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A importância do conhecimento da condição humana para o Direito e a sua relação com a noção de cidadania

A importância do conhecimento da condição humana para o Direito e a sua relação com a noção de cidadania

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E o Direito, onde situá-lo nisso tudo? Qual o seu verdadeiro papel na contribuição da condição humana e da cidadania?

" Os poetas cantam os sofrimentos dos humanos

submetidos à crueldade do mundo e da vida"

(Edgar Morin)

Já dizia o filósofo e prosador grego Plutarco que "Sócrates dizia que não era ateniense nem grego, mas um cidadão do mundo." Analisando a frase sob a ótica sociológica, notamos que tanto a condição humana, assim como a noção de cidadania já eram preocupações freqüentes na mentalidade do homem antigo. A luta pela cidadania esteve presente no povo hebreu, na Grécia de Aristóteles e Platão onde os cidadãos organizavam-se para a prática da cidadania e também para debaterem acerca do verdadeiro significado da vida, tentando explicá-la por meio da racionalidade através da filosofia, sem falar na Roma de Cícero, onde a cidadania era constantemente ponto de discussões.

Nos dias atuais a ideia de cidadania encontra-se intimamente relacionada ao direito de as pessoas elegerem seus representantes políticos, como por exemplo, o direito de votar, e ao dever de cumprir os deveres sociais, v. g o pagamento dos impostos. No entanto, essa forma de classificação de cidadania é restrita e não corresponde ao seu real conceito, por não abranger toda a dimensão do que é ser cidadão dentro do atual modo de funcionamento da sociedade. Iremos nesta dissertação dar ênfase a dois autores que trabalharam de forma magistral esses temas: Max Weber com a motivação e a racionalização e Edgar Morin com a condição humana e aprendizagem cidadã.

É importante ressaltar que, para um estudo mais completo necessitamos muito mais que um simples artigo para entendermos a lógica e o raciocínio desses dois pensadores, na minha concepção às vezes difíceis de serem traduzidos em simples textos teóricos.

Neste passo, tanto Weber quanto Morin apesar de não serem contemporâneos têm alguns pontos em comum: ambos defendem que o indivíduo não é apenas produto do meio social, mas produtor e construtor desse meio do qual ele faz parte, ou seja, eles vão trabalhar a sociologia voltada para o sujeito. Weber por meio da ação social e Morin através da complexidade.

Quando Morin diz que o ser humano é uma síntese de razão e emoção, medo e desejo, seres matérias e espirituais, físicos e metafísicos, humanidade e animalidade, na verdade ele quer nos mostrar que nós somos verdadeiros paradoxos contraditórios, ou seja, o ser humano depois de tantos anos de evolução ainda não conseguiu encontrar sua verdadeira identidade.

Quanto a sua concepção de cidadania o pensador francês nos lembra um pouco Sócrates, haja vista que o mesmo prega uma espécie de cidadania planetária. Para ele a ideia de cidadania deve ser pensada de outra forma. Vamos tentar entender melhor essa lógica, por exemplo, quem nasce no Rio Grande do Norte é um cidadão potiguar, contudo o nosso estado faz parte da federação do Brasil, portanto, quem nasce nesta nação é cidadão brasileiro, todavia o nosso país também faz parte do continente americano que por sua vez, faz parte do planeta Terra, desse modo, todos nós além de sermos cidadãos brasileiros somos também cidadãos do mundo.

Neste sentido, cidadania não se restringe apenas ao indivíduo que goza de direitos e deveres civis num país, mas ser cidadão do mundo é ser antes de tudo um ser humano preocupado com os problemas do planeta. Para compreendermos melhor essa temática fiquemos com uma frase de Morin:

"A consciência e o sentimento de pertencermos à Terra e de nossa identidade terrena são vitais atualmente. A progressão e o enraizamento desta consciência de pertencer a nossa pátria terrena é que permitirão o desenvolvimento, por múltiplos canais e em diversas regiões do globo..." (MORIN, Edgar,A cabeça bem- feita, Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. p.73)

Não podemos deixar de fazer aqui um paralelo entre dois documentários interessantíssimos que abordam o tema: "Quem Somos Nós" e "Janela da Alma", ambos colocam em xeque a condição humana, no primeiro questionando-se qual o sentido da vida? De onde viemos? Para onde vamos ? Quem somos nós? Que são justamente as mesmas indagações feitas por Morin em seu livro "A Cabeça bem Feita". De certa forma, perguntas como essas trazem para a mente humana uma série de dúvidas, pois apesar de todo avanço científico e tecnológico adquirido pelo homem ao longo dos séculos, tais incertezas fazem com que ele não se diferencie muito dos seus antepassados, uma vez que o homem antigo fazia essas mesmas perguntas há milênios atrás.

