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A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore

A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore

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Consideradas como pertencentes ao Domínio Público por grande parte dos países, essas manifestações vêm tendo sua proteção reivindicada por diversos grupos, em especial as comunidades étnicas e tradicionais.

Aos poetas, repentistas, violeiros e cantadores - alicerces da cultura popular brasileira. Dedicado a todos grupos étnicos e tradicionais que sustentam o viçoso patrimônio imaterial do país.

A Memória é a Imaginação do Povo, mantida comunicável pela Tradição, movimentando as Culturas, conver-gidas para o Uso, através do Tempo. Essas Culturas constituem quase a Civilização nos grupos humanos.

Luís da Câmara Cascudo

RESUMO

Trata-se de trabalho acadêmico acerca da proteção autoral das chamadas Expressões Culturais Tradicionais, ou Expressões do Folclore. Consideradas como pertencentes ao Domínio Público por grande parte dos países, essas manifestações vêm tendo sua proteção reivindicada por diversos grupos, em especial as comunidades étnicas e tradicionais de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Inicialmente, são considerados aspectos históricos e jurídicos do Direito de Autor, relevantes à proteção dessas manifestações. Em seguida são analisadas as iniciativas tomadas nesse sentido tanto em âmbito nacional como internacional. Destacam-se as Recomendações e Convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que visam a promoção da Diversidade Cultural, bem como a atuação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) nesse sentido, onde se busca a elaboração de um projeto de proteção sui generis para as Expressões Culturais Tradicionais. O trabalho conclui pela necessidade de tal regulamentação como forma de se proteger e promover a diversidade das manifestações culturais em um mundo globalizado.

Palavras-Chave: Direito de Autor. Proteção da Diversidade Cultural. Expressões Culturais Tradicionais. Expressões do Folclore. Domínio Público. Cultura Popular.

ABSTRACT

The work presented approaches the debate and development of legal mechanisms and practical tools concerning the protection of traditional cultural expressions (expressions of folklore) against misappropriation and misuse. It presents some important aspects of the copyright law related to this protection, and analyses the most relevant international instruments concerning this subjec, represented by the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) Recommendations and Conventions over cultural diversity, and the role of theWorld Intellectual Property Organization (WIPO) on the development of a "sui generis" legal protection of the folklore. In the end, it concludes by the need of this protection as a way to promote the diversity of the cultural expressions on a globalized world.

Keywords: Copyright. Protection of Cultural Diversity. Tradicional Cultural Expressions. Expressions of Folklore. Public Domain.

LISTA DE ABREVIATURAS

OMPI (WIPO) Organização Mundial da Propriedade Intelectual

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

ECT’s Expressões Culturais Tradicionais / Expressões do Folclore

MINC Ministério da Cultura

SUMÁRIO:1 Introdução. 1.1 Distinção entre Expressões Culturais Tradicionais. e Conhecimentos Tradicionais. 2 Direito de Autor. 2.1 Histórico. 2.2 Criações regidas pelo Direito de Autor.2.3 Os titulares de direitos autorais. 3 O amparo legal das Expressões Culturais Tradicionais.3.1 Propostas no âmbito nacional. 3.2 Propostas no âmbito internacional. 4 A atuação da UNESCO. 5 A proteção no âmbito da OMPI. 6 Conclusão. Referências


1 INTRODUÇÃO

O patrimônio imaterial vem ao longo dos anos sendo considerado uma importante fonte de diversidade, bem como, um instrumento de aproximação, intercâmbio e entendimento entre os seres humanos. Nesse sentido, o folclore se apresenta como uma importante herança cultural das nações, que continua se desenvolvendo – mesmo em formas contemporâneas – dentro das sociedades modernas. Para os países em desenvolvimento o reconhecimento das Expressões Culturais Tradicionais (ECT’s) como uma forma de manifestação de seu povo, é especial, tendo importância não somente dentro das comunidades que o praticam, mas também na sua relação com o mundo. Essas expressões culturais têm crescente papel do ponto de vista da formação da identidade social, sendo, mais do que objeto de recordações arcaicas, uma viva e pujante tradição.

O desenvolvimento tecnológico, especialmente nos campos da comunicação, está levando a uma exploração indevida da herança cultural das nações. Diversas Expressões Culturais Tradicionais vêm sendo comercializadas sem se respeitar os interesses culturais e econômicos das comunidades de onde elas originalmente surgiram e se desenvolveram, e sem a distribuição de nenhum dos recursos que a sua exploração proporciona. Junto com a comercialização, essas expressões ainda sofrem distorções visando sua adequação ao mercado. [01]

Em geral, nos países desenvolvidos, as expressões de folclore são consideradas pertencentes ao domínio público e, até agora, não foi estabelecida proteção legal à utilização dessas expressões.

Durante as últimas décadas entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização Mundial para a Propriedade Intelectual (OMPI) vêm buscando criar soluções para a proteção dessas expressões. Dentro do Brasil o Ministério da Cultura (MINC) vem crescentemente se engajando na proteção autoral das manifestações folclóricas, bem como dos conhecimentos tradicionais de comunidades.

São diversos os aspectos a serem levados em conta para a proteção e promoção das Expressões Culturais Tradicionais. Os Direitos Autorais, no entanto, apresentam um papel proeminente nesse sentido, sendo a pauta mais discutida nos fóruns internacionais para a proteção dessas manifestações culturais.

De acordo com o documento Model Provisions for national laws on the protection of expressions of folklore against illicit exploitaitions and other prejudicial actions [02], produzido pela OMPI em parceria com a UNESCO, em 1982, as primeiras tentativas de se regular as criações do folclore foram feitas já no final da década de 60, e principalmente na década de 70, em países como a Tunísia (1967), Bolívia (1968), Chile (1970), Marrocos (1970), Algeria (1973), Senegal (1973), Kenya (1975), entre outros. Assim, vemos que as discussões acerca da proteção autoral das expressões culturais tradicionais não são tão recentes e envolvem, sobretudo, países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

No Brasil, não há uma regulamentação específica para as criações culturais de comunidades tradicionais, que ainda são consideradas como sendo de domínio público. O Ministério da Cultura, em seu caderno "Direito Autoral: Conheça e Participe dessa Discussão sobre a Cultura no Brasil" [03] lançado em 2007, reconhece a fragilidade da regulação e proteção do Domínio Público no país, e sustenta, ainda, a necessidade de uma regulamentação para as Expressões Culturais Tradicionais, ausente na atual ordenamento jurídico.

A falta de regulamentação para a proteção autoral das ECT’s, de acordo com o já citado relatório da OMPI, gera, principalmente, os seguintes problemas: a exploração econômica indevida dos produtos culturais oriundos de comunidades tradicionais, sem a devida partilha dos lucros provenientes dessa exploração com os seus legítimos autores (as comunidades); distorções dessas expressões sem o respaldo das comunidades, muitas vezes com desrespeito às tradições locais e crenças religiosas [04].

Assim, buscaremos nesse trabalho apresentar as questões pertinentes acerca da proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais, as iniciativas nacionais nesse sentido e as propostas idealizadas especialmente nos fóruns da OMPI e da UNESCO, cotejando com as diretrizes de Direito Autoral no Brasil traçadas pela Lei 9610/98.

1.1 Distinção entre Expressões Culturais Tradicionais / Expressões de Folclore e Conhecimentos Tradicionais

Preliminarmente, se faz necessário tecer a distinção entre Expressões Culturais Tradicionais / Expressões de Folclore e os chamados Conhecimentos Tradicionais. As Expressões Culturais Tradicionais são as manifestações culturais de uma determinada comunidade, que englobam elementos tais como música, arte, design, nomes, símbolos, performances, formas de arquitetura, artesanato, lendas, crenças e narrativas. Essas expressões se aproximam das manifestações do espírito com finalidades estéticas, que são abarcadas pela proteção do Direito de Autor.

Os conhecimentos tradicionais, por sua vez, englobam o "conjunto acumulado e dinâmico do saber teórico, a experiência prática e as representações que possuem os povos com vasta história de interação com seu meio natural", conforme definição formulada pela UNESCO [05]. Envolvem elementos como os conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e das populações indígenas tradicionais, tais quais o uso de ferramentas e técnicas específicas e os conhecimentos relacionados às plantas medicinais se aproximando mais do regime de Propriedade Industrial que o de direitos autorais e tendo fóruns específicos para a sua discussão.

Conforme ensina Carlos Alberto Bittar, em sua obra "Direito de Autor":

[...] direitos intelectuais incidem sobre as criações do gênio humano, manifestadas em formas sensíveis, estéticas ou utilitárias, ou seja, voltadas, de um lado, à sensibilização e à transmissão de conhecimentos e, de outro, à satisfação de interesses materiais do homem na vida diária. No primeiro caso, cumprem-se finalidades estéticas (de deleite, de beleza, de sensibilização, de aperfeiçoamento intelectual, como nas obras de literatura, de arte e de ciência); o segundo, objetivos práticos (de uso econômico, ou doméstico, de bens finais resultantes da criação, como por exemplo, móveis, automóveis, máquinas, aparatos e outros), plasmando-se no mundo do Direito, em razão dessa diferenciação, dois sistemas jurídicos especiais, para a respectiva regência, a saber: o do Direito de Autor e o do Direito de Propriedade Industrial (ou Direito Industrial). [06]

Nessa monografia trataremos unicamente da proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais, não abordando as questões relativas à proteção dos Conhecimentos Tradicionais, que extrapolariam a alçada deste Trabalho de Graduação Interdisciplinar.

