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O Direito como interpretação na perspectiva de Ronald Dworkin

O Direito como interpretação na perspectiva de Ronald Dworkin

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"Qualquer teoria política que confira um lugar importante à igualdade também exige suposições a respeito dos limites das pessoas, pois deve distinguir entre tratar as pessoas como iguais e transformá-las em pessoas diferentes."

Ronald Dworkin

1 – Introdução

Mesmo fora do âmbito da ciência, a única forma possível de entendimento entre os homens é a aplicação de uma palavra por meio de outra. Tal assertiva contempla o que Aristóteles chamou de definição, interpretação ou significação. Aplicam-se diariamente os princípios da filosofia nas mais simples atividades quotidianas, como na seguinte exclamação: "O homem é um animal racional!" Ao analisar esta frase observa-se que há a limitação do termo homem com o termo animal, excluindo, por conseguinte, o que seja vegetal ou mineral. Esta simples explicação não é nada mais do que o desenvolvimento da percepção humana ao longo dos tempos.

A percepção do homem foi se aperfeiçoando, aguçada por expressões, metáforas, sofismas e definições. É bem verdade que durante muito tempo a percepção do homem ficou bastante atrelada às mais diversas idéias, as quais eram difundidas em virtude de princípios morais rígidos, da religião, da política, etc. A percepção era utilizada em face dos mais diversos interesses, sendo uma forma inumar as próprias idéias do homem. O homem era um cético sem ilusão, com a sua percepção restrita ao que emanavam os dogmas, os cânones e as insípidas leis.

Trata-se da verdade lógica em conformidade com a inteligência das coisas. É a verdade percebida por intermédio de um juízo de valor, o qual o homem passou entender durante o decorre dos tempos. Nesse sentido dever-se-á observar que os valores sociais não são eternos, mudam no tempo e no espaço, portanto, buscando a perfeição, o homem altera suas convicções, e aquilo que era normal num dado momento, porque de acordo com as convicções vigentes, se faz ultrapassado, anormal. Uma convicção tida como verdadeira, num dado momento histórico, e, portanto normal, pode ruir com o passar do tempo, sendo substituída por uma nova descoberta, a qual, por sua vez, passa a ter uma aceitação normal.

É nesse momento que se faz necessária a capacidade de interpretação do homem, com o intuito de entender a finalidade social das mais diversas leis e instituições de cada tempo. É justamente este enfoque que Ronald Dworkin, no ensaio intitulado "Direito como interpretação", o qual faz parte da obra "Uma questão de princípio", almeja dar ao sentido da interpretação jurídica. A questão da interpretação também é abordada nas obras "Levando os direitos a sério" e "O Império do Direito".

A interpretação do direito tem por base, na perspectiva de Dworkin, o princípio da igual liberdade, em que o juízo e as partes deverão curvar-se às peculiaridades sociais de cada caso, de forma que o bom senso se sobressaia da palidez normativa. Direito é interpretação, é subjetividade, é percepção, logo há certa parcela de variação a depender de quem o aplique. E para melhor se aproveitar dessa subjetividade, cabe aos operários do direito aplicar a equidade, que é a justiça do caso particular e suas peculiaridades, de modo que o bom senso prevaleça na sentença, já que o direito é feito pelo homem e para o homem. Com isso a prestação jurisdicional será mais sensível e humanizada, e a paz social será melhor difundida.


2 – Não existe mesmo nenhuma resposta certa para casos controversos?

O próprio título do capitulo já evidencia qual é o problema a ser esclarecido por Dworkin. O problema aventado no ensaio remonta a questão dos casos controversos (hard cases), outrora debatido na obra "Levando os Direitos a Sério", principalmente no que tange ao que os filósofos jurídicos chamam de "lacunas" no direito.

