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Reflexões sobre constitucionalidade da prisão cautelar como instrumento de defesa social

Reflexões sobre constitucionalidade da prisão cautelar como instrumento de defesa social

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1. Introdução

A consagração de um Estado Democrático de Direito passa fundamentalmente pela efetividade dos instrumentos garantidores dos direito fundamentais, em especial no que se refere ao direito de liberdade.

Hodiernamente, com mais de 20 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, o vigente Código de Processo Penal enfrenta reformas pontuais, a exemplo daquela imposta pela Lei 11.719/2008, onde a observância ao sistema acusatório, já preconizado pela Carta de 1988, veio a lume.

Pode-se afirmar que, sem qualquer restrição, o sistema processual penal vigente em nosso Estado é eminentemente garantista, como se afere da leitura dos incisos LIV e LVII, do artigo 5º da CF/88. Em que pese a importância do irrestrito respeito aos direitos fundamentais, a leitura crua do texto constitucional, ignorando outras garantias, como o que se refere a segurança pública e o bem estar social, vem fazendo com que a coletividade sinta-se refém em relação ao criminosos e desprestigiando de forma expressiva as instituições que foram incumbidas de garantir, em especial, a segurança do cidadão.

Frente a este cenário, queremos discutir a aplicação das prisões cautelares, sua validade frente ao sistema garantista e a necessidade de sua utilização como instrumento de defesa do corpo social.


2. Visão geral sobre as prisões cautelares

A imposição da segregação do indivíduo antes do trânsito em julgado é medida excepcional no processo penal pátrio, sendo que as hipóteses permissivas, limitadoras do direito de liberdade, devem estar previstas em lei. Sua utilização somente pode ser tida como regular quando devidamente fundamentada.

Apesar do objeto deste estudo não passar pela análise minuciosa de cada uma das espécies de prisão cautelar, temos que para compreensão do tema, necessário se faz uma explanação geral sobre a matéria.

Inicialmente, cabe tecer alguns comentários sobre a modalidade mais comum, mas não menos complexa, de prisão cautelar: a prisão em flagrante.

Em que pese a manifestação de alguns doutrinadores, de que a prisão em flagrante não seria espécie de segregação cautelar [01], não vemos como alocar tal modalidade de prisão de outra forma. Uma vez que, como todas as demais, esta possui uma função instrumental, ou seja, não traz consigo os objetivos da segregação imposta por uma sentença transitada em julgado, tema que é objeto do direito material, mas especificamente da teoria da pena.

Com efeito, a celeuma em torno da natureza da prisão em flagrante tem feito com que tribunais - e parte da doutrina - entendam que uma fez efetuada a prisão em flagrante, seja a mesma transformada imediatamente em prisão preventiva, se presentes os requisitos do artigo 312 do CPP ou, inexistentes estes, que o indivíduo seja posto em liberdade.

Não restam dúvidas de que, reconhecida a índole garantista do nosso sistema processual, tal rito procedimental é louvável, mas entanto, por vezes, contrário aos interesses da coletividade.

A prisão em flagrante tem como objetivo precípuo fazer cessar a atuação delitiva, impedindo que a ofensa ao bem jurídico não se consume ou, se consumada, que seus efeitos maléficos sejam menos sentidos [02]. Sendo assim, essa modalidade de prisão tem características eminentemente acautelatórias, pois garante ao processo penal resultados mais positivos, impondo ao autor do fato a penalidade prevista em lei, e garantindo a vítima uma menor ofensa ao bem jurídico protegido pela norma.

O fato de tal prisão não ser imposta por autoridade judicial não tem influência na natureza da medida. Existem várias medidas na legislação vigente que, sem ofensa à Constituição, permitem até mesmo ao particular agir sem amparo de ordem judicial.

Outra modalidade de prisão cautelar, hodiernamente menos utilizada, é denominada prisão temporária, prevista pela Lei 7.960/1989.

Tal modalidade de prisão tem função eminentemente instrumental do inquérito policial, servindo obviamente para a composição de elementos suficientes ao oferecimento da ação penal pelo Ministério Público.

Ao contrário da prisão preventiva, possui prazo certo, que varia de 5 a 30 dias, no caso de crime considerado hediondo (Lei 8.072/90).

Com a entrada em vigor das Leis 11.689 e 11.719, ambas de 2008, as prisões cautelares derivadas da decisão de pronúncia e de sentença penal recorrível deixaram de existir, restando discorrer sobre a prisão preventiva.

A modalidade de prisão denominada preventiva é o mais importante instrumento de efetividade do processo penal previsto em nosso ordenamento. Apesar de fortemente criticada por parte da doutrina, principalmente pelos conceitos jurídicos vagos que delimitam sua aplicação no rol previsto no artigo 312 do CPP, a prisão preventiva aparece como única solução de efetividade e Justiça rápida para um Poder Judiciário que não consegue responder aos anseios da sociedade.

