Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/19766
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Algumas linhas sobre o iluminismo sociológico de Niklas Luhmann e o Direito

Algumas linhas sobre o iluminismo sociológico de Niklas Luhmann e o Direito

Publicado em . Elaborado em .

Luhmann afirma ser o sistema jurídico composto pela legislação e pela jurisdição. Como a sociedade sofreu o processo de diferenciação funcional, o Direito também passou por fases, acompanhando o aumento da complexidade social.

Niklas Luhmann desenvolveu uma nova teoria sociológica. Para ele, a sociologia tradicional não seria suficiente para abarcar a complexidade da sociedade, haja vista se basear na teoria dos fatores. Essa interpretação causal reduziria a complexidade existente, não sendo capaz de analisá-la em maior profundidade e, por conseguinte, na sua verdadeira essência. Em sua concepção, era necessário mudar as bases sobre as quais se erigiam os estudos sociológicos, ultrapassando a teoria dos fatores pela teoria dos sistemas. Essa teoria não é somente utilizada para o entendimento da sociedade como um todo, mas também para o estudo do direito. Como será adiante visto, o autor afirma ser o sistema jurídico composto pela legislação e pela jurisdição. Contudo, nem sempre ele foi assim formatado. Como a sociedade sofreu o processo de diferenciação funcional, o direito também passou por fases, acompanhando o aumento da complexidade social. Disso Luhmann concluiu que primeiramente houve o direito das sociedades arcaicas, o direito das sociedades antigas e o direito da sociedade moderna atual. Entretanto, para a melhor compreensão desse método sociológico empregado na análise do âmbito jurídico, fazem-se necessárias algumas linhas acerca do Iluminismo Sociológico de Luhmann.


1) O Iluminismo Sociológico

Luhmann, para o estudo da sociologia, descartou a tradicional teoria dos fatores. Por meio dela, o entendimento se daria pela análise da sociedade considerando-a um todo que poderia ser decomposto em partes. Dessa forma, esse estudo basear-se-ia em cada parte para, depois, formar o todo. Essa análise, no entanto, não era suficiente para Luhmann. Em sua visão, a sociedade seria muito complexa para entendê-la por meio desse conjunto todo-partes. Para tanto, o sociólogo abandona a teoria dos fatores e emprega a teoria dos sistemas e, consequentemente, a teoria da sociedade moderna. Essa teoria não se baseia na ideia da decomposição da sociedade em partes, mas sim, na ideia de diferença, existente entre os sistemas e o ambiente. Por isso, Luhmann não trabalha com o conceito de uma sociedade teleológica, que tem um fim a ser alcançado, como a paz, o consenso, o progresso. Para ele, o sistema social é muito complexo para ser reduzido a um objetivo. Esse é o Iluminismo Sociológico luhmanniano, o qual estabelece novas bases para o estudo da sociologia e que deve envolver a análise dos meios pelos quais se tenta reduzir a complexidade do mundo, como forma de melhor compreendê-lo.

A sua teoria se fixa basicamente em dois conceitos: complexidade e contingência:

"Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (...) não mais está lá. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos." [01]

Com esses conceitos, percebe-se que a ideia de progresso não está vinculada à melhoria da sociedade, mas sim, a uma forma mais apropriada para lidar com a complexidade.

A complexidade ainda abarca outros aspectos até então desprezados pelas teoria tradicionais: a congruência e a latência. Pelo primeiro entende-se que a sociedade não pode ser analisada de forma causal, superando a ideia de que a sociologia é uma filosofia prática. Já com relação à latência, destaca Luhmann que o estudo da sociedade não pode levar em conta apenas os aspectos conscientes e racionais da ação humana, pois as ações vão além disso. Elas englobam também aspectos irracionais e inconscientes. Essa conclusão foi feita com base nas pesquisas freudianas que constataram que muitos eventos sociais acontecem independentemente da consciência dos indivíduos, tornando a sociedade algo muito mais complexo para ser analisado.

