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A doutrina do Direito de Emmanuel Kant

A doutrina do Direito de Emmanuel Kant

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Analisam-se algumas das categorias centrais à doutrina kantiana do Direito, com atenção a temas como liberdade, igualdade, justiça, legislação moral, legislação jurídica, Direito, sociedade civil, Estado, Estado de direito, formas de governo, divisão de poderes e Constituição.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Breves apontamentos sobre a metafísica dos costumes de Emmanuel Kant; 2. A legislação moral e a legislação jurídica no pensamento kantiano; 3. Liberdade, igualdade e justiça na doutrina do Direito de Emmanuel Kant; 4. O sujeito, a sociedade civil e o Estado de direito no pensamento kantiano; 5. Formas de governo, divisão de poderes e Constituição; Considerações finais; Referências.


Introdução

Não há necessidade de grandiosos esforços retóricos para justificar o consolidado lugar de destaque que possui, desde o final do século XVIII, o pensamento filosófico de Emmanuel Kant [01]. Sua obra tem influenciado de maneira impar o pensamento moderno, sobretudo na Filosofia, no Direito e na Política.

No campo da Filosofia estão inseridas as mais conhecidas obras de Kant, a tríade de críticas ("Crítica da razão pura", "Crítica da razão prática" e "Crítica do juízo"), onde o autor estabelece as bases de seu pensamento filosófico. As contribuições do filósofo de Koenigsberg para o Direito foram apresentadas em uma primeira parte de sua "Metafísica dos costumes", publicada em 1797 sob o título de "Doutrina do Direito".

O presente estudo propõe-se a analisar algumas das categorias centrais à doutrina kantiana do Direito, com atenção a temas como liberdade, igualdade, justiça, legislação moral, legislação jurídica, Direito, sociedade civil, Estado, Estado de direito, formas de governo, divisão de poderes e Constituição.

Aqui será privilegiada, no mais das vezes, a análise direta dos escritos de Kant, a partir de uma postura mais preocupada com a apresentação de suas idéias, sem uma constante avaliação crítica. Não se está, com isso, negando a existência de abalizados comentadores da sua doutrina do Direito, tanto na literatura nacional como na alienígena. O que se busca é uma análise tanto mais próxima possível das idéias do autor; pretensão, por certo, não pouco audaciosa, a uma pela dificuldade da temática, a duas pela conhecida complexidade do pensamento kantiano.

Kant é um autor conhecido não só pela densidade de seu pensamento filosófico, mas também pelas dificuldades e obscuridades próprias do seu estilo. Dificuldades que o próprio autor reconhecia, como o fez no prefácio da segunda edição de sua "Crítica da razão pura", publicada em 1787 [02]. Como assevera o autor, para o estudo da metafísica "é preciso renunciar a ser entendido por todos e até à linguagem popular. Há necessidade, pelo contrário, de se apegar à precisão da linguagem da escola (porque a escola também tem a sua linguagem), mesmo com o risco de ser acusado de pedante" [03].


1. Breves apontamentos sobre a metafísica dos costumes de Emmanuel Kant

A metafísica dos costumes, no pensamento kantiano, constitui-se em um sistema da razão prática [04]. Enquanto a física ocupa-se tão somente de objetos exteriores (experiências particulares), a metafísica está relacionada à idéia de ciência (sistema de princípios). Pode-se dizer que a metafísica dos costumes estabelece o conjunto de princípios a priori que orientam o comportamento humano, tanto no prisma moral como no âmbito jurídico.

Interessante asseverar que a expressão "metafísica" aí empregada não sugere algo transcendente, natural ou revelado por obra divina, mas sim um corpo de conhecimentos racionais, um sistema da razão para além da física. Metafísica, por conseguinte, relacionada com os princípios da razão. Por "costumes" deve-se entender a complexidade de leis que disciplinam a ação do homem enquanto "ser livre", pertencente ao mundo inteligível, ao mundo da cultura, da civilização, contraposto ao mundo da natureza.

Esse sistema da razão prática divide-se em "princípios metafísicos da ciência do Direito" e "princípios metafísicos da ciência da moral". Consequentemente, a ciência do Direito representa a primeira parte da metafísica dos costumes.

Entretanto, Kant adverte que, "como a noção de Direito, enquanto noção pura, tem por base a prática ou aplicação aos casos que se apresentam na experiência, resulta que um Sistema Metafísico do Direito deve ter em conta a diversidade empírica de todos os casos possíveis para constituir uma divisão completa (o que é estritamente necessário para constituir um sistema da razão". Por outro lado, ainda que não se possa descartar a parte experimental ou prática na metafísica do Direito, o empírico não pode formar parte essencial deste sistema racional, mas unicamente uma aproximação sistemática, permanecendo os princípios metafísicos do Direito como núcleo duro da ciência jurídica [05].

Kant inicia o estudo da metafísica dos costumes discorrendo acerca de expressões como desejo, prazer e sentimento, categorias de suma relevância para o entendimento, v. g., da noção kantiana de arbítrio. "O desejo é a faculdade de ser causa dos objetos de nossas representações por meio das próprias representações". O desejo e a aversão são sempre acompanhados de prazer ou desprazer. A capacidade humana de experimentar prazer ou desprazer com a idéia de alguma coisa é denominada sentimento. Impende notar o caráter eminentemente subjetivo do sentimento, uma vez que o prazer ou desprazer não se relacionam com o objeto desejado, mas simplesmente com o sujeito [06].

Para explicar a idéia de arbítrio, o autor apresenta a noção de faculdade apetitiva. Esta, "enquanto seu princípio de determinação se encontra em si mesma e não no objeto, chama-se faculdade de fazer ou de não fazer à discrição; enquanto está unida à consciência da faculdade de operar para produzir o objeto, chama-se arbítrio" [07].

