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Apontamentos críticos sobre a súmula vinculante

Apontamentos críticos sobre a súmula vinculante

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Será que podemos falar em casos "iguais"? As súmulas não serviriam para ocultar as diversidades decorrentes das situações concretas de aplicação, originando sentenças "injustas"?

A Emenda Constitucional 45/2004, que procurou introduzir mudanças no Poder Judiciário para que haja uma maior celeridade e eficiência na prestação jurisdicional, pode ser apresentada, ainda que de maneira pontual, na medida em que nos propomos a analisar uma dentre suas várias alterações e inovações, qual seja, a criação da "súmula vinculante", como mais um exemplo da inadequação da simples aprovação de emendas formais para mudança de nossas práticas sociais [01], o que acaba por aprofundar ainda mais nossa descrença normativa ao criar expectativas fadadas a uma excessiva e gigantesca frustração.

Como justificativa da introdução de tal instituto jurídico encontra-se a convicção de que será possível, através da obrigatoriedade de aplicação dos precedentes anteriores para a fundamentação e decisão de futuros casos "iguais", uma maior agilidade na prestação jurisdicional, o que levaria ao atendimento mais eficaz das inúmeras demandas que abarrotam o judiciário, assemelhando-se a atividade de julgar/aplicar normas jurídicas a uma simples "operação matemática", desconsiderando-se então a complexidade decorrente da unicidade dos casos concretos, pois até mesmo os "fatos" nunca são dados à espera de apreensão, sendo construções que carregam consigo a implicação hermenêutica daqueles que com eles lidam. Não podemos jamais esquecer o que aprendemos com Gadamer, que toda aplicação, por sempre envolver um esforço interpretativo, mesmo quando não haja qualquer obscuridade na literalidade dos termos linguísticos empregados, somente ocorre no "presente", na medida em que a nossa situação hermenêutica interfere no sentido que atribuímos ao texto ou a seus equivalentes, como os mencionados fatos.

Será então que podemos falar em casos "iguais"? As súmulas não serviriam para ocultar as diversidades decorrentes das situações concretas de aplicação, originando sentenças "injustas" em nome de uma maior certeza, em nome de uma segurança jurídica? Como se pode depreender da própria análise do parágrafo 1.º do Art. 103-A, acrescentado à CF/88 pela emenda que introduziu reformas no Poder Judiciário, as súmulas vinculantes têm como um de seus pressupostos a existência de controvérsia atual que "acarrete grave insegurança jurídica", e essa divergência de julgados é normalmente entendida como geradora de injustiças na medida em que supostamente significaria uma violação ao princípio constitucional da isonomia, pois se entende que casos iguais devem ser decididos da mesma maneira. Entretanto, perguntaríamos se a segurança numa sociedade pluralista como a moderna, onde não há mais uma visão privilegiada da sociedade, não adviria da consideração das particularidades de cada caso concreto, da potencial oitiva dos interessados e da aplicação da norma mais "adequada" ao conflito em questão? Não configuraria a adoção, pelos tribunais superiores, mais especificamente pelo Supremo Tribunal Federal, de uma única e vinculante interpretação a-temporal de uma norma jurídica, como um resquício de uma crença iluminista numa verdade absoluta, entendendo-a impassível de questionamento por aqueles que devem aplicar a Constituição? Mas, se toda aplicação é também compreensão, é possível restringir a atividade interpretativa àqueles que se consideram "donos" da Constituição? Nesse sentido, será que as súmulas realmente seriam vinculantes?

O fato é que os defensores da súmula vinculante não entendem que a mesma não elimina a intransponível mediação entre as normas gerais e abstratas e as situações concretas de vida, configurando-se os enunciados ou assentos das decisões reiteradas dos tribunais, que se tornaram obrigatórios, como verdadeiras normas dotadas de abstração e generalidade, ou seja, o problema da aplicação jurídica permanece. Em outras palavras, poderíamos dizer que sempre restará ao juiz a tarefa de analisar e justificar se determinada súmula adequa-se ou não à situação fática em análise.

