fosse condições da ação cautelar, ainda que ‘condições específicas’, a existência de tais requisitos implicaria tão-somente a existência da ação cautelar, mas não asseguraria, em razão do que já se disse, a procedência dessa última, ou seja, a prestação da tutela cautelar solicitada. Mas o que ocorre é exatamente o oposto, a saber, a existência verificada do fumus boni iuris e do periculum in mora impõe, precisamente, a concessão da medida cautelar solicitada, ou seja, a procedência da ação cautelar e não apenas o exame do pedido da tutela que através da ação é formulado (o que é assegurado pela simples existência da ação) [07].

Pode-se concluir, portanto, que, na verdade, o fumus boni iuris e o periculum in mora compõem o mérito da ação cautelar. Isso porque, presentes tais elementos, o magistrado não só julgará a demanda, como também concederá a medida requerida. Da mesma forma, constatando a ausência de qualquer deles, o juiz também analisará o mérito da cautelar, dando-lhe improcedência [08].

1.3. Causas de Cessação da Eficácia das Medidas Cautelares

Diz-se que o processo cautelar é provisório/temporário porque ligado a um outro principal, sendo que a continuidade da necessidade de segurança condicionará a sua subsistência. Nesse mesmo sentido quanto ao seu caráter instrumental, já que a ação cautelar existe apenas para garantir outro processo. E, justamente por não atuar no plano material, a sentença que defere uma tutela cautelar é incapaz de constituir coisa julgada material.

Devido a essas características do processo cautelar, o Código de Processo Civil elencou, no seu art. 808, as causas de cessação da eficácia das medidas cautelares, reforçando a ideia de provisoriedade:

Art. 808.  Cessa a eficácia da medida cautelar:

I - se a parte não intentar a ação no prazo estabelecido no art. 806;

II - se não for executada dentro de 30 (trinta) dias;

III - se o juiz declarar extinto o processo principal, com ou sem julgamento do mérito.

O inciso I do artigo supra determina que a parte autora deverá ingressar com a "ação principal" no prazo de trinta dias (art. 806 do CPC), sob pena de cessarem os efeitos da cautelar. Isso por entender-se haver falta de interesse do autor na sua manutenção, decaindo-lhe o direito. Evidentemente que essa hipótese só poderá se dar quando a medida cautelar pretendida for concedida em procedimento preparatório.

Esse é o entendimento de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery [09]:

Não ajuizada a principal no prazo de trinta dias, opera-se a decadência do direito à cautela. Matéria de ordem pública que é, a decadência deve ser pronunciada de ofício pelo juiz. A norma só se aplica às cautelares antecedentes, pois, quanto às incidentes, a ação principal já se encontra em curso. A decadência atinge somente o direito à cautela, permanecendo íntegro eventual direito material de que seja titular o requerente. Assim, mesmo após verificar-se a decadência da cautela, o requerente pode ajuizar ação principal, se o direito ainda não tiver sido extinto. Apenas a medida cautelar concedida é que perderá seus efeitos.

No caso do inciso II, cessarão os efeitos da cautelar se esta, deferida e pendente de providência do requerente, não for executada em até trinta dias, em observância ao inciso III do art. 267 do Código de Processo Civil, por se presumir a falta de interesse na tutela jurisdicional de urgência. Trata-se de hipótese onde, normalmente, não serão gerados efeitos da medida deferida, por não haver sua efetivação. Lembre-se, contudo, que caso a demora se dê por culpa do poder judiciário ou por ação do requerido, não se aplicará o prazo acima.

Por fim, o inciso III diz respeito à cessação dos efeitos da cautelar sempre que houver a extinção do processo principal, com ou sem o julgamento do mérito (artigos 267 e 269 do Código de Processo Civil). Deve-se destacar, todavia, que a forma de extinção da ação cautelar irá depender do porquê do encerramento do processo principal, conclusão que se extrai, inclusive, dos estudos de Humberto Theodoro Júnior [10]:

Da dependência (melhor: interdependência ou coordenação) que existe entre o processo cautelar e o processo principal, derivada da instrumentalidade do primeiro, decorre a extinção da eficácia da medida cautelar quando se extingue o segundo.

