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História do Direito: o Renascimento do século XII e as repercussões no ressurgimento do Direito Romano

História do Direito: o Renascimento do século XII e as repercussões no ressurgimento do Direito Romano

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Busca-se, pelo presente estudo, proceder-se a um resgate histórico do desenvolvimento social e, consequentemente, do direito no período medieval.

Durante muito tempo a historiografia tradicional foi a que teve amplo controle sobre a aquisição do saber histórico. Essa historiografia priorizava os aspectos políticos em detrimento de quaisquer outros, como os sociais, os mentais, os imaginativos, os culturais, os do cotidiano, e, assim, procurava um conhecimento puramente factual, com pouco contato com as outras ciências sociais. Além disso, havia uma limitação das fontes, sendo que essas deveriam ser somente as oficiais: leis, decretos, atos normativos, registros.

Entretanto, houve uma agitação no meio dos historiadores que deflagrou uma verdadeira revolução no método de se fazer história e, consequentemente, no objeto histórico. Foi assim que surgiu a Escola de Annales, na França, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929. Com o surgimento dessa escola, o fazer e o saber histórico foram absolutamente transformados: alargou-se a possibilidade do uso de fontes - passaram ser as disponíveis e, dessa forma, diversificaram-se -; toda história passou a ser social, abordando-se, assim, a religião, as crenças, as movimentações artísticas, a cultura, os vínculos comunitários, o que, por sua vez, incitou uma profunda interdisciplinariedade. Sobre isso, Eric Hobsbawm declarou:

"No entanto, fica o fato de que a história se afastou da descrição e da narração e se voltou para a análise e a explicação; da ênfase no singular e no individual, para o estabelecimento de regularidades e a generalização. De certo modo, a abordagem tradicional foi virada de cabeça para baixo." [01]

Nesse contexto de mudança historiográfica, destacam-se os historiadores Jacques Le Goff e Franz Wieacker, cujas produções acadêmicas fundamentam, em especial, o presente trabalho. O primeiro, de grande conteúdo sociológico, aborda os personagens principais dos séculos medievais XI ao XV. Em vez de uma abordagem com apenas os perfis políticos, Le Goff prioriza um enfoque social e, especialmente, o imaginativo, na tentativa de esclarecer a dinâmica da sociedade medieval desse período, englobando desde o herege ao santo, do artista ao monge. Já o texto de Wieacker tem uma análise mais institucional, a qual aborda, primordialmente, os fatores que levaram ao ressurgimento do direito romano nos séculos finais da Idade Média, envolvendo, assim, desde aspectos sociais a aspectos burocráticos dessa reabsorção.

A partir de suas contribuições, juntamente com considerações de outros grandes autores, busca-se, pelo presente estudo, proceder-se a um resgate histórico do desenvolvimento social e, consequentemente, do direito no período medieval. Este voltar os olhos ao passado não só ajuda-nos a perceber o curso complexo e diversificado do homem na História, como também auxilia-nos a compreender o presente.


O Renascimento do século XII

O Renascimento do século XII foi um evento singular na história das civilizações e, por isso, merece um generoso destaque. A importância dada a esse marco medieval é consequência das profundas mudanças que esse acontecimento acarretou, transformações que ocorreram em todos os âmbitos da vida na Idade Média. A ideia de um período sem desenvolvimento cultural se perde ao se analisar as notáveis características dessa renascença.

É importante, contudo, salientar que o nome "Renascimento" não é simplesmente o ressurgimento da cultura clássica, porque dessa forma, pareceria que tal evento foi somente de cunho erudito. Porém a reviravolta do século XII não foi incitada exclusivamente pela cultura erudita, mas, primordialmente, pela cultura vulgar e a intermediária, sobre a qual Hilário Franco Júnior tece consideráveis observações. Essa cultura é aquela que representa um denominador comum de toda a sociedade medieval e que mescla elementos tanto da cultura clerical e letrada quanto da cultura vulgar. Franco Júnior afirma que

"o Renascimento do século XII (...) significou a recuperação e a revalorização da cultura greco-latina, mas também, ao mesmo tempo, a reemergência de uma cultura folclórica muitas vezes pré-romana. (...). O Renascimento do século XII não é globalmente expressão da cultura erudita e sim da cultura intermediária." [02]

Essa renascença foi provocada por inúmeros fatores que, de uma forma geral, configuram a nova realidade:

- O crescimento demográfico e urbano associado a autênticas inovações na produção e circulação de bens;

- Novas formas de poder senhorial, comunal ou real, especialmente, no que se refere à maior centralização do poder dos reis;

- A reforma religiosa introduzida pela papa Gregório VII;

- Revigoramento da atração pela vida evangélica, a qual seria radicalizada no século XIII pelo surgimento das ordens monásticas mendicantes;

- O fortalecimento das escolas e da atividade literária em geral corresponde a redefinição sociológica do lugar e dos privilégios dos que estudam e ensinam;

- Surgimento das universidades;

- As diversas inovações introduzidas na fabricação e difusão do livro tornam-no mais reprodutível e barato, dando origem a uma verdadeira indústria de cópia, localizada em centros urbanos e monásticos;

- As mudanças no conteúdo das artes afeiçoam as novas construções, cuja aior criação será o estilo gótico; a arte da pintura, que reaparece em grande escala na ornamentação e iluminura dos livros, transmite também um novo e rico imaginário figurativo;

- A abertura do saber a novos domínios é induzida pelas discussões que ocorre no interior intelectual e religiosa latina, mas conta também com o extraordinária contribuição da ciência árabe e do reaparecimento da ciência grega;

- O âmbito da reflexão sobre os conteúdos da fé deslocará lentamente da exegese e pregação da Sagradas Escrituras para uma elucidação dos fundamentos e da teologia;

- O reaparecimento do direito romano torna as normas mais seguras e previsíveis que as consuetudinárias.

