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Uma breve análise da tensão entre positivismo e pós-positivismo como aportes de interpretação/aplicação jurídica a partir do poema "Traduzir-se", de Ferreira Gullar

Uma breve análise da tensão entre positivismo e pós-positivismo como aportes de interpretação/aplicação jurídica a partir do poema "Traduzir-se", de Ferreira Gullar

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Apresenta-se o conflito entre a perspectiva positivista de interpretação jurídica, baseada no silogismo lógico dedutivo, e a perspectiva pós-positivista, pautado nas estruturas normativas dos princípios.

RESUMO:

O presente artigo busca apresentar o conflito entre a perspectiva positivista de interpretação jurídica, ainda latente como aporte teórico do intérprete/aplicador, baseada no silogismo lógico dedutivo, e a perspectiva pós-positivista que acena para um paradigma emergente de interpretação jurídica pautado nas estruturas normativas que enunciam um caráter deontológico, quais sejam, os princípios. Esse embate paradigmático tomará como lugar de partida o poema intitulado de "Traduzir-se" do escritor Ferreira Gullar.

Palavras-chave: Literatura. Direito. Positivismo. Pós-Positivismo. Interpretação. Hermenêutica.


1. INTRODUÇÃO: A LITERATURA COMO LUGAR DE PARTIDA

A partir da afirmação de Boaventura de Sousa Santos "a ciência pós-moderna não segue um estilo unidimensional, facilmente identificável [...] Na fase de transição em que nos encontramos são já visíveis fortes sinais deste processo de fusão de estilos" [01], visualiza-se a transdisciplinaridade como característica emergente no paradigma de ciência na atualidade. Além disso, faz-se necessário elucidar que a mudança de perspectiva efetuada pelo giro lingüístico, em que a linguagem passa a ser entendida como figura elementar de constituição (e compreensão) do indivíduo na faticidade do mundo e não apenas como instrumento que canaliza a relação entre o homem e a realidade, possibilita a aproximação do Direito com a Literatura, tendo em vista ambos serem fenômenos essencialmente lingüísticos em que o texto (apesar de poderem ocorrer de maneira verbal) se configura como o lócus constitutivo da compreensão.

Assim, é possível mais perfeitamente compreender a questão da interpretação do Direito pelo procedimento comparativo com a Literatura. Pode-se tomar a relação entre Direito e Literatura sob três enfoques: Direito da Literatura, Direito na Literatura e Direito como na Literatura.

Sob o primeiro aspecto, simplesmente, o texto jurídico objetiva disciplinar fatos relacionados à literatura, ou melhor, fenômenos literários. Por outro lado, a perspectiva do Law in Literature analisa obras literárias que abordam questões jurídicas, tais como julgamentos, exercício profissional etc., busca-se, em síntese, promover embasamento para que o campo jurídico possa melhor compreender o Direito, tendo em vista que "ao exprimir uma visão de mundo, a Literatura traduz o que a sociedade e seu tempo pensam sobre o Direito" [02].

Por fim, ao tratar do enfoque "Direito como Literatura", oportunas são as palavras de Daniel Nicory do Prado:

Além do fato de, não raro, sobreporem-se um ao outro, Direito e Literatura podem ser estudados a partir de sua identidade como texto, e, assim, dos recursos comuns da hermenêutica, e da possibilidade de aplicação de recursos específicos da teoria literária ao texto jurídico, e de recursos específicos da teoria jurídica ao texto literário. Essa dimensão, na classificação mais consolidada, é denominada "Direito como Literatura" [03].

Sob essa última perspectiva, tomou-se como lugar de partida um dos poemas do insigne escritor maranhense Ferreira Gullar que, no ano de 2010, além de ser contemplado com o título de Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi agraciado com o Prêmio Camões.