A extinção da medida cautelar in casu não é a mesma em todos os casos de extinção do processo. Se a relação processual desaparece sem a solução do mérito (sentença terminativa) ou se a solução da lide for contrária à pretensão daquele que obteve a proteção cautelar, a medida preventiva simplesmente desaparece e as partes são recolocadas no status quo ante, como e não houvesse jamais existido o provimento instrumental.

Mas, se a sentença de mérito favorece à parte que promoveu a medida cautelar, esta extinguir-se-á, não para desaparecer simplesmente do cenário processual, mas para converter-se na medida definitiva colimada pela sentença da ação principal.

Vale lembrar que, em virtude das próprias explicações acima, a causa de cessação que mais interessa ao trabalho em questão é a do inciso I, quanto ao trintídio legal para a propositura da ação principal, justamente porque: no caso do inciso II, quando não serão gerados efeitos, caberá exclusivamente ao autor a execução da cautelar deferida; e, no caso do inciso III, a matéria estará devidamente atendida no processo principal, independentemente da sua conclusão.


2 direitos individuais indisponíveis

Extrai-se do Direito Constitucional que os direitos individuais indisponíveis, em muito, se confundem com os direitos fundamentais: "prerrogativas e instituições que se concretizam em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas" [11]. Esses direitos, relativos à personalidade e ao estado dos indivíduos singularmente, além de não poderem ser objeto de renúncia ou negociação, estão diretamente ligados à manutenção da vida em sociedade, devendo o Estado, seja em face de atos praticados por terceiros, seja em oposição à discricionariedade estatal, garanti-los em prol da ordem pública. Para Ingo Wolfgang, os direitos fundamentais do homem-indivíduo, "são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado" [12].

Complementando, J.J. Gomes Canotilho leciona:

[...] direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista): direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos humanos arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal [13].

Da mesma forma, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo ressaltam:

[...] a expressão direitos fundamentais é utilizada para designar os direitos relacionados às pessoas, inscritos em textos normativos de cada Estado. São direitos que vigoram numa determinada ordem jurídica, sendo, por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os estabelece [14].

No nosso ordenamento jurídico encontramos os direitos fundamentais definidos tanto no Titulo II da Constituição Federal, de forma explícita ou implícita, como em tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte. Perceba-se que tamanha é a importância de serem assegurados esses direitos e garantias que aqueles previstos na Carta Magna "receberam a mais sólida proteção constitucional vazada na cláusula de rigidez extrema do § 4º do artigo 60, que retira do alcance do legislador constituinte de segundo grau o poder de deliberar acerca de emenda porventura tendente a abolir aqueles direitos e garantias" [15]. Ou seja, a própria Constituição Federal tratou de protegê-los contra o poder constituinte derivado.

Disso, extraem-se algumas características dos direitos fundamentais: irrenunciabilidade, inalienabilidade, imprescritibilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência, concorrência e complementaridade:

a)são irrenunciáveis porque, mesmo que não sejam exercidos, o indivíduo não poderá deles desistir;

b)pelo mesmo motivo são inalienáveis, já que, desprovidos de cunho patrimonial, tampouco podem ser objeto de livre negociação;

c)a imprescritibilidade diz respeito à ausência de limite temporal para sua exigibilidade, podendo eles serem exercidos ou reclamados a qualquer tempo;

d)sob pena de ilícito civil, penal ou administrativo, os direitos fundamentais não podem ser desrespeitados por qualquer autoridade ou lei infraconstitucional, garantindo-se-lhe a inviolabilidade;

e)decorrente do princípio da isonomia, a universalidade se caracteriza pela atribuição dos direitos fundamentais a todos os seres humanos em território nacional, sejam eles nacionais ou estrangeiros;

f)para o exercício dessas prerrogativas constitucionais, a efetividade dos direitos fundamentais será garantida pelo Estado através de todos os meios assecuratórios possíveis;

g)deverá haver, sempre, relação de interdependência das normas legais com os direitos fundamentais, já que aquelas são fundamentais para o pleno exercício destes;

h)enquanto universais, os direitos fundamentais poderão concorrer entre si, ainda que se contraponham, devendo-se utilizar critérios proporcionais e razoáveis para coexistência entre eles, complementando-se ou cedendo reciprocamente.

São essas características, portanto, que atribuem aos direitos fundamentais funções garantidoras de uma convivência digna, livre e igual a todas as pessoas. Evidentemente que, nesses termos, cabe ao Estado garanti-los em face de terceiros ou mesmo da própria atividade estatal.