Para tal mister, Dworkin exemplifica um caso controverso que diz respeito á possibilidade de um contrato assinado no domingo ser considerado sacrílego [01]. Tem-se o seguinte exemplo:

"Suponha-se que o legislativo aprovou uma lei estipulando que ‘contratos sacrílegos’, de agora em diante, serão inválidos. Tom e Tim assinaram um contrato no domingo, e agora Tom processa Tim para fazer cumprir o contrato, cuja validade Tom contesta. Dizemos que o juiz deve buscar a resposta certa para a questão de se o contrato de Tom é válido, mesmo que a comunidade esteja dividida quanto a qual é a resposta certa? Ou é mais realista dizer que simplesmente não há nenhuma resposta certa para a questão?" [02]

É necessário esclarecer que as ocasiões que uma questão não tem nenhuma resposta correta em nosso sistema jurídico são geralmente raras, como o próprio Dworkin reconhece. A questão, no entanto, apresenta uma ambigüidade problemática.

Determinados conceitos jurídicos, como os de contrato válido, responsabilidade civil e penal, admitem o que Dworkin chama de "tese da bivalência". Segundo essa tese, em todos os casos, ou a asserção positiva, ou a asserção oposta, de que não se enquadra, deve ser verdadeira mesmo quando é controvertido qual delas é verdadeira. Em outras palavras, em determinadas situações, os juizes têm o dever, pelo menos prima facie, de decidir certos pleitos num certo sentido, mas se não é válido, os juízes devem, prima facie, decidir os mesmos pleitos em sentido oposto. Por exemplo: "os juristas parecem supor que uma pessoa privada é responsável ou não, conforme o direito, pelo dano que seu ato causou; se for, os juízes têm o dever de condená-la à reparação dos danos, mas se não for, eles têm o dever de não fazê-lo." [03]

Dworkin, no entanto, demonstra a existência da uma ambigüidade latente de que em alguns casos uma questão de Direito não tem nenhuma resposta, razão pela qual distingui duas versões sobre essa tese, ambas negando que a tese da bivalência é válida para conceitos dispositivos importantes, ou seja, nega que a tese da bivalência é aplicada em determinados casos controvertidos.

É necessário esclarecer que Dworkin cria as duas versões sobre a tese de que não haja "nenhuma resposta" ao caso controverso, construindo a tese de "nenhuma resposta" e, em seguida, desconstruindo essa mesma tese com o objetivo de mostrar que não existe casos em que o Direito não possa dar uma resposta eficaz e válida, de acordo com os cânones vigentes.

Primeira Versão

A primeira versão sustenta a conduta lingüística superficial dos juristas. De acordo com essa versão, a análise ao contrato celebrado entre Tom e Tim, com base na teoria da bivalência, seria enganosa porque sugeriria que não haveria espaço lógico entre a proposição de que um contrato é válido e a posição de que não é válido, isto é, porque não admite que ambas as proposições possam ser falsas. Em suma, de acordo com a primeira versão da tese, em meio às duas premissas haveria uma terceira possibilidade independente, dando ensejo para que o contrato não seja válido ou inválido, mas tão somente "incoativo".

A primeira versão da tese de "nenhuma resposta correta" afirma que há, entre cada conceito dispositivo e sua aparente negação, um espaço ocupado por um conceito distinto, como o de um contrato "incoativo", que, na verdade, não se tem um nome específico para esse conceito distinto. Nesse caso, o conceito de contrato válido não descreve simplesmente as circunstâncias factuais sob as quais os juízes têm o dever de decidir.

Para Dworkin, no entanto, o terceiro elemento implícito no contrato, que foi denominado de conceito distinto, não passa de uma afirmação semântica sobre o significado de conceitos jurídicos e que seria natural, portanto, sustentar essa afirmação recorrendo a uma prática lingüística decisiva. A teoria da semântica traduz enunciados sobre contratos em enunciados sobre deveres públicos.

Portanto, mesmo que houvesse um terceiro elemento implícito no contrato, que tivesse o condão de afastar teoria da bivalência, haveria a possibilidade de que este contrato fosse analisado sob a luz da teoria da semântica, que seria uma espécie de "enunciado público orientador do contrato".

Tais argumentos, por si só, já seriam suficientes para afastar a primeira versão da tese de que não haja "nenhuma resposta" ao caso, conquanto haja um forte motivo para ajustar a semântica jurídica de modo a abranger o contrato.