O arbítrio, portanto, é a capacidade de fazer ou não fazer. Se a faculdade apetitiva encontra-se na razão do sujeito, chama-se vontade. No arbítrio, a faculdade apetitiva está relacionada à ação (um fazer ou não fazer). Na vontade, aquela se relaciona ao princípio que determina o arbítrio à ação; "não é precedida de nenhum princípio de determinação; pelo contrário, visto que pode determinar o arbítrio, é a própria razão prática" [08].

No pensamento kantiano, o livre-arbítrio é aquele que pode ser determinado pela razão pura, diferentemente daquele arbítrio que não é determinável a não ser por inclinação, por estímulo, ao qual o autor denomina arbítrio animal (arbitrum brutum). O arbítrio humano é aquele que não é determinado, mas sim afetado por motivos, podendo ser impelido à ação por uma vontade pura [09]. A vontade pura (boa vontade) é o que dita a lei moral, livre das necessidades e inclinações sensíveis a que está submetido o homem. Trata-se da vontade considerada em si mesma, livre de quaisquer elementos externos, não se constituindo em meio ou instrumento para nada, mas sim em um fim em si mesma [10].

Continuando a traçar o fio condutor do pensamento kantiano acerca do Direito, faz-se mister estabelecer as definições de legalidade, moralidade, dever externo e dever interno, dentre outras, imprescindíveis ao desenrolar da sua doutrina da Direito.


2. A legislação moral e a legislação jurídica no pensamento kantiano

A idéia de legalidade na doutrina do Direito de Kant está intimamente relacionada às noções de arbítrio, vontade e liberdade. As leis da liberdade, ou seja, os princípios de determinação que condicionam a ação humana às leis da razão, são chamadas de leis morais. As leis morais são distintas das leis naturais ou físicas [11].

As leis naturais ou físicas são leis descritivas, relacionadas com o mundo do ser (realidade). Já as leis morais, e também as jurídicas, são eminentemente prescritivas, onde há preocupação com o dever ser, com o que pode ser.

As leis jurídicas são aquelas que estão relacionadas às ações externas do indivíduo e à legitimidade de tais ações. "Porém, se, além disso, exigem que as próprias leis sejam os princípios determinantes da ação, então são chamadas de éticas na acepção mais própria da palavra". A legalidade, portanto, é a simples conformidade da ação externa com as leis jurídicas. De outra banda, a moralidade é a conformidade com as leis morais, o respeito à lei da razão, à lei geral, à lei da liberdade [12].

No que toca à moralidade, pode-se dizer que a autonomia da vontade ou da razão pura prática é o princípio supremo da moralidade kantiana. Trata-se do fundamento da dignidade humana e fonte básica da moralidade. A autonomia da vontade é a constituição da vontade, a qualidade de ser lei para si mesma, independente de como forem constituídos os objetos do querer [13].

O indivíduo, quando obedece a uma lei jurídica, pratica uma ação conforme o dever, obedece a uma lei externa com o fim de evitar a sanção. Quando obedece a uma lei moral, sua ação é por dever, uma lei interna que o indivíduo obedece não movido por inclinação ou interesse, mas porque se reconhece como legislador da lei. O que tem força de lei para o sujeito kantiano é a vontade, uma vez que a razão é o instrumento que ilumina a vontade.

A ação moral, portanto, é somente aquela realizada para obedecer à lei do dever. Se a ação é imbuída de certo interesse material, cumprida por impulsos diversos daquele do cumprimento do próprio dever, não se trata de ação moral. Esta não é movida por outra inclinação que não o respeito à lei, livre de quaisquer outras inclinações, quaisquer outros impulsos subjetivos [14].

O motivo constitui o cerne da diferenciação entre a legislação moral e a legislação jurídica. Nesta, a lei faz da ação um dever, dever externo de obedecê-la por aversão à sanção, por um impulso subjetivo diferente do puro respeito ao dever. Não se exige que a idéia desse dever se constitua no princípio determinante do arbítrio do agente. Isto ocorre na legislação moral, onde o dever é interno e também externo, devendo estar conforme a uma lei geral e universal. Na lei moral, "um motivo relaciona com a representação da lei o princípio que determina subjetivamente o arbítrio a essa ação". Portanto, o motivo não entra na legislação jurídica, sendo que o indivíduo obedece a uma lei jurídica a fim de evitar a sanção [15].

A noção de sanção ganha outra conotação no que toca às leis morais. Segundo as leis morais, determinadas ações são permitidas ou proibidas, e dentre aquelas permitidas, ou seu contrário, algumas são obrigatórias, resultando o dever cujo cumprimento traz subjetivamente um prazer e a violação uma pena de espécie particular (o sentimento moral) [16].

As leis morais, no pensamento kantiano, constituem-se em leis práticas absolutas. São imperativos, e mesmo imperativos categóricos, regras de fazer ou não fazer por dever. Diferentemente dos imperativos técnicos ou hipotéticos, os imperativos categóricos são absolutos, não admitem condição. O imperativo categórico é uma regra prática que converte em necessária e absoluta uma ação subjetivamente contingente. Pensa e impõe necessariamente a ação, de modo imediato e objetivo [17].

Essa legislação da razão prática (leis morais) incide somente sobre seres livres. Somente seres livres e dotados de razão podem ser submetidos à razão prática. "Esta legisla sobre seres livres, ou, mais exactamente, sobre a causalidade destes seres (operação pela qual um ser livre é causa de alguma coisa)" [18].

