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O princípio da precaução como fundamento da inversão do ônus da prova em matéria ambiental

O princípio da precaução como fundamento da inversão do ônus da prova em matéria ambiental

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Uma nova fase do Direito Ambiental é inaugurada pelo princípio da precaução. Já não cabe aos titulares de direitos ambientais provar efeitos negativos. Impõe-se agora aos degradadores potenciais o ônus de corroborar a inofensividade de sua atividade proposta, principalmente nos casos em que eventual dano possa ser irreversível, de difícil reversibilidade ou de larga escala.

Resumo: A visão ambiental de vanguarda traz a necessidade de compreender o meio ambiente de forma holística, uma vez que os direitos ambientais não pertencem ao indivíduo egoísticamente considerado, mas sim como integrante de um corpo. A precaução como escopo do instituto da inversão do ônus da prova em sede processual ambiental traz à tona a temática de que em uma cultura de princípios os comandos abstratos são insuficientes para prever ou resolver as situações da vida numa sociedade reconhecidamente de desiguais.

Palavras-chave: Direito Ambiental, Meio Ambiente, Princípio da Precaução, Processo Civil, Equilíbrio, Inversão do Ônus da Prova.

Abstract: The vision environmental vanguard brings the need to understand the environment in a holistic way, since environmental rights do not belong to the individual selfishly considered, but as integrating a body. The precaution as scope of the Office of the reversal of burden of proof in the procedural brings environmental raises the issue in a culture of abstract principles controls are insufficient to provide or resolve the situation of life in society admittedly unequal.

Keywords: Environmental Law, The Environment, The precautionary principle, Civil Procedure, Equilibrium, Inversion of the Burden of Proof.

Sumário: Introdução; 1 A Tutela Constitucional do meio ambiente; 2 Evolução do Direito Ambiental no Brasil: um breve histórico; 2.1 Legislação brasileira e a tutela do meio ambiente; 2.1.1 A Ordem Constitucional; 2.1.2 A marcha da legislação ambiental brasileira; 3 Princípios fundamentais do Direito Ambiental; 3.1 Princípios fundamentais em espécie; 3.1.2 Princípio do Direito Humano Fundamental; 3.1.3 Princípio da Solidariedade Intergeracional; 3.1.4 Princípio Democrático; 3.1.5 Princípio da Precaução; 3.1.6 Princípio da Prevenção; 3.1.7 Princípio do Equilíbrio; 3.1.8 Princípio da Responsabilidade; 3.1.9 Princípio do Poluidor Pagador; 3.1.10 Princípio do Usuário Pagador; 3.1.11 Princípio da Função Sócio-ambiental da Propriedade; 3.1.12 Princípio do Mínimo Existencial Ecológico; 3.1.13 Princípio da Proibição do Retrocesso Ecológico; 4 O instituto do ônus da prova no Direito Brasileiro; 5 A inversão do ônus da prova nas questões ambientais; 5.1 Inversão do ônus da prova e a nova racionalidade jurídica no julgamento de ações ambientais; Considerações Finais; Referências.


Introdução

É sabido que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e a condições que proporcionem um estágio mínimo de qualidade de vida.

Em uma clara conceituação acerca de Direito Ambiental, Toshio Mukai [01] assevera que:

O Direito Ambiental (no estágio atual de sua evolução no Brasil) é um conjunto de normas e institutos jurídicos pertencentes a vários ramos do direito reunidos por sua função instrumental para a disciplina do comportamento humano em relação ao seu meio ambiente.

Ante o exposto, infere-se que o bem jurídico protegido pelo direito ambiental é global. Não há uma tutela específica, mas ampla proteção às relações biológicas que garantem o equilíbrio ecológico. Deve o meio ambiente ser entendido como "o conjunto de condições, leis influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas" [02].

O presente artigo objetiva discorrer sobre a abordagem do legislador ambiental e a aplicabilidade das normas específicas desta temática. Não obstante, nesta exposição será analisado o instituto da inversão do ônus da prova em matéria ambiental.


1 A Tutela Constitucional do meio ambiente

A Constituição Federal de 1988, além de consagrar um capítulo próprio ao meio ambiente, recepciona a legislação ambiental pré e infraconstitucional, reafirma e atribui status constitucional a diversos instrumentos integrantes da Política Nacional do Meio Ambiente. A Carta Magna ratifica que a dimensão jurídica de proteção ao meio ambiente é imaterial, difusa, indisponível e indivisível; a saber:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. [03] (Grifo nosso)

A tutela constitucional do meio ambiente traz à tona um papel de reciprocidade entre o homem e a natureza, uma vez que a Constituição Federal possui uma visão de proteção ao macrobem [04] - atenta-se para o todo a fim de garantir os elementos isolados. Descobre-se uma complementaridade geradora da relação direito x dever em uma dimensão holística na busca da qualidade de vida.

O dano ambiental é previsto e definido no artigo 3º, II da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e, na concepção de Leite e Ayala [05], é:

Uma alteração indesejável ao conjunto de elementos chamado meio ambiente [...] O dano ambiental engloba os efeitos que esta modificação gera na saúde das pessoas e em seus interesses.