Todos esses elementos confluíram decisivamente para a organização de uma nova conformação da vida medieval. É importante, entretanto, observar que não se pode afirmar que haja uma relação de causa e efeito dentre esses componentes. O que há é um conjunto de fatores que juntos constituem esse nascente quadro que marcará definitivamente o rumo d história ocidental.

Como, porém, toda história é uma seleção ( Hobsbawm [03] ), convém enfatizar alguns desses fatores a fim de que o Renascimento do século XII, momento de grande relevância histórica, seja melhor caracterizado e esclarecido.


1) O homem medieval

Jacques Le Goff, seguindo a afirmação de Lucien Febvre, para o qual

"os homens, os únicos objetos da história – de uma história que não se interessa por um qualquer homem abstrato, eterno, imutável e perpetuamente idêntico a si próprio – os homens, sempre analisados no quadro das sociedades de que são membros" [04] ,

expõe seu texto fixando-se na figura ativa e construtora da história: o homem. O centro de seu texto é a descrição do homem medieval, que, como o próprio historiador explana, assume dez perfis distintos, cada qual com suas características particulares e essenciais para a compreensão de uma época de grande conteúdo cognitivo e cultural: a Idade Média.

Le Goff apresenta seus personagens em um período que perdura do século XI ao XV da era cristã. O questionamento imposto por ele é se em uma sociedade tão heterogênea como a sociedade medieval era possível a identificação de um modelo de homem que expressasse uma unidade "universal e eterna" . A resposta para tal indagação é afirmativa. Le Goff esclarece que a sociedade medieval, especialmente a desse período de 5 séculos, é fortemente marcada pela religião e, assim, pela teologia. O historiador ressalta o fato de que era ínfima a parcela da população que não compartilhava desse contexto místico.

Dessa conjuntura religiosa, pode-se associar o homem como uma obra de Deus, feito à Sua imagem e semelhança. Devido a essa origem, o homem se enxergava, dependendo da época, como uma imagem positiva ou negativa dessa precedência divina. Nos séculos em que se fixa Le Goff, prevalece o lado positivo do homem, do homem que luta para alcançar a salvação e a pode alcançar com o seu trabalho. Assim, a imagem pessimista de homem pecador e nascido para pagar o pecado original cometido pelas próprias criaturas de Deus é suplantada, porém, não esquecida. Assim, como confirma Le Goff:

"como Giovanni Miccoli e André Vauchez demonstram, a partir dos séculos XII e XIII, Jesus é cada vez mais o Cristo da paixão, do ultraje, da crucifixão, da piedade. Por uma perturbante inversão de imagens, o homem que sofre é agora o Deus encarnado." [05]

Seguindo essa estrutura cristã, nascem duas concepções de homem: a do homo viator (homem em marcha) e a do homem penitente. A primeira se refere à constante caminhada pela qual o homem segue, seja na vida, seja na morte. A partir disso, o homem da Idade Média é sempre um peregrino potencial ou simbólico. Nesse quesito, encaixam-se os cruzados – apesar de Le Goff declarar que eram poucos em relação à totalidade da população. A segunda concepção se concentra no fato de que o homem desejava alcançar a graça da salvação e, para tanto, deveria estar em constante penitência.

Ainda concernente à questão religiosa, o homem medieval enfrentava a dualidade corpo/alma, componentes inseparáveis da vida humana. Nesse complexo, a alma era glorificada, enquanto o corpo era, muitas vezes, sinônimo de pecado e de sujeição às vontades satânicas.

Nesse contexto de forte convicção na fé e na existência do pecado, a sociedade medieval forma as suas estruturas e, consequentemente, evoca diferentes personagens. Assim, Le Goff destaca o esquema trifuncional, no qual se revelam as três funções-chave na cultura medieval: os oratores, os bellatores e os laboratores, ou seja, " os que rezam, os que combatem e os que trabalham". [06]

Os monges eram aquela figura que procurava a solidão e a oração, tentando assim a redenção de seus pecados e os pecados de toda a humanidade. Representavam a fidelidade da Igreja aos ensinamentos e assim, são "os mais habilitados a se tornar santos" [07]. Eram muito respeitados, especialmente por possuírem um vasto conhecimento teológico e também por serem praticamente os únicos letrados de tal período. O cavaleiro, também inserido no âmbito religioso, lutava contra o demônio e desempenhava significante papel como cruzado. E como está em Le Goff: "animado de um furor guerreiro e de um impulso místico, é, como em Vivien, simultaneamente ‘santo e carniceiro’ " [08]. O camponês, por sua vez, é o homem preocupado em sustentar a sua família e que, com poucos recursos, destaca-se por se alimentar basicamente de pão e de um vinho de qualidade inferior à dos monges ou cavaleiros. Seu trabalho é o trabalho braçal, tanto na agricultura quanto com os animais. Mais tarde, sujeita-se ao poderio e influência de um senhor, para o qual deve as corvéias e o pagamento de dívidas e dinheiro.

Saindo desse esquema tripartite, observa-se também o surgimento de novos personagens com o desenvolvimento das cidades a partir do século XI. Dentro dessa nova conjuntura, destacam-se o citadino, o intelectual e o mercador.

Com a mudança da cultura econômica – antes basicamente de subsistência para uma mercantil, baseada no lucro - , mudou-se também a mentalidade da população medieval. Ela via na cidade a chance de ter uma vida mais fácil do que a levada no campo. Dessa maneira, surgem os citadinos, "um imigrado recente, um antigo camponês. Tem de se inserir na cidade, tem de conseguir aculturar-se." [09] Os laços sociais se alargam, consequência do convívio com a vizinhança, com os amigos de trabalho e suas famílias, dos encontros na igreja, no poço, nas festas de santos. Desse contato, emergem pecados até então insignificantes, que o caráter mercantil da economia e da vida propriamente dita nas cidades acabaram por criar: a constante busca por dinheiro e por prazeres carnais, bem exemplificado pela prostituição, cada vez mais comum.