Dworkin esclarece que teoria da semântica obscurece o papel importante e distinto dos conceitos dispositivos e na argumentação jurídica, daí a importância da interpretação do contrato e da lei no caso específico.

Segunda Versão

A segunda versão tese de que não haja "nenhuma resposta correta" não supõe que exista alguma terceira possibilidade e nem supõe que exista algum espaço lógico entre as proposições de um contrato válido ou inválido, ou de uma pessoa responsável ou não, ou de que um ato seja crime ou não seja.

Por essa versão, a pergunta "O contrato de Tom é válido?" poderia ser análoga à pergunta "Tom é de meia-idade ou não?". Essa última pergunta pode remeter ao questionamento de saber se Tom poderia ser jovem ou velho. A segunda versão sustenta que proposições jurídicas não são diretamente verdadeiras nem falsas em relação a algum parâmetro externo, mas proposições cuja afirmação ou negação é permitida por regras básicas que variam de acordo com a prática.

Para explicar a segunda versão, Dworkin formula três argumentos de construção à tese de "nenhuma resposta correta", quais sejam:

a)Argumento da imprecisão;

b)Argumento do positivismo;

c)Argumento da controvérsia.

De acordo com o argumento da imprecisão, é uma idéia muito popular entre os juristas que a imprecisão da linguagem que usam garante que, inevitavelmente, não haverá nenhuma resposta correta para certas perguntas jurídicas. Mas a popularidade dessa idéia baseia-se na incapacidade de distinguir entre o fato e as conseqüências da imprecisão na linguagem jurídica consagrada.

O contrato de Tom e Tim foi celebrado em um domingo, podendo ser considerado sacrílego e, portanto, ser considerado inválido judicialmente. A imprecisão do termo "sacrílego" é a imprecisão inerente a qualquer explicação que os legisladores possam ter dado ao seu próprio estado de espírito no momento de elaborar a lei, mas isso não quer dizer que pergunta não tenha resposta. O argumento da imprecisão e rechaçado pelo fato de que os critérios de um jurista para estabelecer o impacto de uma lei sobre o Direito podem incluir cânones de interpretação ou explicação legal que determinam a força de se considerar que uma palavra imprecisa tem numa ocasião particular, ou, pelo menos, fazer sua força depender de questões adicionais, que, em princípio, têm uma resposta certa.

Em relação ao argumento do positivismo, "o contrato de Tom é válido" significaria a mesma coisa dizer que "um poder soberano ordenou que contratos como o de Tom sejam cumpridos". Trata-se de um positivismo semântico, como chama Dworkin, que, em princípio, não oferece argumento em favor da segunda versão da tese de "nenhuma resposta correta".

O Direito é um empreendimento tal que as proposições de Direito não descrevem o mundo real da maneira como os fazem as proposições comuns, mas são antes proposições cuja asserção é garantida por regras básicas como as do exercício literário. Essa textura aberta na linguagem jurídica consagrada é o que poderia se posicionar a favor da segunda versão da tese "nenhuma resposta correta". Portanto, a questão de se existe ou não uma resposta correta para qualquer questão específica de Direito dependerá essencialmente de qual das formas da tarefa jurídica está em jogo, ou seja, aplicar-se-á as afirmações (ou negações) das proposições que se ajustam melhor à teoria política que oferece a melhor justificativa para proposições de Direito já estabelecidas.

Já o argumento da controvérsia é o mais influente a favor da segunda versão da tese de "nenhuma resposta correta". O argumento da controvérsia pode ser demonstrado por intermédio da tese que Dworkin chamou de "tese da demonstrabilidade". Essa tese afirma que, se não se pode demonstrar que uma proposição é verdadeira, depois que todos os fatos concretos que possam ser relevantes para sua veracidade sejam conhecidos ou estipulados, então ela não pode ser verdadeira.

Seguindo a tese da demonstrabilidade, se juristas sensatos podem discordar quanto a se contratos firmados no domingo são sacrílegos no sentido legal, porque sustentam visões diferentes sobre como devem ser interpretadas as leis que contêm termos imprecisos, então não se pode demonstrar a veracidade da proposição de que o contrato de Tom é válido, mesmo que todos os fatos sobre o que os legisladores tinham em mente sejam conhecidos ou estipulados. Nesse sentido, a tese da demonstrabilidade oferece um argumento conclusivo em favor da segunda versão.