Critica-se [02] a súmula vinculante pelo fato dela atentar contra a livre convicção dos magistrados, isto é, contra sua independência, ou até mesmo contra o princípio da separação dos poderes, na medida em que através de sua adoção estaria o poder judiciário "legislando" ao estabelecer uma interpretação correta de determinada norma jurídica, interpretação esta dada a priori que regularia as futuras decisões jurisdicionais e até mesmo os atos da Administração Pública, invertendo assim, nas palavras de Rodolfo Camargo Mancuso, o nosso "modelo jurídico-político", pois a partir de então não mais deveríamos fazer ou deixar de fazer alguma coisa somente em virtude de lei [03].

A pergunta que devemos levantar aqui é se a criação de súmulas significa realmente uma vinculação dos juízes. Será que texto é capaz de impedir a independência de convicção dos magistrados? Não podem os mesmos elaborar argumentações "mirabolantes" ou até mesmo simples desenvolvimentos argumentativos para retirar os casos que estão a julgar da hipótese de incidência de determinada súmula? A própria previsão, no parágrafo 3.º da citado artigo 103-A da CF/88, da possibilidade de ser proposta Reclamação ao STF quando houver desrespeito à súmula, demonstra que a vinculação pode não ocorrer. A plausibilidade dessa não observância dos precedentes pode ainda ser reforçada pelo fato, já mencionado anteriormente neste trabalho, de que até mesmo o direito está fadado a ser frustrado, sendo composto de expectativas normativas que são assim denominadas por justamente resistirem à desilusão. Entretanto, ao contrário do direito que estabelece sanções à sua desobediência, será que podemos admitir a punição por crime de responsabilidade, tal como foi cogitado no processo de aprovação da EC em questão, caso os juízes desviem-se dos enunciados sumulados quando do julgamento de casos concretos? Será que a adoção, em um Estado Democrático de Direito, marcado pela igualdade na diferença, pelo pluralismo de formas de vida, de uma interpretação diversa da sumulada pelo STF, configuraria um ilícito tão grave a ponto de ser penalmente tutelado? Não é intrínseca à atividade de aplicar o direito a realização de compreensão/interpretação das normas [04]? A própria situação hermenêutica do momento de aplicação, diversa da subjacente à elaboração dos entendimentos sumulados, não seria uma variável a ser considerada para justificar a diversidade de julgamentos? Se estamos em uma sociedade sem vértices, onde não é mais defensável que um observador se considere soberano, por estar o mesmo sempre imerso em tradições, será que ainda podemos admitir, sob o manto do precedente vinculante, uma total submissão dos magistrados a uma interpretação tida como infalível, inserindo-os em "um curso intolerável de humilhações" (BARBOSA apud LINS E SILVA, 1997) por lhes ser tolhida a autonomia de pensar, convertendo-os "em espelho inerte dos tribunais superiores" (BARBOSA apud LINS E SILVA, 1997)?

Resta dizer que as frases de Rui Barbosa logo acima citadas foram proferidas em defesa de um Juiz do Rio Grande do Sul que, nos anos iniciais de nossa história republicana, mais especificamente em 1896, deixou de aplicar uma lei estadual [05] por entendê-la inconstitucional, pelo que foi acusado e julgado pelo crime de prevaricação, em outros termos, o magistrado foi processado pelo "delito de interpretação inexata dos textos" (BARBOSA apud LINS E SILVA, 1997).

"Esse episódio revela que a tentativa de submeter os juízes à obediência, à submissão, às decisões dos tribunais superiores, não é nova. Vem de longe, é um resíduo castilhista dos começos da República." (LINS E SILVA, 1997:s.p.)