O intelectual, era uma pessoa, como afirma Le Goff, de pouca evidência. Frequenta as escolas citadinas e, mais tarde, as universidades. É quase sempre um clérigo, que parte da Bíblia para outros conhecimentos, como os científicos. E assim, é acusado de vender a ciência, a qual é tida como pertencente somente a Deus. E, para poder desfrutar tanto das escolas quanto das letras, era preciso que fosse incluído em uma classe social que possuía recursos parta financiar seus estudos, os quais, na época medieval eram bastante caros, mesmo porque os livros eram artigo de luxo em uma sociedade em que a imprensa estava longe de se desenvolver.

O mercador cresce social e economicamente pari passu à repulsa que causava por parte da Igreja. Isso se devia ao fato de que era visto como um usurário, o qual, com seus negócios e empréstimos, era acusado de vender o tempo, que pertencia somente a Deus. Na Itália, porém ganha um prestígio maior, resultante da postura predominantemente mercantil assumida por aquela região. Le Goff também ressalta que por conta de seus contatos com outras regiões - a fim de obter suas mercadorias - acaba por ser o difusor das línguas modernas.

Além desses perfis eminentes da sociedade medieval, Le Goff enfatiza também a presença de atores nem sempre muito bem aceitos e bem vistos: a mulher, o artista e o marginal.

A mulher tinha sua função bem definida nessa sociedade: a manutenção do lar, o cuidado dos filhos, a procriação e a submissão ao marido. Mesmo na agitada vida social da cidade, eram os homens que mais aproveitavam as liberdades: iam às tavernas, aos bordéis, participavam dos jogos. A mulher ainda era restrita à casa e às idas à paróquia. Outro papel desempenhado por ela era o de possibilitar a combinação de famílias aristocráticas por meio de casamentos. Entretanto, mesmo depois da introdução da ideologia cristã, segundo a qual o matrimônio deveria ser estabelecido com a anuência e o amor recíproco de ambas as partes, a mulher continuou sendo prejudicada: geralmente casava-se com um homem muito mais velho que ela e, assim, só era vangloriada por sua fecundidade. O autor menciona que os filhos eram a sua ocupação primordial, porém muitas vezes, devido à precariedade da medicina e à preocupação com as superstições, as crianças morriam, seja por morte natural ou por infanticídio.

Os artistas na Idade Média gozavam também de pouco prestígio. Seu trabalho era julgado inferior, devido ao seu caráter manual. O autor salienta que, no início da Idade Média, poucos artistas assinavam suas obras – ao contrário da Antiguidade. Porém, na Alta Idade Média, o artista, no afã de obter glória e reconhecimento por parte dos amadores, recomeçou a colocar em suas obras a assinatura. É relevante ressaltar que na Idade Média não existia uma palavra que designasse "artista"; o profissional era sim chamado "artesão". Isso ilustra a pouca popularidade desse ofício. Apenas o ourives e, posteriormente o arquiteto puderam desfrutar de maior destaque na sociedade medieval.

Com tantas dualidades existentes na Idade Média – corpo/alma, imagem positiva do homem/imagem negativa, Deus/Diabo, bom/mau, sagrado/profano -, surge também uma especial no campo social: a oposição santo e marginal. A justificação de Le Goff para o fato de estarem no mesmo grupo é por serem ambos excluídos do convívio social. Esses marginais eram assim considerados por serem exilados ou por estarem associados a infâmias. O primeiro grupo era formado basicamente por peregrinos sem sucesso e por pessoas que lutavam para possuir um trabalho. Já o segundo era constituído pelos jograis, as prostitutas, os usurários, os judeus e os hereges. Os doentes e os inválidos eram igualmente considerados marginais.

Os santos, por sua vez, tipificavam o homem ideal. Dessa forma, a Idade Média foi considerada a criadora de santos. Os santos eram venerados de todas as formas, especialmente pelos seus milagres e por suas relíquias. Le Goff assevera que inicialmente os santos eram somente membros das classes mais privilegiadas, mas, mais tarde, "a santidade espiritualizou-se e associou-se mais ao estilo de vida do que à condição social, à moralidade mais do que aos milagres." [10]

Le Goff, apesar de tratar desses perfis de extrema importância para o estudo da Idade Média, afirma que há alguns personagens que foram esquecidos desse seu grupo. Entre eles estão alguns cargos eclesiásticos, como o de padre secular, o bispo, o frade – todos que pertencia à ordem dos oratores. Em relação aos bellatores, o mercenário e o soldado profissional também não foram amplamente discutidos em seu texto. Relativos à ordem dos laboratores, os artesãos, os operários, os médicos e cirurgiões, tiveram pouco destaque nesse estudo de Le Goff. Outra personagem de grande relevância – o que o próprio autor confirma – é os senhor feudal, mas que, igualmente, teve seu papel pouco trabalhado no fragmento. Nesse contexto, o pobre, o herético e as crianças foram, analogamente, pouco discutidos. Os juízes e os homens de justiça também foram limitadamente abordados, mesmo porque Le Goff afirma que eles foram mais típicos já no final da Idade Média, na passagem para a Idade Moderna.