2.1 Direitos Individuais Indisponíveis

A própria Constituição Federal estabeleceu um critério para a classificação dos direitos fundamentais individuais. Trata-se do critério do objeto imediato do direito assegurado [16], a partir do qual foram enunciadas, no seu artigo 5º, garantias de inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Nesse sentido, serão analisados principalmente os direitos elencados no caput do art. 5º, tecendo-se apenas rápidos comentários quanto aos demais:

a)Direito à vida: a vida, enquanto objeto de direito assegurado pelo art. 5º da Constituição Federal, se integra de elementos materiais e imateriais. É a partir do direito à vida que o indivíduo tem assegurado grande parte dos seis direitos, entre os quais a saúde, sua intimidade, sua autonomia, etc., constituindo-se, destarte, em fonte primária de todos os outros bens jurídicos. Esse bem maior pressupõe, também, o direito de estar vivo e lutar para assim se manter, respeitando-se a integridade física e moral do indivíduo, de modo que a vida seja interrompida apenas por um processo espontâneo e inevitável. Em observância ao direito à vida é que a Constituição veda as práticas do aborto, da tortura, da eutanásia, da pena de morte, entre outras. Além disso, em vista da integridade física e moral da pessoa garante-se a inviolabilidade da sua intimidade, honra e imagem (inciso X do art. 5º), devendo-lhe ser respeitado seu domicílio e suas correspondências.

b)Direito à igualdade: trata-se de um sentido jurídico-formal de igualdade, onde se assegura que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Evidentemente que não se poderia ignorar a máxima aristotélica de igualdade ("a verdadeira igualdade consiste em tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais à medida em que se desigualem"), motivo pelo qual a própria Constituição Federal tratou de reforçar esse direito fundamental através de direitos sociais substanciais. A igualdade, seja no seu sentido formal (perante a lei) quanto material (vedação a distinções fundadas em certos fatores – vide art. 7º, XXX, da CF), é um princípio garantidor do respeito à democracia, devendo-se promover o bem de todos sem preconceito de raça, cor, sexo, origem, estado civil, etc. Prova disso, é que a Carta Magna determinou, entre os incisos do art. 5º, que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (XLI) e que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei" (XLII).

c)Direito à liberdade: diz o inciso II do art. 5º da Constituição que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". A partir da lição de Jean Rivero, José Afonso da Silva conceitua a liberdade como "um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal", constituindo-se na "possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal" . E complementa, explicando tratar-se de um "poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão", que se dirige em busca de algo: "a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente" [17]. Assim como a igualdade, a liberdade é diretamente proporcional ao processo de democratização, já que, quanto mais ele avança, mais os indivíduos se libertam dos obstáculos (naturais, econômicos, sociais e políticos) que os constrangem, auferindo mais liberdade: à pessoa física, ao pensamento, às formas de expressão, à livre iniciativa profissional e à economia.

d)Direito à segurança: em sentido amplo, a "segurança" pode ser interna ou externa, sendo esta quanto à defesa da Estado (Forças Armadas – art. 142 da CF) e aquela quanto à segurança pública e nos estados de defesa e de sítio. No tocante à segurança pública, bem se sabe que não se trata de mera questão de polícia, e sim de uma busca de toda a sociedade, conforme preconiza a Carta Magna em seu art. 144 ("dever do Estado, direito e responsabilidade de todos"). No âmbito do indivíduo, o direito à segurança consiste em proteção às liberdades individuais e dos seus interesses básicos, como questões tributárias, o domicílio, as comunicações pessoais etc., servindo como limite para a atuação do Estado e dos próprios sujeitos entre si. Há, ainda, a segurança jurídica, dependente da observância irrestrita dos mandamentos constitucionais: quanto maior o grau de previsibilidade e harmonia do Direito, que é um instrumento da segurança [18], maior será seu grau de certeza.

e)Direito à propriedade: refere-se ao direito de se adquirir propriedades em geral, seja ela móvel ou imóvel, pública ou privada, urbana ou rural, etc., envolvendo um indivíduo, proprietário, e terceiros que têm o dever de respeitá-lo. Com isso, imputa-se juridicamente o direito de propriedade a um sujeito em face de outrem. Importante destacar que a Constituição Federal garante o direito de propriedade desde que esta atenda à sua função social, sob pena de serem aplicadas penalidades ao proprietário, chegando a prever, inclusive, a possibilidade de desapropriação do bem. Disciplinada fundamentalmente pela Carta Magna, coube ao Código Civil e outras leis infraconstitucionais instruírem as disposições civis da propriedade, como o uso, gozo, disposição, etc., sempre ao encontro do disposto na Lei Maior. Por fim, destaca-se a proteção constitucional à propriedade autoral, de inventos, marcas e indústria, de nome de empresa, dos bens de família, etc.

