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A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Escher e outros

A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Escher e outros

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Introdução

O caso em comento originou-se da petição apresentada em 26 de dezembro de 2000 pelas organizações Rede Nacional de Advogados Populares, Justiça Global, Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) (doravante "os representantes") em nome dos membros da "Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda." (doravante "COANA") e da Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (doravante "ADECON"), perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em desfavor da República Federativa do Brasil.

O Estado brasileiro foi acusado de violar os seguintes artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos: artigos 8.1 (Garantias Judiciais), 11 (Proteção da Honra e da Dignidade), 16 (Liberdade de Associação), 25.1 (Proteção Judicial) e 28 (Cláusula Federal), todos relacionados com o artigo 1.1 (Obrigação de Respeitar dos Direitos), sendo o último também ligado ao artigo 2 (Dever de Adotar Disposições de Direito Interno).

No dia 28 de abril de 1999, o Sub-comandante e Chefe do Estado Maior da Polícia Militar do Estado do Paraná, Coronel Valdemar Kretschmer, solicitou ao então Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, Cândido Martins, a interceptação telefônica de dois números pertencentes à COANA. Tal solicitação foi apresentada pelo Major Waldir Copetti Neves perante o Juízo de Direito da Comarca de Loanda no dia 5 de maio de 1999 e estava embasada em supostos desvios de recursos financeiros oriundos de Programas de Incentivo do Governo Federal praticados pela liderança do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) através da linha telefônica da COANA. O que poderia também estar ligado ao assassinato de Eduardo Aghinoni.

Em 5 de maio de 1999, a juíza da Vara Única de Loanda deferiu o pedido de interceptação sem nenhuma fundamentação e sem qualquer notificação da decisão ao Ministério Público. Sete dias após foi apresentado pelo 3º Sargento Valdecir Pereira da Silva outro requerimento, este sem nenhuma fundamentação ou motivação, reiterando a interceptação de umas das linhas constantes no pedido anterior e incluindo a outra linha telefônica instalada na sede da ADECON. Novamente o pedido foi deferido sem nenhuma fundamentação e sem notificação ao Ministério Público.

No dia 25 de maio de 1999, o Major Neves solicitou à Vara de Loanda o término da interceptação e monitoramento das linhas telefônicas "em virtude do monitoramento realizado até aquela data já ter surtido o efeito desejado".

Ocorre que, na noite do dia 7 de junho de 1999, a despeito de qualquer determinação legal, foram divulgados no Jornal Nacional trechos das conversas telefônicas. Frise-se que, apesar disso, não foram tomadas providências para conhecer o conteúdo do material repassado à emissora, do qual foram extraídos os trechos divulgados. Para explicar o ocorrido, no outro dia à tarde, o ex-secretário de segurança pública convocou uma coletiva de imprensa na qual comentou os fatos ocorridos e ainda entregou aos jornalistas trechos transcritos dos diálogos interceptados. O que repercutiu imediatamente novamente na imprensa.

Em 2 de julho de 1999, o Major Neves enviou à Vara única da Comarca de Loanda 123 fitas com conversas telefônicas gravadas durante a interceptação. Nos documentos que as acompanharam constava um relatório, do qual se pode inferir que nem todas as conversas interceptadas estavam gravadas nas fitas e também que o monitoramento foi realizado nos períodos de 14 a 26 de maio de 1999 e de 9 a 30 de junho de 1999, sendo que somente foram feitas gravações deste último período até o dia 23, por problemas no aparato técnico. Ressalte-se que, para o segundo período de interceptação, não houve solicitação à Justiça. No relatório do Major Neves também havia indicação do policial militar que teria repassado à imprensa as gravações. Quanto a isso, apesar de o relatório dizer que já estariam sendo realizadas diligências para investigar e sancionar o responsável, o Estado não apresentou informações nem provas concernentes a esta investigação.