Pode-se dizer que é lícita a ação não contrária a uma obrigação. Já a faculdade surge quando de uma liberdade não contrária a nenhum imperativo categórico. Onde não há faculdade de obrigar não há direito, não há relação jurídica. Esta somente existe na relação do homem com seres que têm direitos e deveres, porque é uma relação de homem a homem. O dever é o conteúdo da obrigação, a ação a que uma pessoa se encontra obrigada. E a obrigação nada mais é do que a necessidade de uma ação livre baseada em um imperativo da razão [19].

O Direito pertence ao mundo das relações exteriores e constitui-se na relação de dois ou mais arbítrios. Somente há relação jurídica se há relação entre dois ou mais arbítrios. O Direito é a forma universal de coexistência dos arbítrios, o conjunto das condições segundo as quais é possível a convivência dos homens entre si, estando as liberdades externas de cada um limitadas e garantidas segundo uma lei universal [20].

Resulta, portanto, que se pode formular o imperativo categórico que enuncia de uma maneira geral o que é obrigatório, nos seguintes termos: "age segundo uma máxima que possa ao mesmo tempo ter valor de lei geral. Podes, portanto, considerar tuas ações segundo seu princípio subjetivo; mas não podes estar seguro de que um princípio tem valor objetivo exceto quando seja adequado a uma legislação universal, isto é, quando este princípio possa ser erigido por tua razão em legislação universal" [21].

Máxima, no pensamento kantiano, é o que condiciona a ação do indivíduo, é subjetiva, é a regra que o agente prescreve a si mesmo. É "o princípio subjetivo que o sujeito se impõe como regra de ação (é o como quer agir). Ao contrário, o princípio do dever é o que a razão lhe prescreve em absoluto, por conseguinte objetivamente (é o como deve agir)" [22]. Completando o que foi exposto acima, pode-se dizer que a ação moral toma a máxima como motivo.

Os preceitos da moral obrigam a todos, sem considerações acerca das inclinações de cada um. Obrigam pelo fato de que todo homem é livre e dotado de uma razão prática. E essas leis da razão prescrevem a maneira como se deve agir, mas não têm relação com o mundo do ser, não surgem da observação do mundo. São prescritivas de um dever de ação, mesmo quando ninguém tenha agido conforme a prescrição. As leis morais são dadas a priori pela razão prática [23].

De posse dessas noções introdutórias acerca da metafísica dos costumes, pode-se avançar para temas em tudo correlatos com as idéias kantianas de arbítrio, vontade e legalidade, temas como liberdade, igualdade e justiça.


3. Liberdade, igualdade e justiça na doutrina do Direito de Emmanuel Kant

Partindo das idéias de arbítrio e vontade, Kant formula duas noções de liberdade, a liberdade negativa e a liberdade positiva. "A liberdade do arbítrio é esta independência de todo impulso sensível enquanto relacionado à sua determinação. Tal é a noção negativa da liberdade. A noção positiva pode ser definida: a faculdade da razão pura de ser prática por si mesma, o que não é possível somente pela submissão das máximas de toda ação à condição de poder servir de lei geral" [24].

Para dizer de outra forma, a liberdade não está na possibilidade fática de fazer ou deixar de fazer algo segundo a vontade do indivíduo. A liberdade do arbítrio não é a faculdade de determinar uma ação conforme ou contrária à lei, não se constitui na ausência de princípios de determinação que produzam em nós a necessidade da ação (princípios religiosos, morais e jurídicos). Isto, no pensamento kantiano é o sentido negativo de liberdade. A liberdade positiva surge quando da existência de princípios de determinação, ou seja, quando a ação está condicionada por uma lei da razão.

Desta forma, pode-se dizer que o indivíduo somente é livre exteriormente dentro da lei, com a existência de convenções e de contratos. O indivíduo somente adquire a liberdade dentro da lei porque está obrigado a observar uma lei da qual ele mesmo é o legislador. Os indivíduos dão-se as suas leis (morais ou jurídicas), e só por elas estão limitados.

Fora da lei, o indivíduo está sujeito ao arbítrio dos outros indivíduos. Dentro da lei, sua liberdade está assegurada, uma vez que os outros indivíduos somente poderão agir exteriormente de modo a não ferir a sua liberdade de ação, segundo uma lei universal.

Neste sentido, esclarece Kant que a "liberdade, à qual se referem as leis jurídicas, pode ser tão somente a liberdade na prática externa; mas aquela liberdade à qual se referem as segundas leis (leis morais) deve ser a liberdade no exercício exterior e interior do arbítrio, quando está determinado pelas leis racionais" [25].

Resulta desse entendimento o cerne da doutrina liberal individualista de Kant, a lei universal de Direito: "age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos, segundo uma lei universal..." [26].

O princípio da liberdade traz consigo um postulado igualitário, uma vez que, enquanto princípio, deve valer para todos. Contudo, não diferentemente da idéia formal de liberdade que marca o pensamento kantiano, a igualdade garantida pele lei é uma igualdade também formal. Para Kant, o Estado e o Direito devem garantir a chamada igualdade de oportunidades, a igualdade no ponto de partida. Este é o modelo de igualdade que marca o liberalismo político e jurídico, sob as bases da doutrina juspositivista.

A liberdade e a igualdade devem ser formalmente garantidas a todos, mas o sucesso ou a ruína de cada um depende do seu esforço e talento. Não se deve pretender uma igualdade substancial e permanente entre os indivíduos, sendo que cada um deve destacar-se segundo seus talentos e méritos. Segundo defende Cláudio de Cicco, na introdução da obra de base do presente estudo, para Kant, o que se mostra odioso é o privilégio no ponto de partida, que deve ser combatido pelo Estado com a garantia do básico para todos, o que sustenta a igualdade de oportunidades [27].