A utilização do método funcional pelo iluminismo sociológico é fruto da adoção da teoria dos sistemas. Por meio desse método, a sociedade evolui à medida que aumenta a complexidade. Para suportar esse fenômeno, a sociedade se utiliza de mecanismos que visam a diminuir essa complexidade, o qual é expresso pelo desenvolvimento dos sistemas. Esses nascem da necessidade de organizar a sociedade e, portanto, de especificar as comunicações. No entanto, Luhmann considera que o processo de formação desses sistemas é um fenômeno indecifrável, pois é difícil estabelecer as razões pelas quais foram desencadeadas essas diferenciações.

Como a sociedade é formada por inúmeros sistemas (direito, arte, política, economia, educação, religião, etc.), estes só podem ser identificados a partir de sua oposição ao ambiente. O ambiente é tudo aquilo externo ao sistema, e pode ser tanto externo, ou seja, o ambiente comum a todos os sistemas sociais, como pode também ser interno, específico a cada sistema. Essa oposição gera a conclusão de que os sistemas são fechados no sentido operacional. Isso significa que cada sistema tem seus próprios meios de auto-reprodução e de funcionamento através de seus elementos. No entanto, esses sistemas não estão totalmente isolados: eles sentem a interferência do seu ambiente (que pode ser também um outro sistema), mas a percebem como uma perturbação. Por isso, pode-se dizer que eles são cognitivamente abertos.

Além de todas essas constatações, há uma inovação particular na teoria luhmanniana: a afirmação de que o homem não integra a sociedade: "A teoria da sociedade como a totalidade abrangente do convívio social desmoronou." [02] Para Luhmann, cada indivíduo é um sistema psíquico fechado e, por isso, a comunicação que opera na sociedade não pode ser reduzida a um indivíduo, e vice-versa. A comunicação de um sistema está desvinculada da comunicação do homem, pelo fato de que cada um pensa de maneira diferente, sendo que tais discrepâncias não podem ser reduzidas: "As possibilidades estruturalmente permitidas para esse sistema psíquico-orgânico não são idênticos às da sociedade enquanto sistema social." [03]. Portanto, perde-se o sentido a conclusão de que a sociedade é um conjunto de homens, de grupos sociais. Para Luhmann, a sociedade é formada por comunicações sociais – que se prefiguram como transmissão de sentido - emitidas por cada sistema.


2) O sistema do direito

Com a caracterização do que se entende de sociedade para Luhmann, pode-se passar à análise de um dos sistemas sociais: o direito. Para entendê-lo, é necessário o esclarecimento da diferença das expectativas normativas e cognitivas:

"[elas] se diferenciam pela resposta que dão diante da aparição de decepções (não-cumprimento das expectativas previstas). A atitude normativa está disposta a manter a expectativa apesar da decepção, apoiando-se em recursos como o convencimento interior, a capacidade de sanção ou o consenso. O comportamento cognitivo, pelo contrário, mostra-se aberto à aprendizagem e disposto a mudar a expectativa para evitar a repetição de futuras decepções. Não aprender ou aprender, esta é a diferença." [04]

Dessa forma, as expectativas normativas são contrafáticas, ou seja, mesmo que a experiência mostre que a expectativa está errada, mantém-se essa expectativa. O direito, então, é baseado nesse tipo de expectativas, prevendo-se daí a função do direito: generalização e estabilização das expectativas normativas. Entretanto, essa função nem sempre foi clara dessa forma. Assim como a sociedade, o direito também passou pelo processo de diferenciação funcional, culminando com a positivação do direito. Luhmann, portanto, destaca três diferenciações: a diferenciação segmentária, a por estratificação e a funcional, correspondendo, respectivamente, à sociedade arcaica, antiga e à moderna. Como conseqüências dessa diferenciação, pode-se elencar:

"(...) o surgimento, na sociedade, de um sistema jurídico, diferenciado em relação ao seu ambiente; (...) outros sistemas sociais podem utilizar-se do sistema do direito; (...) a ideia de Constituição; (...) [e] o processo radical de valorização do indivíduo." [05]

Assim, diz Luhmann,

"Isso significa que na passagem da sociedade arcaica para as latas culturas, e destas para as sociedades modernas modificam-se aqueles dispositivos que garantem a formação de generalizações conscientes de expectativas comportamentais, e com isso muda a forma de vigência do direito." [06]

Outrossim, Niklas Luhmann concilia o papel exercido pela função jurisdicional dos Tribunais com a sua teoria de diferenciação funcional, a qual não é só observada na sociedade como um todo, mas também em relação ao direito. Sob essa perspectiva, ele elucida algumas questões acerca da posição dos Tribunais e, consequentemente, de sua atividade no âmbito do Direito, esclarecendo a relevância dessa diferenciação .