O poema escolhido para análise foi o intitulado "Traduzir-se" [04] em que se verifica um eu-lírico que enuncia uma sensitiva dualidade que reside no seu ser, além de concluir que o enlace entre as perspectivas opostas é precisamente relevante, pois lhe faz indagar sobre o sentido da sua existência, bem como se a imbricação contraposta exarada em "traduzir-se uma parte na outra parte" é fazer arte (criação). Esse antagonismo existencial habita o ser-intérprete que enfrenta o embate de uma herança jurídica sob perspectiva subjetivo-positivista, fundada na noção de Estado de Direito (liberal), e o novo horizonte de sentido que emerge com a intersubjetivadade-pós-positivista, calcada na concepção de Estado (Democrático) de Direito.


2. POSIVITISMO JURÍDICO E HERMENÊUTICA

O Estado Democrático de Direito como modelo emergente das insuficiências dos paradigmas de Estado antecedentes, quais sejam Estado Liberal e Estado Social, traz embutido na sua conjuntura um deslocamento do centro de poder de decisão e, consequentemente, na interpretação/aplicação do direito.

No delineamento do Estado Liberal, conseqüência lógica do processo histórico de ruptura com o Regime Absolutista que representava um modelo de supressão da vontade do monarca em relação à do povo, o centro de poder se instaura no poder legislativo como condição de possibilidade de garantia das liberdades individuais dos cidadãos. Além disso, estabeleceram-se limites e funções dos poderes, conferindo ao Executivo a atribuição meramente organizacional do Estado e ao judiciário a aplicação "fiel" do direito posto, de outra forma, viabilizou-se a regulação da política nos três poderes no Estado de Direito, sendo essa completamente plausível no campo legislativo, parcialmente na seara executiva e, por fim, neutra no poder judiciário.

Nessa perspectiva de Estado, tem-se a lei como ponto de partida e fonte principal para interpretação das questões que penetram o campo jurídico. Assim, vale elucidar que o processo de positivação do direito, em que insere a lei como fonte racional do direito, implica em conceber aquela como norma de validez emanada de uma representação legitimada que instrumentaliza as valorações e expectativas de comportamento da sociedade civil.

Desse modo, é conclusivo que "a ideologia legalista legitimou a preservação do statu quo pelo argumento de que o conjunto de leis corporificava o justo pleno, cristalizando formalmente os princípios perenes do direito natural" [05].Neste contexto emerge o paradigma positivista como referencial teórico para aplicação do direito.

De modo geral, o positivismo jurídico, sobretudo no sentido restrito de positivismo legal, oferece uma visão de sistema de características notáveis, em que pese a variedade das suas formas. Primeiramente, trata-se de um "sistema fechado", do qual deriva a exigência de acabamento, ou seja, a inocorrência de lacunas que são compreendidas, nessa acepção, como fenômenos aparentes, pois o sistema jurídico é, fundamentalmente, manifestação de um harmônico corpo unitário, perfeito e acabado. Além disso, deve-se pontuar outra característica do positivismo que diz respeito à idéia de sistema como método, ou melhor, como instrumento metódico do pensamento, ou seja, relaciona-se diretamente com o procedimento construtivo e o dogma da subsunção. Nessa linha, leciona o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

De modo geral, pelo procedimento construtivo, as regras jurídicas são referidas a um princípio ou a um pequeno número de princípios daí deduzido. Pelo dogma da subsunção, segundo o modelo da lógica clássica, o raciocínio jurídico se caracterizaria pelo estabelecimento de uma premissa maior, que conteria a diretiva legal genérica, e de uma premissa menor, que expressaria o caso concreto, sendo a conclusão a manifestação do juízo concreto. [06]

O intérprete procede, assim, pelo silogismo em que a premissa maior é o texto normativo, a premissa menor são os pressupostos de fato e, por efeito, a conseqüência jurídica; em decorrência disso, a textualidade centraliza a atividade interpretativa.

A interpretação passa a ser entendida como busca ao autêntico sentido contido no texto legal. Assim, emergem dois posicionamentos, um de natureza subjetiva, voluntas legitoris, em que a atividade interpretativa se centra na vontade daquele que, à época, emitiu o texto legal, o legislador; bem como outro de viés objetivo, voluntas legis, em que a interpretação se funda na vontade consubstanciada no próprio texto legal.