Importante frisar que, em razão da extensa lista de direitos e a brevidade do presente estudo, não será possível ponderar quanto aos direitos coletivos, sociais, de nacionalidade, de cidadania, ambientais, políticos, etc. Ou seja, as análises realizadas foram adstritas aos direitos individuais indisponíveis.

2.2 Garantias Constitucionais

Não basta que se enumerem direitos, se não forem oferecidas garantias para que eles se façam valer. Nesse sentido, para a plena observância dos direitos fundamentais, estabeleceram-se no ordenamento jurídico brasileiro garantias constitucionais e infraconstitucionais, que podem ser entendidas em duas acepções: em sentido lato, dizem respeito à manutenção da eficácia e proteção da ordem constitucional; por sua vez, em sentido estrito, buscam proteger de forma direta, ou indireta, os direitos fundamentais subjetivos, através de remédios jurisdicionais hábeis para tanto.

Constitucionalmente, as garantias se caracterizam como imposições positivas ou negativas, principalmente aos Órgãos do Poder Público. Elas se agrupam [19] entre: garantias constitucionais individuais; garantias dos direitos coletivos; garantias dos direitos sociais; e garantias dos direitos políticos. Obviamente, tratar-se-ão apenas das garantias constitucionais individuais, objeto do presente estudo.

Essas garantias constitucionais individuais são os meios, instrumentos, procedimentos e/ou instituições que devem assegurar o respeito, a fruição e a exigibilidade daqueles direitos. São elas: os princípios da legalidade e da proteção judiciária, a estabilidade dos direitos subjetivos, a segurança e os remédios constitucionais.

Pelo princípio da legalidade, consagrado no inciso II do art. 5º da Constituição Federal, "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Resguardam-se, com isso, os princípios de direito de petição, da reserva legal, da legitimidade, da proteção constitucional ao direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, entre outros.

O princípio da proteção judiciária, por sua vez, que se funda na separação dos Poderes, assegura o monopólio do Poder Judiciário no controle jurisdicional e, conseqüentemente, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com os recursos e meios a eles inerentes. Assim, garante-se a estabilidade dos direitos subjetivos (segurança das relações jurídicas, do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada), permitindo-se segurança (pública e jurídica) aos indivíduos e à sociedade.

Por fim, assegurada a base, permite-se ao indivíduo que se faça valer dos remédios constitucionais (habeas data, habeas corpus, mandado de segurança e mandado de injunção), bem como de outros meios disponíveis na legislação infraconstitucional, na luta pela garantia dos seus direitos individuais, direitos esses irrenunciáveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis e universais.


3 relativização da cessação da eficácia das tutelas cautelares

Não se pretende analisar, neste estudo, relações jurídicas dispositivas (compra, venda, empréstimo, etc.), já que inseridas entre as liberalidades que as pessoas têm para negociar e que são, nos dizeres de Silvio de Salva Venosa [20], direitos economicamente mensuráveis e passíveis de livre negociação entre as partes.

A questão quanto à possibilidade, ou não, de se relativizar a regra do artigo 808 do Código de Processo Civil é referente aos direitos do sujeito sem qualquer conteúdo econômico direto e imediato: direitos pessoais ou personalíssimos, absolutos, e que têm como objeto a própria pessoa do seu titular. Elencados no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, esses direitos dizem respeito à vida, à liberdade, à igualdade, à integridade física e à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem, da segurança, do direito de propriedade etc., e são, conforme já amplamente destacado, irrenunciáveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis e universais.

Sabendo-se, então, que os direitos fundamentais se farão valer não só pelos remédios constitucionais estabelecidos no nosso ordenamento, devem ser sopesadas as condições em que, pela força a eles inerente, devem ser relativizadas as determinações infraconstitucionais.