Por fim, é necessário dizer que o termo "folclore" foi dispensado por algumas comunidades tradicionais ouvidas durante os trabalhos de pesquisa de campo da Organização Mundial da Propriedade Intelectual [07]. Tais comunidades não reconhecem suas expressões culturais como "folclóricas". Por isso vem sendo utilizado com mais freqüência o termo Expressões Culturais Tradicionais, ou ECT’s.

Quando à utilização desses termos o relatório The Protection of Tradicional Cultural Expressions / Expressions of Folklore an overview of the Wipo IGC draft Provisions, produzido pela OMPI, faz a seguinte consideração:

O objeto sujeito à proteção são as "expressões culturais tradicionais" ou "expressões de folclore", dois termos que podem ser intercambiáveis em vista das diferentes práticas internacionais. A escolha específica dos termos deve ser determinada a nível nacional e regional [08].

Não havendo convenção nesse sentido na legislação pátria, nem no âmbito dos especialistas nacionais do assunto, consideramos desnecessário optar por um termo, ou outro, sendo ambos utilizados indistintamente no decorrer desse trabalho.


2 DIRETO DE AUTOR

2.1 Histórico

O conceito de direito autoral, surgiu no século XVIII, não sendo conhecido na antiguidade. Mesmo na Grécia antiga, sem embargo da alta consideração que tinham as produções intelectuais, os produtos da inteligência não eram considerados sob o aspecto jurídico. O próprio plágio, não encontrava outra sanção senão a condenação da opinião pública.

Já na Renascença, motivados pelo surgimento da imprensa, começaram os primeiros sistemas de concessão de monopólios reais para a impressão de determinadas obras mais célebres. No entanto, foi só no ano de 1710 que surgiu a primeira lei específica sobre o assunto, com o famoso Copyright Act, da Rainha Ana, da Inglaterra. Esse ato buscou assegurar a devida remuneração aos autores de obras intelectuais. A partir daí seguiram-se legislações sobre o assunto na Dinamarca, França, e logo em toda Europa já se vislumbrava a proteção jurídica dos Direitos Autorais.

No Brasil, a primeira referência aos direitos de autor veio com uma Lei de 11 de agosto de 1827, que instituiu os cursos jurídicos no país, e garantia aos Lentes o privilégio exclusivo da utilização dos compêndios por eles arranjados.

Também o Código Criminal de 1827 tipificou o crime da contrafação, e assegurava por até 10 anos após a morte do autor o aproveitamento econômico das suas obras pelos herdeiros.

As referências diretas aos direitos de autor surgiram na Constituição Republicana de 1891, sendo seguida pelas Constituições de 1934, de 1946, de 1967 e pela Emenda Constitucional de 1969 que dispunha:

Art. 153, parágrafo 25. Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence o direito exclusivo de utilizá-las. Esse direito é transmissível por herança, pelo tempo que a lei fixar. [09]

A Constituição Federal de 1988 manteve a redação com leves alterações:

Art. 5º, inciso XXVII. Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.

E acrescentou, ainda:

XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

a)a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive das atividades desportivas;

B)o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas. [10]

Diversas leis e decretos nacionais trataram do assunto, no decorrer do século XX, havendo ainda propostas no sentido de se criar um Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos. No entanto, foi só no ano de 1973 com a promulgação da Lei n.5988, que os Direitos Autorais passaram a ter uma abrangência mais profunda no ordenamento jurídico pátrio.

Seguindo o caráter pioneiro dos institutos albergados pela lei de 1973, a atual Lei dos Direitos Autorais, de 19 de fevereiro de 1998, inaugurou uma série de conquistas no plano dos direitos de autor. No entanto, como veremos no decorrer dessa dissertação, ainda restam questões em aberto e demandas específicas que a atual legislação não foi capaz de atender.

O Direito de Autor é disciplinado também em nível internacional. Quanto ao caráter

internacional dos institutos do direito autoral expõe José de Oliveira Ascensão:

É típica do Direito de Autor a grande influência dos instrumentos internacionais. Ao contrário do que ocorre noutros ramos do direito, essa contratação internacional não consolida o estado normativo atingido pelas leis internas. Freqüentemente as antecipa, representando um instrumento de pressão sobre estas. A evolução da lei brasileira só se compreende assim plenamente à luz da evolução dos instrumentos nacionais [11].

Destaca-se o sistema instituído pela Convenção de Berna, de 1886, do qual o Brasil é aderente e que é responsável por uma certa uniformização das legislações de grande parte dos países. Tal Convenção vem sendo revisada ao longo dos anos, sob a tutela da OMPI, e dos diversos países signatários, todavia, não apresenta dispositivos que regulem a proteção das ECT’s, como veremos.

2.2 As criações regidas pelo Direito de Autor

O Direito Autoral busca a proteção das obras artísticas, literárias, e científicas para que haja o devido aproveitamento pelos seus autores. Assim, surge como requisito indispensável para sua caracterização a presença da criatividade. Conforme ensina ASCENSÃO, "a obra literária ou artística pertence ao mundo da cultura. Só se capta através do espírito. Um animal é completamente opaco à obra literária ou artística". [12] Dentro do amplo universo criativo do ser humano, faz-se necessário também a presença do caráter estético da obra para a sua integração no campo dos Direitos de Autor.

Dispõe o artigo 7º da Lei 9610/98:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;

II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza;

III - as obras dramáticas e dramático-musicais;

IV - as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma;

V - as composições musicais, tenham ou não letra;

VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas;

VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;

VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética;

IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;

X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;

XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;

XII - os programas de computador;

XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual [13].

Acerca do direito autoral, BITTAR, faz as seguintes considerações: "o objetivo do Direito de Autor é a disciplinação [sic] das relações jurídicas entre o criador e sua obra, desde que de caráter estético, em função, seja da criação (direitos morais), seja da respectiva inserção em circulação (direitos patrimoniais)". [14] Assim sendo, são produtos abarcados pela proteção autoral as obras artísticas, literárias e científicas, que apresentam conotação estética, não abrangendo as criações utilitárias, ou industriais, regidas pelo regime de propriedade industrial.

As ECT’s como objeto de proteção do Direito de Autor

Como vimos, as Expressões Culturais Tradicionais são as manifestações culturais de uma determinada comunidade, e englobam elementos tais como música, arte, design, nomes, símbolos, performances, formas de arquitetura, artesanato, lendas, crenças e narrativas, sendo, portanto, abarcadas pela proteção autoral.

Não existe conceituação jurídica do folclore. No seu majestoso Criador da Obra Intelectual, Antônio Chaves, traz algumas definições do termo, por especialistas, que transcrevemos a seguir.

Os Peritos Governamentais em matéria de preservação do folclore, em reunião em Paris de 14.01.1985, deram a seguinte acepção ao termo "folclore", exposta no Buletin du Droit d’Auteur:

O folclore (em sentido amplo de cultura tradicional e popular) é uma criação que emana de um grupo e fundada na tradição, expressa por um grupo ou por indivíduos, reconhecida como respondendo às expectativas da comunidade como expressão da identidade cultural e social da mesma; as normas e os valores que se transmitem oralmente, por imitação ou por outros modos. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes. [15]

Já Francisco da Silveira Bueno, em seu Dicionário Escolar, fez a seguinte definição:

Conjunto das tradições, conhecimentos ou crenças populares expressas em provérbios, contos ou canções; conjunto das canções populares de uma época ou região; estudo e conhecimento das tradições de um povo, expressas em suas lendas, crenças, canções e costumes. [16]

Em documento formulado pela UNESCO em parceria com a OMPI, em 1982, que buscou apresentar disposições tipo para as legislações nacionais sobre a proteção do Folclore [17] tem-se a seguinte relação para as obras consideradas folclóricas:

I - as expressões verbais, tais como os contos populares, a poesia popular e os enigmas;

Ii - as expressões musicais, tais como as canções e a música instrumental populares;

III- as expressões corporais, tais que as danças e espetáculos populares, bem como as expressões artísticas dos rituais; sejam ou não estas expressões fixadas num suporte; e

IV- as expressões materiais como:

a)as obras de arte popular, aí compreendidos notadamente os desenhos, pinturas, cinzeladuras, esculturas, louças, terracotas, mosaicos, trabalhos em madeira, objetos metálicos, jóias, obras de cesteiro, trabalhos de agulha, têxteis, tapetes, vestuário;

b)os instrumentos de música

c)as obras de arquitetura. [18]

Assim, vemos que as Expressões do Folclore, ou, Expressões Culturais Tradicionais, abrangem um grande leque de manifestações, sendo suas obras, objetos que integram o universo de proteção do direito autoral. Tais expressões estão devidamente representadas no rol acima transcrito do Artigo 7º da Lei 9610/98.

2.3 Os titulares de direitos autorais

A evolução dos estudos acerca dos Direitos de Autor, no século XX, e sua compreensão no espectro jurídico, engendrou mudanças com relação aos titulares desses direitos, como veremos.

Como demonstramos, sendo os objetos abarcados pelo Direito Autoral as obras intelectuais de cunho literário, artístico ou científico dependem elas necessariamente da atividade criadora para sua concepção.

Nesse sentido dispõe BITTAR:

Em função do sistema instituído para o Direito de Autor e na sagração de regra da própria natureza, é do fenômeno da criação que resulta a atribuição de direitos sobre obras intelectuais. Trata-se, pois, de Direito inerente à criação, instituído para defesa dos aspectos apontados e que nasce com a inserção, no mundo material, de ideação sob determinada forma. Portanto, é com a ação do autor, ao plasmar no cenário fático a sua concepção – artística, literária ou cientifica – que se manifesta o Direito em causa, revelando-se, de início, sob o aspecto pessoal do relacionamento criador-obra. [19]

Assim, considera-se criador de obra intelectual a pessoa que concebe e materializa a manifestação artística, cientifica ou literária, independentemente de condições como a capacidade, podendo ser criador o menor, o pródigo, o silvícola e o mentalmente deficiente.