Tais fatos somente foram enviados ao conhecimento do Ministério Público no dia 30 de maio de 2000, e, apesar do pedido de nulidade das interceptações e de inutilização das gravações formulado pelo parquet, a juíza Khater rejeitou o parecer ministerial, determinando entretanto a incineração as fitas.


Cronologia com as principais datas

Os representantes apresentaram a petição perante a Comissão em 26 de dezembro de 2000. A admissibilidade do caso foi declarada pela Comissão pelo Relatório nº 18/06 em 26 de março de 2006. Em 8 de março de 2007, a Comissão, através do Relatório de Mérito nº 14/07, fez recomendações ao Brasil. No dia 10 de abril de 2007 o Estado foi notificado do relatório, tendo o prazo de dois meses para atendimento das recomendações. Após três prorrogações desse prazo sem avanços significativos no cumprimento das recomendações, no dia 20 de dezembro de 2007, a Comissão encaminhou à Corte Interamericana a demanda.

O Estado interpôs três exceções preliminares em sua contestação perante a Corte. A primeira refere-se ao descumprimento pelos representantes dos prazos previstos no Regulamento da Corte para apresentar o escrito de petições e argumentos e seus anexos. Porém, a Corte não considerou tal alegação como preliminar, pois ela não impugna a admissibilidade da demanda nem impede que o Tribunal conheça o caso. Não obstante, a análise dessa alegação foi adiada para o momento da análise das provas. A segunda preliminar pugnava pela impossibilidade de alegar violações não consideradas durante o procedimento perante a Comissão Interamericana. Esta foi rechaçada com base no artigo 62.3 da Convenção, que confere à Corte competência para conhecer qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da Convenção no caso que lhe é apresentado. Como terceira exceção preliminar o Brasil alegou falta de esgotamento dos recursos judiciais internos, apresentando à Corte um parecer onde constavam todas as opções processuais que poderiam ter sido adotadas pelos representantes. Entretanto, esta objeção também foi rechaçada, por considerar que ela não foi apresentada no momento processual oportuno.

A Corte reconheceu sua competência para o caso em tela com fulcro no artigo 62.3 da Convenção, em virtude de o Brasil ser Estado parte da Convenção desde 25 de setembro de 1992 e ter reconhecido a competência contenciosa da Corte em 10 de dezembro de 1998.


A Sentença

Finda a fase de admissibilidade, a após uma extensa análise das provas documentais, testemunhais e periciais, bem como valoração das mesmas, estudo dos argumentos das partes e das provas que deveriam ser admitidas, foram admitidos pela Corte como vítimas das violações os senhores Arlei José Escher, Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni, e passou-se a analisar do mérito da questão.

Conforme o Tribunal, o direito à vida privada, à honra e à reputação é assegurado no artigo 11 da Convenção, que proíbe toda ingerência arbitrária ou abusiva na vida privada das pessoas. Para a Corte, honra refere-se à auto-estima, ou seja, ao valor que a própria pessoa atribui a si. Em contrapartida, reputação trata-se da opinião dos outros sobre determinada pessoa. Efetivamente, as conversas telefônicas estão incluídas no âmbito de proteção da vida privada e é cediço que tal direito não é absoluto, porém todo cuidado é preciso quando for adotada alguma limitação. Há um dever rigoroso de vigilância sobre a intervenção, para evitar os excessos. A Comissão mostrou atos viciados e concluiu pela ilegalidade, ilegitimidade e nulidade da intervenção, da decisão que a autorizou e da forma como esta foi implementada. Até mesmo a não-destruição das fitas foi considerada uma violação. Ale disso, o Estado não poderia alegar que os demandantes não provaram as alegações, pois, neste caso, inverte-se o ônus probatório, dado o fato de que é o Estado que possui os meios necessários para clarificar os fatos ocorridos em seu território.