Ainda que o processo cautelar se guie pela instrumentalidade, acessoriedade e provisoriedade, no sentido de resguardar o bem que se pretende apenas para "permitir eficácia" à cognição exauriente, o processo civil em si deve se pautar, também, pela efetividade, adequação e instrumentalidade das formas, prezando pela efetivação dos direitos reconhecidos segundo regras processuais adequadas, preconizando o máximo de resultado com o mínimo de atividades processuais, servindo como meio de concretização do direito material (em relação de complementação, e não de subordinação). Devem ser analisados os casos concretos, portanto, à luz de dois princípios: razoabilidade e proporcionalidade.

Diz o princípio da razoabilidade que para se fazer justiça, exige-se uma adequação entre os meios empregados e os fins almejados. Por sua vez, o princípio da proporcionalidade versa sobre a amplitude ou intensidade dessas medidas. Ou seja, intrinsecamente ligados ao princípio da instrumentalidade das formas, apreende-se dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade que as exigências formais advindas da legalidade processual não podem se sobrepor à efetividade social, devendo-se deixar de impor ao indivíduo ônus maior que o necessário para o atendimento do interesse público. Assim, subordinando-se a invalidade do ato processual à relação entre o vício e a finalidade daquele, configurar-se-á o defeito apenas quando ele impedir o processo de atingir seu objetivo.

Esse entendimento compreende, por exemplo, as medidas cautelares de produção antecipada de provas, de busca e apreensão, seqüestro, arresto, etc., que sequer dizem respeito a direitos individuais, quando, em todos esses casos, não houver qualquer tipo de restrição ao direito do requerido. Assim, não haveria que se falar em cessação dos efeitos da cautelar por extrapolados os trinta dias do art. 806, cujo objetivo, evidentemente, é evitar que o requerido em ação cautelar sofra, por prazo indeterminado, os efeitos da medida constritiva, e sim em manutenção das suas implicações por atingidos os objetivos do processo.

Por tudo isso, bem se sabe haver forte tendência doutrinária e jurisprudencial para que sejam também relativizados os termos do art. 808 do Código de Processo Civil sempre que a causa versar sobre direitos indisponíveis.

Em artigo semelhante ao presente trabalho, o magistrado catarinense Marcelo Volpato de Souza teceu os seguintes comentários, através de análise doutrinária, quanto à possibilidade de relativização dos termos do art. 808 em cautelares que versem sobre direito de família, em razão dos direitos fundamentais em xeque [21]:

Quanto ao posicionamento da doutrina em relação ao tema proposto, Negrão assevera que nas questões de família as medidas cautelares não perderão a eficácia, mesmo que a parte não promova em 30 dias a ação principal. O jurista faz remissões especialmente às ações de amparo ao menor, de alimentos e de separação de corpos (2003, p. 824). Silva segue a mesma linha de pensamento. Afirma que as medidas cautelares relativas ao direito de família não perdem a eficácia se a ação principal não for intentada no prazo a que alude o art. 806 do CPC (2000, p. 178).

Greco Filho ressalta que em matéria de direito de família tem sido abrandado o rigorismo na aplicação do prazo para ajuizamento da ação principal (2003, p. 165).

A pesquisa mostra que Lacerda desenvolveu de forma minudente as questões cautelares relativas ao estado das pessoas nas relações familiares e personalíssimas. Extrai-se da sua doutrina que no direito de família e no amparo ao menor e ao incapaz, o bom senso repele a caducidade. É de evidência meridiana que o não-ingresso da ação principal no prazo de 30 dias não pode importar na reunião de copos que se odeiam, no desamparo e na fome da mulher e da criança, na eliminação da visita, no retorno do indigno ao pátrio poder, à tutela e à curatela (1973, p. 379-380).

O art. 808 do CPC não visa, ainda na esteira das lições de Lacerda, aos objetivos odiosos e nefandos. Esses dispositivos legais devem ser interpretados com inteligência e parcimônia para que o estado das pessoas seja efetivamente preservado (1973, p. 379-380).

E continua, o mesmo autor, quanto às Jurisprudências Gaúcha e Catarinense [22]:

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul adota a tese doutrinária exposta. A Súmula n. 10 do repertório jurisprudencial sedimentado dessa Corte estabelece que o deferimento do pedido de separação de corpos não se submete ao prazo do art. 806 do CPC (cf. uniformização de jurisprudência n. 587028978, j. 11.12. 87).