Portanto, em uma visão de vanguarda, o dano ambiental não deve ser pensado como a simples violação a um direito, mas como transgressão a interesse jurídico. Depreende-se assim pelo fato de – na condição de direito fundamental que lhe é inerente – o direito ao meio ambiente integrar a dignidade da pessoa humana. A dimensão ecológica da dignidade humana transcende os aspectos de alimentação, lazer, moradia, saúde, educação etc. Há de se entender que a dignidade contempla a integralidade do ser vivo: todo ele tem direito à vida e a ser protagonista da mesma. É o valor da dignidade integrando o direito de personalidade.

A responsabilização decorrente dos danos ao meio ambiente encontra abrigo legal no artigo 225, parágrafo 3º da Constituição Federal, que reza que os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, responsáveis por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitar-se-ão a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. (Grifamos).

As marcas deixadas pela destruição dos recursos de floresta, solo e água em todo o mundo em desenvolvimento assinalam tanto o desperdício quanto a redução do potencial produtivo dessas fontes no futuro. As grandes cidades cresceram rapidamente, fora de qualquer proporção com o ambiente ecológico.

Na doutrina de Leonard [06], o rápido crescimento populacional, aliado à consolidação da propriedade da terra e modernização agrícola, em conjunto com as desigualdades predominantes no sistema de posse da terra, figuram como fatores demográficos que se influenciam de maneira recíproca para detonar o conflito entre a proteção ambiental em longo prazo e as estratégias de sobrevivência em curto prazo.

Decerto que o desenvolvimento não pode ser barrado, entretanto, deve-se levar em consideração que, não raro, a construção de infra-estrutura pode produzir impactos ambientais grandiosamente nocivos. Urge a necessidade de um trabalho de proteção ambiental intenso para assegurar que o dano ecológico resultante da etapa seguinte de "progresso" seja radicalmente reduzido.

Mostra-se necessário o estímulo a processos de planejamento de desenvolvimento que enfatizem a adoção de tecnologias descentralizadoras, de baixo custo, a fim de reduzir os perigos ecológicos à coletividade. Deve-se ter em mente que em um conceito consciente e combativo a responsabilidade civil há de ser um instrumento de política pública a serviço de toda a sociedade, não cuida apenas de questões patrimoniais, mas, sobretudo, da proteção de direitos essenciais à sobrevivência e conservação da vida humana.

O Direito Ambiental, neste cenário, de crise ambiental global, deve desempenhar o papel não apenas de balizador de condutas, mas, primordialmente de instrumento de efetivação dos princípios basilares da prevenção e precaução; de forma a garantir o disposto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988: que todos tenham direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Não é meramente uma questão de ecologia, mas assecuratória à manutenção da vida da família humana na terra, bem como dos demais seres que formam a biota. Entende-se de tal maneira por ser o direito ambiental trans e pluri individual, inter e intrageracional, indivisível e inatingível.

O desenvolvimento sustentável deve reger as relações cotidianas, a fim de trazer às comunidades a possibilidade de crescimento consciente, sem que haja uma degradação das funções naturais essenciais à dignidade da pessoa humana. Nesse ponto, há interseção fulcral da efetivação dos princípios da prevenção e precaução com a questão da responsabilidade sócio-ambiental e desenvolvimento sustentável, ao passo que o direito ambiental assegura e protege o meio ambiente, ao considerá-lo um patrimônio público universal necessário ao uso coletivo.


2 Evolução do Direito Ambiental no Brasil: um breve histórico

Apesar da atual repercussão da questão ambiental em todo o mundo, é relativamente recente o despertar ecológico. Esta novidade acarreta carência de efetiva proteção jurídico-institucional.

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, reunida em Estocolmo, em 1972, que atentou à necessidade de um critério e de princípios comuns que oferecessem aos povos do mundo inspiração e guia para preservar e melhorar o meio ambiente humano, sagrou-se paradigma às questões ambientais, uma vez que foi o primeiro grande encontro internacional com vistas à discussão dos problemas ambientais. Como fruto da Conferência, foi promulgado documento histórico, a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, que, apesar de trazer poucas inserções de aplicabilidade fática, abriu caminho para que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado fosse reconhecido por constituições supervenientes. Assim, apenas os países que elaboraram seus textos constitucionais a partir da década de 70 – mais precisamente após a Conferência da ONU de 72 – responderam com tutela eficaz aos clamores universais ante a necessidade de equilíbrio ecológico.

2.1 Legislação brasileira e a tutela do meio ambiente

Tema cada vez mais relevante no universo jurídico, o Direito Ambiental brasileiro é também resultado de importantes fatores históricos que foram essenciais para o desenvolvimento dessa temática. Para um melhor entendimento da sistemática ambiental adotada pelo direito brasileiro se faz necessária uma breve análise da evolução da legislação pátria pertinente.

2.1.1 A Ordem Constitucional

As Constituições que precederam a de 1988 foram displicentes com a proteção do meio ambiente de forma específica e global. Nelas, em tempo algum, foi empregada a expressão "meio ambiente", fazendo evidente, conforme magistério de Édis Milaré [07], flagrante inadivertência e despreocupação com o próprio espaço em que vivemos.