Por conseqüência, surgem métodos hermenêuticos que objetivam uma estruturação regrada para resolução de problemas de caráter interpretativos. Novamente com o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Junior:

Os chamados métodos de interpretação são, na verdade, regras técnicas que visam à obtenção de um resultado. Com elas procuram-se orientações para os problemas da decidibilidade dos conflitos. Esses problemas são de ordem sintática, semântica e pragmática. [07]

Sinteticamente, têm-se: método gramatical, em que se busca conhecer a origem etimológica dos vocábulos e aplicar os preceitos estruturais de regência e concordância; método lógico-sistemático, em que se analisam as proposições normativas sob prisma da lógica formal, bem como correlaciona o texto normativo ao sistema jurídico inteiro ou a sistemas paralelos; método histórico, em que o interprete investiga as normas pretéritas que antecederam as atuais para, assim, por comparação compreender estas; método sociológico, em que busca conferir aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe originaram e as que surgiram após sua criação, bem como atender às necessidades atuais da comunidade; e, por fim, o método teleológico em que o ato de interpretar é orientado pelos fins sociais que a norma busca, atribuindo ao intérprete a função de adequar a norma ao presente.


3. PÓS-POSITIVISMO

Pelas insuficiências do modelo estatal liberal-individual-normativista, ou seja, de um Estado abstencionista, calcado na noção precária de liberdade e do positivismo, surge o Estado Social trazendo a idéia de um modelo estatal intervencionista que saí da inércia de mera organização de Estado, tendo, por conseguinte, o centro de decisão deslocado para o poder executivo em que a igualdade emerge como estandarte a equalizar o modelo anterior.

Todavia, a noção de igualdade pode levar à falta de liberdade, paradoxalmente, se a liberdade dialeticamente pelas insuficiências do liberalismo, engendra as condições para a superação via igualdade, esta pode ser um obstáculo à liberdade, visto que se cairia em igualar indivíduos que são por conjunturas da própria relação jurídica desiguais, essa idéia de igualdade se funda em estabelecer de antemão que todos os indivíduos são na realidade fática iguais, ou melhor, verificava-se que no primeiro momento de liberdade-liberal, substancialmente os indivíduos não eram iguais, haja vista a estrutura do antigo regime, no momento que o Estado trata da igualdade estabelecendo tratamento a esses indivíduos de forma igualitária, leva a obstacularizar a liberdade, pois, em termos simplórios, a parte mais fraca se sujeitaria às condições impostas pelo pólo mais forte.

Assim, surge o Estado Democrático de Direito em que deve ser visto o Direito como instrumento de transformação social, pois carrega, nos seus textos constitucionais, elevada carga de valores e caráter compromissário voltado para mudanças nas estruturas econômicas e sociais. Por isso, Lenio Luiz Streck vai sustentar que:

No Estado Democrático de Direito, em face do seu caráter compromissário dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, ocorre, por vezes, um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano jurisdicional. [08]

Nessa noção de Estado, na qual se acentua a derrocada do projeto das perspectivas da modernidade, emerge o paradigma pós-positivista em que os princípios [09] ascendem como condição fulcral para a concretização do Direito.

A insuficiência do modelo positivista enquanto sistema fechado, imbuído da lógica formal dedutiva e neutralmente pautado em métodos reducionistas de fenômenos jurídicos, acaba sinalizando a doutrina do positivismo como paradigma simplório e carente que termina não abarcando toda a problemática dos fenômenos da realidade fática.

A deontologia dos princípios prescreve uma normatividade dos valores validados pelo discurso de fundamentação do juízo político, trazendo ao campo jurídico a moral exilada pela doutrina positivista. Além disso, os argumentos de princípios juntam-se as regras jurídicas como normas do sistema jurídico com outra estrutura [10].

Nessa linha, o pensamento de Theodor Viehweg ganha importância ao enfatizar a tópica como modo de raciocínio jurídico que acena para a idéia de verossimilhança, dirimindo controvérsias a partir do problema pelos topoi, lugares comuns, ressaltando os pontos de partida, premissas plausíveis, e não as conclusões.

