Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/19822
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil

Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil

Publicado em . Elaborado em .

INTRODUÇÃO

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ao discursar, em 23 de abril de 2008, na posse do presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, afirmou que "práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional". Já o ministro Gilmar Mendes, em seu discurso, mencionou os casos que atualmente entende serem os mais relevantes, afirmando que "à demanda cada vez maior da sociedade, a Corte tem respondido, demonstrando profundo compromisso com a realização dos direitos fundamentais (...) Temos julgado casos históricos, em que discutidas questões relacionadas ao racismo e ao anti-semitismo, à progressão de regime prisional, à fidelidade partidária, e ao direito da minoria de requerer a instalação de comissões parlamentares de inquéritos, entre outros... Já iniciamos o julgamento de temas relevantes sobre aborto, pesquisas com células-tronco e prisão civil do depositário infiel" [01].

Tais passagens refletem a transformação funcional por que vem passando o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Se, em sua gênese, a Suprema Corte americana serviu como inspiração – modelo de controle de constitucionalidade difuso, concreto e incidental [02] – desde a Constituição Federal de 1988, o modelo europeu de Corte Constitucional, elaborado com base na doutrina de Hans Kelsen, tem influenciado o constituinte e o legislador pátrio na mutação do sistema de controle de constitucionalidade [03] de maneira que, atualmente, é possível afirmar que o modelo brasileiro tende no sentido da adoção do padrão europeu [04]. Trata-se do que a doutrina pátria chama de processo de objetivação do controle de constitucionalidade [05]. O modelo kelseniano de Jurisdição Constitucional tem como características formais a análise da constitucionalidade das leis em abstrato, de maneira concentrada e em via principal, o que significa que os casos constitucionais chegam à Corte Constitucional por meio de ação direta, independentemente da existência de uma situação concreta em que haja violação a direitos subjetivos. Ou seja, a constitucionalidade das leis é aferida de maneira objetiva, confrontando-se diretamente o diploma legal atacado com o texto constitucional.

Entretanto, é no concernente às características materiais do modelo europeu de controle de constitucionalidade que reside a mais profunda transformação no papel do Supremo Tribunal Federal. Isto porque, conforme será demonstrado, o modelo kelseniano, na forma como foi customizado após a 2ª Guerra Mundial, implica a adoção de um posicionamento substancialista no debate teórico contemporâneo acerca do papel das Cortes Constitucionais.

Em apertada síntese [06], os defensores das teorias substancialistas trabalham com a idéia de que a atuação da Jurisdição Constitucional é legítima na medida em que dá efetividade aos direitos fundamentais. Neste sentido, a interpretação constitucional tem papel relevante, já que cabe aos juízes dar densidade normativa aos preceitos constitucionais vagos que elencam tais direitos. Já os teóricos da corrente doutrinária concorrente - denominados de procedimentalistas - não admitem a possibilidade de o intérprete ser um aplicador de princípios de Justiça. Para eles, o papel do Judiciário restringe-se a defender o procedimento democrático, de sorte que a Corte somente age legitimamente ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei se o diploma legal em análise for um empecilho para o pleno desenvolvimento ou preservação do processo político de deliberação [07].

Assim, diante do posicionamento assumido [08] – de que cumpre ao Poder Judiciário a proteção dos direitos e garantias individuais – é natural que o ministro Celso de Mello tenha afirmado que o ativismo judicial se tenha tornado uma necessidade institucional, bem como se mostra razoável que, ao citar os casos mais importantes que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal atualmente, o ministro-presidente Gilmar Mendes se tenha referido somente a casos que envolvem a discussão das cláusulas constitucionais definidoras dos direitos fundamentais dos indivíduos.

Não obstante isso, a adoção de um determinado modelo institucional de controle de constitucionalidade não pode ser levada a cabo sem uma reflexão profunda acerca de seus pressupostos teóricos e de suas conseqüências práticas. Neste diapasão, o presente trabalho tem como escopo analisar a fundamentação teórica em que se escora o modelo europeu de Jurisdição Constitucional adotado pelo Brasil, bem como analisar a forma como que a Corte, ao interpretar a Constituição, atua na concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados. Para tanto, o trabalho será desenvolvido em duas partes. Em um primeiro momento será analisado o arcabouço teórico sobre o qual se desenvolve o modelo europeu de controle de constitucionalidade, para, em seguida, analisar criticamente as conseqüências de sua adoção.


II-KELSEN E HÉRCULES: UMA UNIÃO INSTÁVEL?

Obviamente, Hans Kelsen, que é considerado um dos pais do positivismo jurídico do século XX, não tinha em mente a criação de uma Jurisdição Constitucional de cunho substancialista. Como bem adverte Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a gênese dos direitos fundamentais reside na idéia de direitos naturais [09] – corrente jusfilosófica contrária ao positivismo jurídico. Entretanto, a Teoria Pura do Direito de Kelsen, com sua lógica objetiva, forneceu os subsídios teóricos necessários para a construção do modelo europeu contemporâneo de controle de constitucionalidade. O objetivo deste tópico é exatamente narrar como ocorreu essa metamorfose da teoria kelseniana.