Em decorrência da relevância que apresenta à saúde, e à preservação da vida no planeta, conferiu o legislador constituinte de 1988 especial cuidado à questão ambiental. A Carta Magna conferiu identidade própria à proteção ao meio ambiente, com definição dos fundamentos de proteção ambiental, e despertou a consciência da necessidade da convivência harmoniosa com a natureza. A dimensão conferida ao tema no Texto Supremo traduz em diversos dispositivos voltados à proteção do até então desfalcado patrimônio natural do país, traduzindo-se um dos sistemas mais abrangentes e atuais do mundo sobre a tutela do meio ambiente. A Constituição Federal confere à geração atual, bem como às futuras, o direito indisponível ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, oponível ao Estado que responderá por danos causados ao ambiente.

2.1.2 A marcha da legislação ambiental brasileira

A primeira lei de cunho ambiental no país data de 1605: o Regimento do Pau-Brasil, voltado à proteção das florestas. Em 1797, a necessidade de proteção a rios, nascentes e encostas foi afirmada pela Carta Régia. No ano de 1799, foram estabelecidas rigorosas regras para a derrubada de árvores por meio do Regimento de Cortes de Madeiras. A primeira lei de terras do Brasil, Lei nº 601/1850, foi promulgada e passou a disciplinar a ocupação do solo e estabeleceu sanções para atividades predatórias. Em 1911 foi criada a primeira reserva florestal brasileira, no antigo Território do Acre, com a expedição do Decreto nº 8843. Com o surgimento do Código Civil Brasileiro de 1916, foram elencadas várias disposições de natureza ecológica – a maioria delas, no entanto, refletia uma visão patrimonial, de cunho individualista. O Código Florestal e o Código das Águas, sancionados em 1934, continham o embrião do que viria a constituir a atual legislação ambiental brasileira. Em 1964 surge uma resposta a reivindicações de movimentos sociais, que exigiam mudanças estruturais na propriedade e no uso da terra no Brasil: o Estatuto da Terra, Lei 4504. Nos idos de 1965, as políticas de proteção e conservação da flora foram ampliadas; passou a vigorar uma nova versão do Código Florestal, inovador, estabeleceu a proteção das áreas de preservação permanente. Em 1967, são editados os Códigos de Caça, de Pesca e de Mineração, bem como a Lei de Proteção à Fauna. Uma nova Constituição atribui à União competência para legislar sobre jazidas, florestas, caça, pesca e águas, cabendo aos Estados tratar de matéria florestal. Por meio do Decreto-Lei 1413 de 1975, iniciou-se o controle da poluição provocada por atividades industriais. Em 1977 foi promulgada a Lei 6453, que estabeleceu a responsabilidade civil em casos de danos provenientes de atividades nucleares. Em 1981, estabeleceu-se a Política Nacional do Meio Ambiente, por meio da edição da Lei 6938, que inovou ao apresentar o meio ambiente como objeto específico de proteção. Com a edição da Lei 7347, de 1985, disciplinou-se a ação civil pública como instrumento processual específico para a defesa do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Em 1988 a promulgação da Constituição dedicou capítulo específico ao meio ambiente, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. No ano de 1991, o Brasil passou a dispor da Lei de Política Agrícola – Lei 8171 – com capítulo especialmente dedicado à proteção ambiental. Foi publicada a Lei 9605/1998 que dispõe sobre crimes ambientais e prevê sanções penais e administrativas para condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Em 2000, surgiu a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei 9985, com previsão de mecanismos para a defesa de ecossistemas naturais e de preservação dos recursos naturais neles contidos. Sancionou-se, em 2001, a Lei 10257 – Estatuto das Cidades – que dotou o ente municipal de mecanismos com vistas a permitir que seu desenvolvimento não ocorra em detrimento do meio ambiente.


3 Princípios fundamentais do Direito Ambiental

Em sua raiz latina, a palavra princípio significa "aquilo que se toma primeiro" (primum capere), designa início, começo, ponto de partida. Podem os princípios ser conceituados [08] como preposições diretoras de uma ciência; são invariáveis que condicionam e alicerçam o conhecimento humano.

No entender do douto Celso Antônio Bandeira de Mello [09], princípio é, por definição,

Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Importante assistência no conhecimento do sistema jurídico é prestada pelos princípios, eles sinalizam uma melhor identificação da coerência e unidade que fazem de um corpo normativo um concatenado sistema lógico e racional. Os princípios fundamentais do direito são balizadores da ordem jurídica positiva com o potencial de conduzir a novas soluções.

Em qualquer ramo do direito, a análise dos princípios fundamentais possui indiscutível relevância prática, uma vez que permite a visualização global do sistema para melhor aplicação concreta das normas. Tal circunstância revela-se ainda mais importante na análise dos sistemas jurídicos que – como o ambiental – possuem suas normas dispersas em inúmeros textos de lei.

3.1 Princípios fundamentais em espécie

Devido à relevância e magnitude de seu objeto de proteção – o meio ambiente –, o Direito Ambiental está amparado por princípios próprios e interligados entre si. Assim, para que haja efetiva aplicabilidade do Direito Ambiental, é mormente que seus princípios fundamentais sejam do senso comum, pois são estas as normas de valor genérico que orientarão sua compreensão, aplicação e integração ao sistema jurídico em sua integralidade.