Também já decidiu o Tribunal gaúcho que o abrandamento dos dispositivos de cessação de eficácia das medidas cautelares não satisfativas deve ser aplicado às providências decretáveis de ofício ou que tenham por objeto interesse público ou direitos de família ou de personalidade (cf. AC n. 598573376, de Tupanciretã, Rel. Des. Marco Antônio Bandeira Scapini, j. em 20.05.99)

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina também vem decidindo reiteradamente nos termos da doutrina. Colhe-se da Corte catarinense, em ação cautelar de arrolamento de bens cumulada com seqüestro, decisão no sentido de que uma interpretação sensata e inteligente dos arts. 806 e 808 do CPC afasta a cessação da eficácia do provimento assecurativo pelo decurso do trintídio legal (cf. AC. n. 04002029-5, de Balneário Camboriú, Rel. Des. Wilson Augusto do Nascimento, j. em 14.05.04).

O Desembargador Luiz Carlos Freyesleben ressalta que nas ações cautelares preparatórias a regra geral é a de que o prazo para a propositura da ação principal, quando inobservado, acarreta a extinção do processo. Diz que nessas hipóteses se opera a decadência do direito à cautela. Contudo, faz ressalva quando a coisa litigiosa diz respeito aos interesses indisponíveis. Invoca os mencionados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para sustentar que, em procedimentos que envolvam o direito de família, o processo cautelar tem caráter autônomo, não se aplicando o prazo do artigo 806 do CPC (cf. TJSC, AC. n. 2002.008128-6, de Urubici, j. em 08.08.2002).

Em voto proferido em ação cautelar de separação de corpos, o Desembargador Mazoni Ferreira defendeu que as regras de caráter formal não podem se sobrepor à incompatibilidade de coabitação. Entende o julgador que, nessas hipóteses, é prudente e imperioso mitigar o trintídio legal para o ajuizamento da ação principal de modo a afastar os riscos de dano físico e moral de uma das partes (cf. TJSC, AC. n. 2002.020853-7, da Capital, j. em 13.03.2003).

O Desembargador Sérgio Paladino defende a inaplicabilidade da regra do art. 808, I, do CPC nas relações personalíssimas com base na autonomia imanente ao processo cautelar. Alega em seu aresto que a ação de separação de corpos possui condições de procedibilidade e de sucesso que tornam inoportuna a aplicação do trintídio legal (cf. TJSC, AC. n. 1996.004370-5, de Itajaí, j. em 14.05.1998).

Perceba-se que, ainda que o Código de Processo Civil apresente, no seu art. 808, rol dispositivo e exaustivo quanto à vigência das medidas cautelares, o que é devidamente observado pelos juristas brasileiros, a doutrina e a jurisprudência têm entendido ser possível relativizar tais determinações quando contrapostas a direitos fundamentalmente garantidos, demonstrando reconhecimento e a devida valorização dos princípios basilares da nossa Constituição.

Conhecidamente um Tribunal além do seu tempo, os gaúchos vêm inovando no direito brasileiro e ensinando que o Estado precisa se adequar às novas realidades sociais. E, felizmente, outros estados vêm seguindo essas tendências.

Não se trata, portanto, de burlar as regras processuais vigentes, e sim de amoldá-las e aplicá-las em prol dos interesses dos mandatários do poder, o povo, fulcrando-se nos princípios e regras apresentados pela Carta Maior. O Poder Judiciário, então, não pode se escoimar em excessos de formalismo sob pena de cerrar seus olhos às necessidades dos cidadãos, já reféns da morosidade processual nos seus Tribunais, da falta de interesse e de visão do Poder Legislativo e da precária atuação do Poder Executivo.


Considerações Finais

Percebe-se, diante de todo o discorrido, que as causas de cessação da eficácia das medidas cautelares previstas no artigo 808 não são imperativas, podendo, e devendo serem elas relativizadas quando o caso concreto assim o exigir.

Em se tratando, ainda, de direitos individuais indisponíveis, não pode o Estado, por apego à forma, negar proteção ao indivíduo, o que se configuraria em grave lesão à Constituição. Ora, se em medida cautelar preparatória a pessoa requerer do Estado provimento cautelar que lhe assegure direito à igualdade, como poderia, após configurada a transgressão e concedida a tutela, ser revertido seu efeito por inobservância do trintídio legal? Inimaginável tal conivência, quando sequer deveria ser necessário provimento judicial para afirmar esse direito.