Segundo o Código de Processo Penal, a prisão preventiva poderá, havendo prova da existência de crime e indícios suficiente de autoria, ser decretada:

- para garantia da ordem pública;

- para garantia da ordem econômica;

- por conveniência da instrução criminal;

- para assegurar a aplicação da lei penal.


3. A presunção de inocência e a prisão cautelar

A maior crítica formulada em face do aprisionamento cautelar do indivíduo tem fundamento na garantia de presunção de inocência, assim como na necessidade de estrita observância ao devido processo legal.

Necessário reconhecer que tais postulados são de importância fundamental para o reconhecimento de um efetivo Estado Democrático de Direito, ainda mais quando o legislador constituinte trabalhou para erradicar os abusos e desmandos que marcaram os anos de ditadura militar, quando a segregação do indivíduo era medida corriqueira.

Sem embargo, os direitos fundamentais erigidos pela Carta de 1988 não podem ser admitidos como algo de absoluto, sob pena de servir ao individuo como instrumento de impunidade e sacrifício de outros valores consagrados pela coletividade.

Por obvio que não queremos utilizar outro conceito jurídico de razoável imprecisão, como o interesse público/coletivo, como fundamento para prisão cautelar deste ou daquele indivíduo. Porém, também não podemos reconhecer como admissível, manter a liberdade de eventual criminoso que, autor inconteste de determinado ilícito, permaneça no convívio social como se contra ele não pesasse qualquer acusação.

A garantia da ordem pública parece ser o elemento de menor delineação previsto pelo artigo 312 do CPP, situação que gera insegurança e permite aos tribunais alargar ou diminuir a sua incidência, ao vento dos fatos que lhe são trazidos.

Com efeito, devido a uma grande pressão popular, o conceito tem sido interpretado de forma extensiva, buscando dar ao cidadão uma sensação de segurança, impondo, por outro lado, uma agressão violenta aos direito fundamentais do suposto infrator.

Em um momento inicial, restou consagrado o entendimento de que a possibilidade de reiteração da atividade criminosa estaria englobada pelo conceito ordem pública, situação em que a decretação da prisão cautelar encontraria amparo na norma do artigo 312 do CPP. A referida interpretação parece perfeitamente alinhada ao conceito de manutenção da ordem pública, no entanto, ainda se faz necessário esclarecer quais tipos de delitos merecem a imposição de prisão cautelar, pois, no caso de pequenos delitos, a segregação sem decisão transitada em julgado, pode antecipar pena de reclusão que jamais poderá ser imposta, por simples obediência ao princípio da individualização da pena. Claro que em relação aos delitos mais graves (e/ou hediondos) o encarceramento preventivo pode ser imposto com base no requisito de manutenção da ordem pública.

Por outro lado, a segregação cautelar fundada na necessidade de garantir a confiança [03] no Poder Judiciário, bem como nas demais instituições que foram incumbidas de manter a ordem e o respeito à lei, parece de duvidosa eficácia (e constitucionalidade). A opção por tal fundamento pode a longo prazo criar maior insegurança e desconfiança nas instituições, pois em caso de prisão cautelar por longo período, em que o acusado venha a ser inocentado por prova irrefutável, restará materializada expressiva violação aos direitos fundamentais do indivíduo, tornando ilegítima a atuação até então avalizada por parte da coletividade.

Ademais, a confiança depositada no Poder Judiciário ou no Ministério Público, por exemplo, deve ser obtida com base em fatos comprovados, lembrando-se sempre que os fins não podem justificar os meios, em especial no caso de um processo penal garantista (due process of law).

Sem embargo, a utilização de medidas extremas no processo penal é reflexo da inoperância do Estado, refém de seu despreparo e desinteresse no zelo pela segurança do cidadão. Essa situação obriga os operadores do Direito a alterarem a natureza de alguns institutos que foram concebidos para fins diversos, como o caso da prisão preventiva, que de instrumento concebido para garantir o acautelamento do processo, passou a ser utilizado como instrumento de defesa social, frente aos índices alarmantes de violência.

Salvo raras exceções, como em crimes de natureza hedionda e nos que a prova apurada durante a instrução criminal é robusta, tanto em relação a materialidade delitiva, quando em relação a autoria, não podemos conceber a prisão cautelar. Ou seja, salvo em casos que deveriam ser previstos pelo legislador ordinário – como exceções ao texto constitucional -, mas não o foram, a segregação cautelar deve ser tida como inadmissível, pois jamais fora concebida como instrumento de repressão ao crime [04], ou de defesa social [05], objetivos que somente serão alcançados com políticas públicas voltadas para tal finalidade.

