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Sucessão do concebido após a morte do pai

Sucessão do concebido após a morte do pai

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Os progressos alcançados pela medicina e pela biotecnologia têm deixado os juristas atônitos. É bem verdade que nossa sistemática normativa civil, demasiada arcaica, deixa muito a desejar, não oferecendo parâmetros para uma solução justa dos problemas que fatalmente surgirão com a clonagem, plantas transgênicas, barrigas de aluguel etc. São hipóteses que não encontram disciplinação jurídica adequada – talvez inexistente – mas como o fato social começa a surgir, pesquisas e estudos na seara do direito de a muito se fazem necessários.

O tema a qual pretendemos discorrer é de certa forma possível de efetivação. Trata-se da hipótese em que um homem sofre terrível acidente ou está mortalmente enfermo, pedindo sua mulher que lhe retirem sêmen, e, antes ou após a morte, é inseminada, restando, ao final, à espera de rebento.

Sem necessidade de análises profundas, de plano constatamos como são insatisfatórias nossas regras sobre sucessões para solucionarem com justiça referido caso. Quem fica com a herança? O futuro filho? Ou seria mais justo os ascendente do de cujus? São estas as perguntas que tentaremos adiante responder.

A questão deve ser analisada sob duas óticas, consoante se dê a inseminação (e conseqüente concepção) antes ou após a morte do que deixa a sucessão.


1. DA CONCEPÇÃO ANTES DA ABERTURA DA SUCESSÃO

Refletindo sobre o tema, acontecendo a concepção antes da abertura da sucessão, encontramos, para o presente caso, as seguintes soluções, conforme esteja a genitora de boa ou má-fé:

A MÁ-FÉ

Preliminarmente urge perquirirmos da hipótese em que a futura mãe age com deliberada de má-fé. Citamos exemplo: uma mulher é casada pelo regime da separação e, não querendo perder os luxos e volúpias que lhe proporcionam os bens do marido, este na iminência de falecer, se faz inseminada, engravidando-se, prejudicando dolosamente as expectativas hereditárias dos ascendente do de cujus (que afastados estariam da sucessão, ex vi do art. 1603, Código Civil).

No exemplo acima, flagrante a má-fé da futura genitora, que poderia, segundo nosso direito, inclusive ingressar com uma cautelar de posse em nome de nascituro (CPC, art. 877 e 878) e, posteriormente, com o nascimento, teria o usufruto legal dos bens da criança (CC, art. 389).

Vislumbramos três soluções possíveis na ocorrência de má-fé:

A) solução biológica, assim por nós denominada porque leva em consideração aspectos puramente biológicos. Tem como fundamento questão sangüínea: a criança que nascerá é filha do falecido, logo deve herdar;

B) solução punitiva da má fé, consiste basicamente na negativa de qualquer direito sucessório à futura criança, devendo a sucessão dar-se nas pessoas dos ascendente do de cujus, tudo isso em desprezo à conduta ardilosa da futura mãe;

C) solução mista, em que dar-se-ia todos os direito à criança, mas o usufruto de seus bens ficaria, enquanto não alcançasse a capacidade, não com a mãe, porém com os ascendente do morto.

DAS VANTAGENS E DESVANTAGENS DE CADA SOLUÇÃO, BEM COMO QUAL A MAIS CONSENTÂNEA COM A IDÉIA DE JUSTIÇA.

Ao adotarmos a solução biológica, posição que decorreria da aplicação pura e simples dos atuais dispositivos da lei civil, estaríamos fazendo justiça no sentido de o filho não poder ser culpado pelos atos da mãe. Além do mais, o direito de herdar é oriundo da própria personalidade e existe pelo simples fato do herdeiro ser pessoa humana, filho de mulher. Contudo duas injustiças seriam praticadas: (1) a má-fé da genitora foi privilegiada, alcançando ela todos os seus desideratos; (2) as expectativas sucessórias dos ascendentes foram lesadas, pois a conduta ardilosa tirou-lhes a herança. Vale lembrar que esta é a resolução do problema se nos atermos às letras frias da lei brasileira.

A solução punitiva da má-fé, negando qualquer direito à criança, teria as seguintes vantagens: (1) punir-se-ia a má-fé, não alcançando a genitora resultado algum com seu ato; (2) os ascendentes teriam pleno direito de herdar, que restou intacto da conduta reprovável. Todavia, traria enorme desvantagem ao menor. Vale lembrar que a solução da questão pela adoção desta hipótese já não tem base legal, contudo acreditamos ser melhor que a anterior.