3.1.2 Princípio do Direito Humano Fundamental

O direito ao meio ambiente protegido, no entender de Édis Milaré [10], compõe o quadro de direitos fundamentais ditos de terceira geração e, devido à progressiva degradação a que se assiste em todo o mundo, ascendeu ao posto de "valor supremo das sociedades contemporâneas".

Com origem na Declaração de Estocolmo de 1972, o Princípio do Direito Humano Fundamental é o responsável pela existência dos demais princípios do Direito Ambiental.

Ademais, o legislador constituinte, a par dos direitos e deveres individuais e coletivos elencados no art. 5º, acrescentou no caput do art. 225 o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como um direito humano fundamental. Configura-se valor que, como aduz Miguel Reale [11], atua como se fosse inato, estável e definitivo, não sujeito à erosão do tempo.

3.1.3 Princípio da Solidariedade Intergeracional

A Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, preocupada com a finitude dos recursos naturais, estabeleceu em seu Princípio 2 [12] que estes devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras, prevendo, para tanto, cuidadoso planejamento.

De igual maneira, a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 [13], averbou no Princípio 3 que, o direito ao desenvolvimento "deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades (...) das gerações atuais e futuras".

O Princípio da Solidariedade é base do moderno Direito Ambiental, tendo em vista que amplia o conceito de proteção da vida como fundamento para constituição de novos direitos. Para tanto, impõe o reconhecimento de que a vida que se protege no texto constitucional não é apenas a vida atual, nem é somente a vida humana. Compreende uma totalidade inserta no conjunto global de interesses e direitos das gerações presentes e futuras de todas as espécies vivas na Terra.

3.1.4 Princípio Democrático

Ao cidadão é assegurado o direito à informação e participação na elaboração das políticas ambientais, de modo que devem estar disponíveis os mecanismos judiciais, legislativos e administrativos para efetivação do direito.

O princípio aludido é materializado através dos direitos à informação. Depreende-se, portanto, que pelo Princípio Democrático, todo cidadão tem o direito pleno de participar da elaboração das políticas públicas ambientais. A participação se dá nas três esferas de Poderes.

3.1.5 Princípio da Precaução

Em meio a tantas descobertas tecnológicas, na mais variadas áreas do saber humano, torna-se árdua a tarefa de precisar o que pode ser danoso à saúde do homem e à preservação do meio ambiente holístico. O que é tido com inócuo poderá se transformar em algo extremamente danoso no futuro.

Diante da incerteza científica sobre determinado assunto, surge a precaução: há de se agir com cautela, de modo a afastar algum possível risco.

O aspecto precaucional foi recepcionado pelo Princípio 15 da Declaração do Rio. Não obstante, a Lei Fundamental Brasileira, designou expressamente o princípio em tela, quando em seu artigo 225, V, previu como dever do Poder Público o controle da produção, da comercialização, e do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

Saliente-se que, em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível, a omissão na adoção de medidas de precaução foi considerada pela Lei de Crimes Ambientais [14] como circunstância capaz de sujeitar o infrator a reprimenda mais severa, idêntica à do crime de poluição qualificado pelo resultado:

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:

(...)

§ 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível. (Grifamos).

A precaução, assim, é anterior à própria manifestação do perigo, garantindo margem de segurança na linha de risco, em prol da sustentabilidade.

3.1.6 Princípio da Prevenção

Quando há elementos seguros para afirmar que determinada atividade é efetivamente perigosa e o perigo é certo, aplica-se o Princípio da Prevenção. Tal princípio se debruça, ao longo do tempo, aos impactos ambientais já conhecidos e informa, por exemplo, o licenciamento ambiental e os estudos de impacto ambiental.

Logo, o princípio em painel objetiva impedir a ocorrência de danos ao meio ambiente, através da imposição de medidas acautelatórias, antes da implantação de empreendimentos e atividades consideradas efetivas ou potencialmente poluidoras.

3.1.7 Princípio do Equilíbrio

Este princípio é voltado para a Administração Pública, a qual deve analisar todas as implicações que podem ser desencadeadas por determinada intervenção – pública ou privada – que possa causar algum impacto negativo sobre o meio ambiente, devendo adotar a solução que melhor busque alcançar o desenvolvimento sustentável.

3.1.8 Princípio da Responsabilidade

O Princípio da Responsabilidade trata de um dos mais relevantes temas do Direito Ambiental, ao estabelecer a responsabilidade objetiva para aqueles que causarem danos ao meio ambiente; como previsto no artigo 14, § 1º da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente [15]:

Art. 14. Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:

§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. (Grifo nosso).

O dispositivo acima transcrito foi recepcionado pelo legislador constituinte, uma vez que previsto expressamente no art. 225, § 3º do texto constitucional.

A premissa básica da responsabilidade é: quem causa o dano ao meio ambiente deve por ele responder. A responsabilização, portanto, supõe o reconhecimento de uma nova face da responsabilidade civil em matéria ambiental, pois se trata de reparar prevenindo.