Nesse sentido, Maurice Bedel, citado por Antonio Chaves, afirma:

Foram criadores do espírito, todos aqueles que, por meio das palavras da linguagem, das notas da música, das cores do pintura, das mordeduras do buril, dos movimentos do cinzel ou das linhas do desenho de um plano de arquiteto, fizeram sair do nada uma obra à qual se aferrava sua personalidade, à qual abriram as portas do real e que tornaram pública. [20]

Inicialmente, grande parte da doutrina asseverava que a autoria e titularidade originária dos Direitos de Autor somente poderiam ser concedidos à pessoa física. O Professor Antonio Chaves, nesse sentido, chegou a lecionar:

Autoria é condição de alguém que realiza ou dá luz alguma coisa: um crime, um filho, uma obra literária, cientifica ou artística. E da mesma forma que uma pessoa jurídica, como entidade abstrata, não pode, por si mesma, cometer um crime ou ter um filho, não pode conceber e gerar uma obra intelectual. [21]

A Carta do Direito de Autor, aprovada pela Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores no Congresso de Hamburgo de 1956, dispunha:

Residindo o titulo justificativo do direito de autor no ato da criação intelectual, é unicamente na pessoa física do seu ou dos seus criadores que esse direito pode tomar nascimento. Uma pessoa jurídica jamais poderá considerar como titular originário do direito de autor sobre uma obra do espírito. [22]

Atualmente, no entanto, prevaleceu a teoria realista da pessoa jurídica, que entende ser a mesma suscetível à titularidade originária dos Direitos de Autor. Carlos Alberto Bittar, dispõe nesse sentido:

Própria por natureza, de pessoas físicas, a criação de obras intelectuais nasce, também, no âmbito das pessoas jurídicas (inclusive do Estado), existindo, aliás, no setor de comunicações, empresas especializadas em idear e produzir obras de engenho, concebidas e materializadas sob sua direção, de sorte que também podem ser titulares de direitos autorais, tanto por via originária (pela criação), como derivada (pela transferência de direitos) [23].

Prevê a Lei 9610/98 em seu artigo 11º, parágrafo único:

Art. 11. Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta lei. [24]

Vemos, portanto, que, com o transcorrer dos anos, a titularidade de obras objetos de direitos autorais ampliou-se, sendo, atualmente, pacífico o entendimento de que as pessoas jurídicas podem ser consideradas autoras, nos limites estabelecidos pela lei.

As Comunidades Tradicionais como titulares de direitos de autor

Como vimos nas definições anteriormente expostas, as manifestações culturais de comunidades tradicionais, ou folclóricas, sempre surgem no seio de uma coletividade, sendo frutos da sociabilidade de pessoas identificadas por uma determinada visão de mundo, fruto de um convívio social de distintas gerações e baseadas na tradição oral.

O professor da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, Kanwal Puri, citado pelo Professor Antonio Chaves, aponta as seguintes características fundamentais que apresentam as expressões de folclore:

a)São anônimas;

b)Obedecem a modelos e regras determinadas. Estando fundadas na tradição, as variações que podem produzir-se são progressivas e não radicais;

c)Relacionam-se a um grupo humano limitado. São criações coletivas, porque existe um grupo humano que as perpetua e as reconhece;

d)Tem caráter popular, o que significa que elas não provem de fontes literárias;

e)As expressões do folclore têm caráter oral. Elas se transmitem diretamente, sem suporte escrito. São retiradas da memória coletiva.

O folclore não é estático. Modifica-se em função das necessidades do grupo. Evolui na conformidade de regras, de arquétipos próprios a um grupo; exprime as atitudes e as reações deste grupo frente a um meio em constante mutação. A variação em matéria de folclore é um sinal de atividade criadora. [25]

Mesmo surgindo, por sua própria natureza, pela atividade criadora de indivíduos determinados, as expressões culturais tradicionais não obedecem à regra de criação abarcada pela proteção autoral. Não sendo criações de indivíduos isolados, nem surgindo sob a tutela de pessoas jurídicas, são frutos da tradição de uma determinada comunidade, que as perpetua e as reconhece e são responsáveis pela sua constante reformulação.

Assim, vislumbra-se uma lacuna na identificação dos titulares de direitos autorais, pois que entendidos como pessoas físicas determinadas, e mesmo tendo sua ampliação para as pessoas jurídicas nos termos da lei, ainda não reconhece a titularidade de comunidades tradicionais sobre as suas criações coletivas, que, por falta de legislação especifica, ainda são consideradas como sendo de domínio público.

José de Oliveira Ascensão faz as seguintes considerações acerca da criação coletiva:

Do requisito da individualidade deriva por outro lado que não podem ser atingidas pelo Direito de Autor as criações coletivas. Há certas manifestações culturais que podem ser referidas ao espírito coletivo. Baseiam-se necessariamente em atos individuais de criação, pois só o espírito de cada homem cria, mas esses contributos dissolvem-se no conjunto de modo inextrincável. Não podem ser isoladas para ser atribuídas individualmente, nem permitir a afirmação de autoria sobre a criação coletivas. Cabe aqui o chamado folclore. [26]

A antiga Lei de Direitos Autorais (Lei. 5.988 de 1973) dispunha o seguinte, acerca das obras da tradição oral:

Art. 48. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:

II – as de autor desconhecido, transmitidas pela tradição oral. [27]

Como vemos, as obras de autor desconhecido, transmitidas pela tradição oral, são consideradas no referido dispositivo como pertencentes ao domínio público.

A atual Lei de Direitos Autorais mostrou sinais de evolução no reconhecimento da titularidade autoral de comunidades étnicas e tradicionais inserindo a seguinte frase:

Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:

II – as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais. [28]

Entendemos que o termo "conhecimentos étnicos e tradicionais" utilizado pelo legislador engloba também as Expressões Culturais Tradicionais. Nesse sentido Plínio Cabral afirma:

Mas o domínio público não decorre apenas do prazo de proteção que a lei confere às obras de arte. Segundo o art. 45, pertencem ao domínio público:

I – as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;

II – as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.

Neste último item incluem-se as obras de folclore, ameaçadas de verdadeiro genocídio cultural pela penetração maciça dos meios de comunicação. Além disso, elas são recolhidas, arranjadas, adaptadas, sofrendo um processo que viola sua pureza original. Sendo obras de autores desconhecidos, é óbvio que sua utilização está fora de proteção, independente de qualquer preceito legal. Cabe ao Estado, entretanto, resguardar tais obras, que constituem patrimônio cultural da nação. É o que faculta, embora sem muita precisão técnica, o item II do artigo 45, já que se refere a conhecimentos étnicos e tradicionais, sem aludir à obra de arte folclórica. O domínio público assegura a utilização da obra de arte sem limites, respeitada sua integridade. [29]

Percebe-se aí a intenção do legislador de conceber a devida tutela autoral às expressões culturais de comunidades tradicionais. No entanto, a citada "proteção legal" não encontra existência fática no espectro jurídico, sendo essas criações consideradas, ainda hoje, de domínio público pela falta de positivação de lei especifica sobre o assunto. Desse modo, essa mera ressalva, que aparece isolada na legislação pátria, não constitui senão uma boa intenção do legislador que mais se aproxima de uma ficção jurídica e de modo algum favorece a efetiva proteção das expressões culturais tradicionais.


3 O amparo legal das Expressões Culturais Tradicionais

Conforme exposto, as Expressões Culturais Tradicionais são criações coletivas que expressam os anseios, tradições, costumes e crenças de determinadas comunidades.

São diversos os motivos apresentados por especialistas para a proteção autoral dessas manifestações. Sendo os mais relevantes:

a. A comercialização dessas expressões culturais por grandes empresas e veículos de comunicação sem a devida partilha desse aproveitamento econômico com as comunidades em que eles tradicionalmente se desenvolveram.

b. Distorções das manifestações culturais, muitas vezes com ofensas às tradições locais e crenças religiosas das comunidades.

c. Fragilidade das expressões culturais tradicionais diante das influências externas, como os grandes veículos de comunicação em massa, e o iminente risco de degradação e desnaturação desse patrimônio cultural com a quebra dos laços de uma comunidade com seu passado.

Julia Elena Fortún, citada por Antonio Chaves, faz as seguintes considerações acerca do caráter marginal das ECT’s:

Se bem que relativamente efetivas no que se refere à proteção individual o autor identificado, porque esquecem, por exemplo, a do artista popular, de certo modo anônimo, que justamente por sua situação marginal e intercultural mereceria amplo respaldo? Por que se restringem em dar amparo unicamente aos cidadãos que contam com maiores possibilidades sócio-econômicas de ação e não aos milhares de criadores anônimos de nossas aldeias? Por que as Convenções Internacionais de proteção aos chamados "Patrimônios Culturais da Humanidade" se circunscrevem a assinalar pautas protetoras para bens culturais tangíveis e não para as criações artísticas que transcorrem no tempo e no espaço, mas não deixam de ser valores da criatividade do homem e patrimônio dos povos? Por que se olha com incrível passividade a apropriação indevida do folclore de grupos humanos de nossos paises e se amparam os usurpadores? [30]

O documento Model Provisions for national laws on the protection of expressions of folklore against illicit exploitaitions and other prejudicial actions produzido pela OMPI em parceria com a UNESCO, em 1982, apresenta as seguintes considerações acerca do amparo legal das manifestações folclóricas:

O desenvolvimento da tecnologia, especialmente nos campos da comunicação, está levando a uma exploração imprópria da herança cultural das nações. Expressões culturais tradicionais vêm sendo comercializadas, em escala global, sem se respeitar os interesses culturais e econômicos das comunidades de onde elas surgiram, e sem a distribuição de nenhum dos recursos que a exploração do folclore proporciona. Junto com a comercialização, essas expressões ainda sofrem distorções em ordem de corresponder ao que se acredita seja mais favorável à sua exploração comercial em larga escala. [31]

Nesse sentido Antonio Chaves ainda faz as seguintes considerações:

Há uma comunidade que o considera seu patrimônio e o cultiva com amor especial. As empresas de espetáculos, cinemas, empresas de televisão exploram o folclore em proporções gigantescas, enquanto a comunidade de origem é utilizada sem participar dos sucessos econômicos de sua arte. [32]

No documento The Protection of Tradicional Cultural Expressions / Expressions of Folklore na Overview of the Wipo IGC Draft Provisions, produzido pela OMPI, tem-se as seguintes considerações:

De um ponto de vista da propriedade intelectual a proteção das ECT’s integra a parte integral das políticas relacionadas à promoção e proteção da criatividade e inovação, desenvolvimento das comunidades e um estímulo da criatividade industrial como parte de um desenvolvimento econômico sustentável. No entanto, a proteção das expressões culturais tradicionais também toca em outras importantes áreas. Essas incluem a salvaguarda e preservação da herança cultural; liberdade de expressão; respeito pelos direitos, interesses e expectativas de comunidades indígenas e tradicionais; reconhecimento de leis consuetudinárias, protocolos e práticas; acesso ao conhecimento e ao cerne do "domínio público"; endereçamento de desafios de multiculturalismo; e, promoção da diversidade cultural, incluindo a variedade lingüística e acesso à diversificadas expressões culturais. [33]

Também são elencados como objetivos para a proteção das ECT’s:

i- Reconhecimento de valor

ii- Promoção do respeito

iii- Conhecimento das necessidades das comunidades

iv- Prevenção de uma má apropriação das ECT’s

v- Conceder poder às comunidades

vi- Apoiar práticas tradicionais e a cooperação comunitária

vii- Contribuir com a salvaguarda das culturas tradicionais

viii- Encorajar a inovação comunitária e a criatividade

ix- Promover a liberdade artística e intelectual, pesquisa e intercambio cultural em termos igualitários

x- Contribuir com a diversidade cultural

xi- Promover o desenvolvimento comunitário e legitimar atividades de troca

xii- Obstruir a utilização indevida de direitos de PI

xiii- Promover a certeza, a transparência e a confiança mútua. [34]

Em sentido mais amplo a proteção das ECT’s tem o objetivo de promover a diversidade cultural em um mundo cada vez mais padronizado, ameaçado pelo império dos veículos internacionais de comunicação. Acerca do conceito de diversidade cultural a importante Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade Cultural, realizada no âmbito da UNESCO e ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo 485/2006 define:

Diversidade Cultural

"Diversidade cultural" refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. [35]

Tais considerações oferecem um panorama acerca da necessidade de se criar mecanismos efetivos para a proteção e promoção das expressões culturais tradicionais e demonstram ainda a preocupação internacional no sentido de se preservar esse patrimônio cultural.

3.1 Propostas no âmbito nacional

As primeiras iniciativas nacionais no sentido de se buscar uma proteção das Expressões Culturais Tradicionais se deram na década de 1920, pelo gênio incansável do primeiro folclorista brasileiro, Mário de Andrade. No ano de 1928, em artigo publicado no Diário Nacional, o poeta e pesquisador da cultura popular brasileira, afirmou:

Nossa musica popular é um tesouro condenado à morte. A fonografia se impõe como remédio de salvação. A registração [sic] manuscrita é insuficiente porque dada a rapidez do canto é muito difícil escrevê-lo e as palavras que o acompanham. Tanto mais que a dicção e a entoação dos cantadores é extremamente difícil de ser verificada imediatamente com nitidez. [...] Não é possível num país como o nosso a gente esperar qualquer providência governamental nesse sentido. Cabe mais isso (como quase tudo) à iniciativa do povo. São as nossas sociedades que podem fazer alguma coisa para salvar esse tesouro que é de grande beleza e valor étnico inestimável. [36]

Na posição de diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, atual Secretaria de Estado de Cultura, cargo que ocupou entre os anos de 1934 a 1937, Mário de Andrade viabilizou o patrocínio das ambiciosas Missões de Pesquisa Folclórica, que durante o ano de 1938 colheram centenas de fonogramas de manifestações como cocos, bumba-meu-boi, praiás, pajelancas, congadas, cantos de trabalho, toré, cabaçal, cantigas de roda, ladainhas, canções de carregadores de piano, cantos indígenas, tambor-de-criola, repentes entre outras dezenas de manifestações das regiões norte e nordeste do país.

Mesmo com um crescente interesse por parte de músicos, antropólogos, jornalistas e folcloristas, a proteção das ECT’s pouco tem caminhado no sentido de se criar uma tutela jurídica sui generis às manifestações tradicionais da cultura brasileira.

Antônio Chaves, em sua já citada obra Criador da Obra Intelectual, elenca algumas iniciativas nacionais desempenhadas no sentido de se proteger o folclore sob o aspecto jurídico.

A primeira proposta nesse sentido foi realizada por Edison Carneiro, Bráulio Nascimento e Maestro Aloysio de Alencar Pinto, em ofício dirigido à Comissão de Estudos Legislativos do Ministério da Justiça, na data de 31.10.1967.

No referido documento os autores reconhecem que a cultura tradicional não costuma fazer parte dos códigos de direito autoral, atribuindo isso ao fato de, já no século XIX, quando a proteção aos direitos de autor se tornou uma questão relevante no âmbito internacional, os países desenvolvidos, especialmente na Europa, já haviam recolhido e divulgado o seu folclore nacional, não havendo a necessidade de uma proteção jurídica específica.

Indicam que a apropriação indébita de temas folclóricos para fins de promoção, ou propaganda comercial, é "seu aspecto mais odioso" e que "se a lei não proibir de modo terminante, corremos o risco de que as formas literárias e musicais da cultura tradicional possam, com a cumplicidade dos poderosos meios de comunicação, (...) fixar-se na memória coletiva divorciados do seu conteúdo original". [37]

Propõem assim as seguintes disposições:

Art. Os temas e motivos literários e musicais de domínio público tradicional poderão ser utilizados no todo ou em parte por quem o queira, desde que autorizado pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileira, do MEC, e pelo Conselho Nacional de Direitos de Autor e Conexos (CONDAC).

Art. Consideram-se de domínio público tradicional:

a)todos os temas e motivos literários e musicais do folclore braileiros, com exceção das letras de moda-de-viola e da poesia corrente da literatura de cordel e dos cantadores populares, que são de criação individual do artista;

b)todo material folclórico, coletado ou por coletar, divulgado ou por divulgar, constante de obras de especialistas, de instituições de pesquisa ou de pessoas de outro modo interessadas, desde que delas conste a declaração implícita de que faz parte do folclore brasileiro.

Art. A utilização de temas e motivos de domínio publico tradicional por órgãos culturais e de pesquisa, bem como por estudiosos da matéria é livre e gratuita. Se porém, a sua utilização se fizer com intuito de lucro, direto ou indireto, a autorização prevista só se fornecerá mediante retribuição á Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, do MEC[...].

Art. A ninguém é licito apresentar-se como autor de temas e motivos de domínio publico tradicional, no todo ou em parte, para fins de propaganda comercial. [38]

Apresenta ainda o Projeto Barbosa-Chaves, que continha a seguinte proposição:

Art. 59. Obras do folclore. As obras que recolhem tradições, letras ou acontecimentos populares conhecidos sob um nome característico pertencem ao domínio publico.

Parágrafo Único. Não é permitida a sua deformação ou utilização para fins de propaganda comercial. [39]

Ainda na data de 17.04.1974 o Deputado J. G, Araújo Jorge apresentou o Projeto de Lei n. 1.921, que "Preserva a inspiração e a beleza das composições musicais do nosso folclore, proibindo sejam as mesmas exploradas com letras ou adaptadas para fins comerciais" [40], e que foi mandado anexar ao Projeto n. 928, de 1972.

Mesmo tendo sua aprovação nas Comissões de Constituição e Justiça, pelo relator Luiz Henrique, e de Comunicação, pelo relator Humberto Lucena, foi rejeitada pela Comissão de Educação e Cultura, unanimemente. Tal rejeição se deu pela atribuição de "unilateralidade" do Projeto que "protege apenas as composições musicais, deixando fora as demais expressões da cultura popular que constituem a riqueza folclórica de um país". [41]

3.2 Propostas no âmbito internacional

Conforme anteriormente exposto, as discussões acerca da proteção autoral das ECT’s se iniciaram em meados do século XX, sendo sua aplicação ainda hoje carente de amparo legal.

As primeiras tentativas de se regular as criações do folclore foram feitas já no final da década de 60, e principalmente na década de 70, em países como a Tunísia (1967), Bolívia (1968), Chile (1970), Marrocos (1970), Algeria (1973), Senegal (1973), Kenya (1975), entre outros. [42]

José de Oliveira Ascensão, cita a seguinte passagem acerca da evolução dos debates internacionais sobre a proteção do folclore:

Os textos fundamentais sobre direito de autor não a contemplam [a proteção do folclore]. Já, porém, na revisão de 1967 da Convenção de Berna os países africanos, sobretudo, apresentaram propostas tendentes a incluir também na proteção da obra literária e artística estes elementos do seu patrimônio cultural. Queixavam-se eles das "rapinas" de que este era objeto. Os pesquisadores europeus e americanos faziam recolhas, principalmente dos cantares, que eram depois editadas em discos fonográficos e exploradas comercialmente, sem que os seus povos tivessem qualquer participação nos resultados obtidos.