De acordo com o mestre de Viena, a Teoria Pura do Direito deve excluir de sua análise quaisquer considerações de cunho sociológico ou político. O direito como ciência deve conhecer "o que o direito é" e "como ele é", e não "o que ele deveria ser" ou "como deveria ser elaborado" [10]. Sendo assim, o direito possui o seu próprio método, que deve ser aplicado de maneira objetiva, independentemente de qualquer conceito de Justiça. Para Kelsen, a ciência do direito não tem a função de promover a legitimidade do direito com base em valores sociais. O propósito da Teoria Pura do Direito é entender e descrever de maneira genérica, hipotética e abstrata a forma operacional do sistema jurídico, utilizando-se, para tanto, de um ponto de vista externo e cético frente ao ordenamento, o ponto de vista de um cientista.

Assim, Kelsen analisa a Constituição sob uma perspectiva formal, como uma norma jurídica superior que fundamenta o Estado e a sua estrutura legal [11]. Essa ótica lhe possibilita desenvolver a doutrina da estrutura hierárquica da ordem jurídica, em que o direito regulamenta a criação do próprio direito [12]. O mestre de Viena visualiza o sistema legal como uma pirâmide abstrata, a qual tem a Constituição em seu pico, de maneira que toda e qualquer norma inferior deve conformar-se com o que nela estiver estabelecido. Em outras palavras, a Constituição é a norma fundamental que regula a criação das normas inferiores [13].

Partindo da perspectiva de que a Constituição é uma norma legal, torna-se possível averiguar a validade de outra norma, de maneira abstrata, em face dos preceitos constitucionais. A supremacia da Constituição, portanto, é uma premissa necessária a um sistema jurídico e o controle de constitucionalidade das leis, um instrumento indispensável à manutenção da inteligibilidade do sistema. Para Kelsen, se não existe o poder de revisar a constitucionalidade das leis, a Constituição não se revela verdadeiramente suprema [14].

Nesse contexto, Kelsen acredita que o intérprete aplica as normas constitucionais de maneira objetiva, com um elevado grau de determinação, já que as normas fixam uma moldura finita de hipóteses. Em outras palavras, a atividade interpretativa da Corte Constitucional resume à simples fixação dos limites da atividade do legislador, agindo como legislador negativo. Assim, a certeza e a objetividade exercem um papel importante em sua teoria [15]. A sua obsessão por esses valores é manifesta em suas críticas ao sistema americano de controle de constitucionalidade difuso:

A desvantagem dessa solução consiste no fato de que diferentes órgãos aplicadores do direito podem ter opiniões diferentes no que concerne à constitucionalidade de um estatuto (...) A falta de decisões uniformes com respeito ao questionamento se uma determinada norma é constitucional, i.e., se a constituição violada, é um grande perigo para a autoridade da constituição. [16]

Neste diapasão, Kelsen advoga que um órgão central e independente para determinar a constitucionalidade das leis seria necessário [17]. Com intuito de isolar o direito da política, um tribunal constitucional especializado, ao invés de um órgão político dentro da órbita do próprio legislativo, deve ser criado para ser o "Guardião da Constituição". Para o autor, entretanto, as principais preocupações que justificam a criação da Jurisdição Constitucional não se referem à proteção dos direitos fundamentais, mas aos aspectos formais dos estatutos jurídicos e à manutenção do estado federativo [18]. Kelsen inclusive adverte que a aferição da constitucionalidade de leis por parte da Corte Constitucional com referência às clausulas vagas e imprecisas que definem os direitos fundamentais - como o direito à liberdade e à igualdade - pode ser muito perigosa para a democracia, devendo ser evitada [19].

Até 1952, quando foi instituído o Tribunal Constitucional Federal alemão, somente havia ocorrido uma única experiência (mal-sucedida, diga-se de passagem) de criação de Corte Constitucional sob inspiração dos ideais kelsenianos. A Constituição de 1920 da Áustria criou a primeira Corte Constitucional - da qual Kelsen foi membro integrante - que foi mantida somente até 1934. Ironicamente, a teoria de Jurisdição Constitucional do mestre de Viena somente adquiriu prestígio mundial após sua remodelação histórica, que adicionou o elemento "direitos fundamentais" em seu núcleo essencial, o que se deu na metade do século XX.

Após a Segunda Guerra Mundial, diante das atrocidades cometidas pelos nazistas, especialmente contra minorias étnicas e religiosas, emergiu uma profunda preocupação, no âmbito internacional, em torno do tema "direitos humanos". Desde que a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a linguagem dos direitos humanos mostra-se uma das mais potentes da política contemporânea [20], tanto que o próprio conceito de democracia teve que ser reformulado para abraçar a idéia desses direitos. Democracia passou a ser parte do projeto dos direitos humanos, pois esta foi a melhor maneira encontrada pela teoria política para refletir a idéia de igualdade [21].

O discurso dos direitos humanos incrustou-se de tal forma na vida política que ficou impossível imaginar o futuro sem este conceito. Tornou-se universal, o único caminho a seguir na esfera política. Como bem salientado por Conor Gearty, "‘direitos humanos’ se tornou uma expressão forte, epistemologicamente confiante, eticamente assegurada, carregando consigo a promessa para o ouvinte de atravessar o barulho dos argumentos e dos contra-argumentos, das práticas culturais e das perspectivas relativistas, e assim comunicar uma mensagem de verdade" [22].