A Corte considera que, para que a ingerência na vida privada respeite a Convenção, ela deve "estar prevista em lei, perseguir um fim legítimo e ser idônea, necessária e proporcional". Para ser reconhecida a legalidade da ingerência, tal medida deve estar fundamentada em lei, que deve ser precisa e indicar regras claras e detalhadas sobre a matéria. Neste caso, foram violados os artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 8º da Lei 9.296/96 (que regulamenta o artigo 5º, inciso XII, da CF/88, referente à inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas). Quanto ao propósito das gravações, apesar de indicar a necessidade de investigar supostas práticas delitivas, quais sejam, o homicídio de Eduardo Aghinoni e o desvio de recursos públicos, a solicitação do Major Neves não foi apresentada no marco de um procedimento investigativo que tivesse por objeto a verificação dos fatos. Quanto à fundamentação, a magistrada não expôs em sua decisão a análise dos requisitos legais nem os elementos que a motivaram a conceder a medida, nem a forma e o prazo em que se realizaria a diligência.

No que tange ao direito albergado pelo artigo 16 da Convenção (Liberdade de Associação), o sistema estabelecido pela Convenção resulta equilibrado e idôneo para harmonizar o exercício do direito de associação com a necessidade de prevenir e investigar eventuais condutas que o direito interno tipifique como delitivas. No caso em sob análise, a Corte não conta com outros elementos que lhe permitam considerar provadas as perseguições nem os danos materiais alegados pelos representantes. Não obstante, as declarações das testemunhas demonstram o temor intenso por elas sofrido, e os problemas que a divulgação das conversas causou entre os associados e agricultores ligados à COANA e ADECON, além de afetar a imagem dessas entidades, tendo, portanto, o Estado violado também o artigo 16 da Convenção.

No que atine aos processos e procedimentos penais e administrativos adotados no âmbito do Estado quanto à conduta de seus agentes, o Tribunal concluiu pela violação dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção, em conexão com o artigo 1.1 da mesma. Porém, quanto ao ocorrido nos autos do mandado de segurança e às ações civis atinentes aos fatos do caso, não há elementos demonstradores da violação aos artigos 8 e 25 da Convenção.

Quanto à violação do artigo 28 em relação com os artigos 1.1 e 2 da Convenção, é cristalina a posição do Tribunal, estabelecida através de jurisprudência centenária tanto contenciosa quanto consultiva, no sentido de que um Estado não pode alegar sua estrutura federal para deixar de cumprir uma obrigação internacional. Contudo, neste caso, as violações não se referiram a fatos com valor suficiente para serem considerados como um verdadeiro descumprimento da Convenção e, portanto, o Estado não violou o dispositivo supracitado.

É um princípio de Direito Internacional que toda violação de uma obrigação internacional que tenha produzido dano comporta o dever de repará-lo adequadamente. Tal obrigação é regulada pelo artigo 62.3 da Convenção Americana. Os representantes requereram indenização por danos materiais alegando que a divulgação do conteúdo das conversas gravadas implicou graves prejuízos econômicos para COANA e ADECON e uma redução da renda das vítimas. Ressalte-se que por dano material a Corte entende como sendo "a perda ou depreciação dos ganhos das vítimas, os gastos efetuados em virtude dos fatos e as consequências de caráter pecuniário que tenham um nexo causal com os fatos do caso". Contudo o Tribunal não fixou indenização por danos materiais por falta de provas que demonstrassem efetivamente o dano. Também foi requerida indenização por danos imateriais, os quais, segundo o Tribunal, "podem compreender tanto os sofrimentos e as aflições causadas à vítima e aos que lhe são próximos, como o menosprezo de valores muito significativos para as pessoas, e outras perturbações que não são suscetíveis de medição pecuniária". Para a Corte, por si só, a sentença declaratória da existência de dano já constitui uma forma de reparação. Não obstante, entendeu que houve violação à vida privada, à honra e à reputação das vítimas. Motivo pelo qual fixou para cada vítima o valor de U$ 20.000,00 como compensação por danos morais.