Os países industrializados objetaram que a matéria não respeitava ao direito de autor, pois este supõe uma criação individualizada, um titular determinado a quem se pode atribuir a gestação da obra, enquanto que o folclore trazia uma manifestação genérica do espírito de um povo que exorbitaria da Convenção de Berna. Apesar de tecnicamente terem razão, não satisfaziam o interesse dos países implicados, que insistiram na sua pretensão. Acabou por se acordar numa vaga referência, à margem da Convenção. [43]

Em 1977 realizou-se a Primeira Conferência Continental de Direito de Autor, promovida pelo extinto Instituto Interamericano de Propriedade Intelectual – IIDA, onde se aprovaram três resoluções atinentes à matéria, quais são:

53. Que os organismos internacionais adotem fórmulas que protejam as expressões de arte folclórica dos povos como obras de criação coletiva.

54. Que se estude uma forma de participação da coletividade da qual se origina esse tipo de criação, quando haja exploração comercial por terceiros e que os países americanos considerem essa forma de proteção em suas legislações internas.

55. Que se estude uma forma de identificação da origem dessas obras, que tenha caráter obrigatório para todos aqueles que as divulguem. [44]

Felizmente, cada vez mais, a proteção autoral das Expressões do Folclore vem ganhando terreno dentro dos organismos internacionais. Dentre as organizações responsáveis pelo estudo dessa regulamentação destacam-se os fóruns da Organização Mundial da Propriedade Intelectual - OMPI, e da UNESCO havendo ainda uma série de agentes a nível continental, federal e regional que se dedicam ao assunto.


4 A ATUAÇÃO DA UNESCO

Disposições Tipo para as Leis Nacionais – 1982

Em 24 de abril, de 1973, o governo da Bolívia enviou um memorando ao Diretor Geral da UNESCO requisitando que a entidade verificasse a possibilidade de se produzir um instrumento internacional para a proteção do folclore, na forma de um protocolo para ser anexado à Convenção Universal de Copyright (Universal Copyright Convention).

Em atendimento a esse pedido o secretariado da UNESCO fez um estudo sobre a plausibilidade de se produzir um documento para a proteção do folclore em âmbito internacional. Em 1977 o Diretor Geral da UNESCO reuniu um Comitê de Peritos para a Proteção Legal do Folclore, que chegou ao consenso de que seria necessário um exame completo dos diversos problemas expostos.

Verificada a necessidade de um amplo estudo sobre o assunto que abordasse questões de identificação, conservação de material, preservação, bem como aspectos sociológicos, psicológicos, etnológicos, políticos e históricos, foi formado no ano de 1980, um grupo de trabalho composto por dezesseis peritos de diferentes países, reconhecidos pela UNESCO e pela OMPI.

Desses encontrou ficou reconhecido que: (i) uma adequada proteção legal para as expressões de folclore seria desejável; (ii) tal proteção poderia ser promovida em âmbito nacional através de provisões modelo para as legislações; (iii) tais provisões deveriam ser formuladas de modo a serem utilizadas tanto por países onde não se verificava nenhuma legislação especifica sobre o assunto, bem como por paises onde a legislação existente poderia ser desenvolvida; (iv) o modelo de provisões deveria pavimentar um caminho para a proteção sub-regional, regional e internacional das expressões culturais tradicionais. [45]

Com o desenvolver desse trabalho o Comitê de Peritos Governamentais para a Proteção das Expressões de Folclore (IGC) elaborou, em 1982, um importante documento acerca da proteção autoral das expressões culturais tradicionais, o primeiro relativo ao assunto, chamado Model Provisions for national laws on the protection of expressions of folklore against illicit exploitaitions and other prejudicial actions. [46]Tal documento apresentou as seguintes considerações acerca da proteção das ECT’s:

Considerando que o folclore constitui uma parte essencial do patrimônio vivo da nação desenvolvido e perpetrado pelas comunidades no seio da nação;

Considerando que a disseminação das diversas expressões do folclore pode conduzir a um aproveitamento indevido do patrimônio cultural da nação;

Considerando que todo abuso de natureza comercial ou outra ou toda desnaturação do folclore é prejudicial aos interesses culturais e econômicos da nação;

Considerando que as expressões do folclore em tanto que constituem uma manifestação da criatividade intelectual merecem beneficiar de uma proteção que se inspira da que é concedida às obras literárias e artísticas[...]; [47]

Em seu artigo primeiro o relatório estabelece o principio da proteção das expressões culturais tradicionais, no âmbito do país aderente. O artigo segundo define o folclore como o conjunto do patrimônio artístico tradicional desenvolvido e perpetuado por uma comunidade do país e relaciona as seguintes expressões protegidas do folclore:

i)as expressões verbais, tais como, contos populares, poesia popular e enigmas;

ii)as expressões musicais, tais como, canções populares e música instrumental;

iii)expressões pela ação, tais como, danças folclóricas, jogos, formas artísticas e rituais;

sejam elas materializadas em suportes ou não, e ainda:

a)produções da arte popular, em particular: desenhos, pinturas, entalhos, esculturas, cerâmica, terracota, mosaicos, trabalhos em madeira e metal, joalheria, tapetes e roupas;

b)instrumentos musicais;

c)formas arquitetônicas. [48]

O terceiro artigo diz respeito às utilizações submetidas à autorização, quando feitas com intenção de lucro fora de seu contexto tradicional:

i)toda publicação, reprodução, e toda distribuição de exemplares de expressões de folclore;

ii)toda recitação, representação ou execução pública, toda transmissão por fio ou sem fio e qualquer outra forma de comunicação ao público de expressões de folclore. [49]

O artigo quarto indica as exceções às disposições do artigo anterior:

i)utilização a titulo de ensino;

ii)utilização a titulo de ilustração de uma obra original de um autor desde que a extensão dessa utilização seja compatível com os bons costumes;

iii)empréstimos de elementos de expressão do folclore para a criação de uma obra original de um autor, desde que esta utilização seja compatível com os bons costumes. [50]

Diversas são as disposições que se seguem incluindo-se a relação de infrações, busca e apreensão, prescrição, sanções civis, autoridades, jurisdição competente, interpretação e proteção das expressões do folclore estrangeiro.

Em posterior reunião do mesmo Comitê, realizada no mesmo ano de 1982, em Paris, foram delimitadas as seguintes recomendações para salvaguarda desse patrimônio:

1.seja estabelecido na Unesco um registro internacional dos bens culturais folclóricos e que seja elaborado um modelo de sistema de indexação e colocado à disposição dos Estados-membros;

2.a Unesco proporcione uma assistência intelectual e técnica aos países em desenvolvimento para que estes se aparelhem com os materiais de registro necessários (magnetofones, cassetes, vídeo) à coleta de manifestações ou expressões folclóricas;

3.a Unesco favoreça a formação de pessoal especializado no setor de pesquisa, da coleta, da transcrição e do arquivamento dos elementos do folclore e no quadro da ajuda proporcionada aos países menos desenvolvidos do ponto de vista tecnológico, considere a possibilidade de organizar programas de formação nas vizinhanças que se aproximem o mais possível das condições ás quais o pesquisador deve enfrentar no terreno antes que daquelas que conhece o formador;

4.os Estados-membros atualizem sistemas de identificação e de recenseamento a fim de dispor de um documento de classificação dos dados do folclore;

5.os Estados-membros estabeleçam inventários tão completos quanto possível das manifestações ou expressões folclóricas; [51]

Seguem outras 23 recomendações acerca da conservação e análise das Expressões Culturais Tradicionais, bem como sua preservação, valorização e reativação.

As dificuldades técnicas e jurídicas em abordar a proteção das Expressões de Folclore explicam por que a UNESCO optou por não tratar do assunto por meio de uma Convenção, mas sim por meio de simples recomendações. Até onde se saiba o referido Modelo de Provisões não foi adotado pelos países membros.

Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore - 1989

Em 1989, na 31ª Conferência Geral, seguindo o trabalho iniciado com as Disposições-Tipo para as Leis Nacionais foram elaboradas as Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore.

Nestas recomendações ficaram decididos critérios para a definição, identificação, conservação, preservação, disseminação e proteção do patrimônio imaterial. Nelas se destacaram "a natureza específica e a importância da cultura tradicional e popular como parte integrante do patrimônio cultural da cultura vivente" e reconheceram a "extrema fragilidade de certas formas da cultura tradicional e popular e, particularmente, aos aspectos correspondentes às tradições orais e o perigo de que esses aspectos se percam". Também enfatizaram que se trata de uma cultura dinâmica "dado ao seu caráter evolutivo, o que nem sempre permite uma proteção direta", mas que deve ser protegida com eficácia. [52]

Foi recomendado que Estados-membros mantivessem os testemunhos vivos ou passados destas culturas.

A cultura tradicional e popular se traduz em manifestações da criatividade intelectual individual ou coletiva, merece uma proteção análoga à que se outorga às produções intelectuais. Uma proteção dessa índole é indispensável para desenvolver, perpetuar e difundir em maior medida este patrimônio, tanto no país como no estrangeiro, sem atentar contra os interesses legítimos. [53]

De acordo com a Recomendação, não eram apenas os produtos culturais que mereciam a proteção, mas também os produtores e portadores da tradição. Proteger os portadores requeria enfrentar problemas como os de definição da titularidade, da exploração comercial da capacidade criativa, da reparação no caso de apropriação indevida, etc. Por isso não foi feita uma recomendação explícita sobre a proteção aos portadores do conhecimento, e sim às obras. [54]

Declaração Universal sobre Diversidade Cultural – 2001

Em 2001, mais de 10 anos após a publicação das Recomendações para Salvaguarda do Folclore, a UNESCO produziu a Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural. No referido documento a UNESCO apresenta 12 artigos que buscam atentar para o importante papel da diversidade cultural em um mundo globalizado.