Para Dworkin, no entanto, a tese da demonstrabilidade parece depender sempre de uma resposta acerca de todos os fatos concretos. Essa resposta abrirá margem à escolha pessoal (predileção) às proposições dos fatos concretos. Não haveria, para Dworkin, opiniões pessoais superiores às outras, razão pela qual a resposta acerca dos fatos concretos vai atender a algum propósito valioso, o que cria problemas à tese da demonstrabilidade.

O raciocínio jurídico faz uso da idéia de coerência normativa, que é claramente mais complexa que a coerência narrativa dos fatos e, pode-se considerar, introduz novos fundamentos para afirmações de subjetivismo. Para Dworkin, haveria duas dimensões que forneceria uma melhor justificativa aos dados jurídicos: a dimensão da adequação e a dimensão da moralidade política. A dimensão da adequação supõe existir uma política melhor do que outra e a dimensão da moralidade política oferece uma justificativa melhor enquanto teoria político-moral. Essas dimensões de adequação, no entanto, ficam a mercê do caráter indeterminado da política, podendo ser objeto de disputa e, até mesmo, assumir caráter utilitarista.

Dworkin conclui que a teoria dos direitos individuais (direitos fundamentais) é a única em que não é problemático saber se existe a possibilidade teórica de "nenhuma resposta correta". Portanto, os direitos fundamentais seriam a única dimensão favorável a rechaçar qualquer forma de que não exista resposta correta em casos controversos.


3 – De que maneira o Direito se assemelha à literatura

A prática jurídica, segundo Dworkin, é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de um modo geral. Desta feita, Dworkin propõe, para a melhor compreensão do direito, que a interpretação jurídica seja comparada com a interpretação em outros campos do conhecimento, em especial a literatura. Para tal mister, Dworkin analisa o sentido que deve ser dado às proposições de direito e, em seguida, às proposições da literatura, fazendo uma interseção entre ambas.

O Direito

Dworkin, inicialmente, prega que o problema central da doutrina jurídica analítica diz respeito ao sentido que se deve dar às proposições de Direito. Desta premissa, Dworkin aventa o seguinte questionamento: de que tratam as proposições jurídicas? O que podem torná-las verdadeiras ou falsas? Essa dificuldade emerge porque, segundo Dworkin, as proposições de Direito parecem ser descritivas, como se fossem trechos da história. Dworkin assevera que os positivistas jurídicos acreditam que as proposições de direito seriam inteiramente descritiva.

No entanto, Dworkin refuta a assertiva acima sob o argumento de que enunciados controvertidos seriam tentativas de descrever algum Direito objetivo puro ou natural, que existe em virtude da verdade moral objetiva, não da decisão histórica. Portanto, as proposições de direito não seriam meras descrições da história jurídica, nem simplesmente valorativas, em algum sentido dissociado da história jurídica.

Em uma conclusão sumária, as proposições do direito são interpretativas da história jurídica, que combina elementos tanto da descrição quanto da valoração, sendo, porém, diferentes de ambas. É por essa razão que Dworkin faz a presente analogia.

A maior parte da literatura presume que a interpretação de um documento consiste em descobrir o que seus autores queriam dizer ao usar as palavras que usam. Mas os juristas reconhecem, segundo Dworkin, que em muitas questões o autor não tem intenção e que, em outras, é impossível conhecer sua intenção, a exemplo do Common Law.

Contudo, a idéia de interpretação não pode servir como descrição geral da natureza ou veracidade das proposições de direito, a menos que seja separada dessas associações com significado ou intenção do falante. Do contrário, torna-se simplesmente uma versão da tese positivista de que as proposições de direito descrevem decisões tomadas por pessoas ou instituições no passado.