De fato, desde os assentos das Casas de Suplicação, passando pelos do Superior Tribunal de Justiça, até as mais recentes tentativas de restringir a atividade interpretativa, como as reformas de nível infra-constitucional que atribuíram caráter vinculativo a decisões jurisdicionais, demonstram que não se configura como uma novidade em nosso ordenamento a obrigatoriedade dos precedentes do STF, muito pelo contrário, a introdução da súmula vinculante representa o ápice de todo um processo de centralização da interpretação jurídica nos órgãos de cúpula do Poder Judiciário. Para exemplificar, podemos citar o art. 557 do CPC, que permite ao relator decidir liminarmente pelo não prosseguimento de recurso em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF, ou de Tribunal Superior, ou pelo provimento de recurso quando a decisão recorrida estiver em confronto com súmula ou jurisprudência dominante dos mesmos tribunais mencionados; o parágrafo único do art. 481 do CPC, acrescentado pela Lei n.º 9.756/98, que permite aos órgãos fracionários dos tribunais decidir argüição de inconstitucionalidade sem submeter o julgamento ao plenário ou a órgão especial, quando estes órgãos, ou o próprio STF, já tiver se pronunciado sobre a matéria, relativizando assim a exigência do art. 97 da CF/88; o parágrado 3.º do art. 475 do CPC, acrescentado pela Lei n.º 10.352/01, que extingiu a exigência do "duplo grau de jurisdição" quando "a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do Tribunal superior competente"; a previsão de efeitos vinculantes e eficácia erga omnes às decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, mais especificamente em ADIn e ADPF, tal como dispôs as Leis n.º 9.869/99 e 9.882/99 [06]; a própria criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade pela EC n.º 3/93 que, em substituição à avocatória do período ditatorial, deu ao STF o poder de, quando provocado, por fim a determinada divergência jurisprudencial, gerando uma decisão em bloco para vários conflitos, o que por si só nos permite questionar a "abstração" comumente atribuída ao controle concentrado de constitucionalidade.

Poderíamos citar vários outros exemplos dessa tendência de nosso ordenamento de concentrar, tornado-a vinculante, a interpretação das normas nos tribunais superiores de nosso país, mas como a enumeração foi realizada apenas a título ilustrativo, não nos cabe alongar mais nesse resgate histórico-jurídico. O que nos interessa é demonstrar que não podemos analisar as reformas constitucionais apenas por meio de seus textos, pois um documento escrito, como reiteramente afirmado, não é capaz de, por si só, operar transformações em nossas práticas quotidianas. Ousaríamos dizer que a vinculação pretendida por uma súmula apresenta-se, muitas vezes, com uma maior força persuasiva quando nem mesmo é estabelecida como obrigatória, basta vermos a notória vinculatividade dos Enunciados e Orientações Jurisprudenciais do Tribunal Superior do Trabalho. Neste caso, a obediência aos precedentes de um tribunal superior deve-se a outros fatores, e não a um dever funcional imposto pelo direito. Cabe ressalvar, entretanto, que não estamos aqui desprezando a forma jurídica, mas sim ressaltando que texto nunca pode ser desvinculado de seu contexto, sendo que até mesmo a criação de um novo documento escrito pode ter sido fruto de todo um processo já em curso, como no caso das Súmulas Vinculantes, ou pode gerar frustração caso não resulte em novas experiências, isto é, quando não se transforme em vivência.

Portanto, o que pretendemos evidenciar é que a crença de que texto é capaz de controlar o contexto, de que basta criar novas legislações para que nossa "realidade" constitucional seja transformada, caracteriza uma postura no mínimo "ingênua" de todos que assim se comportam. Isso porque a nossa condição hermenêutica revela-nos que a Constituição não se reduz ao momento de criação do documento escrito assim denominado, já que possuímos responsabilidade nesse projeto constituinte, pois somos todos intérpretes do direito, oficiais ou não, na medida em que atribuímos sentido ‘as normas jurídicas em nossos corriqueiros e atribulados dias.


Bibliografia:

DE ROURE, Denise. PASSOS, Nicanor Sena. "Reforma do Judiciário: críticas e propostas para solucionar a crise que assola esse Poder". In: Consulex, n.º 3, mar, 1997. s. p. (Versão CD-ROM)

GADAMER, Hans-George. Verdade e Método; traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 3.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 731p.

GADAMER, Hans-George. O Problema da Consciência Histórica. Trad. Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.71p.

GOMES, Luiz Flávio. "Súmula Vinculante e Independência Judicial". In: Consulex, n.º 8, ago, 1997. s. p. (Versão em CD-ROM)

LAMMY, Marcelo. CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. "Reflexões sobre as Súmulas Vinculantes". In: TAVARES, André R. LENZA, Pedro. ALARCÓN, Pietro de Jesús L. Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Editora Método, 2005. P. 295 - 318.

LINS E SILVA, Evandro. "Crime de Hermenêutica e súmula vinculante". In: Consulex, n.º 5, mai, 1997. (Versão em CD-ROM)

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 2.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. 462p.