No artigo 1º ficou disposto o seguinte entendimento sobre diversidade cultural:

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para o gênero humano como a diversidade biológica para os organismos vivos [...], constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. [55]

Nos seguintes artigos a Declaração expõe a importância da diversidade, no sentido de se assegurar os direitos humanos e culturais, bem como a circulação de bens e mercadorias de cunho diversificado. Assevera que as políticas culturais devem "criar condições propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolverem-se nos planos local e mundial". [56]

Propõe ainda que os Estados "respeitando suas obrigações internacionais" devem "definir sua política cultural e aplicá-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na forma de apoios concretos ou de marcos reguladores apropriados". [57]

Em 2002, tal compreensão foi reafirmada, na Declaração de Istambul pela Terceira Mesa Redonda de Ministros de Cultura. Segundo esse documento, o patrimônio cultural intangível

constitui um conjunto de práticas vivas e constantemente recriadas, conhecimentos e representações, que capacita os indivíduos e comunidades de todos os níveis a expressar sua concepção de mundo através de sistemas de valores e padrões de ética. [58]

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial – 2003

Ambas as Declarações de 2001 e 2002 serviram de base, para no ano de 2003, na 32ª Reunião da UNESCO, realizada em Paris, finalmente ser aprovada uma Convenção sobre o assunto.

A Convenção buscou concretizar medidas "que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão [...] deste patrimônio"." [59]

No seu artigo 2º ficou definido o "Patrimônio Cultural Imaterial" como:

as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. [60]

É especialmente importante o conceito de "Patrimônio Cultural Imaterial", no que concerne à proteção das Expressões Culturais Tradicionais. Tais expressões integram claramente o universo do patrimônio cultural imaterial, conforme demonstra o artigo 2º da Convenção:

O "patrimônio cultural imaterial", conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos:

a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial;

b) expressões artísticas;

c) práticas sociais, rituais e atos festivos;

d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo;

e) técnicas artesanais tradicionais. [61]

Por meio do instrumento ficou estabelecido junto à UNESCO um Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, além de se prever a criação de uma Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, e um Fundo comum, para políticas no sentido de se promover a salvaguarda desse patrimônio.

Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais – 2005

Finalmente, na 33ª Conferência Geral das Nações Unidas, realizada em 2005, foi celebrada a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 485/2006.

A Convenção é o mais importante instrumento acerca da proteção da diversidade cultural, que envolve questões como o amparo das Expressões Culturais Tradicionais.

No artigo 1º são apresentados os seguintes objetivos:

Os objetivos da presente Convenção são:

(a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais;

(b) criar condições para que as culturas floreçam e interajam livremente em benefício mútuo;

(c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz;

(d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos;

(e) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;

(f) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo;

(g) reconhecer natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados;

(h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território;

(i) fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais. [62]

Nos artigos que se seguem buscam-se estimular medidas no sentido de se proteger e promover as expressões culturais, desenvolver a educação e a conscientização públicas, encorajar a participação da sociedade civil, promover a cooperação internacional, entre outras.

Com relação às medidas de proteção e promoção da diversidade cultural, que poderão ser adotadas pelos países em âmbito nacional, estão elencadas no artigo sexto da Convenção:

(a) medidas regulatórias que visem à proteção e promoção da diversidade das expressões cultuais;

(b) medidas que, de maneira apropriada, criem oportunidades às atividades, bens e serviços culturais nacionais – entre o conjunto das atividades, bens e serviços culturais disponíveis no seu território –, para a sua criação, produção, difusão, distribuição e fruição, incluindo disposições relacionadas à língua utilizada nessas atividades, bens e serviços; [...]

(g) medidas para encorajar e apoiar os artistas e todos aqueles envolvidos na criação de expressões culturais; [...] [63]

Nesses três itens, em especial o primeiro, que cita as "medidas regulatórias", podemos vislumbrar um estímulo a medidas como a proteção autoral das ECT’s, que caracteriza sem dúvida um dos seus aspectos mais carentes de amparo legal.

A Convenção se destaca entre as convenções ligadas a questões de patrimônio, na medida em que se concentra na diversidade das expressões culturais postas em circulação e compartilhadas por meio de atividades, bens e serviços culturais. Por isso, ela complementa o conjunto de instrumentos jurídicos desenvolvidos pela UNESCO para promover a diversidade criadora.

No entanto, ainda não se verificou uma menção direta e explícita por parte das Convenções da UNESCO acerca da proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais. Seus dispositivos costumam apresentar menções mais genéricas, que mesmo sendo relevantes nesse processo não trazem a objetividade necessário para essa demanda específica.


5 A PROTEÇÃO NO ÂMBITO DA OMPI

Fundada oficialmente no ano de 1967, mas tendo suas raízes no século XIX, com o United International Bureaux for the Protection of Intellectual Property [64], a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, é desde 1974 a agência especializada da Organização das Nações Unidas – ONU - para assuntos relacionados à Propriedade Intelectual.

Com 184 países membros é o principal fórum mundial para assuntos relacionados aos Direitos Autorais. Inicialmente lideradas pela UNESCO, as discussões acerca da proteção autoral das expressões culturais tradicionais passaram no final do século XX, a ser guiadas por especialistas da OMPI, que atualmente realizam um amplo trabalho no sentido de se promover a proteção legal das ECTs.

As missões internacionais de averiguação

Nos anos de 1998 e 1999 a Organização promoveu uma ampla consulta dos agentes envolvidos com as ECTs, tais como, comunidades tradicionais, povos indígenas, ONGs, representantes governamentais, acadêmicos e membros do setor privado para identificar as necessidades e expectativas dos detentores das expressões culturais tradicionais. Com base nesse trabalho de campo foi preparado um amplo documento que apresenta de modo didático as expectativas desses agentes culturais ao redor do mundo. As missões organizadas pela OMPI foram separadas em: Missões do Pacífico Sul, Missões do Leste e Sul Africanos, Missões do Sul da Ásia, Missões da América do Norte, Missões da América Central, Missões do Leste Africano, Missões aos Países Árabes, Missões da América do Sul (Bolívia), Missões da América do Sul (Peru), Missões dos Paises do Caribe. O referido trabalho, foi publicado no ano de 2001, sob o nome de Intellectual Property Needs and Expectations of Tradicional Knoledge Holdes – WIPO Report on Fact-Finding Missions on Intellectual Property Traditional Knowledge [65] (1998-1999).

No sítio virtual [66] da organização é possível ter acesso à integra do documento, que apresenta as necessidades e expectativas de diversas comunidades tradicionais ao redor do mundo. Referido trabalho serviu como base para os peritos da OMPI iniciarem um amplo projeto de reconhecimento das expressões culturais tradicionais como objetos de proteção nos Direitos de Autor.

A atuação do IGC – elaboração do Projeto de Disposições

No ano de 2001 foi formado, no âmbito da OMPI, o Intergovernmental Committee on Intellectual Property and Genetic Resources, Traditional Knowledge and Folklore, [67] responsável por centralizar as ações relativas à proteção, tanto dos Conhecimentos Tradicionais, quanto das Expressões Culturais Tradicionais.

Esse grupo vem desenvolvendo desde então, em parceria com representantes dos diversos países-membros da OMPI, e organizações como Organização Regional Africana para a Propriedade Intelectual (ARIPO), União Africana (AU), Common Wealth Secretariat (COMSEC), Council of Europe (CE), European Commission (EC); Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), Escritório Europeu de Patentes (EPO), Eurasian Patent Organization (EAPO), International Union for the Protection of New Varieties of Plants (UPOV), South Center, United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), e a Organização Mundial do Comércio (OMC) um estudo profundo acerca da proteção das ECT’s.

Referido trabalho está em andamento desde 2001 e tem como principal objetivo a conclusão de um Projeto de Disposições para uma proteção reforçada tanto dos Conhecimentos Tradicionais, como das Expressões Culturais Tradicionais. Tal Projeto apresenta uma completa legislação para a proteção tanto das Expressões Culturais Tradicionais, quanto dos Conhecimentos Tradicionais, onde se encontram Objetivos, Princípios Gerais Orientadores, além de onze dispositivos já formulados referentes à proteção das Expressões Culturais Tradicionais, e quatorze relativos à proteção dos Conhecimentos Tradicionais.

A primeira versão publicada do Projeto de Disposições foi concluída na Sexta Sessão do IGC, em março de 2004, com base no material desenvolvido na suas cinco sessões anteriores. Então, o Comitê iniciou um processo aberto de discussão acerca do Projeto de Disposições. Durante os meses de novembro de 2004, à fevereiro de 2005, referentes à Sétima e Oitava Sessões do IGC, foi realizada a primeira etapa de discussões. Diversos Estados-Membros, entre os quais o Brasil, comunidades indígenas e grupos tradicionais de variadas regiões do mundo, bem como entidades da sociedade civil, e muitos outros interessados submeteram mais de 200 páginas de comentários acerca do Projeto, que foram analisados pelo IGC e levadas em conta para a publicação de uma versão revisada e atualizada do Projeto de Disposições.

A versão revisada circulou entre os participantes do debate, e acrescentada de alterações levou à publicação da versão mais recente do Projeto, finalizada em Dezembro de 2006, na Décima Sessão do IGC.