Além disso, a Corte entendeu ser necessário o Estado adotar as seguintes medidas: a) obrigação de publicar a Sentença; b) o reconhecimento público de responsabilidade internacional; c) dever de investigar, julgar e, se for o caso, sancionar os responsáveis pelas violações aos direitos humanos; d) investimento na formação dos funcionários do Poder Judiciário e da Polícia; e) revogação da Lei n° 15.662/07 que concedeu o título de Cidadã Honorária do Estado do Paraná à juíza Khater.

O Tribunal também determinou, em equidade, que o Estado deve pagar a quantia de US$ 10.000,00 às vítimas, a título de custas e gastos.

A Corte supervisiona o cumprimento integral da sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento dos seus deveres conforme a Convenção Americana, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. O Estado apresenta, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação da Sentença, ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para cumpri-la.

Constou em separado o voto concordante do Juiz Sergio García Ramirez.

Além desse, há o voto fundamentado do Juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas. Este, apesar de concordar com a decisão concernente ao mérito da questão, fez questão de fixar o seu entendimento a respeito de alguns pontos. Primeiramente posicionou-se a respeito da tempestividade do escrito de petições e argumentos dos representantes. Tal documento foi considerado intempestivo pela Corte, mas foi admitido em virtude de o atraso ter sido de apenas um dia, isto é, o prazo venceu em um domingo e o escrito só foi apresentado na segunda-feira seguinte. Não há no Regulamento da Corte previsão de contagem dos prazos em dias úteis e dias não-úteis nem previsão quanto ao dia de início e de vencimento de prazo recursal. Contudo, por razão lógica, o vencimento do prazo só pode se dar em dia útil, em que as partes possam utilizar quaisquer dos meios de protocolo de petições previstos e que o Tribunal esteja trabalhando normalmente. Diante disso, ele sugeriu como sistemática mais flexível, porém mais segura, aquela adotada em outros ordenamentos jurídicos como o italiano, o brasileiro e o peruano. Ele também salientou a inovação da Corte quanto à obrigação de publicar a sentença, elogiando a Corte por esta ser uma forma simples, barata, efetiva e bastante contemporânea de reparação.


Relevância do Caso

Esta foi a terceira vez que o Estado brasileiro foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos e a segunda envolvendo crimes contra trabalhadores rurais sem terra. É importante ressaltar que os fatos ocorreram durante o governo de Jaime Lerner no Paraná. Período no qual alega-se um significativo aumento da criminalização envolvendo membros ligados aos movimentos defensores da reforma agrária. Sendo assim, tal condenação serviu como mote para que o Brasil voltasse maiores atenções para conflitos dessa natureza.

A Corte também protegeu o direito à privacidade, contido no artigo 11 da Convenção, em outras oportunidades como no Caso Escué Zapata vs. Colômbia (Sentença de 04/07/2007), Caso dos Massacresd e Ituango (parágrafo 194) e Caso Tristán Donoso (parágrafo 55). Frise-se que há também decisão nesse sentido na Corte Européia de Direitos Humanos (Case of Halford v. the United Kingdom , judgement of 27 May 1997).

Além disso, no que tange ao direito à privacidade, hodiernamente, ainda persiste a polêmica em torno de escutas telefônicas. Vários são os casos polêmicos sobre este assunto ocorridos no Brasil e que são do conhecimento de todos como, por exemplo, o caso do banqueiro Daniel Dantas e das gravações sigilosas do filho de José Sarney.

A sentença serviu, não só para o Brasil como para inúmeros outros países, como forma aprendizado e deixou cristalina a forma como a Corte entende ser a mais escorreita para o tratamento de casos dessa natureza.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES JUNIOR, Jussiê Saldanha. A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Escher e outros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2872, 13 maio 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19102. Acesso em: 29 mar. 2024.