VIGLIAR, José Macelo Menezes. "A Reforma do Judiciário e as Súmulas Vinculantes". In: TAVARES, André R. LENZA, Pedro. ALARCÓN, Pietro de Jesús L. Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Editora Método, 2005. P. 285 – 293.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 919p.

WALD, Arnald. MARTINS, Ives Gandra da Silva. "O Efeito Vinculante das Decisões Judiciais". In: Consulex, n.º 1, jan, 1997. s. p. (Versão em CD-ROM)


Notas

  1. Prova de que texto algum é capaz de regular vida nos é dado pela manutenção, em decisão do Supremo Tribunal Federal, no RE 438639-MG, Relator Ministro Carlos Ayres Britto, da competência da Justiça Comum para julgar as ações de acidente de trabalho, em oposição à ampla disposição do artigo 114, I, da CF/88, com redação dada pela EC nº 45/2005;ou pela manuntenção, em decisão liminar tomada pelo Ministro Nelson Jobim, com efeito ex tunc, na ADIn nº 3.395-DF, Relator Min. Cezar Peluso, da competência da Justiça Federal para julgar ações envolvendo relações de trabalhode servidores estatutários, realizando uma interpretação conforme do inciso I, do artigo 114, da CF/88 que, na verdade, serviu para afastar a incidência do novo texto constitucional. Cabe ressaltar que o inciso citado acima amplia a competência da Justiça do Trabalho ao fazer menção à relação de trabalho, isto é, não restringe a competência desta Justiça Federal Especial ao julgamento de causas envolvendo relação de emprego, como acontecia, salvo raras e expressas exceções, antes da emenda constitucional em questão.
  2. Opiniões contrárias e a favor da súmula vinculante, inclusive de Ministros do STF e STJ, podem ser encontradas em: (DE ROURE, PASSOS, 1997), (WALD, MARTINS, 1997), (GOMES, 1997), e (LAMY, CONCI, 2005).
  3. "Parece inegável que, dessa maneira, resulta alterado o modelo jurídico-político antes estabelecido entre nós, que assim deixa de ser estritamente centrado na norma legal (família da civil law), dada a recepção de uma característica básica da common law, qual seja o precedente judiciário, a operar como paradigma nas relações entre os indivíduos, e na interação destes com o Estado. Corolariamente, restará admitir que a jurisprudência, sob a modalidade sumulada ou dominante, passa a atuar como um comando geral, abstrato e impessoal, de sorte que, no rol das fontes das obrigações, caberá então elencar, ao lado da lei, do contrato e do ato ilícito, também a súmula vinculativa e a jurisprudência dominante" (MANCUSO, 2001:310-311). Resta um questionamento: não seria inconstitucional a EC em análise, ao criar o instituto da súmula vinculante, por relativizar o princípio da reserva legal, previsto no inciso II, do artigo 5.º, ofendendo assim o inciso IV, parágrafo 4.º, do artigo 60 da CF/88?
  4. Há autores que, desconsiderando toda virada hermenêutica, entendem que as súmulas dispensariam mais interpretações: "A regra da vinculação é extremamente clara e tem uma força que convenhamos, supera em alguns aspectos a força da lei, pois a lei pode ser interpretada e levada aos tribunais. A decisão, nos limites previstos na Constituição Federal, não. Terá eficácia erga omnes e efeito vinculante aos demais juízes e Administração!" (VIGLIAR, 2005:288)
  5. Trata-se da Lei n.º 10, de 16 de dezembro de 1895, que dispôs sobre o júri popular, tendo modificado o procedimento quanto à recusa de jurados e quanto à sigilosidade da votação. Sobre o tema, ver: (STRECK, 2004:427-428).
  6. Essa atribuição, através de lei ordinária, de efeitos vinculantes e eficácia erga omnes às ações de constitucionalidade, com exceção da ADC, foi considerada inconstitucional por vários doutrinadores, tendo sido tal inconstitucionalidade "sanada" pela previsão de tais efeitos e eficácia no artigo da EC nº 45/05.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Ana Paula Repolês. Apontamentos críticos sobre a súmula vinculante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2981, 30 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19861. Acesso em: 28 mar. 2024.