Isso porque, ao se formar conflito entre direitos indisponíveis e aspectos de procedibilidade do processo cautelar, estes, seguramente, deverão ceder. Devem os direitos fundamentais ser protegidos ainda que, para isso, devam ser afastadas as regras absolutas do artigo 808 do Código de Processo Civil, referente à cessação da eficácia das medidas cautelares.

A cogência da norma processual civil não pode se sobrepor à própria Constituição, sob pena de se dar mais valor às regras de procedibilidade que ao direito material, in casu inviolável e universal, deixando-se de lado o interesse do povo.

Perceba-se que não se está a defender o abandono do Processo Civil, mas de uma relativização das suas regras sem que isso implique em prejuízo ao exercício da jurisdição, ainda mais quando em face de direitos indisponíveis. Trata-se de uma análise de bom senso, para que os interesses dos verdadeiros detentores do poder sejam resguardados sem que isso implique em afronta ao ordenamento jurídico brasileiro.

Enfim, em tempos em que o Processo Civil brasileiro está em xeque, diante dos abalroados armários de cartórios e gabinetes, assegurar um direito individual indisponível escoimando-se na própria Constituição Federal e olvidando-se do exacerbado formalismo processual, diante de todo o exposto, parece ser o entendimento mais acertado.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. BUENO, Cássio Scarpinella. Tutela cautelar. Fonte: Curso sistematizado de Direito Processual Civil: tutela antecipada, tutela cautelar, procedimentos cautelares específicos. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 145-181. Material da 5ª aula da disciplina Fundamentos do Direito Processual Civil, ministrada no curso de especialização tele virtual em Direito Processual Civil – UNIDERP/IBDP/REDE LFG, pag. 2.
  2. LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981, vol. VIII, t. I/376-377.
  3. GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1999, vol. III, p. 182.
  4. BRASIL. STJ, REsp 59507/SP: O prazo de trinta dias previsto no art. 806 do CPC só se aplica as cautelares que importarem em restrição de direitos. A produção antecipada de prova e medida conservativa de direito, portanto, não está obrigado o autor a propor a ação principal no referido prazo de modo a ter como validas as provas antes produzidas.
  5. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 39. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 97.
  6. Metodologia de trabalho adotada pelo Professor Cássio Scarpinella Bueno, na obra "Tutela cautelar". Fonte: Curso sistematizado de Direito Processual Civil: tutela antecipada, tutela cautelar, procedimentos cautelares específicos. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 145-181. Material da 5ª aula da disciplina Fundamentos do Direito Processual Civil, ministrada no curso de especialização tele virtual em Direito Processual Civil – UNIDERP/IBDP/REDE LFG, pag. 2
  7. GUERRA, Marcelo Lima. Estudos sobre o processo cautelar. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 75-76.
  8. FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Preliminares, Prejudiciais e Mérito da Causa. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 26/11/2010.
  9. NERY JR, Nelson, NERY, Rosa M. A. Código de Processo Civil Comentado, 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 951.
  10. THEODORO JR, Humberto. Processo cautelar. 23. ed. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2006, p. 162-163.
  11. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 182.
  12. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direito Fundamentais na Constituição de 1988. 2. ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.173-174.
  13. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 369.
  14. PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 18. ed. São Paulo: Método, 2009, p.91.
  15. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros,2000. p. 589.
  16. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 173.
  17. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 236.
  18. ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 18.
  19. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
  20. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 149.
  21. SOUZA, Marcelo Volpato de. As causas de cessação da eficácia das medidas cautelares e os direitos indisponíveis. Disponível em: http://www.esmesc.com.br. Acesso em: 16/12/2010, p. 75.
  22. SOUZA, Marcelo Volpato de. As causas de cessação da eficácia das medidas cautelares e os direitos indisponíveis. Disponível em: http://www.esmesc.com.br. Acesso em: 16/12/2010, p. 75-77.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Eduardo Luiz Vieira de. Função cautelar: a cessação da eficácia das tutelas cautelares em face de direitos individuais indisponíveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2846, 17 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18918. Acesso em: 1 maio 2024.