A última Sessão do Comitê (décima quarta) foi realizada entre 29 de junho e 3 de julho de 2009, contando com a presença de um grande leque de agentes tais quais representantes de países como Algéria, Argentina, Austrália, Áustria, Azerbaijão, Bangladesh, Bélgica, Bolívia, Bostwana, Brasil, Burundi, Cambodia, Camarões, Canadá, Chile, China, Colômbia, Congo, Republica Checa, Republica Democrática do Congo, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, Djibouti, Equador, Egito, Salvador, Etiópia, Fiji, Finlândia, França, Alemanha, Gana, Grécia, Guatemala, Guiné, Haiti, Hungria, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Irlanda, Israel, Itália, Jamaica, Japão, Jordânia, Kênia, Lesoto, Lituania, Luxemburgo, Malásia, México, Montenegro, Marrocos, Namíbia, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Nicarágua, Niger, Nigéria, Noruega, Oman, Paquistão, Paraguai, Peru, Filipinas, Polônia, Portugal, Coréia do Sul, Romênia, Rússia, Arábia Saudita, Senegal, Sérvia, Cingapura, Eslováquia, África do Sul, Espanha, Sri Lanka, Sudão, Suécia, Suíça, Tailândia, Tunísia, Turquia, Uganda, Grã-Bretanha, Estados Unidos da América, Iemên, Zâmbia, Zimbabwe e a União Européia, além de diversas entidades governamentais e ONG’s internacionais.

Mesmo havendo em andamento um processo internacional de debate acerca do Projeto de Disposições, consta do sítio virtual da OMPI que os princípios e objetivos traçados já estão sendo utilizados em nível regional e federal ao redor do mundo.

O Projeto de Disposições acerca da proteção das Expressões Culturais Tradicionais [68]

O anteprojeto do referido documento faz primeiramente uma série de considerações acerca da necessidade de se criar mecanismos para a proteção das ECT’s, sendo apontado como extremamente relevante o papel da propriedade intelectual nesse sentido.

Com relação à proteção das Expressões Culturais Tradicionais o Projeto de Disposições apresenta 13 Objetivos, 09 Princípios Gerais Orientadores, além de 11 artigos específicos para dar suporte legal à tutela autoral das Expressões do Folclore. Todos devidamente comentados pelo Comitê Intergovernamental.

Objetivos [69]

Nos comentários aos Objetivos apresentados no Projeto o Comitê Intergovernamental (IGC) ressalta-se que a proteção das ECT’s não deve ser tratada como uma finalidade em si mesma, mas sim devem servir como um instrumento para a promoção dos indivíduos e comunidades envolvidos, resguardando os interesses nacionais, regionais e internacionais acerca da diversidade cultural.

Nos treze objetivos elencados apresentam-se questões como o reconhecimento de valor da herança cultural das comunidades tradicionais, a promoção do respeito aos indivíduos membros dessas comunidades, a prevenção contra uma utilização prejudicial das ECT’s, a capacitação dos grupos envolvidos, o apoio à cooperação comunitária e às práticas costumeiras, a contribuição à diversidade cultural, a salvaguarda das culturas tradicionais, entre outros.

Referidos Objetivos poderiam ser utilizados como preâmbulo para as leis nacionais ou outros instrumentos.

Princípios Gerais Orientadores [70]

Em nove "Princípios Gerais Orientadores" o Comitê buscou trazer pontos relevantes a serem levadas em conta na aplicação concreta do uso dos direitos autorais. Tais princípios referem-se a questões como a necessidade de se respeitar as aspirações e expectativas das comunidades, o equilíbrio nas relações entre aqueles que produzem, resguardam e desenvolvem as manifestações e os beneficiários dessas, o respeito aos acordos regionais e internacionais, o principio da compreensão e flexibilidade na aplicação prática da tutela autoral, o princípio do reconhecimento da natureza especifica e da características culturais intrínsecas da expressões, o princípio da complementaridade com a proteção dos conhecimentos tradicionais, o princípio do respeito aos direitos e obrigações da comunidades tradicionais e grupos indígenas, princípio do respeito aos hábitos de transmissão cultural, e, por fim, o princípio da eficiência e acessibilidade às medidas legais de proteção.

Tais pontos são importantes dado o caráter peculiar das expressões culturais tradicionais, que surgem no seio de comunidades e grupos que não estão necessariamente inseridos em um contexto de modernidade, nem tampouco familiarizados com as ferramentas e instrumentos tecnológicos e jurídicos que lhes possibilitariam exercer uma efetiva tutela autoral das suas manifestações.

Disposições Substantivas (artigos) [71]

Em onze artigos o Comitê buscou dar uma expressão legal concreta aos princípios que regem a matéria, sendo o principal foco das discussões acerca do tema.

Segue uma breve apresentação desses dispositivos.

Artigo 1 – O objeto de proteção

No primeiro artigo buscou-se delimitar os termos Expressões Culturais Tradicionais, ou Expressões de Folclore. Ambos são entendidos como sendo intercambiáveis, cabendo aos organismos regionais optar por um ou outro termo. Tais expressões incluem os bens materiais e imateriais em que a cultura tradicional é expressa, comunicada ou manifestada. Três foram os critérios apontados para se caracterizar as ETC’s: devem ser produtos da atividade criativa intelectual, seja essa individual ou coletiva; devem ser característicos da identidade cultural e social de comunidades específicas, e por fim, devem ser desenvolvidos, utilizados ou mantidos pelas comunidades, ou por indivíduos, que de acordo com as práticas costumeiras do grupo, tenham essa responsabilidade.

Artigo 2 – Os beneficiários

Em relação aos beneficiários o artigo segundo dispõe que as medidas de proteção devem ser tomadas em benefício das comunidades tradicionais em que as manifestações são desenvolvidas, em acordo com suas práticas e costumes. Nos comentários indica-se que o termo comunidade (community) é abrangente o suficiente para incluir os indivíduos de todo um país, sendo nesses casos considerado um patrimônio nacional.

Artigo 3 – Atos de apropriação indébita (Escopo da proteção)

Esse artigo atribui três diferentes graus de proteção às ECT’s. Tais graus de proteção iriam variam conforme sejam as expressões registradas, não registradas, ou ainda, de cunho secreto. A proteção estipulada deveria garantir às comunidades que suas manifestações culturais não fossem indevidamente disseminadas, reproduzidas, ou ainda modificadas e distorcidas sem o devido consentimento, garantindo também os direitos de nomeação à autoria, e à retribuição pecuniária pela sua exploração lícita.

Artigo 4 – Gestão de Direitos

O quarto dispositivo diz respeito à gestão dos direitos relativos às expressões tradicionais. As autorizações prévias para exploração das ECT’s, quando necessárias (de acordo com o grau de proteção mencionado no artigo anterior), deverão ser feitas diretamente com as comunidades, ou por agência que atuaria nesse sentido, em nome das comunidades, sendo isso determinado pela legislação de cada país.

Artigo 5 – Exceções e Limitações

As exceções e limitações à proteção autoral são colocadas no sentido de se garantir que as expressões culturais possam continuar se desenvolvendo livremente no âmbito das comunidades; bem como garantir sua utilização a titulo de ensino, pesquisa não comercial e estudo privado, crítica ou análise, exploração pelos meio lícitos, atividades jornalísitcas, gravações para arquivos não comerciais de salvaguarda da herança cultural, e eventuais exceções.

Artigo 6 – Prazo de Proteção

De acordo com esse dispositivo o prazo de proteção das ECT’s deveria durar por quanto tempo elas atendam às condições estabelecidas no artigo primeiro. Havendo ainda termos de proteção específicos para expressões registradas, ou, de cunho secreto.

Artigo 7 – Formalidades

O sétimo artigo garante como princípio geral que a proteção das ECT’s não deve se sujeitar a nenhuma formalidade, sendo, no entanto, o registro, uma ferramenta que traria maior segurança à sua proteção. No caso de registro da expressão os conseqüentes direitos de propriedade industrial pertenceriam à comunidade.

Artigo 8 – Sanções, Recursos e Exercício de Direitos

O dispositivo referente às sanções civis e penais para casos de descumprimento da lei não foi formulado, mas recomenda-se aos países interessados que sejam eficazes no sentido de se garantir o seu estrito cumprimento.

Artigo 9 – Medidas Transitórias

Nesse dispositivo, também não formulado, recomenda-se que sejam adotadas medidas no sentido de se garantir um prazo razoável, bem como o respeito aos direito adquiridos, para o bom cumprimento da lei. Diz respeito especialmente à retroatividade, ou seja, ao caráter ex-tunc, ex-nunc, ou ainda intermediário da lei, não havendo nenhuma disposição sobre qual deve ser o critério adotado.

Artigo 10 – Relação com outras formas de proteção

De acordo com esse artigo a proteção autoral não deverá suplantar as demais medidas de proteção já existentes, tanto de cunho de propriedade intelectual, quanto demais medidas de salvaguarda do patrimônio cultural.

Artigo 11 – Proteção Regional e Internacional

O último dispositivo trata da proteção regional e internacional do folclore. Pelos seus termos está proteção internacional deverá ser alcançada sempre em consonância com o tratamento específico adotado pelos diversos países.

Considerações

A última reunião do Conselho Intergovernamental – IGC (14ª Sessão) se deu entre 29 de junho e 03 de julho de 2009, e contou com três representantes brasileiros, sendo um do Ministério de Relações Exteriores, um do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e um especialista no Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Note-se que o Ministério da Cultura, um dos principais interessados na proteção autoral do folclore, curiosamente não tinha representantes na reunião.

As atas das referidas reuniões do Comitê, bem como o acesso ao Projeto de Disposições comentado podem ser acessado através do sítio virtual da OMPI: www.wipo.int.

Tais artigos apresentam uma boa referência para um projeto de proteção legal, e poderiam ser tidos como base para a elaboração de um projeto de Lei que concretize a proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais.


6 CONCLUSÕES

Verificadas todas essas questões, pertinentes à proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais, chegamos às seguintes conclusões.