Após caracterizar esses perfis do homem medieval, além de citar os personagens que não tiveram seu papel bem caracterizado no texto, Le Goff retoma a ideia de que, apesar de haver diferentes figurantes e cada um deles estar inserido em determinada classe social e com papéis distintos, é importante salientar que a mentalidade do medievo era basicamente semelhante. Além do contexto religioso, que já foi verificado anteriormente, estruturas mentais e imaginativas comuns são relevantemente analisáveis. O historiador ressalta esse aspecto da seguinte forma:

"É certo que o estatuto social, o nível de instrução, as heranças culturais e as zonas geográfico-históricas introduzem diferenças na forma e no conteúdo dessas atitudes culturais e psicológicas. Mas o mais surpreendente é o que possuem e exprimem de comum. " [11]

Essas estruturas mentais análogas são exemplificadas pelos vícios, as ideias a respeito do visível e invisível, do Além, do milagre e do juízo de Deus. Ademais, são citados a mentalidade simbólica , o número, a memória, as imagens e as cores, o sonho e as obsessões sociais e políticas – a hierarquia, a autoridade e a liberdade.

Com relação aos vícios, Le Goff destaca a preocupação que os medievos possuíam pelo cometimento de pecados, os quais muitas vezes transformavam-se em vícios. Essa inquietação é especialmente causada pela constante busca da redenção e da salvação. A respeito da dualidade visível e invisível, é percebido pelo texto que o homem medieval não assimilava uma distinção entre eles, mas compreendia que o visível era somente uma expressão direta do mundo invisível. Já o Além tem uma forma ligação com visível/invisível – especialmente com esse último -, pois era considerado o lugar para onde os mortos iam. Assim, havia de três a cinco lugares, destacando-se o Céu, o Purgatório e o Inferno. Os milagres e juízos de Deus eram reputados como intervenções de Dele. Esses milagres se manifestavam especialmente na parte material do homem: o corpo. Os juízos foram bastante notáveis nos julgamentos, sendo expressos nos duelos judiciários, por exemplo.

É importante analisar a memória nesse contexto porque, como afirma Le Goff, o homem medieval era um ser memória, pois pouquíssimos detinham a arte da escrita. Dessa maneira, todo o conhecimento e as tradições eram essencialmente orais e, para tanto, era necessário possuir uma memória bem aguçada. Nessa conjuntura, distingue-se o papel representado pelos anciãos. A mentalidade simbólica é igualmente relevante. O texto fundamental desse período é, indubitavelmente, a Bíblia, que possui uma linguagem altamente metafórica. Assim, Le Goff assume que "o homem medieval é um decodificador contínuo" [12] . Nesse campo simbólico, sobressaem a interpretação dos números, das imagens, cores e sonhos.

Havia nesse período valores fundamentais que tinham sido impostos pela vontade divina, contra a qual o homem medieval não deveria se contrapor. A hierarquia era vista como um desses valores. Diante dela, o homem deveria aceitar a situação em que foi posto no mundo e ali permanecer, seguindo também a hierarquia celeste. Outro valor incontestável – pelo menos naqueles séculos – era o da autoridade. Como o homem deveria aceitar a hierarquia social, deveria também, assumir uma postura compreensiva e obediente em relação a seus superiores. Assim, comprova Le Goff: "a grande virtude intelectual e social que era exigida ao homem medieval foi, em bases religiosas, a obediência. " [13] Com o tempo, nem todos admitiam esse comportamento e, portanto, foram considerados hereges. O terceiro e último valor é a liberdade. Era a liberdade reclamada pela Igreja em relação ao poder laico, era a liberdade buscada pelos camponeses e citadinos.


2) O surgimento das cidades e o papel do mercador

Já no fim do feudalismo, a população sofreu um grande aumento em seu número. Consequentemente, os feudos e as relações de vassalagem já não eram mais suficientes para abarcar o grande contingente populacional e esse já não conseguia consumir tudo o que era produzido nas grandes propriedades, as quais foram amplamente cultivadas com o desenvolvimento de técnicas novas de plantação - como a do pousio [14] - e com as inovações tecnológicas – como a charrua e a nova atrelagem dos animais. Aliás, essas novidades não só multiplicaram a colheita como também melhoraram a qualidade dos produtos.

O aumento de mão-de-obra e a superprodução possibilitaram a existência de um excedente agrícola, o qual foi fundamental para o revigoramento do comércio. Durante o período feudal, a atividade mercantil teve ínfima significância devido às próprias estruturas do feudalismo, que estavam alicerçadas na produção de subsistência. A configuração do território também não favorecia o comércio porque, como cada senhor feudal tinha autonomia para tributar da maneira que lhe aprouvesse – poder de ban: julgar, punir e tributar -, o mercador não tinha estabilidade e facilidade para desenvolver sua atividade. Porém, com a centralização do poder real, o mercador se beneficiava: os senhores feudais não possuíam mais o poder de antes e com isso o rei tinha condições de uniformizar a moeda e o sistema de medidas, circunstâncias que possibilitaram o grande "boom" do comércio e o apoio dos mercadores ao fortalecimento das monarquias.

Com o movimento dos mercadores, abrem-se as rotas comerciais, ocasionando também o desenvolvimento de cidades já existentes e o aparecimento de novas. Essas cidades localizavam-se, geralmente, próximas a rios ou estradas, facilitando, assim, o comércio. Todavia, essas cidades precisavam produzir algo que fosse passível de troca para que seus habitantes obtivessem os alimentos vindos do campo. Dessa maneira, uma gama de artesãos foi aparecendo, incrementando ainda mais a atividade mercantil e desenvolvendo o que foi chamado por Jean Gimpel [15] de Revolução Industrial medieval. Essas incipientes indústrias baseavam sua produção especialmente na construção e no ramo têxtil. Tais produções industriais desencadearam a formação de corporações de ofícios, sobre as quais Hilário Franco Júnior versa com clareza:

"Suas origens são controvertidas, mas as razões para o agrupamento são claras: religiosa, daí muitas vezes ter derivado de confrarias, isto é, de associações que desde o século X existiam para cultuar o santo patrono de determinada categoria profissional e para praticar caridade recíproca entre seus membros; econômica, procurando garantir para eles o monopólio de determinada atividade; político-social, com a plebe de artesãos tentando se organizar diante do patriciado mercador que detinha o poder na cidade." [16]

As rotas comerciais medievais tinham dois grandes eixos básicos: o mediterrâneo (dominado pelos italianos) e o nórdico (dominado pelos alemães). Hilário Franco Júnior enfatiza que Gênova e Veneza – pertencentes ao primeiro eixo- tinham poucas possibilidades agrícolas, o que as levou a ser umas das mais prestigiosas cidades comerciais da Europa. O professor da USP também salienta que as feiras medievais, especialmente as de Champagne, exerciam um papel preponderante na vida mercantil medieval.