No que toca à idéia de justiça, pode-se dizer que Kant inaugura um novo modelo ocidental de justiça, a idéia de "justiça como liberdade", modelo que marcou profundamente o positivismo jurídico do século XIX e da primeira metade do século XX, com influência até os nossos dias.

O filósofo de Koenigsberg se afasta da idéia aristotélica [28] de "justiça como igualdade" e da idéia hobbesiana de "justiça como segurança" [29], para vincular a idéia de justiça à liberdade. Nas palavras do autor: "É justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais" [30].

Tomando tal assertiva em um raciocínio silogístico, pode-se dizer que somente é justo aquilo que se pode conformar com a liberdade do arbítrio de todos os indivíduos, segundo leis universais. A liberdade do arbítrio de cada um é condicionada pelas leis da razão, que sujeitam a todos. Portanto, pode-se concluir que é justo tudo aquilo que as leis universais da razão dizem ser o justo.

Em Kant, a finalidade última do Direito é a liberdade externa. Os homens se reuniram em sociedade e constituíram o Estado para garantir a liberdade, o exercício do arbítrio segundo uma lei universal. O Direito não tem por fim último a igualdade ou a segurança, mas sim a liberdade, liberdade esta garantida a todos os seres dotados de razão, o que enseja um postulado igualitário e inspira segurança, uma vez que a liberdade de um deve estar de acordo com a liberdade de todos os outros, segundo uma lei universal.


4. O sujeito, a sociedade civil e o Estado de direito no pensamento kantiano

Os conceitos de pessoa, sujeito e coisa estão intimamente relacionados à idéia de imputação. Para Kant, a pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. A pessoa, dotada de personalidade moral, é um ser livre, racional e responsável, que somente encontra-se submetida às leis que ela mesma se dá [31]. É um ser livre no sentido de que somente obedece às leis da razão, protegido contra o arbítrio das outras pessoas, que por suas ações não podem ferir a sua liberdade.

Uma coisa, inversamente à pessoa, é aquilo que se mostra insuscetível de qualquer imputação, que não possui liberdade, no sentido positivo, um objeto do livre-arbítrio. Nesse sentido, os servos e os escravos não são pessoas, são seres humanos sem personalidade, porquanto não possuem direito algum.

Outro ponto relevante na doutrina do Direito de Kant é o seu modelo de contratualismo. A doutrina contratualista pode ser dividida, no que toca ao conteúdo do contrato social, em duas posições distintas: uma teoria contratualista que considera o contrato como um ato de total alienação dos direitos naturais em favor do Estado, com a extinção do estado de natureza, como no pensamento de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau; em contraposição, para outra corrente há uma limitação recíproca dos direitos naturais, com a correção e não a extinção do estado de natureza, constituindo-se um poder coercitivo capaz de garantir o livre exercício desses direitos, como no modelo descrito por John Locke [32].

No que concerne à instituição do contrato social, no pensamento kantiano o estado natural é aquele em que não há nenhuma justiça distributiva, em que não existe um tribunal incumbido de decidir o que é de direito, ou seja, o estado não-jurídico. Ninguém está seguro do "seu" contra a violência, quando da inexistência de um juiz imparcial com poderes para legitimamente dizer o que é de direito. A este estado opõe-se o estado civil, submetido à justiça distributiva [33].

Não se pode dizer, entretanto, que o estado de natureza kantiano aproxima-se do modelo descrito por Thomas Hobbes [34], onde os homens aderem ao contrato para garantir suas vidas, fugindo da insegurança e do constante estado de guerra de todos contra todos a que estão expostos. Segundo Kant, os homens não têm por máxima a violência e o estado de guerra. Por outro lado, é certo que o estado não-jurídico sugere uma situação de constante insegurança e de justiça negativa, uma vez que não existe um juiz competente para decidir de forma legítima um caso cujo direito se mostra controvertido [35].

O primeiro princípio que deve ser decretado, a fim de manter as noções de Direito, é o seguinte: "É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável) em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como o Seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a cada um por um poder suficiente, que não é o do indivíduo e sim um poder exterior" [36].

No estado civil há uma relação mútua dos particulares submetidos ao estado jurídico. O contrato social é ato originário, constitutivo da sociedade. O contrato é fruto da razão prática e o sujeito que a ele adere não renuncia à liberdade, pelo contrário, tem na obediência à lei consubstanciada no pacto a expressão máxima da sua liberdade, uma vez que somente obedece à lei que ele mesmo se dá.

Em Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado civil) assemelha-se ao pensamento de John Locke [37]. A idéia kantiana de contrato social é sustentada, até certo ponto, no modelo liberal de defesa do direito à propriedade. Assim prescreve o autor: "Entra num estado em que cada um possa conservar o seu contra os demais (lex justitiae)" [38].

Nada obstante, o direito à propriedade que em John Locke é um direito natural, no modelo kantiano somente existe de forma plena e oponível a todos no contrato, não se constituindo em direito natural. Para Kant, somente há um único direito natural (a liberdade), na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal da razão.

A concepção de defesa da liberdade aproxima o pensamento kantiano acerca do contrato social do modelo defendido por Jean-Jacques Rousseau [39]. Ainda que existam diferenças na forma de pensar a passagem do estado de natureza para o estado civil, tanto em Kant como em Rousseau, o homem não perde sua liberdade com o contrato, apenas abandona sua liberdade natural e selvagem para receber a liberdade civil, a liberdade positiva de somente obedecer à lei decorrente de sua própria vontade de legislar. O homem é livre porque está limitado apenas pela lei que ele deu a si mesmo.