3.1.9 Princípio do Poluidor Pagador

O Princípio do Poluidor Pagador decorre do instituto da responsabilidade civil e assenta-se na vocação redistributiva do Direito Ambiental. Vale dizer, as pessoas, sejam elas naturais ou jurídicas, regidas pelo direito público ou privado, devem pagar os custos das medidas que sejam necessárias para eliminar a contaminação causada ou reduzi-la aos limites fixados pelos padrões ou medidas equivalentes que assegurem a qualidade de vida.

Nesse diapasão, em seu Princípio 16, a Declaração do Rio, de 1992, prescreve que:

As autoridades nacionais devem procurar promover a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.

Todavia, deve-se ter em mente que o princípio não se limita apenas a compensar os danos causados, nem tem por fim tolerar a poluição mediante um preço. Seu objetivo é, sobretudo, evitar o dano ao meio ambiente.

3.1.10 Princípio do Usuário Pagador

A crescente onda de produção e consumo tem gerado reflexos danosos ao ambiente, como a degradação dos recursos ambientais e conseqüente escassez dos mesmos.

Fundado no artigo 4º, VII, da Lei 6938/1981, o Princípio do Usuário Pagador impõe ao usuário a contribuição pela utilização de recursos ambientais, com fins econômicos, sendo que tal valoração dos recursos naturais não pode excluir faixas populacionais de menor poder aquisitivo.

Como bem certifica Rodrigo Musetti [16], este princípio busca evitar que o "custo zero" dos serviços e recursos naturais acabe por conduzir o sistema de mercado à hiperexploração do meio ambiente.

Por conseguinte, estabelece o princípio em tela que quem utiliza o recurso ambiental deve suportar seus custos, sem que essa cobrança resulte na imposição de taxas abusivas. Não há, então, que se falar em Poder Público ou terceiros suportem esses custos, mas somente aqueles que dele se beneficiaram.

3.1.11 Princípio da Função Sócio-ambiental da Propriedade

O ordenamento jurídico pátrio concebeu a propriedade como direito fundamental, contudo, não o erigiu à condição de ilimitado e inatingível, uma vez que condiciona, de maneira veemente, o uso da propriedade ao bem-estar social.

É o que se vê no artigo 5º, XXII E XXIII, CF:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social. (Grifo nosso).

Ratificando a acerto do legislador constitucional, o Código Civil de 2002 atentou para essa nova concepção da propriedade, composta pela função ambiental, disciplinado que:

Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio e ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (Grifamos).

Significa dizer que, conforme detida análise de Luiz Mirra [17], no aspecto de vanguarda adotado pela atual legislação brasileira,

A função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício de direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício de seu direito, fazer tudo que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício de seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adéqüe à preservação do meio ambiente.

3.1.12 Princípio do Mínimo Existencial Ecológico

Ao estabelecer que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos, o texto constitucional garante um piso mínimo vital ambiental. Tem-se, portanto, um mínimo existencial ecológico, cujos contornos definem um limite mínimo de existência e um limite máximo de sustentação, os quais exigem obediência e a mais ampla tutela em matéria ambiental.

O Princípio do Mínimo Existencial Ecológico postula que a dignidade da pessoa humana está intrinsecamente relacionada à qualidade ambiental. A partir do momento em que é conferida dimensão ecológica ao núcleo normativo, firma-se o entendimento de que não existe patamar mínimo de bem-estar sem respeito ao direito fundamental do meio ambiente sadio.

3.1.13 Princípio da Proibição do Retrocesso Ecológico

O Princípio da Proibição do Retrocesso Ecológico tem como núcleo a garantia do mínimo existencial ecológico e como meio de efetivação o mandamento da vedação da degradação ambiental.

A argumentação vanguardista trazida por este princípio vai para além do piso mínimo vital ambiental, pressupondo que o resguardo do meio ambiente tem caráter irretroativo. Não admite, portanto, o recuo para níveis de proteção inferiores aos anteriormente consagrados, a menos que as circunstâncias de fato sejam significativamente alteradas.


4 O instituto do ônus da prova no Direito Brasileiro

No sistema processual brasileiro, há uma regra geral: o ônus da prova incumbe ao autor, que deve demonstrar os fatos constitutivos do seu direito, para que a verdade alegada em juízo seja administrada pelo magistrado. Ao réu, por sua vez, cabe demonstrar a existência de fatos que modificam ou mesmo extinguem o direito pleiteado pelo autor, podendo contestá-lo por meio de contraprovas. No dizer do festejado Cândido Dinamarco [18],

Toda pretensão prende-se a algum fato, ou fatos, em que se fundamenta (ex facto oritur jus). Deduzindo sua pretensão em juízo, ao autor da demanda incumbe afirmar a ocorrência do fato que lhe serve de base, qualificando-o juridicamente e dessa afirmação extraindo as conseqüências jurídicas que resultam no seu pedido de tutela jurisdicional.

O sistema brasileiro de apreciação das provas faz prevalecer o livre convencimento motivado. É o que se extrai do artigo 131 do Código de Processo Civil:

O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formarem o convencimento.

A prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo. Como comunicam as Ordenações Filipinas [19], apud, Cândido Dinamarco, "a prova é o farol que deve guiar o juiz nas suas decisões".