A contribuição de Chaïm Perelman mostra-se de bom alvitre no que tange ao posicionamento do raciocínio jurídico, a partir da distinção aristotélica entre raciocínio dialético e raciocínio analítico, no primeiro gênero, relevando o viés argumentativo do Direito. Juntamente a isso, os princípios funcionam como topoi em que residem premissas, compartilhadas pela comunidade jurídica, a serem adotadas como critérios de fundamentação de decisões. Vale acrescentar a importância dada argumentação no posicionamento de Luís Roberto Barroso:

A argumentação, a demonstração racional do itinerário lógico percorrido, o esforço de convencimento do auditório passam a ser fonte de legitimação e controlabilidade da decisão. No plano moral, já não se aceita, sem objeção profunda, que qualquer decisão emanada da autoridade competente seja legitima. Cada vez mais se exige sua justificação racional e moral. [11]

Em outra esteira, Ronald Dworkin, tomando como base o modelo positivista de Herbert Hart, vai admitir a existência de casos fáceis e casos difíceis no direito. Contudo, o jusfilósofo estabelece que o Direito não é apenas um conjunto de regras, mas é composto também por normas-princípios, não alusivos ao critério de validade da regra de reconhecimento de Hart [12], bem como pelo papel que eles desempenham no sistema normativo, através do sopesamento [13], sempre é possível encontrar uma resposta correta para o caso. A tese é totalmente anti-discricionária, mostrando que é inadequado considerar que o juiz tem o poder discricionário de decidir o caso de uma maneira ou de outra nos famosos hard cases.

Ademais, o direcionamento da atividade do intérprete/aplicador à resposta correta deve estar agregado às noções de coerência e integridade do Direto. Esses conceitos estão diretamente ligados à idéia do "romance em cadeia" em que, como romancista que recebe um livro para ser continuado, acrescentando-lhe capítulos sem perder de vista o fio condutor de sua história, na atividade interpretativa/aplicativa, o juiz tem de dar continuidade a história desenvolvida pela ordem jurídica, reconstruindo racionalmente o sistema, verificando a comunidade de princípios fundamentais que dão sustentáculos às instituições políticas, para obtenção de respostas adequadas (justas) aos casos.


4. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Conforme exposto acima, a derrocada da doutrina positivista pela perspectiva pós-positivista também acena para a ruína da perspectiva da Filosofia da Consciência em face da Filosofia da Linguagem. Nesse ponto, precisas são as palavras de Jürgen Habermas:

A passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem traz vantagens objetivas, além de metódicas. Ela nos tira do círculo aporético onde o pensamento metafísico se choca com o antimetafísico, isto é, onde o idealismo é contraposto ao materialismo, oferecendo ainda a possibilidade de podermos atacar um problema que é insolúvel em termos metafísicos: a individualidade. [14]

Nesse novo paradigma, a linguagem passa a ser compreendida como condição constitutiva do homem no mundo e não apenas como instrumento de entre o ser e o mundo. O modo da linguagem e sua maneira de realizar-se, ou seja, a compreensão dialógica de algo é o que sustenta o entendimento entre os indivíduos e acerca do algo que compõe o mundo, "nossa compreensão do mundo é, sempre, linguisticamente interpretada. Enquanto lugar do evento do ser, a linguagem é aquele acontecimento originariamente único, no qual o mundo se abre para nós" [15]. A linguagem figura-se como elemento condicionante da existência do homem no mundo que, desse modo, percebe-se ser que compreende e interpreta dentro das possibilidades determinadas pela tradição, e temporalmente se determinam, na e pela linguagem. O Prof. Lenio Streck ensina:

Tradição é transmissão. A experiência hermenêutica, diz o mestre, tem direta relação com a tradição. É esta que deve anuir à experiência. A tradição não é um simples acontecer que se possa conhecer e dominar pela experiência, senão que é linguagem, isto é, a tradição fala por si mesma. O transmitido, continua, mostra novos aspectos significativos em virtude da continuação histórica do acontecer. Toda atualização na compreensão pode entender a si mesma como uma possibilidade histórica do compreendido. Na finitude histórica de nossa existência, devemos ter consciência de que, depois de nós, outros entenderão cada vez de maneira diferente. [16]

Nesse sentido, o legado hermenêutico de Hans-Georg Gadamer, seguindo a linha do filosofo Martin Heidegger, sinteticamente, pode ser verificado nas noções de pré-compreensão e historicidade que remontam ao círculo hermenêutico; esse acaba estabelecendo que as condições que tornam o pensamento possível não são autogeradas, mas estabelecidas bem antes de nos engajarmos em atos de introspecção, há um senso do/no mundo antes de começar-se a fazer julgamentos sobre ele; na verdade, já se está envolvido no mundo bem antes de separar-se dele para entendê-lo; o que existe é o entendimento prévio de fundo, implícito, constantemente em ação.

A perspectiva do Dasein entendido como ser-no-mundo assinala a condição de todo ‘ser’ só pode ser compreendido e existe inserido na faticidade do mundo, só é alguma coisa quando se insere nessa historicidade em que o faz ser algo; o Dasein não é algo estanque mas ‘ser’ que, através de seus envolvimentos práticos no mundo já culturalmente interpretado, está se projetando constantemente para o futuro, quanto permanece enraizado em entendimentos tácitos no presente e no passado, pois a existência do ser não está presa nos pré-entendimentos, tendo em vista que esses são condição na qual se busca entender o mundo de maneira mais explicita e autoconsciente.

O círculo hermenêutico é a projeção interpretativa do Dasein sobre o mundo na forma de projetos individuais, das atividades e da pré-estrutura de fundo que informa os projetos e está em constante movimento com eles. Há um constante diálogo entre os horizontes que se fundem na circularidade que se estabelece diálogicamente pelo círculo interpretativo, sempre profícua a observação de Hans-Georg Gadamer:

Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrario, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder [17]


5. A DUALIDADE DO INTÉRPRETE EM "TRADUZIR-SE" DE FERREIRA GULLAR

Assentadas as premissas, passa-se a análise do texto poético "Traduzir-se" do poeta Ferreira Gullar. O título remete a uma das três orientações da forma verbal grega "hermeneuein" [18] significando "traduzir" que consiste num processo de tornar compreensível, por meio da língua, algo que nos é ininteligível. Conforme Richard Palmer:

A tradução torna-nos conscientes do facto de que a própria língua contém uma interpretação. A tradução torna-nos conscientes de que a própria língua contém uma visão englobante do mundo, à qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz expressões individuais. A tradução apenas nos torna mais totalmente conscientes de modo como as palavras na realidade moldam a nossa visão do mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de que a língua é um repositório de uma experiência cultural; existimos nesse médium e através dele; vemos através dos seus olhos. [19]

Assim, a tradução possibilita a interconexão de dois mundos, o universo compreensivo do intérprete e o horizonte de compreensão do texto, dentro da realidade fática em que se encontram.

Nesse ponto, é importante elucidar que nessa quadra da história, o intérprete/aplicador se encontra dualmente dividido no paradigma de interpretação jurídica (dominante) baseado no positivismo jurídico e no paradigma de interpretação jurídica pós-positivista (emergente), qual seja, de um lado uma perspectiva lógico-dedutiva, de outro, um viés hermenêutico fenomenológico.

Nos iniciais versos:

Uma parte de mim

É todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Verifica-se que de um lado, a noção do sujeito da filosofia da consciência que, solipsisticamente pela lógica dedutiva que reforça a idéia de suficiência das regras, soluciona os casos assujeitando as coisas à lógica-formalista e, quando esse método não funciona, à sua convicção o que acarreta juízos monológicos arbitrários.

Por outro lado, emerge a noção do sujeito que compreende a partir do sentido construído na intersubjetividade do mundo onde se constitui, pautado na idéia dos valores comungados pela comunidade da qual faz parte serve de base para a validade social do ato decisional derradeiro.