Para ele, o sistema jurídico pode ser observado a partir de dois ângulos: a legislação e a jurisdição, sendo que os Tribunais estão inseridos no âmbito deste último. Luhmann afirma que essa distinção é muito importante uma vez que esse sistema jurídico não acaba sendo subjugado por apenas um ponto de vista, mas sim, deve ser analisado de acordo com essas duas faces. Esse fenômeno binário (legislação/jurisdição) é relevante na medida em que serve de autolimitação a esse mesmo sistema. Luhmann diz que essa autolimitação não é recente; muito pelo contrário, ela é uma herança da tradição Antiga. Entretanto, afirma autor, é somente no século XVIII que essa delimitação de campos pôde se explicitar, ou seja, pôde demonstrar a sua verdadeira importância, pois, anteriormente, tanto a legislação quanto a jurisdição estavam concentradas em, geralmente, uma mesma pessoa e tal diferenciação poderia comprometer a integridade política de um território nacional. Sobre isso, Luhmann se refere:

"Qualquer separação mais profunda entre legislação e jurisdição teria posto em perigo a unidade do estado territorial política e juridicamente autônomo, que estava então em formação." [07]

Entretanto, a partir do século XVIII passou a admitir que o direito só era direito por conta de sua positivação. Dessa forma, a ideia de autolimitação do sistema jurídico é admitida. O autor menciona que a aceitação de que o âmbito do direito pode ser autoconstituído pela legislação e pela jurisdição reciprocamente – desencadeou uma série de efeitos, os quais vale a pena destacar:

1.como primeiro resultado, Luhmann elenca o fato que, a partir da autolimitação do sistema, pode-se estatuir uma lei constitucional que é capaz de comportar os próprios fundamentos de vigência do direito. Além disso, enfatiza Luhmann, a existência de uma constituição pressupõe a sua elaboração externa ao âmbito jurídico e, para ele, quem o faz é o povo;

2.outra consequência é que, por os fundamentos estarem inseridos em uma norma constitucional, não há uma limitação em relação à sua ampliação, uma vez que eles não existem por si só, mas sim na medida em que são refletidos em um caso concreto. Dessa forma, esses fundamentos estendidos quando da análise de precedentes judiciais – no caso da common law – ou quando da interpretação da lei pelos Tribunais;

3.como terceiro efeito, tem-se que a atividade jurisdicional pode ser limitada por uma autoridade administrativa que, quando da distinção legislação/jurisdição, foi incumbida, especificamente, disso;

4.o autor ainda enumera que, com essa diferenciação, o papel da jurisdição foi também reformulado. Antes, havia uma reserva da interpretação do legislador, situação que foi transfigurada com a revisão das tarefas: os Tribunais passaram não só a aplicar as leis elaboradas pela legislação, como eles próprios passaram a interpretá-las. Disso advém o seguinte aspecto descrito por Luhmann: "Somente isso torna possível que se possa exigir que os Tribunais decidam todos os casos que lhe são apresentados." [08];

5.Além desses efeitos, a vontade privada ganha mais força em relação à sua disposição, considerada no âmbito da vigência do direito. O autor ressalta que, apesar dessa maior notoriedade o conceito de "privado" continua sofrendo o controle por parte do sistema;

6.Luhmann também destaca que, apesar de a vontade privada ter ganhado força nos Tribunais, a liberdade contratual foi limitada por conta da maior intervenção política na esfera, principalmente, do direito do trabalho, dizendo que "a liberdade contratual precisava ser garantida contra si mesma." [09];

7.Por último, o autor elenca como consequência da autolimitação e também desses efeitos então mencionados, o fato de que a diferenciação entre legislação e jurisdição é, além de uma separação, uma vinculação, mesmo que isso soe antitético. Ele explica isso com a ideia de que o sistema jurídico acaba por trabalhar com outros sistemas, como por exemplo, o sistema político, por meio das constituições, e o sistema econômico, por meio das regulações da propriedade e do contrato. A vinculação entre a legislação e a jurisdição está no fato de que há a possibilidade da intervenção da esfera política na esfera econômica (propriedade e contrato). Apesar disso, a ideia de separação deve sempre existir, pois