O Estado de direito kantiano tem um traço marcadamente jurídico. O que caracteriza a atividade do Estado é a atividade jurídica, a instituição e manutenção de um ordenamento jurídico como condição para a coexistência das liberdades externas. Não se fala em Estado de direito como o Estado regulado ou limitado pelo Direito. Trata-se, sim, de uma idéia de Estado em que haja a possibilidade de coexistência mútua entre os indivíduos, segundo uma lei universal de liberdade [40].

Pode-se buscar, ainda, no pensamento kantiano um modelo de Estado de direito que assegura "o seu" de cada um, em decorrência do princípio jurídico da liberdade que pode ser assim exposto: "Lesa-me qualquer um que aja conforme uma máxima segundo a qual é impossível ter como meu um objeto de meu arbítrio"; porque uma constituição civil é tão-somente o estado de direito que assegura a cada um o Seu; mas sem que esse estado o constitua nem o determine, propriamente falando" [41].

A idéia de liberdade é a marca distintiva do Estado de direito kantiano. Um estado de coisas em que o arbítrio de cada um é limitado pelo arbítrio dos demais, segundo um imperativo da razão. O Estado de direito que garante as liberdades externas dos indivíduos, segundo uma lei universal de liberdade, na doutrina kantiana constitui-se em um Estado paulatinamente mais igualitário, vez que a idéia de liberdade em Kant encerra um postulado igualitário, a liberdade como princípio que deve valer para todos.


5. Formas de governo, divisão de poderes e Constituição

Antes de apresentar o modelo kantiano de divisão de poderes, importa analisar, ainda que sucintamente, as formas de governo em Kant. Tomando por critério de distinção a diferença numérica dos detentores do poder soberano, quando apenas um homem manda há a autocracia; quando alguns iguais entre si mandam em todos os demais há a aristocracia; e quando todos mandam em cada um e cada um em si mesmo há a democracia [42].

A forma mais simples é o governo autocrático, consistente na relação única do rei com o povo. Na aristocracia, há primeiramente a relação dos governantes entre si para constituir o soberano e deste com o povo. A democracia é a mais complexa de todas as formas de governo, já que exige a vontade de todos para formar o povo; posteriormente, a vontade dos cidadãos para formar a república e, finalmente, a vontade da república para formar o governante, que resulta dessa vontade coletiva [43].

Outro critério de distinção refere-se à diferença no modo de governar. Para Kant, o soberano pode nortear seu governo de maneira despótica ou republicana. O despotismo representa o exercício arbitrário do poder. A república, no pensamento kantiano, consubstancia-se no exercício do poder nos termos da lei que fora produzida por todos os indivíduos, o tratamento do povo segundo princípios relacionados às leis de liberdade. Não é tomada como a forma de governo contraposta à monarquia. Tanto que, no pensamento kantiano, a melhor forma de governo seria uma república governada por um só, que no Estado moderno ficou conhecida como monarquia constitucional.

O que se constitui em traço distintivo entre o governo despótico e o governo republicano é o princípio político da divisão de poderes. Tão mais próximo está do despotismo o Estado quanto mais é gerido pelas leis que este Estado deu a si mesmo, onde a vontade pública sucumbe à vontade particular do soberano.

Seguindo o modelo traçado por Montesquieu [44], Kant estabelece sua idéia de divisão de poderes do Estado nos seguintes termos: "o poder soberano (soberania) na pessoa do legislador, o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial (como reconhecimento de o Meu de cada qual segundo a lei) na pessoa do juiz..." [45]. Neste sentido, com base em um raciocínio silogístico, do legislativo advém a premissa maior que é a norma geral e abstrata; do executivo, a premissa menor de conformar as ações segundo a norma geral; do judiciário, a conclusão que decide o direito no caso concreto.

A relação que se pode dizer de unidade entre os poderes deve ser estabelecida em três parâmetros. Primeiramente, os poderes devem atuar de forma coordenada, sendo um o complemento do outro para a organização perfeita da constituição do Estado. Em segundo lugar, deve haver uma relação de subordinação entre os poderes, no sentido de que um não pode usurpar a função do outro. Finalmente, a reunião dos poderes, uma vez que o direito da cada sujeito depende da relação de coordenação e subordinação entre os poderes [46].

Ainda que sustente a relação de subordinação entre os Poderes, no pensamento kantiano o poder legislativo é o poder soberano, contra o qual não há possibilidade de nenhuma resistência legítima da parte do povo. O poder legislativo somente pode pertencer à vontade coletiva do povo. Se a lei decorre do próprio povo, então dela não pode surgir injustiça, sendo que só a vontade pública pode ser legisladora. A vontade do legislador é a lei jurídica que decorre da lei moral, que se pode chamar de vontade do sujeito [47].

Um dos traços constitutivos da idéia de Estado em Kant é a defesa do povo como o legislador soberano. Ao povo pertence o poder de dar a si a sua lei, de ser autor e destinatário da lei, segundo um imperativo da razão.

Para Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado jurídico) faz parte de uma espécie de progresso ético, de evolução, a que está impelida a sociedade humana, impelida "por dever" à realização plena da liberdade, um deve de todos os seres racionais. A organização da sociedade civil é dada pela Constituição, que estrutura o Estado e estabelece o "seu" de cada um conforme uma lei universal da razão.

Dessa forma, a Constituição é a expressão da vontade de todo o povo, vontade de se dar uma lei de liberdade. Se o poder legislativo pertence à vontade coletiva do povo, a evolução ética da sociedade deve estabelecer uma Constituição republicana, onde o poder de dar a norma geral e abstrata esteja separado do poder executivo. A paz perpétua [48], estado possível de progresso ético da sociedade humana, somente pode ser garantida pela Constituição republicana, enquanto expressão da vontade coletiva do povo.