Dessa forma, o Renascimento do século XII contemplou o surgimento de numerosas cidades que transformaram profundamente a face territorial europeia.


3) Os intelectuais e o nascimento das universidades

Paralelamente à emergência das cidades, aparece na cena medieval uma figura até então pouco destacada: o intelectual. Le Goff ressalta a importância das cidades para esse contexto afirmando que o intelectual nasce juntamente com as cidades [17]. Aliás, somente com as cidades os clérigos perderam a exclusividade de ser considerados intelectuais. Nas cidades, a disponibilidade de livros e escolas e os próprios questionamentos florescidos nas cidades e relação à religião abrem espaço para a intelectualização de uma parte da população leiga. Diz-se uma parte porque é sabido que o ensino era muito dispendioso e, assim, durante a Idade Média, tem como característica o elitismo.

Desde os princípios da Idade Média, era a Igreja que detinha o monopólio do ensino e das letras. É sabido que durante o feudalismo, por exemplo, somente os clérigos sabiam ler e escrever e somente eles tinham acesso aos livros. Entretanto, com o aburguesamento e a urbanização da sociedade esse quadro foi lentamente cambiando. O Terceiro Concílio de Latrão, de 1179, permitia a concessão gratuita da licença docente a todos que tivessem aptidão para exercê-la. Entretanto, é conveniente destacar que apesar de a exclusividade da detenção de saber pelos clérigos ter sido quebrada, a teologia continuava a ser a principal e mais procurada fonte de conhecimento.

Das escolas catedrais e monásticas nasceram as universidades. Le Goff também se refere às corporações como um elemento desencadeador delas: "O século XIII é o século das universidades porque é o século das corporações" [18] Sobre esse início das universidades, C. W. Previté – Orton assevera:

"a criação das universidades constitui o indício mais evidente do anseio da renovação intelectual e literária e do progresso da civilização que caracterizaram o período a que é o costume dar o nome de Renascença do século XII, designação adequada, pois trata-se de uma era de progresso intelectual comparável à Renascença italiana à Reforma." [19]

Em relação a elas, é conveniente acrescentar as palavras de Caenegem sobre as universidades:

"Como todas as instituições de ensino, as universidades medievais tinham um caráter eclesiástico. A maioria delas foi criada por uma bula papal e colocada sob a autoridade de um clérigo, na condição de reitor. Originalmente, todos os estudantes pertenciam ao clero, embora a grande maioria tivesse entrado apenas para as ordens menores e só uns poucos fossem ordenados padres. Em fins da Idade Média, esse caráter clerical diminuiu, e daí em diante a maioria da população estudantil era composta de leigos." [20]

Em relação às origens das universidades, há três maneiras de surgimento: união de várias escolas que já existiam anteriormente – como Bolonha (1158) e Paris (1200) -; secessão causada por problemas que levaram mestres e/ou alunos a abandonar a universidade que frequentavam e fundar outra – Cambridge surgida de Oxford (1209) e Pádua surgida de Bolonha (1222) -; decretação de bulas papais – como Toulouse (1229) - ou imperiais - Nápoles (1224).

As universidades eram verdadeiros centros cosmopolitas pois todos os cursos – Teologia, Direito, Medicina e Artes, sendo esse pré-requisito para os demais –, em qualquer universidade europeia eram ministrados em latim, utilizando-se, geralmente, a mesma bibliografia. Os estudantes, portanto, viajavam constantemente de universidade para universidade, o que também sucedia com os professores. Infere-se, por conseguinte, que as universidades eram essencialmente elitistas, pois somente os membros de uma classe social elevada eram capazes de patrocinar tais estudos, já que o sistema de bolsas era raro. Deve-se considerar também que os livros eram muito caros e os cursos muito longos, o que impossibilitava o trabalho remunerado de muitos estudantes – com exceção dos que conseguiam trabalhar para estudantes ricos [21].

O ensino era basicamente o trivial (retórica, gramática e dialética) e o eclesiástico. Convém ressaltar também que a corrente filosófica da escolástica influiu diretamente no método empregado nas universidades. Com o Renascimento do século XII e a recuperação de textos clássicos, houve um conflito entre as culturas pagãs e a cristã. O escolasticismo nasce do esforço contínuo de conciliar a fé e a razão típica dos textos gregos, especialmente os de Aristóteles. Era, na realidade, uma tentativa de exprimir racionalmente as crenças religiosas e fornecer uma explicação racional do mundo e do homem, com a pretensão de se explicar a fé cristã. Um dos fundadores da escolástica foi Santo Anselmo, um dos Pais da Igreja que representa um dos grandes expoentes dessa filosofia juntamente com São Tomás de Aquino.

Além da importância referente à aquisição e difusão de conhecimento proporcionadas pelas universidades, deve-se mencionar a envolvida questão burocrática. As grandes cidades precisavam de quadros qualificados para o exercício de cargos administrativos, políticos e jurídicos. Somente as universidades eram aptas para tal preparação. Com a formação universitária foi possível a profissionalização dos cargos, especialmente os jurídicos. Caenegem assegura que as cidades italianas, a partir do século XIII começaram a atrair professores de direito para também exercerem funções públicas [22].