"A desistência da manutenção da separação acarretaria o colapso do sistema jurídico e, consequentemente, também o colapso da diferenciação de política e economia." [10]

Tendo como pressuposto esses efeitos, Luhmann diz que a distinção legislação/jurisdição sempre se manteve mais forte no âmbito organizacional, ou seja, o que se reclama em uma esfera, não se pode reclamar na outra, exatamente por terem atribuições diferentes. Contudo, o autor rebate a ideia de que a função dessa distinção (partindo-se do pressuposto que na sociedade há uma diferenciação funcional) está nesse campo organizacional. Na sua perspectiva, essa função se encontra no próprio sistema jurídico da sociedade. Assim, a impressão de que há uma unidade entre jurisdição e legislação é quebrada. Ele melhor esclarece:

"Assim, o paradoxo da unidade do que é distinguido se dissolve: do ponto de vista organizacional, o fato da distinção vale como pressuposto da especificação de tarefas. Do ponto de vista social, a distinção vale como unidade, forma. Ela fornece (...) o pressuposto para que o próprio sistema jurídico se possa diferenciar do seu mundo circundante e para que ele possa, enquanto sistema operativamente fechado, reproduzir suas próprias operações através de rede de operações próprias. " [11]

Luhmann diz que essa diferenciação sofre, muitas vezes, uma análise histórica apenas causal, desencadeando a ideia de que há uma sujeição da jurisdição em relação à legislação, demonstrando a existência de modelo hierárquico dentro do sistema jurídico. Luhmann diz que essa visão não é de todo errada, haja vista a jurisdição usar como instrumento as leis vigentes. No entanto, a essa concepção de subordinação é insuficiente e muito superficial. As relações existentes dentro do âmbito jurídico são muito mais complexas do que pode parecer quando se o analisa apenas sob o ponto de vista hierárquico. Para ele, há uma interdependência entre os dois campos, pois ambos convergem para "o aperfeiçoamento do direito" [12]. O legislador dá a instrução ao juiz, mas é este que vai aplicar a lei para uma infinidade de casos concretos. Além disso, o autor ressalta que se houver algum choque, é a legislação que dá a última palavra. Porém, em contrapartida, é a jurisdição que diz se existe ou não esse conflito. Por conta disso, não se pode dizer que há a superioridade da legislação.

Luhmann insere outro ponto para que se possa duvidar da existência dessa hierarquização: a vigência de uma Constituição. Partindo-se do pressuposto de que todo o direito vigente deve estar de acordo com ela, indaga-se qual seria o órgão responsável pela "filtração" da lei consoante à constituição e da lei contrária. O autor diz que tal tarefa não pode ser delegada à legislação porque isso acarretaria constantes modificações no texto constitucional, tendo como resultado o efeito oposto a que a existência de uma constituição almeja: a limitação do poder. Então, chega-se à conclusão que são os Tribunais os encarregados de oferecer esse controle constitucional, uma vez que a própria constituição lhes outorga esse dever.

Ainda nesse contexto, Luhmann sugere mais um aspecto para a desmitificação do sistema hierárquico: a existência de contratos privados, os quais ampliam a área de incidência do direito vigente, sem necessitar de consulta a órgãos legislativos:

"A massa de processos geradores de Direito, que supera em muito a legislação, é simplesmente localizada na área daqueles fatos que se forma sem nenhuma comunicação acerca do Direito." [13]

Em seguida, Luhmann diz que além de se questionar a descrição tradicional do sistema jurídico, ou seja, de que há, verdadeiramente, uma hierarquia, deve-se estabelecer outra visão que substitua aquela. O autor estabelece essa outra concepção tendo por base a distinção entre centro e periferia. Diante dessa perspectiva, o autor considera que os Tribunais são o centro do sistema jurídico e, por conseguinte, a legislação ocupa a periferia. Ele baseia a sua argumentação na seguinte premissa: "a não decisão não é permitida" [14], ou seja, é obrigação dos Tribunais oferecer um desfecho a qualquer caso que lhe seja conferido. Isso significa que mesmo que não haja uma lei que regule um caso concreto apresentado à jurisdição, ela tem de decidir. É por essa razão que Luhmann diz que não existem lacunas no direito, mas sim, situações que não foram previstas em lei. Todavia, mediante essa ausência da legislação, a jurisprudência legisla a fim de que o princípio de que a não decisão não é permitida seja absolutamente cumprido. Isso demostra que, no âmbito jurisdicional, não há uma atividade estritamente mecânica – como pode parecer à primeira vista. Esse direito judicial, diz Luhmann, não pode ser obstado pelo legislador porque ele surge a partir da constatação de que a sociedade é dinâmica e, por isso, mais complexa do que um legislador pode prever, Mesmo com a utilização de normas programáticas, a legislação não consegue abarcar todo o fenômeno social.