Tecnicamente, a idéia de certeza da teoria kelseniana forneceu padrões "objetivos" capazes de proteger o conceito de direitos humanos de controvérsias morais, pois tais direitos deixaram de ser contestados, transformando-se em verdades universais. O método jurídico científico desenvolvido por Kelsen aumentou a sensação de que poderíamos articular objetivos sócio-políticos em linguagem jurídica. Cortes Constitucionais, que assegurem abstratamente a efetivação dos direitos fundamentais, passaram a ser o modelo desta nova idéia política denominada de "democracia constitucional". A partir do momento em que os objetivos sócio-políticos foram transformados em linguagem jurídica, coube então à pureza da esfera jurídica proteger tais direitos por meio de uma metodologia jurídica aparentemente neutra. Somente assim os direitos humanos estariam "a salvo".

Como resultado, o modelo germânico (fórmula Kelsen + direitos fundamentais) de Corte Constitucional converteu-se em uma tendência na maioria dos países que atravessam por um período pós-ditadorial, como a Itália, a Espanha, Portugal e o Brasil. Devido ao ceticismo inicial com relação aos órgãos políticos após a restauração democrática, grande parte dos objetivos políticos foi constitucionalizada, isto é, posta em linguagem jurídica, em extensivas listas de direitos fundamentais, com a finalidade de insulá-los da política. Acredita-se que a Corte seja capaz de concretizar tais direitos.

Ocorre, entretanto, que os juízes das Cortes Constitucionais, incumbidos dessa nova missão de proteção dos direitos fundamentais, não se limitam a apontar, de maneira fria e calculada, quais leis se encontram dentro, ou fora, da moldura constitucional, como imaginado por Kelsen para a verificação formal da constitucionalidade de uma lei.

Os termos amplos, vagos e imprecisos que prescrevem os direitos fundamentais - como o direito à vida, à liberdade e à igualdade – encerram conceitos que admitem diferentes concepções teóricas a depender do ponto de vista adotado pelo intérprete [23]. A complexidade dos casos que hodiernamente se apresentam diante desses tribunais - questões de moralidade política por natureza - exigem do intérprete uma atitude muito mais construtiva do que a de simples legislador negativo. Ao decidir os casos constitucionais contemporâneos, como a constitucionalidade da prática do aborto ou da criação de quotas raciais para o ingresso nas universidades públicas, os juízes não podem e nem conseguem se limitar a uma visão de cientista, externa e imparcial do problema. É necessária uma perspectiva interna [24], ativa e consciente, do caso e do ordenamento jurídico de maneira a apresentar uma solução consentânea com o direito posto e com a concepção de Justiça prevalente na sociedade.

Ou seja, a atual prática constitucional exige do intérprete a atitude de um juiz Hércules [25] - juiz dotado de sabedoria e paciência sobre-humanas - capaz de desenvolver uma teoria política completa ao se deparar com um caso difícil, pois sua decisão não deve limitar-se a estar de acordo com o direito, mas ser justificável do ponto de vista da moralidade política. Para tanto, os juízes não se pautam apenas pelas regras jurídicas identificáveis em um ordenamento jurídico, mas também lançam mão de princípios de ordem ético-problemática [26].

É neste sentido que é possível afirmar que o ativismo judicial se tornou uma necessidade institucional: os juízes, ao decidirem os casos difíceis, agem de maneira positiva, densificando as normas de direitos fundamentais com suas interpretações. Para alguns, tal atitude representa o mesmo que "criar novos direitos" ou dizer que "o Judiciário está legislando", quando na verdade só se reflete um efeito inevitável da adoção de um sistema de controle de constitucionalidade substancialista por parte do Poder Constituinte. As suas conseqüências serão analisadas a seguir.


III-CRÍTICAS TEÓRICAS AO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL

É certo que em uma sociedade em que há profunda desconfiança com relação aos poderes políticos instituídos – como logo após o regime nazista na Alemanha ou a ditadura no Brasil – um Judiciário forte, com extensos poderes para invalidar os atos dos outros órgãos, revela-se necessário para assegurar as liberdades públicas individuais e para manter o regime democrático. Do mesmo modo, é justificável a atuação ativista por parte dos tribunais em uma sociedade com problemas sociais crônicos que impedem o pleno funcionamento da democracia, como era o caso da segregação racial nos Estados Unidos até a década de 50 [27]. No entanto, em uma sociedade em que os mecanismos democráticos funcionam plenamente, a atitude "paternalista" por parte da Corte Constitucional é no mínimo questionável, quiçá inadequada. Neste sentido, tem crescido na academia americana o número de críticos ao sistema de "judicial review", ora mencionando-se a falta de legitimidade democrática das Cortes para lidar com determinadas matérias, ora apontando-se as inadequações institucionais dos tribunais para decidir certas questões em nome da sociedade [28].

No contexto brasileiro, a partir dos casos mencionados pelo ministro Gilmar Mendes no trecho de seu discurso citado no início do texto, é possível realizar alguns questionamentos filosóficos acerca da função contemporânea do Supremo Tribunal Federal em nosso ordenamento jurídico. Neste trabalho, devido à limitação espacial proposta, somente serão destacados três temas específicos: a natureza dos questionamentos envolvidos nos casos constitucionais contemporâneos, a inadequação do método jurídico para resolver essas questões e a inexistência de certeza/previsibilidade no chamado "processo objetivo" [29].