As universidades multiplicaram-se e já no século XIV eram muitas, inspiradas no modelo parisiense ou bolonhês. No entanto, progressivamente a universidade foi perdendo suas características corporativas, até que o impulso do Humanismo fez desaparecer o intelectual profissional, substituindo-o por um novo tipo de homem, o humanista, e fazendo surgir o mecenato de papas, reis ou burgueses ricos, típico do individualismo renascentista.


4) A Reforma Gregoriana

A Igreja Católica influenciou diretamente todos os setores da vida do homem medieval. A Idade Média é vista como o período e que o cristianismo se firmou como a religião hegemônica e, assim como conquistou milhões de adeptos por toda a Europa, aos poucos foi adquirindo poderes políticos e econômicos. O seu poderio era tamanho que já por volta do século V ela era a segunda maior proprietária de terras da Europa e, consequentemente, com o fim do Império Romano passou a ser a maior.

Entretanto, com o advento do feudalismo o poder eclesiástico diminuiu significativamente. Em cada feudo, o senhor podia nomear como sacerdote de seu território quem lhe aprouvesse – o que levava, muitas vezes, uma pessoa sem nenhum preparo ou moral religiosa para tal cargo - , podia se apossar do dízimos e das esmolas recebidas dos servos. Assim, os bispos não tinham poder nenhum dentro dessa "hierarquia" feudal.

Com a intenção de inverter tal quadro, a Igreja iniciou uma reforma, visando à autonomia em relação aos poderes seculares – almejando também o controle sobre a sociedade - e à recuperação do prestígio perdido. Nesse contexto de reconquista, o papa Nicolau II estabeleceu uma série de mudanças que tinham por objetivo alcançar as metas anteriormente mencionadas. Entretanto, esse papa não conseguiu atingi-las por conta das pressões dos poderes políticos, especialmente as do imperador germânico. A reforma só será realmente efetivada com o papa seguinte Gregório VII, e é por isso que tal conjunto de mudanças foi denominado Reforma Gregoriana.

Gregório lutou fortemente contra o nicolaísmo – vida conjugal de clérigos - que se desenvolvia nos meios eclesiásticos e contra a simonia – venda de coisas santas e espirituais -, ameaçando os infratores de excomunhão. O papa também instituiu uma hierarquia monástica, cujo ápice era o próprio papado. Aliás, o papa era também o rei de todos os povos e o único a quem se devia beijar os pés.

Porém, foi a Questão das Investiduras que teve a maior repercussão na Europa daqueles tempos. Gregório havia estabelecido que nenhum leigo poderia outorgar ofícios eclesiásticos, contrariando interesses de vários reis e imperadores que muito ganhavam com a nomeação de pessoas de sua confiança para cargos clericais. Vários choques ocorreram, principalmente na Itália, entre os grupos que apoiavam o papa – os guelfos – e os grupos que apoiavam o imperador – os gibelinos.

Apesar desses conflitos, o papa conseguiu enraizar o seu poder na sociedade medieval. Sobre isso, expõe Hilário Franco Júnior:

"Em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza as universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções, reconhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga e vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento, abstinência),regulamenta a atividade profissional /trabalhos lícitos e ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitudes), estipula os valores culturais. (...). Um claro sinal do alargamento das atribuições papais estava numa importante novidade, a exclusividade de canonização dos santos." [23]


5) O ressurgimento do direito romano

Mesmo com o colapso do Império Romano e as invasões bárbaras, o direito romano continuou a ser empregado nos primeiros séculos medievais. Um fator que muito contribuiu para a manutenção do direito romano foi o princípio da personalidade. Nesse período, o mesmo território europeu estava albergando povos de diferentes origens e, por isso, era mister que tal princípio fosse utilizado. Ele se baseava no fato de que o direito aplicado em determinado conflito era o direito original das partes. Dessa forma, o direito romano conseguiu ainda permanecer por alguns séculos depois da decadência do Império.

O contato com a cultura germânica transformou o direito romano a fim de que ele fosse ajustado à nova realidade que miscigenava a cultura romana e cultura germânica. Dessa adaptação, surgiu o direito romano vulgar, no qual prevaleciam os costumes. Nesse período, algumas compilações foram feitas por reis bárbaros, ilustrando claramente esse direito vulgar. Exemplos dessas codificações: Edito de Teodorico ( promulgado pelo rei dos ostrogodos na Itália), a Lei Romana dos Burgúndios, a Lei Romana dos Visigodos.

Contudo, com a perda do poder dos reis, especialmente depois do Tratado de Verdun, o qual dividiu o Império Carolíngio em três, e com o feudalismo, o território europeu foi todo compartimentado e feudos, dentro dos quais o poder dos reis era quase insignificante. Era o senhor feudal que tinha plenos poderes dentro de seu território. Assim, com o desaparecimento da atividade legislativa imperial, o direito foi adstrito aos costumes e as relações de vassalagem. Esse foi o período e que se recorria aos ordálios – provas irracionais – e aos duelos judiciais. O direito romano ficou praticamente esquecido nesse período, salvo em algumas localidades nas quais ele permanecia na forma de costumes.

Todavia, com a decadência do feudalismo e com o aumento no grau de complexidade na sociedade – ocasionado pelo surgimento de novos papéis sociais-, o direito consuetudinário não era mais suficiente para solucionar os conflitos jurídicos. Além disso, os intelectuais que fora surgindo nas cidades reclamava, também por um direito mais racional. Foi-se então clamado o direito romano que, apesar de relegado há um bom tempo, podia se adaptar, por conta de seu caráter universalizante, à nova conjuntura social, política e econômica.

Muitos foram os atores que contribuíra para a reabsorção do direito romano pela sociedade medieval, sendo assim difícil estabelecer qual foi o preponderante. O que se assegura é que todos estes fatores combinados favoreceram a reemergência desse direito.