Portanto, conclui Dworkin para defender a sua analogia:

"Nem todas as discussões na crítica literária são edificantes ou mesmo compreensíveis, mas na literatura foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Direito, inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a teoria jurídica." [04]

A Literatura

A priori, Dworkin aventa teses que ofereçam algum tipo de interpretação do significado de uma obra como um todo. Para oferecer esse tipo de interpretação, Dworkin elabora a tese da "Hipótese Estética" e da "Intenção do Autor", partindo-se do pressuposto da dificuldade normal do significado pretendido pelo texto, o que pode influenciar em questões maiores.

A – Hipótese Estética

Segundo essa tese, "a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte." [05] A interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar uma obra de arte e transformá-la em outra. Isso é o que também poderia ser chamado de teoria holística do direito.

É óbvio que uma teoria de interpretação deve conter uma subteoria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz de distinguir entre interpretar e modificar uma obra. É justamente neste ínterim que se fundamenta a hipótese estética de interpretação, podendo ser descrita da seguinte maneira:

1 – (Identidade) Primeiramente, deve-se interpretar levando-se em consideração todas as palavras, sem qualquer modificação. Exemplo: leitura de um texto canônico, ou de uma partitura, ou de um objeto físico singular.

2 – (Coerência e Integridade) Em seguida, um estilo interpretativo será sensível às opiniões do intérprete a respeito da coerência ou integridade da arte, razão pela qual uma interpretação não pode tornar uma obra de arte superior à outra. Um texto lúgubre de Augusto dos Anjos sobre a morte não é menos valioso do que um romance de José Lins do Rêgo.

3 – (Considerações Substantivas do Valor Artístico) Há espaço para muita discordância entre críticos acerca do que considerar como integração, de que tipo de unidade seja desejável e qual é irrelevante ou indesejável. Por exemplo: a arte é melhor quando é, de alguma maneira, instrutiva quando aprendemos com ela alguma coisa sobre como são as pessoas ou como é o mundo? Ao responder essa questão, o leitor indicará qual seria a melhor obra de arte.

4 – Não obstante, qualquer um que interpreta uma obra de arte vale-se de convicções de caráter teórico sobre a identidade e outras propriedades formais da arte, assim como de opiniões mais explicitamente normativas sobre o que é bom na arte. São convicções do que seja bom ou seja ruim.

Dworkin conclui que a hipótese estética é trivial, pois diferentes tipos de teorias de arte são geradas por diferentes tipos de interpretação. Portanto, nenhuma afirmação estética importante poderia ser "demonstrada" como verdadeira ou falsa, pois os juízos estéticos seriam subjetivos e, portanto, não demonstráveis..

B – A Intenção do Autor

Para Dworkin, o principal teste da hipótese estética encontra-se no seu poder explicativo e, particularmente, no seu poder crítico. A tese da Intenção do Autor supõe:

"O que é valioso numa obra de arte, o que nos deveria levar a valorizar uma obra de arte mais do que outra, limita-se ao que o autor, em algum sentido estrito ou restrito, pretendeu colocar nela." [06]

Os intencionalistas, segundo Dworkin, fariam objeção a essas observações sob o argumento de que a interpretação deveria compreender o significado de algo antes de se poder decidir se é valioso e em que reside o seu valor. Portanto, a intenção do autor seria irrelevante. Os intencionalistas quer que se escolha entre duas possibilidades: ou o autor repentinamente percebe que antes tinha uma "intenção subconsciente", que só agora ele descobre, ou muda de intenção depois.

É justamente desconstituindo a tese dos intencionalistas que Dworkin fundamenta a importância de sua tese, pois um autor seria capaz de separar o que escreveu de suas intenções e crenças anteriores, de tratá-los como um objeto em si. É por essa razão que é importante a interpretação da intenção do autor em uma obra literária.

Conclui Dworkin, as intenções dos autores não são simplesmente conjuntivas, como a de alguém que vai ao mercado com uma lista de compras, mas estruturadas, de modo que as mais concretas delas, como as intenções sobre os motivos de um personagem particular em um romance, dependem de opiniões interpretativas cujo acerto varia com o que é produzido e que podem ser alteradas de tempos em tempos.