Por essas atividades extraordinárias dos Tribunais, como o controle de constitucionalidade e o direito judicial, eles ocupam o centro do sistema jurídico. Em contrapartida, a atividade de fazer leis, decretos, estatutos, contratos e até mesmo de transformação do que deve ser considerado como vigente ocorre na periferia do sistema. Essa ideia de centro/periferia não implica, para Luhmann, uma visão de hierarquia, mesmo porque o que é feito em cada um desses âmbitos não é considerado mais ou menos importante que o outro. Como diz Luhmann, "Sem periferia não haveria nenhum centro, sem centro não haveria nenhum periferia." [15] A partir disso, a concepção de que a legislação é hierarquicamente superior à jurisdição é suplantada, na medida em que o sistema envolve uma complexidade muito maior do que esse tipo de análise pode contemplar. Luhmann afirma:

"a legislação e a jurisprudência participam do processo de formação e da modificação, da condensação e da confirmação de regras genericamente válidas." [16]

Contudo, Luhmann assevera que, apesar de o sistema jurídico não poder ser organizado hierarquicamente, o âmbito jurisdicional pode, sendo este dividido em instâncias, Tribunais Superiores e Cortes Comuns.

Em relação a esse processo de diferenciação, Luhmann cita outros sistemas funcionais partícipes da dinâmica social que também sofrem essa distinção em termos de centro e periferia, como por exemplo o sistema econômico, cujo centro são os bancos, e o sistema político, cuja hierarquia é só verificada no centro do sistema.

Dessa sorte, Luhmann enfatiza o caráter funcional do sistema social, estabelecido mediante o processo de diferenciação, sendo que neste pode ser também enquadrado o direito. A aceitação de um direito judicial só é cabível na medida em que se solidifica esse referencial da diferenciação e da argumentação racional. Por isso é que Luhmann propõe a mudança de análise simplesmente causal para a funcional.


3) O direito nas sociedades arcaicas

As sociedades arcaicas refletem a sua organização social diretamente no direito. Essas sociedades baseiam toda a sua estrutura social no princípio do parentesco. A primeira diferenciação identificada por Luhmann, a segmentária, é percebida quando várias famílias se juntam, implicando a formação de novas famílias, "cuja coesão em uma tribo é mantida com base na ascendência e na história comum." [17]. Pelo fato de as relações estarem ligadas às relações de parentesco, a complexidade é bastante reduzida, não acarretando a existência de alternativas diferenciadas para a solução de conflitos.

Outra característica é a pouca diferenciação funcional dos papéis sociais, "o que resulta na impossibilidade de fixação de critérios especiais para a vigência do direito." [18]. Como consequência disso, percebe-se que o direito não tinha praticamente nada de abstrato; as normas aplicadas para a solução dos casos eram altamente concretas, ou seja, surgiam à medida que surgia uma nova situação que precisava ser resolvida. Não havia, portanto, a preocupação com a enunciação de normas de convivência para casos futuros, pois imperava o imediatismo da resolução. Entretanto, essa situação só foi possível por conta do baixo grau de complexidade das sociedades arcaicas:

"O centro da gravidade de consciência arcaica reside, portanto, em seu presente constantemente arriscado e pobre em possibilidades, o qual logo se obscurece na penumbra de um horizonte temporal indeterminado do passado, e que quase não tem futuro; pois só no presente existem vida e comunicação." [19]

O procedimento jurídico era, na verdade, ritualístico, expressando a concretude do direito em detrimento de seus aspectos futuros.