Iniciando a análise, primeiramente cumpre destacar que em uma sociedade em que as instituições democráticas funcionam de maneira adequada, poucos são os casos em que o Legislativo edita normas que nitidamente violam os direitos fundamentais em sua concepção clássica de direitos negativos. Restrições à liberdade de expressão e de imprensa, por exemplo, raramente são objeto de deliberação parlamentar e, na maioria das vezes em que os governantes mencionam a intenção de limitar esses direitos, a própria opinião pública, independentemente da atuação judiciária, já tem tido o condão de derrubar o projeto de lei [30]. Ao final, os casos constitucionais mais relevantes que ascendem à Corte Constitucional dizem respeito a interpretações controvertidas das cláusulas constitucionais que apresentam conceitos extremamente vagos e abertos. Temas como aborto e pesquisa com células-tronco, citados pelo ministro Gilmar Mendes, ensejam debates apaixonados acerca do conteúdo do direito à vida, sem que haja a priori uma resposta correta ou consensual. Da mesma forma, a questão de saber se a proibição da prática de anti-semitismo implica uma proteção contra o racismo ou se é uma verdadeira restrição à liberdade de expressão, comporta diferentes respostas, sem que isso signifique uma maior ou menor adesão aos direitos fundamentais [31].

Na verdade, os principais casos constitucionais contemporâneos decididos pelas Cortes Constitucionais implicam uma análise de questões que a doutrina estrangeira classifica como desacordos razoáveis. Segundo nos ensina Samantha Besson [32], os desacordos razoáveis são aqueles que resistem a uma resolução racional, sendo uma realidade muito mais dividida que o mero pluralismo político. A existência desse tipo de desacordo significa reconhecer que em matérias de suprema importância, sobre as quais se pensava que os indivíduos chegariam a um consenso, a razão parece não guiar a um denominador comum, mas, ao contrário, tende a levar a posicionamentos cada vez mais distantes, opostos. Uma das características mais marcantes das sociedades modernas - acrescenta a autora - é a existência, cada vez em maior número, desses tipos de dilema moral. No rol dos desacordos razoáveis encontram-se questionamentos sobre o aborto, a clonagem humana, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia, o suicídio assistido, entre outros.

Nessa linha, ante a existência desses desacordos razoáveis, Jeremy Waldron [33] vem defendendo, desde há muito tempo, que, em um ordenamento jurídico fundado na revisão jurisdicional substantiva de constitucionalidade, os direitos fundamentais estão, na verdade, em risco, ao invés de protegidos. Isto porque nesse tipo de sistema judicial, em matérias de fundamental importância para os cidadãos, as decisões finais cabem aos tribunais, órgãos não-representativos e sem credenciais democráticas. Desse modo, o autor neozelandês sustenta que, em uma sociedade que realmente leva seus direitos a sério, existe bastante espaço para um desacordo moral honesto e de boa-fé entre os cidadãos a respeito de seus direitos fundamentais. Tais tópicos são normalmente complexos e controversos, e o consenso entre os filósofos consiste em não haver respostas definitivas para estas matérias. Assim, tendo em vista ser necessário eleger um procedimento para decidir estes casos, o processo democrático seria preferível. Ambos os Parlamentos e as Cortes decidem essas matérias por meio do voto majoritário de seus membros e ambos podem tomar decisões consideradas ruins pela opinião pública [34]. Quando se dá a uma Corte a última palavra sobre estes desacordos razoáveis, o único efeito real é que estaremos denegando aos cidadãos o direito de participar em termos isonômicos das decisões políticas fundamentais da sociedade.

Esta primeira crítica está umbilicalmente ligada à segunda, referente à ausência de objetividade e certeza das decisões no controle de constitucionalidade concentrado: Kelsen, como já mencionado, ao elaborar sua teoria de Jurisdição Constitucional, tinha em mente uma estrutura hierárquica de normas, escalonada de maneira lógica e objetiva, que limitaria os espaços de discricionariedade dos juízes àquela moldura de hipóteses fixada pela norma. No caso da Corte Constitucional, o seu papel seria apenas o de excluir o que estaria dentro da moldura constitucional previamente elaborada. Ocorre que, nos casos que temos em mente, que envolvem a discussão de matérias de natureza essencialmente contestadas, os textos constitucionais não apresentam sequer indícios sobre qual posicionamento seja o correto. Decidir se as pesquisas com células-tronco estão de acordo com a ordem constitucional vigente revela-se uma decisão muito mais subjetiva do que jurídica. Não há qualquer técnica em que se apóie o magistrado para defender qualquer um dos pontos de vista.