Como já dissemos, os pontos de vista acima expostos não são satisfatórios. O primeiro por dar azo à má-fé, o segundo por excluir o menor da sucessão, direito da personalidade, e que por isso não pode estar condicionado a esta ou aquela conduta de seus genitores.

Face então à flagrante injustiça que a adoção irrestrita de qualquer destas posições acarreta, terminamos por "criar" uma terceira, a que demominamos mista. Certo não possuir ela a mínima base legal, porém vem alicerçada nos sólidos pilares da justiça. Como já falamos, nesta posição o menor herda, mas o usufruto de seus bens fica com os ascendentes do falecido até que adquira capacidade. Possui as seguintes vantagens: (1) não nega direitos sucessórios ao menor; (2) pune a má-fé da genitora, tendo esta nada lucrado; (3) dá consolo aos ascendentes, pois se despojados de uma herança, têm suas dores amenizadas com o usufruto por tempo relativamente grande dos mesmos bens.

Vê-se claramente a superioridade, sob o aspecto da eqüidade, da adoção da terceira posição.

A BOA-FÉ

Poderiamos também pensar em boa-fé. Existiria v.g., quando a mulher amava profundamente o marido, não se importando com as coisas materiais que perdeu com sua morte, querendo apenas um filho do ente querido para amenizar-lhe a dor.

Neste caso, cremos poder a boa-fé fazer surgir alguns efeitos jurícos em relação à mãe. Todavia, analizando perfunctoriamente o tema, acreditamos ser a má-fé uma situação fática sempre incostestável, ou seja, ainda que haja a mais imaculada boa-fé, o ato lesou terceiros, e por isso mesmo não pode ser acolhido.

Mutatis mutandi é o que acontece com a fraude contra credores (CC art. 106 a 113) onde os atos de transmissão gratuita de bens e mesmo os onerosos que reduzem o devedor à insolvência, ou são realizados quando já o era, são passíveis de anulação pelos credores quirografários. Na conceituação de concilium fraudis não tem relevância o animus nocendi,o propósito deliberado de prejudicar credores. A fraude pode existir sem ser premeditada. O que se exige é a demostração do eventus damni, pouco importando tenha o devedor agido de boa-fé ou má-fé.

Assim torna-se, para efeitos sucessórios, totalmente irrelevante o elemento psicológico motivador da conduta materna, devendo, em qualquer caso, ser adotada a solução mista, conforme já expusemos acima.

MORTE DA CRIANÇA ANTES DA CAPACIDADE – RELEVÂNCIA DA BOA-FÉ

Temos a boa-fé como relevante apenas quando ocorrece a morte da criança antes da capacidade plena e conseqüente unificação, em suas mãos, de todo o direito de propriedade.

Ao adotarmos a solução mista surgiria um inconveniente quando morrece precocemente a criança. A mãe de má-fé adquiriria pela sucessão as propriedades do filho, oriundas do pai, e como ela é plenamente capaz, o usufruto legal não mais poderia pernanecer com os ascendentes do falecido, devendo a propriedade ser unificada em suas mãos. Isso poderia inclusive incentivar infanticídios (o termo aquí não é empregado em sentido jurídico-penal, mas vulgar).

A solução pensada foi alterar, para este caso específico, quando agisse a mãe de má-fé e seu filho morrece antes de alcançar a maioridade, a linha de sucessão estabelecida pelos incs. I e II do art. 1.603 do CC: descendentes - ascendentes. Ficaria da seguinte forma: descendentes - ascendentes paternos. Portanto, no caso em questão, quem herdaria não seria a mãe (ascendente materna), porém os ascendentes do de cujus, medida de extrema justiça, pois refuta e expurga do direito vileidades e ardís.

Contudo, se estava a mãe de boa-fé, convém dar a ela a herança. Perder o marido, perder o filho e ainda não possuir direito algum aos bens é extremo castigo para quem já muito sofreu.

Desta forma, a boa-fé materna é relevante apenas quando há morte da criança antes do alcance da capacidade plena.

Convém lembra que a sucessão pela morte do herdeiro após a unificação do direito de propriedade (quando o menor alcançar a maioridade) se dará da forma normal prevista: descendentes – ascendentes – conjuge sobrevivente – colaterais – Estado.

Esclarece-se ainda, como a personalidade júridica começa do nascimento com vida (CC. art. 4º), que os casos dos natimortos não oferecem problema algum, sendo resolvidos pelas normas hoje vigentes sobre sucessões.