Nos seguintes versos:

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Enuncia-se no ponto a fragilidade da perspectiva sustentada pelo positivismo na fungibilidade e imprecisão técnica de métodos interpretativos e do sujeito cognoscente da voluntas legis, bem como da discricionariedade (em sentido forte) [20] conferida ao intérprete/aplicador no que concerne aos casos difíceis [21] que culminam em decisões que não seguem as condições climáticas e marítimas em que se encontra a embarcação, mas o bel-prazer da circularidade arbitrária do leme do navegador. Em contrapartida, oportuna é a lição de coerência de Dworkin:

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo que os outros juizes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando disseram, mas para chegar a opinião sobre o que esses juizes fizeram coletivamente na maneira de como cada um de nossos romancistas formou a opinião sobre o romance coletivo escrito até então. [...] Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar como parceiro de um complexo de empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. [22]

Juntamente a isso, vale elucidar que aos casos difíceis no pós-positivismo emerge técnica da ponderação de princípios em que a colisão de normas principiológicas devem ser, conjuntamente com fatos do caso concreto, sopesadas para verificar qual razões mais preponderam e em qual intensidade devem ser graduadas ao caso.

Nos versos derradeiros:

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte -

será arte?

Desse modo, confirma-se assim a derrocada da acepção da filosofia da consciência para o paradigma da filosofia da linguagem, em que, conforme o Lenio Streck:

A linguagem então, é totalidade; é abertura para o mundo; é, enfim, condição de possibilidade. Isto porque é pela linguagem e somente por ele que podemos ter mundo e chegar a esse mundo. [...] Sem a palavra, sem a linguagem, não há existência. Não falamos sobre aquilo vemos, mas sim o contrario; vemos o que se fala sobre as coisas. [23]

Em outro ponto, retomando o título do poema, traduzir com uma questão de vida ou morte, existencial, consiste na ratificação do ser-intérprete com olhos pós-positivistas que encara os velhos problemas que encara com o olhar positivista, que, por fim, acena para um hermeneuta que, na preciosa lição do mestre gaúcho:

deve estar atento à tradição (e à sua autoridade), compreender os seus pré-juizos como pré-juízos, promovendo uma reconstrução do direito, perscrutando de que modo um caso similar [...] vinha sendo decidido até então, confrotando a jurisprudência com as práticas sociais que, em cada quadro do tempo, surgem estabelecendo novos sentidos às coisas e que provocam um choque de paradigmas, o que sobremodo valoriza o papel da doutrina jurídica e a interdisciplinaridade do direito. Como bem diz Gadamer, a compreensão alcança suas verdadeiras possibilidades quando as opiniões prévias com as que se inicia não são arbitrárias. [24]


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Ed. Saraiva, São Paulo, 2009.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Martins Fontes, São Paulo, 2002.

__________ .Uma questão de princípio. Martins Fontes, São Paulo, 2001.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. Editora Atlas, São Paulo, 1980.

_________ . Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. Editora Atlas, São Paulo, 2003.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: anatomia de um desencanto. Juruá, Curitiba, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. 1990.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ed. Malheiros, São Paulo, 2004.

PALMER, Richard E..Hermenêutica. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1969.

PRADO, Daniel Nicory do. Autos da Barca do Inferno: O discurso narrativo dos participantes da prisão em flagrante. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2313. Acesso em: 22 de Abril de 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências. Edições Afrontamento, Porto, Portugal, 2002.

SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação jurídica. Ed.Saraiva, 2010.

SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação dos valores. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/12518. Acesso em: 20 de Setembro de 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001.