O caráter popular das expressões folclóricas, que por sua natureza se desenvolvem alheias aos círculos eruditos e acadêmicos e tem sua proeminência em países subdesenvolvidos, fez com que, ao longo dos anos, essas fossem marginalizadas da proteção autoral.

Com o crescente interesse por expressões e manifestações artísticas que não integram a indústria cultural de massa, característica do processo de globalização, e o reconhecimento da importância da diversidade cultural sob seus diversos aspectos, essas manifestações passaram a entrar nos fóruns de discussão internacional e ter sua proteção reivindicada pelos grupos interessados.

A regulamentação de uma proteção para esse patrimônio imaterial se apresenta como um importante instrumento de desenvolvimento social, especialmente para a promoção de grupos marginalizados e hipossuficientes como as comunidades étnicas e tradicionais.

Nesse sentido, consideramos a proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais como uma necessidade, que além de prevenir a dilaceração e o uso indevido de manifestações do patrimônio imaterial do país servirá como um meio eficaz de geração de renda para diversos setores marginalizados da sociedade brasileira, notadamente os grupos indígenas e quilombolas, e as diversas comunidades tradicionais que tem, na pesca, no artesanato e na agricultura sua principal fonte de subsistência e nas suas manifestações culturais o reconhecimento de sua identidade e a expressão de sua fé.

Deve-se atentar ao fato, no entanto, de que tal regulamentação jamais deverá aparecer como um obstáculo ao desenvolvimento de novas expressões artísticas no país. A justa retribuição aos grupos que desenvolvem e resguardam determinadas tradições não deve tornar-se um óbice de modo a tornar inviável, ou desinteressante a comercialização, readaptação e divulgação do folclore pátrio.

Consideramos que tal proteção autoral deve se limitar a expressões de comunidades específicas, tendo objetos específicos bem determinados e não atingir as diversas manifestações culturais que já circulam livremente pelos quatro cantos do Brasil.

Deve se considerar, ainda, que a salvaguarda das comunidades tradicionais e suas respectivas expressões culturais não se limita à proteção autoral, devendo esse ser mais um instrumento para a sua proteção e promoção.


REFERÊNCIAS

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ZANIRATO, Silvia Helena e RIBEIRO, Wagner Costa. Conhecimento Tradicional e propriedade intelectual nas organizações multilaterais. Disponível em www.scielo.br. Acesso em 28 de agosto de 2009.


Notas

  1. OMPI/UNESCO. Model Provisions for national laws on the protection of expressions of folklore against illicit exploitaitions and other prejudicial actions. 1985. p.3-5. (Disposições-Tipo de Legislação Nacional sobre a Proteção das Expressões de Folclore contra a sua Exploração Ilícita e outras Ações Prejudiciais N.T.) Disponível em www.wipo.int. Acesso em: 26 de agosto de 2009.
  2. OMPI/UNESCO, 1985, op. cit, p. 4.
  3. Ministério da Cultura (MINC). Direito Autoral: conheça e participe dessa discussão sobre a cultura no Brasil. Fórum Nacional de Direito Autoral. Secretaria de Políticas Culturais. Coordenação Geral de Direito Autoral. Brasília. 2007
  4. OMPI/UNESCO. 1985, op. cit, p.3.
  5. Definição retirada do site http://www.brasilia.unesco.org/areas/cultura/. Acesso em 26 de agosto de 2009.
  6. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Editora Forense Universitária. 3ª Ed. São Paulo. 2001. p.3.
  7. Vide capítulo 5 da monografia.
  8. OMPI - Intergovernmental Committee on Intellectual Property and Genetic Resources, Traditional Knowledge and Folklore. The protection of tradicional cultural expressions / expressions of folklore. An overview of the WIPO IGC draft provisions. Genebra. 2001. (A Proteção das Expressões Culturais Tradicionais / Expressões do Folclore – Visão Geral sobre o Projeto de Disposições do Comitê Intergovernamental da OMPI. N.T.) Retirado de http://www.wipo.int/tk/en/ em 26 de agosto de 2009. Nossa Tradução.
  9. BRASIL. Emenda Constitucional N°1, de 17 de outubro de 1969.
  10. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
  11. ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Editora Renovar. 2ª Ed. Rio de Janeiro. 1997. p.6.
  12. Ibid. p.14.
  13. BRASIL. Lei N° 9610 de 19 de fevereiro de 1998.
  14. BITTAR, op. cit, p.19.
  15. Buletin du Droit d’Auteur, XIX. n.2. pg. 49. Apud cit: CHAVES, Antonio. O Criador da Obra Intelectual, Editora LTr, São Paulo, 1995, p.140.
  16. BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. Ed. Fename. 11ª ed. Rio de Janeiro. 1979. Apud. Cit: CHAVES, op. cit, p. 139.
  17. Ver Capítulo 4 da monografia.
  18. OMPI/UNESCO, 1985, op. cit, p.9. Tradução Nossa. Disponível em www.wipo.ont. Último Acesso em: 28 de agosto de 2009.
  19. BITTAR, op. cit, p.32.
  20. CHAVES, Antonio. O Criador da Obra Intelectual. Editora LTr. São Paulo. 1995. p.80.
  21. CHAVES, op. cit, p.197.
  22. Apud: CHAVES, op. cit, p.198.
  23. BITTAR, op. cit, p.34. Grifo nosso.
  24. BRASIL. Lei N° 9610 de 19 de fevereiro de 1998.
  25. Apud: CHAVES, op. cit, p. 142 e 143.
  26. ASCENSÃO, op.cit, p.54. Grifo nosso.
  27. BRASIL. Lei 5988 de 14 de dezembro de 1973.
  28. BRASIL. Lei N° 9610 de 19 de fevereiro de 1998. Grifo Nosso.
  29. CABRAL, Plínio. A nova lei dos direitos autorais (comentários). Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998, p.117-118.
  30. Apud: CHAVES, op. cit, p.156.
  31. OMPI/UNESCO. 1985. op. cit, p.3. Grifo nosso.
  32. CHAVES, op. cit, p.147. Grifo nosso.
  33. OMPI. 2001. Op. cit. p.1. Tradução Nossa.
  34. WIPO. 2001. Op. cit. p.1.
  35. UNESCO. Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade Cultural. Genebra. 2005. Ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Lei 485/2006. Disponível em www.brasilia.unesco.org. Último acesso em: 28 de agosto de 2009.
  36. ANDRADE, Mário de. Diário Nacional. Coluna "Arte". 24 fev. 1928
  37. Apud: CHAVES. Op. cit. p.150.
  38. Apud: CHAVES. Op. cit. p.149.
  39. Ibid. p.151.
  40. Ibid. p.154.
  41. Apud: CHAVES. Op. cit. p.155.
  42. OMPI/UNESCO. 1985. op. cit. p.3.
  43. ASCENSÃO, op. cit, p.54.
  44. Revista Interamericana de Propriedade Intelectual – RIDI, vol I, n 1. Apud: CHAVES. Op.cit, p. 158.
  45. OMPI/UNESCO. 1985. op.cit. p.3-4.
  46. OMPI/UNESCO. 1985. op.cit. Disposições-Tipo de Legislação Nacional sobre a Proteção das Expressões de Folclore contra a sua Exploração Ilícita e outras Ações Prejudiciais. P.4. Disponível em www.wipo.int. Último acesso em: 28 de agosto de 2009. Nossa Tradução.
  47. Ibid. p.9.
  48. OMPI/UNESCO. 1985. op.cit. p.9-10.
  49. Ibid. p.10.
  50. Ibid. p.10.
  51. Apud: CHAVES, op. cit, p.160.
  52. UNESCO. Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore – 1989. Citações das pgs. 2-3-4. Disponível em www.brasilia.unesco.org. Último acesso em 28 de agosto de 2009.
  53. Ibid. p.2.
  54. ZANIRATO, Silvia Helena e RIBEIRO, Wagner Costa. Conhecimento Tradicional e propriedade intelectual nas organizações multilaterais. Disponível em www.scielo.br, Acesso em: 28 de agosto de 2009.
  55. UNESCO. Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. Paris. 2001. p.3.
  56. Ibid. p.5.
  57. Ibid. p.6.
  58. Apud: ZANIRATO, Silvia Helena e RIBEIRO, Wagner Costa. Conhecimento Tradicional e propriedade intelectual nas organizações multilaterais. Artigo retirado de www.scielo.br em 28 de agosto de 2009.
  59. UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. 2003. p. 3. Promulgada pelo Decreto 5.753/2006
  60. Ibid. p.4.
  61. UNESCO. 2003. op.cit. p.5.
  62. UNESCO. Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais – 2005. p. 1.
  63. Ibid. p.3.
  64. Escritório Internacional para a Proteção da Propriedade Intelectual. T.N.
  65. Necessidades e Expectativas dos Detentores de Conhecimentos Tradicionais – Relatório da OMPI das Missões de Averiguação de Conhecimentos Tradicionais em Propriedade Intelectual (1998-1999). Disponível em www.wipo.int.
  66. Disponível em: http://www.wipo.int/export/sites/www/tk/en/tk/ffm/report/final/pdf/part1.pdf.
  67. Comitê Intergovernamental de Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais, e Folclore. N.T.
  68. WIPO. Draf Provisions for the protections of Tradicional Cultural Expressions / Expressions of Folklore. Intergovernmental Committee – IGC. Genebra. 2006. Disponivel em www.wipo.int.
  69. Ibid. p.1.
  70. WIPO. 2006. op. Cit. General Guiding Principles. p.1.
  71. WIPO. 2006. op. Cit. Substantive Principles. p.1.


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMIDE, Felipe Junqueira. A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2894, 4 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19271. Acesso em: 29 mar. 2024.