Entretanto, a sociedade é altamente dinâmica e não se configura da mesma forma por muito tempo. O desenvolvimento econômico, o surgimento de cidades, a quebra das relações de parentesco e vários outros elementos acarretaram o aumento da complexidade social. O direito até então vigente não era mais suficiente para a resolução de conflitos muito mais complexos que os anteriores. Assim, a sociedade foi passando por um novo processo de transformação, a qual Luhmann denominou diferenciação por estratificação, tendo reflexos na vigência do direito.


4) O direito nas sociedades antigas.

Nessas sociedades, principalmente em função do rearranjo social, várias características do direito anterior foram transformadas. Começou a surgir o centro funcional da política, tendo repercussão na diferenciação dos papéis sociais, o que ocasiona a formação de uma hierarquia de dominação, estatuindo a diferença entre níveis inferiores e superiores. Essa organização é de suma importância para as sociedades antigas pois é ela que possibilita a dominação política por certos grupos.

Nessa fase, inicia-se também a institucionalização do direito:

"Em face da configuração política da sociedade, tornam-se necessárias instâncias e processos, para que seja possível a convivência entre homens livres de forma juridicamente sustentável." [20]

Com isso, não era mais suficiente a aplicação concreta do direito; exigia-se uma certa abstração. Com a diferenciação dos papéis, começou-se também a distinguir uma pessoa responsável especificamente por essa tarefa de resolução de conflitos. Daí advém a necessidade de estar presente um juiz neutro, que não interfira parcialmente na decisão do caso concreto. Com esses novos aspectos, o direito começa a ter um sentido particular, se diferenciando levemente do restante do ambiente social, ou seja, tendo características próprias.

Com o aumento da complexidade, surgem novas alternativas de soluções jurídicas. Assim, a crescente complexidade é acompanhada de um simultâneo aumento contingencial. Isso, para Luhmann, significa desenvolvimento. Diante dessas novas dificuldades, a sociedade deve arranjar meios para que possa reduzi-las e, assim, tornar as comunicações mais diretas e fáceis. Dessa forma, diante da incipiente abstração do direito, percebem-se novos efeitos, como o aprimoramento da formação do jurista e uma mudança na concepção de direito vigente, a qual perde a identificação do direito com o caso concreto, passando a admitir o âmbito jurídico relacionado a uma norma que servirá de base para um futuro julgamento. Assim, já começa a surgir uma separação entre as expectativas cognitivas e as normativas, inexistente na sociedade anterior. Assim destaca Luhmann:

" O processo judicial das culturas antigas é, assim, uma combinação das diversas formas evolutivas em todas as dimensões da generalização das expectativas. E é só nessa combinação que o processo muda o nível de congruência do direito. O processo, portanto, não é nenhuma ‘unidade natural’, mas uma generalização que coordena vantagens – de forma semelhante ao já visto com respeito à ideia de hierarquia." [21]

Além dessas características, cabe destacar o surgimento da conexão entre o direito e a moralidade e também é desse período a advento das ideias do direito natural, imanente a cada indivíduo e, portanto, imutável. Dessa concepção, emergem aspectos que se ligam ao direito como as concepções de justiça. Essa situação pode ser ilustrada pela distinção grega entre a lei natural – "physis" – e o direito – "nomos".

Esse direito é sustentado até o momento em que a complexidade e a contingência de uma sociedade transformada não podem mais ser contidas por esse sistema. O dinamismo da sociedade obriga a implementação de diferentes mecanismos de conciliação da vida social com a complexidade emergente. Nasce, assim, a sociedade moderna e, por conseguinte, a diferenciação funcional.


5) O direito e a sociedade moderna

A mudança da sociedade incentiva e possibilita a transformação do direito. Nessa fase de diferenciação funcional, chega-se a um ponto em que o direito necessita ser altamente abstrato para que possa eficazmente realizar sua função de generalizar as expectativas normativas. A diferenciação funcional acarreta um crescimento dos problemas internos na sociedade e, dessa forma, um crescimento dos encargos decisórios em todos os planos da generalização. Nesse contexto, ao papel da legislação é conferida extrema relevância.