Em "A Janela da Alma" o questionamento gira em torno de olhar o mundo de outra forma, isto é, o mundo é "visto" por pessoas cegas através da janela da alma. As pessoas desse documentário não enxergam com o olho físico, todavia têm percepções que pessoas ditas "normais" muitas das vezes não têm, pois apesar de serem consideradas visualmente saudáveis, por outro lado, estão terrivelmente enfermas por dentro, isto é, estão com as suas janelas da alma fechadas. Dessa forma, ficam cegas por não quererem enxergar o mundo real, ou seja, a estética do mundo, que para Morin não está relacionada a adorno, enfeite ou ilusão, e sim com a forma de como as coisas se apresentam ao nosso olhar, de uma forma natural, isto é, como ele é.

Neste sentido, São Tomé já dizia que "é preciso ver para crer", todavia, data vênia, acho a frase do santo equivocada, pois o contrário é que é verdade: é preciso crer para ver. Diante de tais reflexões proponho as seguintes indagações: será que o ser humano evoluiu desencantando o mundo, segundo a racionalização weberiana? Ou será que estamos regredindo, e, portanto, vivendo uma espécie de reencantamento do mundo? Acredito que as superstições como as apresentadas no documentário " Quem somos nós" voltaram a assombrar a frágil mente humana em pleno século XXI.

E o Direito onde situá-lo nisso tudo? Qual o seu verdadeiro papel na contribuição da condição humana e da cidadania? Respondo afirmando que precisamos de um Direito que transcenda o campo do formalismo, que ultrapasse as barreiras do elitismo e abra espaço para a universalização da cidadania, de maneira que todos os cidadãos, desde os mais simples até os mais abastados, tenham uma visão clara e compreensiva do Direito e sua real função.

Sendo apenas um acadêmico de direito não tenho a pretensão, nem quero competir aqui com os chamados doutrinadores do Direito, que tem em sua ala mais radical a defesa de um direito formalista e acessível apenas aos seus operadores (advogados, juízes, promotores etc.) e distante do povo. Todavia, sinto-me na ousadia aqui de fazer uma intertextualidade com uma frase de Morin, onde ele diz "que a Antropologia que exclui a vida de nossa vida privada, é uma Antropologia privada de vida¹". Tal qual é o Direito que afasta o cidadão dos seus direitos e o priva de sua cidadania é um Direito desprovido de direitos, pois tira do cidadão uns dos seus bens mais preciosos no que concerne à vida social, a sua cidadania.

Destarte, da mesma forma que o direito não subsiste sem seus vários ramos interligados entre si, compondo um corpo orgânico e sistemático; o pensamento complexo não se concretiza se não tiver um entrelaçamento de várias idéias para compor as partes, pois a sua finalidade é justamente essa: unir os contrários e construir algo maior do que a simples somatória da partes.

Assim sendo, a tríade: Condição Humana, Direito e Cidadania, da mesma forma que os outros vários ramos do conhecimento humano, não podem ser concebidos de forma fragmentada, mas interligados entre si compondo um corpo harmônico, numa união equilibrada entre o científico e o humano, de maneira que o sujeito não seja apenas mero observador dessa associação, mas um construtor que compreenda seu espaço e o espaço que o envolve.

Somente assim, é que chegaremos a uma verdadeira valorização do ser humano, onde o espírito criativo prevalecendo sobre o reprodutivo, tire do homem todo artificialismo desnecessário e o faça ser uma fonte inesgotável de boas ideias e não apenas um simples reprodutor de conhecimento.


Referências

1- MORIN, Edgar, A cabeça bem-feita, Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. p. 36

2- Sociologia de Marx Weber/ Julien Freund: tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa; revisão de Paulo Guimarães do Couto – 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE NETO, Francisco Galdino de. A importância do conhecimento da condição humana para o Direito e a sua relação com a noção de cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2982, 31 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19884. Acesso em: 28 mar. 2024.