Ante um Estado republicano, estruturado com base em uma Constituição republicana, não existe a possibilidade de resistência legítima do povo. Não há direito à desobediência civil ou direito de resistência da parte do povo. Este deve suportar até o abuso do poder soberano, uma vez que qualquer "sublevação contra o poder legislativo soberano deve sempre ser considerada como contrária à lei, e mesmo como subversiva de toda constituição legal. (...) Por conseguinte, a alteração de uma constituição pública (viciosa), que algumas vezes poderia ser necessária, só pode ocorrer através do próprio soberano, por meio de uma reforma e não por meio do povo; não deve ser feita, pois, pela revolução" [49].

Kant nega o direito de resistência do povo contra o soberano até como forma de garantir e fortalecer a Constituição republicana, uma Constituição legal fundada em princípios de liberdade, única Constituição legítima, perene e capaz de garantir o estado de paz perpétua entre os povos.


Considerações finais

Um dos traços distintivos do pensamento kantiano acerca da moral e do Direito é o caráter propositivo de sua metafísica dos costumes. Não há preocupação com o ser (o que é), mas sim com o que pode ser (o dever ser). A doutrina de Kant acerca do Direito e da moral é prescritiva (propositiva). Não é a realidade que se constitui em fator de modificação e transformação do homem enquanto ser racional; pelo contrário, o homem enquanto ser dotado de razão é que pode agir na realidade, no mundo do ser.

E nesse contexto ganha corpo o cerne da filosofia kantiana: a liberdade (bem supremo), o ideal de vida racional da humanidade. O homem nasce para ser livre. Liberdade enquanto livre uso do arbítrio segundo uma lei geral e universal da razão. A liberdade de somente estar limitado por uma lei da razão dada pelo próprio indivíduo e de estar protegido contra o arbítrio dos demais, que devem agir segundo a lei universal por todos convencionada.

A base do liberalismo político que marca o modelo liberal de Estado é a noção kantiana de liberdade positiva, a liberdade que o indivíduo somente alcança quando aceita deixar o estado natural e pactuar a sociedade civil, a constituição de um estado jurídico, pautado por leis de liberdade das quais o legislador é a vontade coletiva do povo.

A influência do pensamento kantiano no modelo jurídico e político liberal é marcante, também, por sua contribuição para uma nova concepção de justiça, ligada à noção de liberdade. O indivíduo é um ser livre e racional, que deve agir segundo um imperativo da razão, segundo as leis de liberdade.

Somente é justa uma ação que possa se conciliar com a liberdade do arbítrio dos demais, segundo uma lei universal. Somente é justo um sistema jurídico que garanta a possibilidade de todos os indivíduos livremente desenvolverem sua personalidade, potencialidades e talentos. É justa e igualitária uma sociedade onde as necessidades básicas dos indivíduos sejam garantidas pelo Estado, mas que, por outro lado, os indivíduos sejam livres para o exercício de seus talentos e o alcance da riqueza por seus méritos.

A teoria kantiana da justiça como liberdade marca profundamente a teoria liberal do Estado. Na base do modelo de Estado liberal estão as contribuições de Kant acerca da liberdade, justiça, legalidade e moralidade. O estudo do modelo jurídico liberal e do nosso modelo jurídico atual passa, certamente, pelo estudo do pensamento kantiano.

Nunca se deve esquecer, por outro lado, que Kant é um homem de seu tempo, um pensador do século XVIII, cuja obra sofre sensivelmente as influências do contexto histórico ocidental, a Revolução Francesa, o movimento iluminista, as lutas contra o despotismo; não há preocupação com uma visão social do Direito e do Estado, que marca os séculos XIX e XX.

As críticas ao pensamento jurídico, político e filosófico de Kant são as mais diversas e vêm sendo feitas desde o século XIX. O presente estudo não se preocupou em explorá-las, ainda que muitas delas sejam de profundo acerto e pertinência. O certo é que, ou para criticá-lo, ou para superá-lo, ou para reinterpretá-lo e engrossar as fileiras de seu pensamento, Kant é um autor que se mostra extremamente atual e impossível de ser esquecido, qualidades realmente privativas dos verdadeiros clássicos.


Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Borheim. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Geminiano Franco. Lisboa: Edições 70, 1987.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino, São Paulo: Martins Fontes, 1997.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Tradução de Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1993.

_______________. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Lourival de Queiroz Henkel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s./d.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Tradução de E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MONTESQUIEU, Charles Louis Secondat, Barón de. O Espírito das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Tradução de Raimundo Vier. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1990.

ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986.