Nesse sentido, a idéia de certeza da teoria kelseniana somente poderia ser resgatada se fosse verdadeira a afirmação de que existe uma moralidade objetiva, conforme sustentado por Ronald Dworkin [35] [36]. Em outras palavras, se é verdade que existem respostas morais corretas para os casos constitucionais, a idéia kelseniana de certeza na análise da constitucionalidade das leis poderia ser reconciliada, já que a moralidade serviria para constranger a discricionariedade das decisões judiciais. Entretanto, do ponto de vista prático, este argumento não é auto-sustentável. Como bem salienta Jeremy Waldron: "é possível que diferentes juízes alcancem diferentes resultados, mesmo quando eles acreditam estarem diante da resposta correta, e nada sobre a ontologia de respostas corretas dá a nenhum deles razão para pensar que sua visão pessoal é mais correta do que qualquer outra visão" [37]. Levando em consideração que as pessoas, mesmo quando acreditam na existência de uma resposta correta sobre direitos fundamentais, podem discordar moralmente umas das outras - e elas normalmente discordam - então a objetividade moral passa a ser irrelevante neste tópico.

E esse é o principal ponto: os juízes discordam sobre interpretação judicial [38] na mesma proporção em que as pessoas comuns discordam sobre a moralidade coletiva. Os termos vagos em que as Constituições modernas são escritas não fornecem nenhum subsídio para os casos constitucionais difíceis. A única certeza é que a população vai ser diretamente afetada por alguma concepção particular de direitos acolhida pela maioria dos membros das Cortes Constitucionais. Nessas questões de moralidade política, não há nenhuma garantia que o ponto de vista adotado pelos juízes seja superior ao dos outros membros da sociedade.

Por fim, a última crítica refere-se à inadequação da via judicial para a solução dos conflitos constitucionais que envolvem desacordos razoáveis. De acordo com estudos realizados por Lon Fuller [39], o método jurídico utiliza-se necessariamente da dicotomia entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o que significa dizer que as Cortes estão aptas a tratar de casos que possam ser respondidos por meio de um código binário.

Entretanto, os casos que envolvem direitos fundamentais, como os mencionados na introdução deste trabalho, utilizam um esquema muito mais complexo. Como leciona Jeremy Waldron, esses casos possuem "uma característica multifacetária, que usualmente tem sido considerada como inapropriada para ser decidida em uma estrutura judicial" [40]. Como conseqüência dessa incapacidade, tornou-se cada vez mais comum a utilização de esquemas de balanceamento de direitos – como a técnica da proporcionalidade - por parte das Cortes Constitucionais. Tais procedimentos necessariamente envolvem uma análise de custo-benefício, função esta precipuamente desempenhada pelo Legislativo [41]. Além disso, alguns críticos, como Habermas, afirmam que a ponderação não possui critérios racionais de aferição da correção do método utilizado, permitindo uma subjetividade ilimitada por parte do intérprete [42]. Assim, a prática de Jurisdição Constitucional substantiva acaba por aniquilar qualquer pretensão de objetividade que Kelsen tenha tentado imprimir quando da elaboração de sua teoria constitucional.


IV-CONCLUSÃO

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, um dos sub-princípios do Estado de Direito é o princípio da legalidade, cuja significação é a de que ninguém pode ser constrangido arbitrariamente a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, senão em virtude de uma pauta predeterminada e pública que é denominada de lei [43]. O princípio da legalidade, na forma como é contemporaneamente identificado, carrega consigo dois valores, o da Justiça – pois a lei em uma sociedade democrática é fruto de uma deliberação em que o povo, direta ou indiretamente, chega a um consenso sobre o que considera melhor para a sociedade, tendo cada indivíduo o mesmo impacto e a mesma possibilidade de influenciar no resultado final – e o da Segurança – pois a lei antevê as hipóteses do mundo dos fatos que terão uma conseqüência jurídica caso venham a ocorrer, trazendo, portanto, previsibilidade às condutas individuais.

O ativismo judicial, fruto da opção por uma posição substancialista, desafia ambos os valores inerentes ao princípio da legalidade. Primeiro, porque em questões de grande relevância para a sociedade – como nos casos dos desacordos razoáveis – a decisão final cabe aos tribunais, compostos por membros não-eleitos e não-representativos. Segundo, porque, nos casos ditos difíceis, o texto constitucional simplesmente não diz nada sobre qual posicionamento a Corte Constitucional deve adotar, de maneira que o resultado de um caso constitucional permanece indefinido até o pronunciamento final da Corte. A previsibilidade restringe-se a uma análise do perfil e do comportamento dos juízes que compõem o tribunal.

Assim, ao menos no campo teórico, não há um argumento definitivo em favor de uma Jurisdição Constitucional substantiva. Trata-se, então, de uma questão de filosofia política, eleger qual estrutura institucional é a mais adequada para decidir determinados assuntos em nome da coletividade. Questões de direitos fundamentais normalmente envolvem desacordos razoáveis, que não serão definitivamente resolvidos por uma decisão judicial, o que leva a refletir sobre as reais conseqüências da adoção do atual modelo de controle de constitucionalidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEINIKOFF, Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing. Yale Law Journal, Vol. 96 (1987)

BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a teoria da Constituição. In: TAVARES, André Ramos et al. Constituição Federal: mutação e evolução, comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003

BESSON, Samantha. The Morality of Conflict: Reasonable Disagreement and the Law. Oxford: Hart Publishing, 2005

BONGIOVANNI, Giorgio. Estado de Direito e justiça constitucional: Hans Kelsen e a Constituição austríaca de 1920. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.). Estado de Direito: História, Teoria, Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006

BREYER, Stephen. Active Liberty: Interpreting Our Democratic Constitution. Alfred A. Knopf, 2006