Direito e Literatura

Dworkin passa, então, a analisar a interpretação literária como um modelo para o método central da análise jurídica, passando a demonstrar como a distinção entre o artista e o crítico pode ser derrubada em certas circunstâncias. Para tanto, Dworkin analisa a literatura sob o ponto de vista da "Corrente o Direito" e da "Intenção do Autor no Direito".

A – A Corrente do Direito

Decidir casos controversos no Direito é mais ou menos como o estranho exercício literário, explica Dworkin.

"O artista não pode criar nada sem interpretar enquanto cria; como pretende criar arte, deve pelo menos possuir uma teoria tácita de por que aquilo que produz é arte e por que é uma obra de arte melhor graças a este, e não àquele golpe de pincel, da pena ou do cinzel. O crítico, por sua vez, cria quando interpreta; pois embora seja limitado pelo fato da obra, definido nas partes mas formais e acadêmicas de sua teoria de arte, sem senso crítico mais prático está comprometido com a responsabilidade de decidir qual maneira de ver, ler ou compreender aquela obra a mostra como arte melhor." [07]

Em suma, o artista interpreta enquanto cria e o crítico cria enquanto interpreta. Para Dworkin, a interpretação literária tem como objetivo demonstrar como a obra de arte pode ser vista como mais valiosa. Na interpretação plausível da prática jurídica deve-se também, de modo semelhante, ajustar-se a essa prática e demonstrar sua finalidade e valor.

Não obstante, a finalidade e o valor não podem significar valor artístico, pois o direito obviamente não é um empreendimento artístico. Uma interpretação de qualquer ramo do direito deve demonstrar seu valor em termos políticos, demonstrando o melhor princípio ou política a que serve.

O senso de qualquer juiz acerca da finalidade ou função do direito, do qual dependerá cada aspecto de sua abordagem da interpretação, incluirá ou implicará alguma concepção da integridade e coerência do direito como instituição, e essa concepção irá tutelar e limitar sua teoria operacional de ajuste, isto é, suas convicções sobre em que medida uma interpretação deve ajustar-se ao direito anterior (no caso do Common Law), sobre qual delas, e de que maneira.

B – A Intenção do Autor no Direito

Dworkin passa a analisar as objeções que poderiam ser feitas à tese principal mormente defendida, qual seja, que a interpretação no Direito e essencialmente política.

A hipótese política abre espaço para o argumento da intenção do autor como uma concepção de interpretação, uma concepção que afirma que a melhor teoria política confere papel decisivo na interpretação às intenções dos legisladores e juízes do passado. Vista dessa maneira, a teoria da intenção do autor não contraria a hipótese política, mas contesta sua autoridade.

É nesse diapasão que a intenção de um legislador se assemelha à complexidade da intenção do autor na literatura. Em relação à política, a interpretação seria mais adequada por força de melhor teoria democrática representativa ou com base em outros fundamentos abertamente políticos. Tal argumento, segundo Dworkin, ainda não é convincente, pois não revela as intenções mais concretas do constituinte acerca do que se convencionou a chamar de "intenção original".

Com essa assertiva, Dworkin claramente explicita que a melhor interpretação deveria ser feita com base na "intenção original" do constituinte, que seria melhor expressa em termos de direitos fundamentais.

Assim, para julgar casos difíceis, exige-se um novo exercício de interpretação que não é nem pesquisa histórica pra e nem uma expressão inteiramente nova de como as coisas deveriam ser em termos ideais.


4 – Interpretação e Objetividade

Duas Objeções

Nesse ensaio, Dworkin passa a tecer comentários sobre "De que maneira o direito se assemelha à literatura", desvencilhando-se da ingênua teoria metafísica da interpretação. Para Dworkin, o ensaio feito anteriormente surgiu da tentativa de melhorar a equivocada teoria do "simplesmente ali" para o sentido dos julgamentos interpretativos.

Nesse sentido, a avaliação de Dworkin sobre o sentido dos julgamentos interpretativos pode provocar duas objeções muito diferentes:

1ª - A interpretação não é diferente da criação. A única diferença é que, na interpretação, o texto exerce alguma restrição sobre o resultado. Portanto, o próprio texto seria produto de julgamentos interpretativos;

2ª - Uma interpretação não pode ser realmente verdadeira nem falsa, boa nem má, eis que se pode fazer com que a correção de uma interpretação dependa de qual leitura de um poema, romance ou doutrina jurídica torne-os melhores, estética ou politicamente, e não pode haver nenhum resultado objetivo em um julgamento desse tipo, mas apenas reações "subjetivas" diferentes.