Notas

  1. Emmanuel Kant nasceu em Koenigsberg em 22 de abril de 1724, sendo que sua vida transcorreu quase que inteiramente em sua cidade natal. Ao que consta sua família era de poucas posses, tendo o autor herdado da mãe uma sólida educação moral e religiosa. No colégio recebeu marcante influência das cresças morais e religiosas do pietismo, um movimento de intensificação da fé, nascido na igreja luterana alemã do século XVII. A partir de 1740 estudou Filosofia na Universidade de Koenigsberg, curso que abrangia o estudo da filosofia propriamente dita e das ciências, estas as que mais atraiam o interesse do jovem Kant. Em 1747, com a morte do pai e antes mesmo de conquistar todos os graus acadêmicos, Kant viu-se obrigado a deixar a Universidade para ganhar a vida como professor particular, lecionando em diversas casas de famílias nobres da Prússia Oriental. Retornou à cidade natal em 1755, quando obteve junto à Universidade de Koenigsberg "habilitação" que lhe permitiu ser Docente Livre, ministrando cursos financiados pelos próprios estudantes por mais de quatorze anos. Posteriormente, tornou-se Professor Titular naquela Universidade, lecionando as mais diversas matérias: matemática, lógica, metafísica, física, pedagogia, direito natural e geografia. Somente renunciou ao magistério na Universidade de Koenigsberg em 1796, já abatido pela idade avançada. Faleceu em 12 de fevereiro de 1804. Publicou mais de oitenta trabalhos, traduzidos para as mais diversas línguas, a grande maioria ainda em vida. Entre as suas principais obras estão: Crítica da razão pura (1781); Prolegômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência (1783); Fundamentação da metafísica dos costumes (1785); Crítica da razão prática (1787); Crítica do juízo (1790); Projeto de paz perpétua (1795); e, Primeiros princípios metafísicos da doutrina do Direito (1797). PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Tradução de Raimundo Vier. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, p. 13-26.
  2. Idem, p. 07.
  3. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Tradução de Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1993, p. 15.
  4. Interessante atentar para o significado de expressões nucleares ao pensamento kantiano, como "razão pura" e "razão prática". Cumpre esclarecer, primeiramente, que não se tratam de expressões antagônicas ou de sentidos opostos. Em Kant, a razão pura é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori, livre de quaisquer experiências ou sensações. Portanto, a razão pura opõe-se ao empirismo e não à razão prática, que em Kant é a razão ordenada para a ação moral. A razão prática é sempre pura. Apenas para adiantar o que será aprofundado em seguida, pode-se entender a "razão pura prática" como aquela que dita os princípios a priori da atividade moral (ação por dever), o imperativo categórico que prescreve ao indivíduo o dever de agir sempre de modo que possa erigir a máxima de sua ação em lei universal.
  5. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 13-14.
  6. Idem, p. 19-20.
  7. Idem, p. 21.
  8. Idem, p. 21-22.
  9. Idem, p. 22.
  10. SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986, p. 161 e ss.
  11. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 22-23.
  12. Idem, p. 23.
  13. KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Lourival de Queiroz Henkel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s./d., p. 92.
  14. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 54.
  15. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 30-31.
  16. Idem, p. 34.
  17. Idem, p. 34-36.
  18. DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Geminiano Franco. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 36-37.
  19. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 36.
  20. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Op. cit., p. 71.
  21. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 39.
  22. Idem, p. 40.
  23. Idem, p. 27.
  24. Idem, p. 22.
  25. Idem, p. 23.
  26. Idem, p. 46.
  27. Idem, p. 09.
  28. A justiça como igualdade constitui-se na sua concepção mais antiga. Por essa concepção, formulada por Aristóteles e retomada por diversos pensadores, a finalidade do Direito é a garantia da igualdade, tanto nas relações entre os indivíduos (justiça comutativa), como nas relações entre o poder instituído e os indivíduos (justiça distributiva). Segundo essa teoria, não basta que o Direito estabeleça uma ordem jurídica, é necessário que esta ordem seja justa (pautada por um critério de igualdade). ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Borheim. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 45 e ss.
  29. Pela idéia de justiça como segurança, que tem na filosofia política de Thomas Hobbes sua maior expressão, a finalidade última do Direito é a garantia da paz social, uma vez que o ordenamento jurídico teria sido instituído para assegurar o fim da guerra civil, por meio da instituição de um poder soberano (Estado). Do Estado emanam as normas jurídicas que regulam a convivência entre os indivíduos e garantem a salvaguarda do direito natural à vida. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 103 e ss.
  30. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 46.
  31. Idem, p. 37.
  32. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Op. cit., p. 129.
  33. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 144.
  34. O homem hobbesiano é um ser egoísta, predisposto a cometer atos anti-sociais, o que enseja a guerra de todos contra todos (estado de natureza em que cada homem luta pela sua sobrevivência). A competição, a desconfiança e a glória são as razões da discórdia na natureza humana. Neste contexto, o autor cita o Leviatã das escrituras de Jó (o Rei de todos os filhos da soberba), como o poder soberano capaz de viabilizar a vida em sociedade, por meio da coerção (monopólio da lei nas mãos do monarca soberano). Para Hobbes, a guerra civil é o pior dos males. Buscando caracterizá-la, o autor se vale do monstro Behemot (símbolo da rebelião), que deve ser dominado pelo Leviatã. Se o pior dos males é a guerra civil, isso justifica a criação do Estado, uma autoridade forte que, ainda que venha tolher a liberdade, garante a segurança e a vida dos homens. No pensamento hobbesiano os homens somente são livres e iguais no estado de natureza, uma figura hipotética criada para contrastar com o estado de ordem (estado civil). Este surge do contrato social, um pacto ao qual o homem adere depondo seu direito de agredir o outro, na certeza de que cada um dos demais fez o mesmo, restando ao soberano o poder de governar o Estado. É para garantir a vida que os homens renunciam à liberdade do estado natural. Para se autopreservar o homem sede sua liberdade em troca de segurança. Em Hobbes, o poder soberano não encontra fundamento divino ou natural, trata-se de um poder laicizado, fundado no contrato e na razão humana. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Op. cit., p. 103 e ss.