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil Vol. 3. 4ª edição. Salvador: Jus Podium, 2007

DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002

DWORKIN, Ronald. Objectivity and Truth: You´d Better Believe it. Philosophy & Public Affairs, Vol. 25 (1996)

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 35ª edição – São Paulo: Saraiva, 2009

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009

FREEMAN, Michel. Human Rights – an interdisciplinary approach. Cambridge: Polity Press, 2002

FULLER, Lon. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review, nº. 92, pg. 353 (1940)

GALVÃO, Jorge. Concentração de Poder da Jurisdição Constitucional: Uma Análise Crítica de seus Pressupostos Teóricos. (no prelo)

GEARTY, Conor. Can Human Rights Survive? Cambridge: Cambridge University Press, 2006

HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Massachusetts: Polity Press, 1996

HART, Herbert. The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1994

KELSEN, Hans. Judicial Review of Legislation: A Comparative Study of the Austrian and the American Constitution. The Journal of Politics, Vol. 4, No. 2, pg. 185 (1942)

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2003

MENDES, Gilmar Ferreira. Direito Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed. ver. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2007

MOORE, Michel. Law as a Functional Kind. In:GEORGE, Robert. Natural Law Theory: Contemporary Essays. Oxford: Oxford Univ. Press 1992

OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. A hermenêutica e a (in)determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008

PALSON, Stanley. Constitutional Review in the United States and Austria: Notes on the Beginnings. Ratio Juris, nº. 16, pg. 234

RAMOS, Elival da Silva. A Evolução do Sistema Brasileiro de Controle de Constitucionalidade e a Constituição de 1988. In: MORAES, Alexandre (coord). Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2009

ROSENFELD, Michel. Hate Speech in Constitutional Jurisprudence: a Comparative Analysis. Cardozo Law Review, nº. 24, pg. 1523 (2002-2003)

SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law. The University Center for Human Values Series, 1997

WALDRON, Jeremy. A Right-Based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies, no. 1, pg. 13, (1993).

WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999

WALDRON, Jeremy. The Core of the Case against Judicial Review. Yale Law Journal, Vol. 115 (2006).