O instrumento probatório deve ser compreendido como algo intrínseco e necessário à ordem jurídica justa. Na mesma esteira, conclui Marcelo Abelha [20] que:

A prova no processo tem uma força capital, qual seja a de único instrumento legitimador da coisa julgada, ou, em outras palavras, é a prova e especialmente a convicção que dela resulta que servem com real elemento para a coincidência da verdade formal e da verdade real (ainda que esta esteja vista como uma utopia).

Embora importante na formação do convencimento do juiz, a regra do ônus da prova pode ser relativizada diante de determinadas situações de direito substancial. No ordenamento jurídico pátrio, a inversão do ônus da prova foi consolidada pelo Código de Defesa do Consumidor, quando preceitua:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências. (Grifamos).

Aduz-se, em conformidade com a norma em exame, que fica a critério do juiz a inversão quando estiver presente qualquer das duas alternativas: a verossimilhança ou a hipossuficiência. Ambas são vistas como pressupostos de admissibilidade da inversão do ônus da prova.


5 A inversão do ônus da prova nas questões ambientais

A verificação in concreto do nexo de causalidade existente entre o dano ambiental e o agente imputável torna-se prejudicada, levando grande número de demandas coletivas em favor do meio ambiente ao fadado insucesso. Ainda que se demonstre adequada para a maioria das lides, no caso das ações ambientais, a regra do ônus da prova pode representar um empecilho processual.

Não apenas por desconsiderar as dificuldades naturais da prova do nexo de causalidade entre a atividade exercida e a degradação, como também ignora um princípio fundamental do Direito Ambiental: o de que a adoção de medidas para evitar a ocorrência de danos ambientais não deve ser protelada – nem mesmo nos casos em que não há certeza científica do dano.

A inversão do ônus da prova, prevista legalmente nos termos supracitados pelo Código de Defesa do Consumidor, aplicada no âmbito do Direito Ambiental apresenta-se como instrumento de extrema importância e que vem ao encontro de todos os preceitos constitucionais que visam proteger o meio ambiente. Tal posicionamento afigura-se louvável, uma vez que beneficia não o autor, mas a sociedade detentora do patrimônio público coletivo consubstanciado no meio ambiente.

Em razão da tutela ao meio ambiente, o princípio da precaução determina que diante de incertezas científicas a respeito dos danos ambientais que possam ser causados pela implementação de determinada atividade econômica, devem ser tomadas medidas de precaução, no sentido de minimizar os riscos provenientes dessa atividade, para que o risco não venha consubstanciar-se em dano ambiental [21].

Considerando que o desenvolvimento científico em prol dos meios de produção é sensivelmente mais rápido que o desenvolvimento científico de técnicas de proteção do meio ambiente, a tendência é justamente que se adote, com maior freqüência, o postulado da precaução, na medida em que se torna cada vez mais difícil apurar se esta ou aquela determinada atividade pode causar degradação da qualidade do ambiente.

No bojo do direito processual, admite-se a inversão do ônus probatório nas demandas ambientais por aplicação subsidiária do artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, supracitado, c/c o artigo 17 deste mesmo diploma legal e, sobremaneira, em menção aos princípios da prevenção e da precaução. Como discorre Geórgia Karênia [22],

O princípio da precaução atua nas demandas judiciais sejam estas individuais ou coletivas, quando houver a necessidade de tutelar os bens ambientais e sempre que houver hipossuficiência técnica acerca dos efeitos nocivos advindos da exploração de determinadas atividades econômicas, servindo de respaldo para inversão do ônus da prova em favor do meio ambiente.

O entendimento ora exprimido, se baseia na idéia de que, quando o conhecimento científico não é suficiente para demonstrar a relação de causa e efeito entre a ação do empreendedor e uma determinada degradação ecológica, o benefício da dúvida deve prevalecer em favor do meio ambiente – o que se traduz na expressão in dubio pro ambiente, ou interpretação mais amiga da natureza.

Importante salientar que a responsabilidade civil ambiental é fundada nitidamente no interesse público. Volta-se, inclusive, de acordo com o entender de Marchesan [23], à mudança do modus operandi que conduziu a prováveis situações de risco ou de dano. A tutela ambiental atua como instrumento do princípio do desenvolvimento sustentável e, como direito difuso de conteúdo intergeracional, carece de interpretação e aplicação de maior relevância, já que não se equipara à tutela de direitos individuais em que – na maioria das vezes – é almejado o mero ressarcimento de danos patrimoniais.

Nesse diapasão, Marcelo Abelha [24] assevera, brilhantemente, que:

É regra de direito material, vinculada ao princípio da precaução, a que determina que, em toda ação de responsabilidade civil ambiental onde a existência do dano esteja vinculada a uma incerteza científica (hipossuficiência científica), o ônus de provar que os danos advindos ao meio ambiente não são do suposto poluidor a este cabe, de modo que a dúvida é sempre em prol do meio ambiente. Não se trata de técnica processual de inversão, mas de regra principiológica do próprio direito ambiental, e como tal já é conhecida pelo suposto poluidor desde que assumiu o risco da atividade.