Frente a este quadro, a análise do cabimento da prisão cautelar passa necessariamente pela gravidade do delito praticado no caso concreto, e não simplesmente pela necessidade de instrumentalizar o processo. Isso significa que simples delitos contra o patrimônio, por exemplo, não pode representar exceção a regra de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença. A segregação cautelar nessas hipóteses representaria apoio irrestrito à omissão estatal.


4. Conclusões

Diante de todo o exposto podemos concluir que:

a) Todas as modalidades de prisão cautelares são medidas de utilização excepcional, sendo regra a liberdade antes do trânsito em julgado da decisão condenatório, exigindo-se do Poder Judiciário robusta fundamentação para segregação do indivíduo.

b) A segregação cautelar do indivíduo, em regra, tem como objetivo instrumentalizar o processo, garantindo aplicação da lei e de uma sanção compatível com a infração penal praticada.

c) A prisão cautelar não foi concebida como instrumento de segurança pública, não cabendo ao Poder Judiciário adotar medidas que tenham como objetivo sanar as deficiências estatais nesta seara. A confiança nas instituições é resultado natural de políticas públicas sérias e planejadas.

d) Excepcionalmente, a prisão cautelar pode ser utilizada como instrumento de defesa dos interesses sociais, entendida aqui como o afastamento do elemento agressor do seio social, sempre observando a gravidade do delito praticado no caso concreto e os indicativos do constituinte, a exemplo dos delitos de natureza hedionda.


Notas

  1. "(...)toda prisão anterior ao trânsito em julgado deve ser também ser considerada um prisão cautelar. Cautelar no que se refere à sua função de instrumentalidade, de acautelamento de determinados e específicos interesses de ordem pública. Assim,a prisão que não decorra de sentença passada em julgado será, sempre, cautelar e também provisória." (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal. 10ª. Lumen:Rio de Janeiro. 2008, p. 415.)
  2. Sempre oportuno transcrever os ensinamento do mestre Paulo Rangel, que leciona: "A regra é a liberdade, a prisão é a exceção. Assim, esta somente se justifica com o objetivo de se restabelecer a ordem jurídica que foi violada com o comportamento nocivo do autor do fato. Trata-se de um mal necessário, que tem como escopo atender ao interesse público. (...) A prisão em flagrante tem como fundamentos: evitar a fuga do autor do fato; resguardar a sociedade, dando-lhe confiança na lei; servir de exemplo para aqueles que desafiam a ordem jurídica e acautelar as provas que, eventualmente, serão colhidas no curso do inquérito policial ou na instrução criminal, quer quanto à materialidade, que quanto à autoria." (RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro:Lumen, 2010, p. 740)
  3. "A preservação da ordem pública não se restringe às medidas preventivas da interrupção de conflitos e tumultos, mas abrange também a promoção daquelas providências de resguardo à integridade das instituições, à sua credibilidade social e ao aumento da confiança da população nos mecanismos oficiais de repressão às diversas formas de delinqüência." (STJ. HC 106671/SP. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO. 5ª Turma. DJe 02/03/2009)
  4. Em sentido contrário ao nosso entendimento: "Como se verifica, a segurança pública não deve ser confundida com atividade policial. Embora haja uma relação dos órgãos incumbidos constitucionalmente da missão de velar pela segurança da sociedade, o texto constitucional inaugurou um novo conceito – o conceito democrático, onde a responsabilidade passa a ser difundida por todos os órgãos estatais e segmentos da sociedade. Daí a possibilidade de se admitir a tese de que o Judiciário também é co-responsável pela segurança pública. O Judiciário exerce esta participação mormente quando, a partir de um processo regular, aplica a sanção e exerce o controle jurisdicional da sua execução; e, eventualmente, quando atua na determinação de uma prisão provisória que não atenda aos fins do processo, como é hipótese da prisão preventiva para a garantia da ordem pública. A questão não é só jurídica, é social. Há necessidade de dotar o poder público de instrumentos capazes de coibir atos nocivos à sociedade, que não se amoldam à hipótese de flagrante delito ou da prisão preventiva tipicamente cautelar (por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal)". (SOUZA, Marcelo Ferreira de. Segurança pública e prisão preventiva no Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 159/160.)
  5. "À ordem pública relacionam-se normalmente todas as finalidades da prisão processual que constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de defesa social." (STF, HC 93.972/MS, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, j. 20/05/2008, DJe 13-06-2008).

Autor

  • João Edson de Souza

    João Edson de Souza

    Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pelotas/RS. Pós graduado "latu sensu" pela Universidade Independente de Lisboa, foi aluno da Escola Superior do Ministério Público do RS. Exerceu a Advocacia Privada e a Defensoria Pública. Atualmente é Promotor de Justiça e Professor.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, João Edson de. Reflexões sobre constitucionalidade da prisão cautelar como instrumento de defesa social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2928, 8 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19503. Acesso em: 28 mar. 2024.