Notas

  1. Para obter o inteiro teor dos discursos dos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, acessar: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/posseGM.pdf e http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/discursoCM.pdf (Último acesso em 11/09/09).
  2. Sobre a classificação entre as formas de controle de constitucionalidade, cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 35ª edição – São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 36-38.
  3. Neste ponto, é importante ressaltar que a Representação Interventiva - primeiro procedimento de controle de constitucionalidade de índole abstrata adotado pelo Brasil - foi criada ainda em 1965, por meio da EC n. 16. Entretanto, somente com a Constituição Federal de 1988 é que o modelo objetivo passa a ter a prevalência dos dias atuais. Para uma análise evolutiva do controle de constitucionalidade no Brasil, cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direito Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed. ver. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2007, p. 189-217.
  4. RAMOS, Elival da Silva. A Evolução do Sistema Brasileiro de Controle de Constitucionalidade e a Constituição de 1988. In: MORAES, Alexandre (coord). Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2009, pg. 159.
  5. Neste sentido, cf. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de Direito Processual Civil Vol. 3. 4ª edição. Salvador: Jus Podium, 2007, pg. 274-280.
  6. Entre os defensores das teorias substancialistas, destaca-se o Professor norte-americano Ronald Dworkin. Já entre os doutrinadores procedimentalistas, assumem relevância os ensinamentos de Jürgen Habermas e John Hart Ely.
  7. Para uma apresentação geral das teorias substancialistas e procedimentalistas da Constituição, cf. BERCOVICI, Gilberto. A Constituição de 1988 e a teoria da Constituição. In: TAVARES, André Ramos et al. Constituição Federal: mutação e evolução, comentários e perspectivas. São Paulo: Método, 2003.
  8. A adoção pelo posicionamento substancialista é tão evidente no Brasil que é comum encontrarmos na imprensa frases do tipo "O controle da constitucionalidade das leis é decisivo para o funcionamento do Estado de Direito, na medida em que assegura direitos e garantias fundamentais para os cidadãos", como publicado pela Folha de São Paulo em seu editorial no dia 16 de maio de 2009.
  9. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 83-85.
  10. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2003, pg. 51.
  11. Kelsen afirma que, eventualmente, a Constituição pode conter aspectos materiais, como direitos fundamentais, citando como exemplo a Constituição americana, mas tal ponto não é o de maior relevância para sua teoria. Ele é enfático em afirmar que "como quer que se defina a Constituição, ela é sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se quer apreender". In: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 130.
  12. Stanley L. Paulson clarifica esta estrutura: "That is, one legal norm governs the process whereby another legal norm is created – and the idea applies to the full range of legal norms in the hierarchical structure. (…) the constitution that serves as the fundamental positive-law rule – more precisely, the set of fundamental positive-law rules – determining the organs and procedures provide for the remaining Stufen or levels of the hierarchy." In: Constitutional Review in the United States and Austria: Notes on the Beginnings. Ratio Juris, nº. 16, pg. 234.
  13. Kelsen afirma que antes da Constituição haveria uma norma supremo-transcendental, denominada de Groundnorm (norma fundamental), desprovida de qualquer conteúdo material, em que se estabelece apenas um dever-ser de se obedecer a Constituição vigente. Cf. Teoria Pura do Direito, Cap. 5.
  14. Nessa linha, é o ensinamento de Giorgio Bongiovanni, segundo o qual "Na reflexão de Kelsen, o controle de constitucionalidade das leis é o necessário correlativo jurídico da supremacia do ordenamento jurídico e do primado da Constituição. Como observa Kelsen, ‘uma Constituição que falte a garantia do anulamento dos atos constitucionais não é, em sentido técnico, completamente obrigatória’. ‘A garantia jurisdicional, a saber, a justiça constitucional´, é por isso um meio técnico voltado ‘para assegurar o exercício regular das funções do Estado’, que, a partir da estrutura hierárquica do ordenamento e da idéia da legislação como ‘aplicação do direito’, se traduz na avaliação de ‘regularidade’ das leis, ou seja, da correspondência entre o grau inferior e um grau superior do ordenamento jurídico’’. BONGIOVANNI, Giorgio. Estado de Direito e justiça constitucional: Hans Kelsen e a Constituição austríaca de 1920. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.). Estado de Direito: História, Teoria, Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 408.
  15. Assim, Kelsen aduz que "A norma a ser executada, em todos esses casos, forma apenas uma moldura dentro do qual são apresentadas várias possibilidades de execução, de modo que todo ato é conforme a norma, desde que esteja dentro dessa moldura, preenchendo-a de algum sentido possível. Entendendo-se por interpretação a verificação do sentido da norma a ser executada, o resultado dessa atividade só pode ser a verificação da moldura, que representa a norma a ser interpretada e, portanto, o reconhecimento de várias possibilidades que estão dentro dessa moldura". In: Teoria Pura do Direito, p. 116.
  16. KELSEN, Hans. Judicial Review of Legislation: A Comparative Study of the Austrian and the American Constitution. The Journal of Politics, Vol. 4, No. 2, pg. 185 (1942). (tradução livre)
  17. PAULSON. Op. Cit. pg. 235.
  18. Neste aspecto, é importante frisar que, na obra Jurisdição Constitucional de Kelsen, há um famoso trecho citado como justificativa para o controle de constitucionalidade com base em direitos fundamentais em que o autor afirma que "ao lado dessa significação geral comum a todas as constituições, a jurisdição constitucional também adquire uma importância especial, que varia de acordo com os traços característicos da Constituição considerada... Garantindo a elaboração constitucional das leis, e em particular sua constitucionalidade material, ela é um meio eficaz da minoria contra os atropelos da maioria". (p. 181) Entretanto, logo no início do parágrafo seguinte, Kelsen deixa claro seu posicionamento, afirmando que "é certamente no Estado federativo que a jurisdição constitucional adquire a mais considerável importância. Não é excessivo afirmar que a idéia política do Estado federativo só é plenamente realizada com a instituição de um tribunal constitucional". (p. 182)
  19. "Mas, precisamente no domínio da jurisdição constitucional, elas podem desempenhar um papel extremamente perigoso. As disposições constitucionais que convidam o legislador a se conformar à justiça, à equidade, à igualdade, à moralidade poderiam ser interpretadas como diretivas concernentes ao conteúdo das leis. Equivocadamente, é claro, porque só seria assim se a Constituição indicasse um critério objetivo qualquer.... É claro que a Constituição não entendeu, empregando uma palavra tão imprecisa e equivoca quanto a de justiça, liberdade, igualdade, moralidade, ou qualquer outra semelhante, fazer que a sorte de qualquer lei votada pelo Parlamento dependesse da boa vontade de um colégio composto de uma maneira mais ou menos arbitrário do ponto de vista político, como o tribunal constitucional. Para evitar tal deslocamento de poder – que ela com certeza não deseja e que é totalmente contra-indicado do ponto de vista político – a Constituição deve, sobretudo se criar um tribunal constitucional, abster-se desse gênero de fraseologia, e se quiser estabelecer princípios relativos ao conteúdo das leis, formulá-los da forma mais precisa possível." In: Jurisdição Constitucional, pg. 169.