Dworkin, então, passa a analisar qual das objeções seria mais congruente.

Dependência Teórica

Para Dworkin, a primeira objeção é mais notável se se entender que contesta, não a possibilidade geral do conhecimento de teoria, mas a sua possibilidade no caso literário. Por exemplo: "se não tivéssemos opiniões especiais e distintas sobre o que considerar como observação, não poderíamos refutar teorias estabelecidas com observações novas." [08]

Dworkin tenta demonstrar como cada intérprete encontra, na interação entre dois conjuntos de posturas e convicções, não apenas restrições e padrões para a interpretação, mas as circunstâncias essenciais dessa atividade, os fundamentos de sua capacidade de conferir sentido distinto aos juízos interpretativos. No fim, conclui Dworkin, não podemos dar melhor resposta à primeira objeção que apontar nossas próprias práticas de interpretação.

A Objetividade

Em princípio, Dworkin alega que não há porque encontrar argumento geral no sentido que os julgamentos interpretativos morais, políticos, jurídicos ou estéticos sejam objetivos. Exemplo, o caso da escravidão: "penso que a escravidão é injusta nas circunstâncias do mundo moderno. Digo ‘penso’ que tenho argumentos não porque estou preocupado com a posição filosófica dos argumentos que tenho, mas porque sei que outros adotaram uma visão contrária, que posso não ser capaz de convencê-los, e que eles poderiam, na verdade, ser capazes de me convencer se eu lhes desse uma oportunidade decente de fazê-lo. Mas agora suponha que alguém, depois de ouvir meus argumentos, me pergunte se tenho algum argumento diferente a favor da opinião de que a escravidão é objetivamente ou realmente injusta." [09]

Naturalmente que o termo "objetividade" poderia assumir outras acepções, mas toda teoria contemporânea sobre o assunto seria um embuste. Não há como decidir se nossos julgamentos são realmente verdadeiros.

Dworkin conclui que, quando as pessoas fazem julgamentos interpretativos, morais ou jurídicos, estão desempenhando certo jogo de faz-de-conta, perguntando a si mesmas que interpretação seria melhor se alguma realmente pudesse ser melhor, ou que seria moralmente certo se alguma coisa pudesse realmente ser moralmente certa, e assim por diante.

Se julgamentos morais, estéticos ou interpretativos têm o sentido e a força que têm só porque figuram em um empreendimento humano coletivo, então tais julgamentos não podem ter um sentido "real" e um valor de verdade "real" que transcenda esse empreendimento e, de alguma maneira, apodere-se do mundo real.

Por fim, até mesmo a questão de saber se existe objetividade na interpretação é, por si só, uma questão interpretativa, razão pela qual a objetividade é um embuste.

O Ceticismo

Em princípio, Dworkin começa o seu ensaio negando o ceticismo, sob o argumento de que, se o cético precisa produzir argumentos morais para contestar a moralidade, deve admitir o sentido e a validade de argumentos cujo sentido e validade quer negar. Na verdade, para Dworkin, os céticos querem negar a complexidade das práticas morais e interpretativas.

Para o cético, segundo Dworkin, os julgamentos interpretativos seriam muito desnaturados e desconexos para serem controlados por outros julgamentos da maneira que a tarefa da interpretação supõe. Um intérprete poderia aceitar alguma teoria sobre a finalidade ou o valor da arte, segundo a qual certas questões interpretativas (ou mesmo todas elas) simplesmente não têm nenhuma resposta porque nenhuma resposta poderia fazer qualquer diferença para o valor de uma obra de arte. Exemplo: O fato de Hamlet e Ofélia serem amantes, ou não, não influenciará na interpretação da peça. Se alguém pensa que a finalidade da interpretação é assegurar uma grande média de concordância interpessoal, notará que a interpretação, como praticada hoje, não oferece nenhuma perspectiva desse tipo, e extrairá conclusões globais e céticas adequadas.