Portanto, no que se refere às ações judiciais que tentam obstar o desenvolvimento de determinadas atividades consideradas potencialmente poluidoras, deve ser aplicada a inversão do ônus da prova de modo que seja atribuído a empresas o dever de provar que sua atividade não dá ensejo a danos ambientais, sob pena de terem suas atividades paralisadas.

Logo, deve o empreendedor buscar respaldo em informações técnicas, laudos, pareceres e comunicação devidamente documentada com o órgão ambiental para garantir sua defesa em eventual processo no qual lhe seja imputada a obrigação de reparar o dano ou mesmo aponte a impossibilidade de exercer atividade sem certeza jurídica. A prova documental poderá garantir o convencimento do juiz, dispensando, em certos casos, a prova pericial.

5.1 Inversão do ônus da prova e a nova racionalidade jurídica no julgamento de ações ambientais

Motivado pela abordagem fulcrada no Princípio da Precaução, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem adotado uma nova racionalidade jurídica no julgamento das ações civis ambientais. O colendo Tribunal tem inovado em sua jurisprudência, ao admitir a inversão do ônus da prova em casos de empresas e/ou empreendedores acusados de dano ambiental, ratificando o entendimento de que cabe ao próprio acusado provar que sua atividade não enseja riscos à natureza.

A aplicação do Princípio da Precaução como instrumento hermenêutico foi evidenciada em julgamento paradigmático da Segunda Turma do STJ (REsp 972.902/RS) [25]. O processo envolveu uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul objetivando a reparação de dano ambiental de uma indústria de borracha. No recurso especial que interpôs no Tribunal, o Ministério Público pleiteou a inversão do ônus da prova, pedido que havia sido negado pelas instâncias inferiores.

Em seu voto, a relatora do processo, ministra Eliana Calmon, deferiu o pedido por meio da equiparação da proteção ao meio ambiente às relações de consumo, nas quais o instituto da inversão do ônus da prova aparece expressamente previsto:

RECURSO ESPECIAL Nº 972.902 – RS (2007/0175882-0)

RELATORA: MINISTRA ELIANA CALMON

Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução. (Grifamos).

Em julgamento envolvendo a emissão do carbonato de cálcio por uma empresa de transportes e armazenagem do interior de São Paulo [26], o entendimento de que nas ações por dano ambiental cabe a aplicação do princípio da precaução foi pacificado:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.060.753 – SP (2008/0113082-6)

RELATORA: MINISTRA ELIANA CALMON

O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva.

Decerto que ao interpretar o disposto no Código de Defesa do Consumidor sob a lente da gestão preventiva do dano ambiental, a jurisprudência do STJ transferiu para o empreendedor da atividade potencialmente lesiva o ônus de demonstrar a segurança da atividade. As decisões acima relacionadas conferiram normatividade aos princípios do Direito Ambiental que vinculam a ação humana presente a resultados futuros, trazendo à luz uma nova concepção ética da tutela ao meio ambiente.


Considerações Finais

A civilização tem isto de terrível: o poder indiscriminado do homem abafando os valores da Natureza. Se antes recorríamos a esta para dar uma base estável ao Direito (e, no fundo, essa é a razão do Direito Natural), assistimos, hoje, a uma trágica inversão, sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para salvar a natureza que morre. [27]

A questão ambiental traz implicações complexas e polêmicas que transcendem a poluição de rios e mares, as queimadas ou a devastação de florestas, englobam também o modo como as indústrias fabricam seus produtos e os desdobramentos sócio-econômicos decorrentes dos impactos ambientais.

A Constituição Federal de 1988 elevou o direito de viver em um ambiente ecologicamente equilibrado à categoria de Direito Fundamental, trazendo à tona a relevância jurídica desses temas no Brasil.

O Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda suficientes identificados. Como relacionado ao longo do presente artigo, o princípio em tela afirma que, na ausência da certeza científica formal, a existência do risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever esse dano.

Ante o exposto, conclui-se que quando se pretende evitar o risco mínimo ao meio ambiente, nos casos de incerteza científica acerca da sua degradação há de se utilizar o postulado da precaução. Conforme entendimento de Marcelo Abelha [28], torna-se necessário impedir que a incerteza científica milite contra o meio ambiente:

Quando houver dúvida científica da potencialidade do dano ao meio ambiente acerca de qualquer conduta que pretenda ser tomada, incide o princípio da precaução para prevenir o meio ambiente de um risco futuro.

Neste ínterim, o meio ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida sobre o nexo causal – relação de causa e efeito – entre determinada atividade e uma conseqüência ecologicamente degradante.

Considere-se, ainda, que o fundamento de uma decisão justa, que se aproxime ao máximo da realidade, é conseqüência inexorável do instituto da prova. Numa visão de vanguarda do Direito Ambiental, sobretudo no processo, o ideário privatista não pode ser tomado por norte, justamente para que se alcance um resultado coincidente ou mais próximo do direito visto sob uma concepção de justo.

Ao que pese, bem expõe Marcelo Abelha [29]:

Essa "mudança" de concepção (de privatista para publicista) faz com que a prova, ou os meios de prova, deixe de ser utilizada como mecanismo de obstaculização do direito, na medida em que, verificando-se a fraqueza do "meu" adversário, acaba-se adotando a postura inerte de sonegação de informações, para se aguardar, a favor do recalcitante, a regra fria do art. 333 do CPC para os casos non liquet.