  20. FREEMAN, Michel. Human Rights – an interdisciplinary approach. Cambridge: Polity Press, 2002, pg. 32.
  21. GEARTY, Conor. Can Human Rights Survive? Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pg. 50.
  22. GEARTY. Op. Cit. pg 19. (ênfase adicionada)
  23. Sobre a distinção entre conceito e concepção, cf. DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, pg. 74-75.
  24. Sobre a distinção entre os pontos de vista externo e interno do ordenamento jurídico, cf. HART, Herbert. The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1994, pg. 89-91.
  25. A idéia de juiz Hércules ideal é desenvolvida por Ronald Dworkin em suas obras sobre filosofia do direito. Para análise de sua formulação, cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pg. 164-203.
  26. Para uma análise da natureza dos princípios em Ronald Dworkin, cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. A hermenêutica e a (in)determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pg. 57-64.
  27. Neste sentido, o caso Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954), em que a Suprema Corte americana declarou a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas (doutrina do "Separate but Equal"), revela-se como o mais emblemático caso em que o ativismo judicial demonstrou ser efetivo na correção de desvios sociais. Este caso é sempre (o mais) citado por aqueles que defendem uma tese substancialista de legitimação da Jurisdição Constitucional.
  28. Atualmente, quase todas as faculdades de Direito de ponta dos Estados Unidos possui em seus quadros críticos da atual prática de "judicial review" levada a cabo pela Suprema Corte americana. Neste diapasão, confira as obras de Mark Tushnet (Harvard), Larry Kramer (Stanford), Jeremy Waldron (NYU) e Akhil Amar (Yale).
  29. Entretanto, uma série de outras críticas pode ser feita tomando como base o referencial teórico descrito no item anterior. Para uma análise mais aprofundada dessas críticas, cf. GALVÃO, Jorge. Concentração de Poder da Jurisdição Constitucional: Uma Análise Crítica de seus Pressupostos Teóricos. (no prelo)
  30. Conferir a discussão atual sobre a regulamentação da lei de crimes cibernéticos, denominada de Lei Azeredo. Até mesmo o presidente Lula, em 06/06/09, criticou a proposta, afirmando que o objetivo da lei é o de fazer censura. No mesmo sentido, em 17 de dezembro 2004, a Câmara dos Deputados rejeitou o projeto de lei, enviado pelo Executivo, que criava o Conselho Federal de Jornalismo. A celeuma tomou grandes proporções nos meios de comunicação nacionais de maneira que o único caminho a seguir era o de sua não aprovação.
  31. Neste sentido, duas das principais democracias modernas adotam posições díspares neste tópico, sem que isso implique em dizer que uma ou outra é mais ou menos democrática. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte declarou a constitucionalidade das manifestações públicas anti-semitas, sob o argumento da liberdade de expressão (R.A.V. v.City of St. Paul, 505 U.S. 377, 1992), enquanto que a Corte Constitucional alemã repudia qualquer ato que implique discriminação contra os judeus, como no caso denominado de Holocausto Denial Cases (BVerfGE 90, 241). Para uma discussão teórica sobre as duas aproximações, cf. ROSENFELD, Michel. Hate Speech in Constitutional Jurisprudence: a Comparative Analysis. Cardozo Law Review, nº. 24, pg. 1523 (2002-2003)
  32. BESSON, Samantha. The Morality of Conflict: Reasonable Disagreement and the Law. Oxford: Hart Publishing, 2005, pg. 1.
  33. WALDRON, Jeremy. A Right-Based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies, no. 1, pg. 13, (1993).
  34. Neste sentido, a doutrina americana classifica os casos Dread Scott v. Sandford, Plessy v. Ferguson e os referentes à chamada "Lochner Era" como desastres constitucionais no que se refere aos direitos fundamentais dos cidadãos.
  35. Em seu livro O Império do Direito (São Paulo: Martins Fontes, 2003) Ronald Dworkin é bastante evasivo neste ponto, afirmando que nesta obra não entraria no debate acerca da existência de uma moralidade objetiva, e que ele se utiliza da "linguagem da objetividade não para dar a nossas afirmações morais ou interpretativas habituais um fundamento metafísico bizarro, mas apenas para repití-las, talvez de um modo mais preciso, para enfatizar ou qualificar seu conteúdo" (pg. 99-100). Entretanto, em um artigo mais recente, Objectivity and Truth: You´d Better Believe it, em Philosophy & Public Affairs, Vol. 25 (1996), pg. 87-139, Dworkin é bastante claro sobre o seu ponto de vista. Ao contrário do que deu a entender em seu livro, agora ele não parece mais achar ser possível haver um debate frutífero acerca deste tema.
  36. Para uma defesa deste ponto de vista – de que o controle jurisdicional das leis seria justificável em virtude da existência de uma moralidade objetiva – cf. MOORE, Michel. Law as a Functional Kind. In:GEORGE, Robert. Natural Law Theory: Contemporary Essays. Oxford: Oxford Univ. Press 1992.
  37. WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, pg. 187.
  38. De fato, em uma sociedade plural, em que o Judiciário revela-se bastante heterogêneo, é comum que haja juízes com visões interpretativas antagônicas. Nesse aspecto, para a análise de duas posições hermenêuticas distintas entre dois juízes atuais da Suprema Corte americana, compare Stephen Breyer, Active Liberty: Interpreting Our Democratic Constitution (Alfred A. Knopf, 2006) com Antonin Scalia, A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law (The University Center for Human Values Series, 1997).
  39. FULLER, Lon. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review, nº. 92, pg. 353 (1940).
  40. WALDRON, Jeremy. The Core of the Case against Judicial Review. Yale Law Journal, Vol. 115 (2006), pg. 1336.
  41. ALEINIKOFF, Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing. Yale Law Journal, Vol. 96 (1987), pg. 943. O autor acrescente que com a ponderação o Judiciário não apenas participa da criação de políticas públicas, mas também acaba por tratar de maneira similar aos direitos fundamentais genuínos – que deveriam prevalecer na esfera pública - os mais diversos interesses da sociedade.
  42. HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Massachusetts: Polity Press, 1996, pg. 259.
  43. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 179-181.

Autor

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    Jorge Octávio Lavocat Galvão

    Procurador do Distrito Federal e Advogado. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Teoria do Direito pela New York University - NYU, pós-graduado em Direitos Humanos pela London School of Economics and Political Science - LSE e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2973, 22 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19822. Acesso em: 26 abr. 2024.