  35. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 150-51.
  36. Idem, p. 150-51.
  37. No pensamento político de John Locke o estado de natureza não é, necessariamente, mau. Os homens são livres, iguais e independentes. Ordenam suas vidas e dispõem de seus bens segundo seus interesses. Os direitos à liberdade, à vida e à propriedade somente encontram limites na lei natural. Como não existem soberanos, ou todos são soberanos, vige a jurisdição recíproca, onde cada um é juiz em causa própria. Segundo Locke, esse é o maior inconveniente do estado de natureza, já que o homem sendo juiz de sua causa não é imparcial, não pune, mas sim se vinga do agressor. Daí a degeneração em estado de guerra. Com o contrato social cria-se a sociedade política, em que os homens buscam a segurança de seu direito mais precioso, a propriedade, posto em perigo pela insegurança advinda da jurisdição recíproca do estado de natureza. Este não deve ser extinto e sim corrigido, mantendo-se o direito natural à propriedade. A sociedade civil vem dar segurança à propriedade, na medida em que o poder de julgar é posto nas mãos de um juiz imparcial. Os homens formam a sociedade não para preservar o direito à vida ameaçado pela falta de leis, mas para consolidar o direito natural à propriedade. Num primeiro momento, pelo pacto, os homens criam a sociedade civil (sujeição ao poder político) e depois delegam, por maioria, a uma assembléia o poder soberano de fazer as leis e julgar os seus infratores (governo civil). O Estado serve como um juiz imparcial na defesa da propriedade, que em Locke deve ser entendida como a liberdade, a vida e propriedade em sentido estrito, e não se constitui em um poder ilimitado como em Hobbes. No pensamento político de Locke, a lei limita o Estado liberal (princípio da legalidade). LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Tradução de E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 35 e ss.
  38. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 54.
  39. Rousseau defende a existência de um estado de natureza anterior à formação da sociedade (estado civil). Entretanto, o homem no estado de natureza é um indivíduo que naturalmente preserva seu bem-estar e conservação (o amor de si, diferente de amor próprio), bem como age com sentimento de piedade em relação aos seus semelhantes. Em Rousseau, o homem não se organiza em sociedade visando à proteção contra seus semelhantes ou a garantia da sua propriedade, mas sim para melhor enfrentar as forças da natureza, para mais facilmente vencer os obstáculos naturais. Nesse processo de socialização o homem sai do seu isolamento e torna-se dependente dos outros. Essa socialização é anterior ao contrato social, sendo ainda preparatória. Daí podem seguir dois tipos de contrato: um contrato iníquo, do qual resulta uma sociedade injusta, onde os indivíduos são alijados da liberdade e da igualdade; um contrato legítimo, capaz de gerar uma sociedade que respeite e fomente os fundamentos naturais do indivíduo, uma sociedade igualitária e base de uma política fundada no interesse comum. Para Rousseau, o acordo livre e consciente é o único fundamento legítimo de qualquer obrigação de obedecer. Sendo assim, no estado civil o indivíduo não perde sua liberdade. E nesse sentido o autor vê na vontade geral do corpo político, os cidadãos, a soberania da sociedade civil ideal. Cada membro do corpo político é cidadão e súdito: cidadão porque membro do soberano e participante da atividade do corpo político; súdito porque obediente às leis votadas pelo corpo político. Como o indivíduo, submete-se às leis que ele mesmo vota, é soberano de si mesmo, não perdendo com isso a liberdade. Frente à assembléia (parte ativa do corpo político) o indivíduo é soberano; frente ao Estado (parte passiva) é súdito. O homem perde sua liberdade natural, limitada e garantida apenas por sua própria força, e adquire a liberdade civil, limitada apenas pela vontade geral. Nesse sentido, pode-se falar que o homem vivendo em sociedade adquire uma liberdade moral. ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 15 e ss.
  40. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 08.
  41. Idem, p. 78.
  42. Idem, p. 186.
  43. Idem, Ibidem.
  44. Para formular sua teoria da separação dos poderes, Montesquieu analisou a Constituição inglesa, que dava as primeiras linhas da divisão de funções, com a supremacia do Parlamento. Para o autor, a liberdade do cidadão não consiste em fazer o que quer, mas o que está insculpido na Constituição, já que esta reflete a vontade do povo. A liberdade política, portanto, é o direito de fazer tudo o que as leis permitem. A liberdade política leva à idéia de moderação, usada por Montesquieu para formular a teoria dos freios e contrapesos, uma visão cartesiana onde o poder limite o poder. Cada poder exerce uma função, sendo as principais a de fazer as leis (legislativo), a de executar as resoluções públicas (executivo) e a de julgar os crimes ou as demandas dos particulares (judiciário), conferidas a diferentes indivíduos. O poder judiciário deveria ser um poder invisível e nulo (não permanente), que somente fosse formado quando necessário. Montesquieu não pensou uma separação propriamente dita entre os poderes, mas sim uma divisão de funções, com interferências e interrelações entre os poderes, própria de uma interdependência. Um dado que destoa na teoria política de Montesquieu é a soberania do legislativo, mas que é muito bem explicada pelo modelo de Estado liberal da época, onde o legislativo garantiria e protegeria as liberdades políticas da classe burguesa, principalmente o direito de propriedade. MONTESQUIEU, Charles Louis Secondat, Baron de. O Espírito das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
  45. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 152.
  46. Idem, p. 155-56.
  47. Idem, Ibidem.
  48. A concepção kantiana de uma paz eterna assegurada por uma liga internacional, com a função de evitar os conflitos e as guerras entre os Estados soberanos e regular as dificuldades como poder reconhecido por cada Estado, é criticada por Hegel, que aponta a necessária adesão dos Estados como um dos principais problemas. Esta adesão teria de "assentar em motivos morais subjetivos ou religiosos que dependeriam sempre da vontade soberana particular, e estaria, portanto, sujeita à contingência". HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino, São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 303-04.
  49. KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Op. cit., p. 162.

Autor

  • José Sérgio da Silva Cristóvam

    Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

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CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A doutrina do Direito de Emmanuel Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20165. Acesso em: 26 abr. 2024.