Como observou-se no trabalho em tela, a tendência do STJ é estabelecer a inversão do ônus da prova nas ações civis propostas para resguardar o meio ambiente das constantes agressões por parte dos poluidores. A proposta é que as causas envolvendo direito ambiental recebam tratamento realmente diferenciado, pois a proteção ao meio ambiente há de ser informada por uma série de princípios que a diferenciam na vala comum dos conflitos humanos.

Uma nova fase do Direito Ambiental é inaugurada pelo Princípio da Precaução. Já não cabe aos titulares de direitos ambientais provar efeitos negativos, impõe-se, agora aos degradadores potenciais, o ônus de corroborar a inofensividade de sua atividade proposta, principalmente nos casos em que eventual dano possa ser irreversível, de difícil reversibilidade ou de larga escala.

Deve, portanto, a precaução balizar o processo civil ambiental de modo a transformar radicalmente a forma como as atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente vêm sendo tratadas ao longo do tempo. É preciso assimilar que há um dever genérico e abstrato de não degradação ambiental, invertendo-se, nestas atividades, o regime da ilegalidade, uma vez que, nas novas bases jurídicas, esta se encontra presumida até que se prove o contrário. A precaução não admite sequer a negociação de riscos, de modo a evitar que as presentes e futuras gerações sejam privadas do Direito Constitucional ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.


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Notas

  1. MUKAI, Toshio. Direito Ambiental Sistematizado. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 11.
  2. Lei 6938/81, art. 3º, I.
  3. Constituição Federal de 1988, art. 225.
  4. O meio ambiente como um todo, em sua máxima complexidade e extensão; todas as formas de vida agindo entre si e com todas as suas manifestações e criações.
  5. LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 34
  6. LEONARD, H. Jeffrey, Meio Ambiente e Pobreza: estratégias de desenvolvimento para uma agenda comum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
  7. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5ª Edição, 2007.
  8. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. PRINCÍPIO. In: Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Ed Positivo, 7ª Edição, 2008. p. 654.
  9. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p 27-28.
  10. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5ª Edição, 2007.
  11. REALE, Miguel. A Constituição e o Direito Civil. O Estado de São Paulo, sábado, 18 jun. 2005.
  12. "A proteção e o melhoramento do meio ambiente humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro, um desejo urgente dos povos de todo o mundo e um dever de todos os governos". Disponível em <http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/legislacoes/declaracao_estocolmo_meio_ambiente_humano_1972.pdf>. Acesso em 20 out. 10.
  13. Disponível em: <http://www.interlegis.gov.br/processo_legislativo/copy_of_20020319150524/20030625102846/20030625104533/>. Acesso em 20 out. 10.
  14. Lei 9.605/1998.
  15. Lei 6.938/1981.
  16. MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico-ambiental dos recursos hídricos. São Paulo: LED Editora de Direito, 2001.
  17. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental. Revista do Direito Ambiental n. 2, abr. / jun. 1996.
  18. DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 373.
  19. Ordenações Filipinas, Liv. III, Tít. 63. Citado em ibidem DINAMARCO, 2008, p. 373.
  20. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p 128.
  21. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Ambiental: parte geral. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 207-208.
  22. MELO, Geórgia Karênia Rodrigues Martins M. Inversão do ônus da prova em matéria ambiental com fundamento no princípio da precaução. Disponível em: < http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/dano/inversao_do_onus_da_prova_em_materia_ambiental_com_fundamento.pdf>. Acesso em 29 out. 10.
  23. MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia. Direito Ambiental. 4ª Ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 136.
  24. Ibidem RODRIGUES, 2008, p 159-160.
  25. BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Segunda Turma. Processo Civil e Ambiental, Recurso Especial, Ação Civil Pública, dano ambiental, adiantamento de honorários periciais pelo parquet, matéria prejudicada, inversão do ônus da prova, art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, princípio da precaução. Recurso Especial n. 972.902 – RS, Rel. Min. Eliana Calmon. Disponível em: < http://www.abdir.com.br/jurisprudencia/jurisp_abdir_21_9_09_2.pdf>. Acesso em 05 nov.10.
  26. BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Segunda Turma. Processo Civil, Recurso Especial, competência para julgamento de execução fiscal de multa por dano ambiental, inexistência de interesse da União, competência da Justiça Estadual, prestação jurisdicional, omissão, não-ocorrência, perícia, dano ambiental, direito do suposto poluidor, princípio da precaução, inversão do ônus da prova. Recurso Especial n. 1.060.753 – SP, Rel. Min. Eliana Calmon. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=933448&sReg=200801130826&sData=20091214&formato=PDF>. Acesso em 05 nov.10.
  27. REALE, Miguel. Memórias. São Paulo: Saraiva, 1987. Volume II, p 297.
  28. Ibidem RODRIGUES, 2005, p 206.
  29. Ibidem RODRIGUES, 2008, p 144.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LYRA, Raphaela Barbosa Neves. O princípio da precaução como fundamento da inversão do ônus da prova em matéria ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3036, 24 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20259. Acesso em: 26 abr. 2024.