_________. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Forense, São Paulo, 2004.

_________. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teoria Discursivas: Da Possibilidade à necessidade de respostas Corretas em Direito. Lumens Juris, Rio de Janeiro. 2007


Notas

  1. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Edições Afrontamento, 1995, p.49.
  2. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: anatomia de um desencanto. Curitiba: Juruá, 2002, p.158.
  3. PRADO, Daniel Nicory do. Autos da Barca do Inferno: O discurso narrativo dos participantes da prisão em flagrante. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php? codArquivo=2313. Acesso em 22 de Abril de 2011.
  4. "Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém:fundo sem fundo./Uma parte de mim é multidão:outra parte estranheza e solidão./Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira./Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente./Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem./Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte?/". Poema extraído do endereço eletrônico http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/
  5. SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação jurídica. Ed.Saraiva, 2010, p.42.
  6. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. Editora Atlas, 1980, p.13.
  7. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. Editora Atlas, 2003, p.286.
  8. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Forense, 2004, p.19.
  9. Primorosa é a definição de princípio enunciada pelo Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello: "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico". MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ed. Malheiros, 2004, p.771-772.
  10. Utilizando-se do critério adotado por Ronald Dworkin, a distinção entre regras e princípios se funda basicamente em três aspectos: natureza lógica, dimensão de peso e admissão de exceções. Nesse ponto ver "Levando os Direitos a Sério".
  11. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Ed. Saraiva, 2009, p.340-341.
  12. Sinteticamente, a regra de reconhecimento de Hart funciona como um cânone de testabilidade de regras no âmbito interno e externo.
  13. Nesse sentido, compactuo com as veementes críticas de Marcus Seixas Souza à idéia de ponderação de Alexy quando aquele estabelece a distinção entre sopesamento e ponderação: "Reside importante diferença entre aplicação do princípio adequado e a aplicação ponderada de princípios. A primeira respeita o mandamento da Separação de Poderes, se limitando a interpretar os fatos e o Direito válido para encontrar uma norma adequada, entre as possíveis e aplicáveis prima-facie; a segunda, proposta por Alexy, autoriza o magistrado a mitigar princípios que concorrem (prima-facie) para o caso concreto, isto é, corrigir o legislador, diminuindo ou aumentando a intensidade de efetivação de determinado princípio, como se este fosse um valor e pudesse ser manipulado desta forma. O pensamento de Alexy ultrapassa a um bem-aventurado ativismo judicial; parece sequer respeitar as limitações constitucionais fundamentais à mera existência da Democracia, e termina por esvaziar a juridicidade de sua metodologia, já que eticiza o discurso de aplicação de normas". SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação dos valores. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/12518. Acesso em: 20 de Setembro de 2010.
  14. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. Tempo Brasileiro, 1990, p.53.
  15. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2001, p.174.
  16. Idem. p.181.
  17. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Editora Vozes, 1997, p.542.
  18. Nesse sentido: "As três orientações, usando a forma verbal (hermeneuein) para fins exemplificativos, significam: 1)exprimir em voz alta, ou seja ‘dizer’; 2) explicar, como quando se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma língua estrangeira". PALMER, Richard E.. Hermenêutica. Edições 70, 1969, p.24.
  19. PALMER, Richard E.. Hermenêutica. Edições 70, 1969, p.37.
  20. Esse sentido de discricionariedade deve ser entendido como a acepção "sentido forte" de discricionariedade. Nessa linha, ver capítulo 4 de "Levando os Direitos a Sério".
  21. Casos difíceis, no dialeto de Dworkin, são aqueles em que é difícil identificar com nitidez a regra que solucione o caso ou, ainda, certificar a existência dela no sistema normativo; por via de conseqüência, haveria nesses casos uma abertura interpretativa que culminaria numa possível discricionariedade judicial do julgador.
  22. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Martins Fontes, 2001, p.238.
  23. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2001, p.175.
  24. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teoria Discursivas: Da Possibilidade à necessidade de respostas Corretas em Direito. Lumens Juris, 2007, p.274.

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ALBUQUERQUE, Diego Pablo Candeias de. Uma breve análise da tensão entre positivismo e pós-positivismo como aportes de interpretação/aplicação jurídica a partir do poema "Traduzir-se", de Ferreira Gullar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2985, 3 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19919. Acesso em: 3 maio 2024.