Para Dworkin, o único ceticismo aceito seria o que ele denomina de ceticismo externo, embora ele não defina quais os outros tipos de ceticismos. O cético externo supõe que pode controlar todos os julgamentos interpretativos confrontando-os com alguma realidade externa cujo conteúdo não deve ser determinado por argumentos que se tornaram conhecidos pela prática, mas que dever ser apreendido de alguma outra maneira.

Portanto, conclui Dworkin: "O único ceticismo excluído por minhas observações anteriores é o ceticismo trazido para um empreendimento do exterior, o ceticismo que não emprega argumentos do tipo que o empreendimento requer, o ceticismo é simplesmente adicionado à conclusão de nossas várias convicções interpretativas e políticas, deixando-as todas, de alguma maneira, intactas e no lugar." [10]


5 – Conclusão

O radicalismo igualitarista de Dworkin o conduz a teses exageradas que têm sido objeto de numerosas críticas. Por exemplo, sustenta que "não existe um direito à liberdade". E não existe tal direito à liberdade, no sentido forte do direito, porque o Estado não pode limitar a liberdade dos cidadãos baseando-se em políticas de bem estar geral. Se os direitos se definem como triunfos frente aos interesses gerais, então o direito à liberdade não é um autêntico direito que compita com o direito à igualdade. Evidentemente, esta tese provocou numerosas críticas dos liberais conservadores que privilegiaram o direito à liberdade sobre o direito à igualdade. Precisamente Dworkin sustenta, frente à teoria dominante, que esses direitos não estão em tensão porque o verdadeiro liberal respeita o princípio da igualdade como o primeiro e superior direito e como o autêntico direito.

Portanto, conforme asseverado alhures, a interpretação do direito tem por base, na perspectiva de Dworkin, o princípio da igual liberdade, em que o juízo e as partes deverão curvar-se às peculiaridades sociais de cada caso, de forma que o bom senso se sobressaia da palidez normativa. Direito é interpretação, é subjetividade, é percepção, logo há certa parcela de variação a depender de quem o aplique. E para melhor se aproveitar dessa subjetividade, cabe aos operários do direito aplicar a equidade, que é a justiça do caso particular e suas peculiaridades, de modo que o bom senso prevaleça na sentença, já que o direito é feito pelo homem e para o homem. Com isso a prestação jurisdicional será mais sensível e humanizada, e a paz social será melhor difundida.


6 – Referências Bibliográficas

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2001;

_________________. Levando os direitos a sério. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2002;

_________________. O império do direito. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2003.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

PERELMAN, Chaïm, Ética e Direito.São Paulo: Martins Fontes, 1996.


Notas

  1. . Sacrílego: que cometeu sacrilégio.
  2. . DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2001, p. 175.
  3. . Op. Cit., p. 176.
  4. . Op.Cit., p. 221.
  5. . Op.Cit., p. 222.
  6. . Op.Cit., p. 229.
  7. . Op.Cit., p. 235.
  8. . Op. Cit., pág. 255.
  9. . Op. Cit., pág. 258.
  10. . Op. Cit., pág. 266.

Autor

  • Daniel Cavalcante Silva

    Advogado e sócio do escritório Covac Sociedade de Advogados (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília). Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). MBA em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Experiência na área de Direito Tributário e Educacional, com ênfase na área de advocacia empresarial. Membro da Associação Internacional de Jovens Advogados. Vários artigos publicados no país e no exterior. Autor do Livro “O Direito do Advogado em 3D” e "Compliance como boa prática de gestão no ensino superior privado". Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas intitulado: Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFIC). Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF. Professor de Direito Tributário. Laureado com o Prêmio Evandro Lins e Silva, concedido pela Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB. Indicado como um dos “dez advogados mais admirados no setor de educação, Revista Análise Advocacia 500, 2012 e 2015”. Diversos títulos e prêmios obtidos no país e no exterior.

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SILVA, Daniel Cavalcante. O Direito como interpretação na perspectiva de Ronald Dworkin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2881, 22 maio 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19159. Acesso em: 28 mar. 2024.