É conveniente ressaltar, no entanto, que a legislação não é um fenômeno atual. Ela já existe desde as culturas mesopotâmicas, mas, nesse período, o status jurídico dessa legislação era extremamente precário. Em Roma também houve um enfoque na legislação, mas seu caráter era diferente do caráter legislativo da sociedade moderna. Lá, era praticamente impossível a sua alteração. É somente com o enraizamento da diferenciação funcional que a legislação ganha um caráter específico.

Convém ressaltar ainda a distinção entre a diferenciação segmentária e a diferenciação funcional, baseada no princípio de divisão da sociedade em sistemas parciais. Sobre isso, diz Luhmann:

"Na diferenciação segmentária são formados diversos sistemas iguais ou semelhantes: a sociedade compõe-se de diversas famílias, tribos, etc. Na diferenciação funcional, os sistemas parciais, ao contrário, são formados para exercerem funções especiais e específicas, sendo, portanto, distintos entre si: para a política e a administração, para a economia, para a satisfação de necessidades religiosas, para a educação, para cuidar dos doentes, para funções familiares residuais." [22]

A partir do século XVIII, o direito só poderia ser considerado como tal se ele estivesse positivado. Por isso, afirma-se que a exigência para que o direito fosse considerado vigente era a sua positivação. Assim, vincula-se, no século XIX, a produção do direito ao Estado. Como conseqüência disso, surge a concepção de uma hierarquia das leis, tendo por base a fonte do direito. Luhmann denomina esse fenômeno de "catálogo de leis" [23]. Dessa forma,

"(...) a estrutura hierárquica das normas diferenciava e canalizava as reações a insuficiências, a ambivalências ou à falta de normas, dependendo do plano em que o problema fosse localizado. " [24]

Essas leis tinham um caráter de mutabilidade e de vigência condicionada distinto do caráter da legislação anterior à sociedade moderna.

À primeira vista, dá-se a entender que o papel do jurista ficou um pouco mitigado em relação ao papel do legislador. Em um primeiro momento isso realmente ocorreu, mas no século XX, conclui-se que nem todo direito tem forma de lei, admitindo-se, assim, o direito formulado pelos juízes – mas sempre seguindo os padrões do direito vigente. Essa constatação adveio do enorme número de problemas internos à sociedade que demandavam inúmeras outras decisões judiciais. Assim, pode-se dizer que esse direito das sociedades modernas

"(...) vige não por estar em consonância com normas superiores, mas porque sua alta seletividade preenche a função básica do sistema jurídico – o estabelecimento da congruência." [25]

E ainda complementa:

"Fica clara, então, (...) a relação existente entre o processo de positivação do direito e o desenvolvimento da forma de diferenciação funcional, entre a crescente abstração e especificação dos sistemas parciais da sociedade e a superprodução de possibilidades estruturalmente condicionadas." [26]


BIBLIOGRAFIA

CARVALHO NETO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito In: Notícia do Direito Brasileiro – nova série, N.G. Brasília: Ed. UnB, 2º sem. De 1998.

LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. In: Revista da Ajuris. N.º 49. Porto Alegre: Ajuris, julho de 1990 (trad. de Peter Nauman).

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.


Notas

  1. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Pág. 45.
  2. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Pág. 167.
  3. Idem. Pág. 169.
  4. NAVAS, Alejandro. In: PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. Pág. 204.
  5. PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. Pág. 212-213.
  6. LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 174.
  7. LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. In: Revista da Ajuris. N.º 49. Porto Alegre: Ajuris, julho de 1990 (trad. de Peter Nauman). Pág. 150.
  8. LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. Pág. 153.
  9. Idem. Pág. 154.
  10. Idem. Pág. 155.
  11. Idem. Pág. 155.
  12. Idem. Pág. 157.
  13. Idem. Pág. 159.
  14. Idem. Pág. 160.
  15. Idem. Pág. 164.
  16. Idem. Pág. 164.
  17. Idem. Pág. 184.
  18. PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Op.cit. Pág. 218.
  19. LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 188.
  20. PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Op.cit. Pág. 222.
  21. LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 211.
  22. LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 176.
  23. LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 231.
  24. Idem. Pág. 231.
  25. PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Op.cit. Pág. 235.
  26. Idem.

Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHO, Daniella Ribeiro de. Algumas linhas sobre o iluminismo sociológico de Niklas Luhmann e o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2964, 13 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19766. Acesso em: 26 abr. 2024.