2. DA CONCEPÇÃO APÓS A ABERTURA DA SUCESSÃO

Questão também pertinente e que merece análise é a da ocorrência da concepção após a abertura da sucessão, ou seja, após a morte do que deixa a herança.

Aqui, as controvérsias avolumam-se. O primeiro ponto é saber, segundo a nossa vigente sistemática legal, com quem ficará a herança. Temos duas posições, uma admitindo seja a herança do descendente e a outra admitindo seja dos ascendentes.

Segundo a primeira posição, estando o art. 1.603 do CC a deferir, em primeiro lugar, a herança aos descendente, dúvidas não restam que deve ser herdeiro o concebido, pois este é filho do de cujos. No presente caso, se já aberto o processo de inventário, a mãe poderia e deveria habilitar o concebido, habilitação esta que deferida (e condicionada ao nascimento com vida), excluiria da sucessão os ascendentes.

Admitir-se-ia inclusive que, transitando em julgado a partilha outorgativa de herança aos ascendentes, pudesse o filho do de cujos manejar uma ação petitória de herança, ação de inescondível caráter reivindicatório(1).

O caso guardaria analogia com o do herdeiro que todos supõem inexistente e que após a partilha é descoberto, podendo ingressar com a reivindicatória para salvaguarda de seus direitos hereditários.

A segunda solução, a qual acreditamos ser a adotada pelo nosso código, consiste, no caso sub judice, em deferir-se a herança aos ascendentes do de cujos, e não ao seu filho.

Em verdade, consoante norma do art. 1.572 do CC, a sucessão se dá no momento exato da morte, de forma que, inexistindo descendentes, toda a herança passa automaticamente ao domínio dos ascendentes. Aqui, a regra incidente é a do art. 1.603, II, CC, que estabelece a sucessão dos ascendentes, mesmo porque, quando aberta a sucessão, não há no mundo fático qualquer descendente para quem a herança possa ser entregue.

O caso, portanto, embora parecido, não é semelhante ao do herdeiro que supõe-se seja inexistente. Ali, quando aberta a sucessão (art. 1.572, CC), incide a norma do art. 1.603, I, CC, (a sucessão é dada ao descendentes) sendo que, em verdade, o desconhecimento apenas conduz á inaplicabilidade da norma que realmente incidiu, ou seja, a que estabelece a sucessão dos descendentes.

Portanto, forçoso é reconhecer não dar guarida o nosso ordenamento jurídico a qualquer direito hereditário quando a concepção efetiva-se pos mortem, o que parece-nos medida de extrema injustiça.

O ideal do ponto de vista da justiça, embora contrarie o sistema positivo, é o deferimento da herança ao filho do falecido, e não aos seus ascendentes. Em verdade, observando-se a questão com os olhos da eqüidade, deixando-se de lado os aspecto jurídicos que o tema incita, dessume-se que nenhuma diferença pode existir no reconhecimento de direitos sucessórios ao concebido, quer a concepção se dê antes ou após a morte do pai biológico. Lógico, assim, que a herança seja dada a ele, adotando-se, em qualquer hipótese, a solução mista, anteriormente já explanada.


3. CONCLUSÃO

Quando criou-se a lei, nem sequer cogitava-se das hipóteses das quais ora tratamos, não podendo o legislador, em exercício de futurologia impressionante, adiantar-se quase um século no porvir e regular fatos ainda hoje difíceis de acontecimento.

Por outro lado, a tentativa de aplicação das soluções aqui explanadas, nem mesmo dentro de uma elocubração cerebrina de néscio seria possível, tão dispare o sistema legal vigente com as idéias propostas.

Tratam-se apenas de idéias que, nos devidos lindes de sua modéstia, tentam dar contribuir para a criação de uma talvez provável lei, ainda que possam estar completamente erradas ou existirem outras muito melhores. O importante é a dialética sempre presente nas questões jurídicas de um Estado Democrático de Direito. Além do mais, quem sabe, de lege ferenda, não ser esta a posição do legislador do século XXI?


NOTA

1.- Insta observar que, tendo participando o concebido do processo de inventário e sendo-lhe negado a herança, v.g. quando injustamente dela excluído, deve propor ação rescisória da partilha, com fundamento nos art. 1.805, CC e 1.030 CPC, pois fora preterido quem era herdeiro.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES FILHO, Anastácio Lima de. Sucessão do concebido após a morte do pai. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1975. Acesso em: 28 mar. 2024.