Um fator muito importante foi a herança cultural legada pelo Império Romano aos europeus. Sobre isso, Argemiro Cardoso expressa: "As marcas da civilização romana estavam por demais entranhadas no continente europeu, de forma que não poderiam ser facilmente esquecidas." [24]. O povo europeu, por conta de sua intensa admiração ao Império, possuía um sentimento de identidade e continuidade com a cultura romana, o que certamente favoreceu a aceitação do direito romano depois de tanto tempo restrito apenas à memória.

A economia também um papel fundamental. A nova classe burguesa que se formava na Europa precisava de um direito uniforme por todo o território, a fim de que suas atividades mercantis fossem facilitadas. Além do mais, o direito romano garantia certa previsibilidade e segurança, aspectos que o direito consuetudinário não era capaz de abarcar. Entretanto, é importante se fazer um ressalva em relação a esse aspecto econômica. O direito romano não foi recepcionado pelos mercadores pelo seu conteúdo material, mesmo porque o Império Romano pouco desenvolveu o comércio e, portanto, não tinha possibilidade de regular materialmente essas novas transações. A relevância do direito romano estava, decididamente, em sua estrutura racional e uniforme, além de suas noções de propriedade absoluta, suas tradições de equidade, e seus critérios racionais de prova e na ênfase dada a uma magistratura profissional [25].

Há também um fator político que desencadeou essa recepção: com o enfraquecimento do sistema feudal, os reis puderam recuperar o seu poder e, assim, centralizá-lo. O direito romano ia ao encontro dessa nova realidade política haja vista, na época de seu pleno desenvolvimento, possuir um poder imperial forte que, porém, permitia a liberdade no âmbito privado.

Podem-se enumerar, outrossim, fatores sociológicos e epistemológicos [26]. Os primeiros se referem ao processo de burocratização do Estado. Com o ressurgimento das cidades e com o fortalecimento do poder central era preciso que a estrutura administrativa e a profissional fossem bem desenvolvidas e eficazes para garantir que as ordens reais fossem cumpridas eficientemente. Para isso, o direito romano tinha um aparato que possibilitava essa estruturação. Com relação aos segundos fatores, vale-se ressaltar o surgimento das universidades e a crença na razão.

A Igreja, por sua vez, desempenhou um papel importantíssimo no desenvolvimento jurídico. O autor menciona o fato de que, depois da aceitação do catolicismo por Constantino, várias tarefas públicas ficaram a seu encargo. Do mesmo modo que a Igreja influenciou a burocracia romana, o fez também com o direito. A doutrina cristã fixou como fonte de direito não escrito a ética-social, e dessa forma, durante toda a Idade Média, o direito foi permeado pelo pensamento teológico.

A tradição pedagógica romana também influiu profundamente no âmbito jurídico. Roma adotou como padrão a Paideia grega, portanto, o ensino do trivium: gramática, retórica e dialética. Mais tarde, quando da decadência do império, a formação jurídica foi também incluída no trivium. Entretanto, é importante salientar que depois de aceita a religião católica, foi ela que prevaleceu nos centros de ensino. Wieacker assevera que o ensino eclesiástico – também baseado no trivium para a formação de clérigos - e o ensino trivial desempenharam um papel fundamental na herança da antiguidade.

As universidades foram importantes focos de estudo do direito romano. Assim que elas surgiram, o curso de direito já era ministrado com o direito romano erudito, o que facilitou a recepção desse direito nos tribunais. A respeito disso, Caenegem faz essa observação:

"Há vários fatores que podem explicar essa difusão do direito romano em regiões de direito consuetudinário: a erudição jurídica encontrava-se inteiramente sob a influência do direito erudito; os tribunais de justiça estavam cheios de juristas cuja educação universitária fora baseada no direito romano; e os próprios costumes (uma vez homologados) reconheciam freqüentemente que o direito romano exercia um papel suplementar de vínculo." [27]

Um grande foco de formação da ciência jurídica na Europa é Bolonha, no final o século XI. Esse início é marcado pelo resgate da cultura clássica, e , consequentemente, dos textos clássicos que por muito tempo foram esquecidos. Nesse mesmo século iniciou-se a apreciação crítica do Digesto, a chamada "Vulgata do Digesto". A importância dessa Vulgata é dada pelo fato de que era ela o instrumento de ensino do ius civile na Europa.

Os estudos jurídicos de Bolonha estavam baseados já no então mencionado ensino trivial. Todavia, o que distinguia os glosadores bolonheses de seus antecessores era o fato de que a gramática, a retórica e a dialética eram agora utilizados com um objeto bem definido: o Digesto. Por isso, é que Wieacker assevera que tal fenômeno foi "um ato de entusiasmo científico" [28]. Foi essa elaboração da Vulgata, com o uso das artes liberales que deflagrou o surgimento da ciência jurídica europeia. É relevante salientar que, ao contrário de muitas universidades medievais, Bolonha não prendeu seus estudos ao estudo da teologia. Seus documentos eram basicamente resultado da técnica expositiva do trivium.

Outro elemento que desencadeou esse processo foi o racionalismo da escolástica. Essa busca pelo racionalismo foi fruto da recuperação da cultura clássica. Assim, textos como os de Aristóteles, de Plínio, as Sagradas Escrituras e o próprio Corpus Iuris Civilis eram tidos como verdades irrefutáveis. A característica sobrenatural que atribuíam ao Império Romano – que significava ele mesmo o Corpo de Cristo – refletiu diretamente na ideia do Corpus Iuris, tido como uma revelação no âmbito jurídico. Assim, o direito romano passou a ser visto não só como um direito do povo romano , mas como um direito de toda a comunidade humana, denotando o caráter universal do direito.

Em relação à interpretação do Digesto, afirma Wieacker, os glosadores tinham o objetivo de comprovar a veracidade da autoridade, pelo uso da razão, contida nos textos. Essa autoridade reflete a busca de uma dogmática pelos glosadores. Assim, eles não tinham a intenção de tornar práticos os preceitos romanos nem compreendê-lo do ponto de vista histórico. Para eles, o Corpus Iuris Civilis era a razão que havia tomado corpo.

A respeito dos glosadores, é difícil estabelecer a contribuição individual de cada jurista em relação à totalidade de seus trabalhos devido à precariedade de fontes. Declara Wieacker que somente nos tempos modernos se comprova a individualidade de cada jurista; contudo, nesse período do qual se ocupa, essa individualidade não era efetivamente priorizada. Não obstante, é verificada a existência de grandes glosadores, como Búlgaro, Placentino, Azo e Cino, além de Irnerius, tido como o fundador da escola de Bolonha e o primeiro glosador. Os outros antecessores ainda permanecem nas sombras.

Já com relação à tentativa de legitimação da razão, a descoberta de textos clássicos, não só o Código de Justiniano, mas também as obras de Plínio, Platão e especialmente de Aristóteles, levaram a um conflito com a fé, uma vez que esses textos eram considerados fruto de uma cultura pagã. Contudo, com o tomismo esse conflito foi harmonizado, causando uma maior admiração por esses textos clássicos. A crença na razão era tão preponderante que havia nessa época a intenção de conciliar tais textos clássicos com as Sagradas Escrituras, função bastante desenvolvida pelos glosadores de Bolonha.

Esses fatores, cada um a sua maneira, contribuíram para que o direito romano fosse novamente empregado na vida jurídica medieval. Entretanto, essa recepção não foi homogênea por toda a Europa, como afirma Caenegem. O direito germânico também era bastante utilizado, e dessa fusão de influências nasceu o direito romano-germânico. Na Alemanha, o direito romano foi recepcionado maciçamente, enquanto na Inglaterra esse direito foi rejeitado em virtude da existência do Common Law. Mas mesmo assim, a influência do direito romano foi tão forte que até em alguns tribunais ingleses, como o Court of Chancery e o High Court of Admiralty, o direito erudito era aplicado [29].

A importância dos glosadores para a ciência jurídica moderna baseia-se no domínio do texto romano que obtiveram com seus estudos e interpretações. Além disso, fizeram que se mudasse o sistema de ensino de direito, combinando procedimentos filológicos, analíticos e sintéticos. Os glosadores também contribuíram para desenvolver a exploração lógica dos problemas jurídicos. A partir do trabalho deles, o direito foi visto como fruto da racionalidade e da discussão intelectual, e não mais como costumes. Assim, complementa Wieacker:

"Essa nova exigência dos juristas racionalizou e jurisdicionalizou para sempre a vida pública da Europa; em virtude dessa influência, dentre todas as culturas do mundo, é a européia a única que se tornou legalista." [30]

A partir dos glosadores, surgiu, além dos estudos teológicos e das artes já existentes, o studium civile, que desencadeou a formação de profissionais especializados pela administração da justiça, os quais a monopolizaram e a racionalizaram, o que perdura até os dias atuais.


BIBLIOGRAFIA:

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CAENEGEM, R. C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (trad. Carlos Eduardo Machado).

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HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difel – Difusão Européia do Livro, 1974.

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Sãp Paulo: Cia das Letras. (trad. Cid Knipel Moreira)

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WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gilbenkian, 1980. (trad. A. M. Botello Hespanha)


Notas

  1. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Cia das Letras, 2001. (trad. Cid Knipel Moreira). Pág. 75.
  2. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média - nascimento do Ocidente. 2 ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2001. Pág. 109.
  3. HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia das Letras. Pág. 71.
  4. LE GOFF, Jacques. O homem medieval. In: LE GOFF, Jacques (org). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. (trad. Maria José Vilar de Figueiredo). Pag. 09
  5. LE GOFF, Jacques. Op. cit. Pág. 12.
  6. LE GOFF, Jacques. Op. cit. Pág. 15.
  7. Idem. Pág. 16
  8. Idem.
  9. Idem. Pág.19.
  10. LE GOFF, Jacques. Op.cit. Pág. 24.
  11. Idem Pág. 25.
  12. LE GOFF, Jacques. Op.cit. Pág. 27.
  13. Idem Pág. 29.
  14. "Prática agrícola que na divisão da terra cultivável em partes (duas no sistema bienal e três no trienal) deixava uma delas todo o ano, alternadamente, sem cultivo, para que a terra se fertilizasse naturalmente. No período em que essa parcela ficava inculta, os restos do plantio anterior servia de pasto secundário para os animais do senhorio, cuja adubação também contribuía para a recuperação do solo". (FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op.cit. Pág 185).
  15. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op.cit. Pág. 41.
  16. Idem. Pág. 43.
  17. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Liscoa: Ed. Estudios Cor. Pág 13.
  18. Idem. Pág. 73.
  19. PREVITÉ-ORTON, C. W. História da Idade Média. Vol. IV. Lisboa: Editorial Presença, 1973. Pág. 224.
  20. CAENEGEM, R. C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. ( trad. Carlos Eduardo Machado). Pág. 108.
  21. Idem. Pág. 111.
  22. Idem. Pág. 106.
  23. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op.cit. Pág. 77.
  24. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. Op.cit. Pág. 199.
  25. Idem. Pág. 202.
  26. Idem.
  27. CAENEGEM, R. C. van. Op.cit. Pág. 49.
  28. Idem. Pág. 42.
  29. Idem. Pág. 48
  30. WIEACKER, Franz. Op.cit. Pág. 65.

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PINHO, Daniella Ribeiro de. História do Direito: o Renascimento do século XII e as repercussões no ressurgimento do Direito Romano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3021, 9 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20178. Acesso em: 29 mar. 2024.