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Gestação por substituição e sua abordagem pelo Direito Penal

Gestação por substituição e sua abordagem pelo Direito Penal

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Ante a instabilidade das relações, dos conceitos e dos reflexos oriundos da utilização da biotecnologia, o direito penal se vê ao mesmo tempo acuado e requisitado a se manifestar.

1 INTRODUÇÃO

O desenvolvimento cada vez maior da tecnologia tem despertado, em todo o mundo, debates que giram em torno dos benefícios e dos riscos causados pela sua utilização. Vivendo numa época em que a técnica se impõe, em face da necessidade de se buscar uma vida melhor, vive-se, também, a intensa procura de novas formas de solução de antigos problemas; e, para muitos destes, até então insolúveis, procuram-se "remédios" eficazes.

Hoje, embora o fácil acesso à informação marcando as relações, convive-se com a imprevisibilidade dos efeitos de certas ingerências da tecnologia para a Humanidade.

Atribui-se grande carga dessa imprevisibilidade à utilização das Técnicas de Reprodução Medicamente Assistida (RMA), consistentes no desenvolvimento de meios de facilitação da reprodução humana que tenha se tornado inviável, por diversas razões, através do processo natural de procriação. Em vista disso, as técnicas de RMA, como são chamadas, oportunizam desde a possibilidade da inseminação intra-tubária de gametas até mesmo à utilização de um outro útero para gerar filhos de casais que não conseguem tê-los pelos meios gestacionais comuns.

É exatamente aqui que se iniciam os questionamentos deste trabalho. Esse fenômeno, ao qual se vem designando de gestação por substituição ou sub-rogada, em que uma outra mulher, intitulada "mãe portadora", serve como "mãe substituta", desde o seu surgimento, tem sido alvo de um sem número de interrogações. Será lícito permitir a sua prática? Se sim, quais serão os seus limites? Quem, de fato, deve ser considerada mãe, a que doa óvulos (no caso de infertilidade), a que gesta a criança ou a que manifesta a chamada vontade procriacional? E se o bebê nascer com anomalias e for rejeitado por todas, o que fazer? Como se desenvolverão filhos advindos dessa técnica? Existem riscos de lesão a bens jurídico-penais de tal relevância que requeiram a tutela do direito penal para garanti-los?

Pensando nessas questões, o presente trabalho se propõe a refletir sobre as mesmas com o fim especial de apresentar uma resposta mais específica à ultima delas: que tipo de relação pode existir entre o Direito Penal e a Gestação por Substituição, em face de lesões ou ameaça a direitos considerados importantes e merecedores de uma efetiva tutela penal.


2 GESTAÇÃO POR SUBSTITUIÇÃO E REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA (RMA)

As técnicas de Reprodução Medicamente Assistida – RMA – sugiram graças à necessidade de superar os problemas ligados à reprodução natural humana. Inicialmente, sua utilização sofreu graves críticas, em vista das delicadas questões éticas que as envolvem. Temia-se o seu emprego para fins de engenharia genética, genericamente considerada como o conjunto de ações humanas que visam interferir no patrimônio genético humano, podendo modificá-lo ou até mesmo concorrer para a sua destruição [01]. Tais condutas vêm sendo alvo de medidas legislativas tomadas em diversos países, inclusive no Brasil, além de tratamento em teses e monografias.

Devido à necessidade de tutela ética de bens jurídicos, a lei nº 11.105/2005, também conhecida como Lei de Biossegurança, substituindo a lei nº 8.974/95, veio pugnar, com objetividade e clareza, pela defesa da dignidade da pessoa humana e do patrimônio genético humano, tipificando condutas lesivas destes bens e tendentes a provocar uma instabilidade jurídica nessas relações. É assim que desde o seu artigo 24 até o 29, criminaliza a engenharia genética humana, a manipulação eugênica, estabelece o crime de clonagem e coíbe outras condutas, como a liberação e o descarte de OGMs no meio ambiente [02].

Considere-se, também, que as técnicas de RMA eram temidas por conta de sua utilização para fins antiéticos, como a manipulação genética para seleção de caracteres dos bebês (cor dos olhos, cor da pele, sexo e outros) ou até mesmo para fugir aos desgastes físicos e emocionais da gravidez, caso aquela que deseja ser mãe, não querendo comprometer-se organicamente, contratasse uma terceira para gestar seu filho por motivo tão fútil.

Para acabar com esses impasses, tem-se considerado que as RMAs devem ser utilizadas quando medicamente for comprovada a existência de doenças que impeçam ou desaconselhem o processo gestatório normal. Tratam-se, dentro desse rol, a infertilidade e a esterilidade, além de outras doenças que podem ser transmitidas para o bebê pelas vias normais ou outras que não permitem a gestação comum sem risco para a vida da gestante.

As técnicas de RMA se dividem em dois grandes grupos: técnicas de fertilização in vivo e de fertilização in vitro: naquelas, a concepção se dá no corpo da própria mulher geradora, a que manifesta a vontade procriacional (Inseminação Artificial); nesta, a fecundação se dá fora do corpo da mulher, com posterior implantação do produto da concepção no seu organismo. Nessas técnicas, várias possibilidades são aventadas, tendo em vista não apenas o estágio de desenvolvimento do material fecundado, como também o local do organismo da mulher em que o mesmo é depositado. Diferente do que se pensa, a Gestação Sub-rogada não é mais uma forma de RMA. Sua possibilidade surge, sim, da aplicação das RMAs, mas é apenas uma das situações em que problemas diversos reclamam a intervenção da técnica médica para auxiliar o casal que deseja ter filhos e que não o consegue.

Já se disse que a utilização das RMAs tem sido aceita quando constatados problemas reprodutivos, excluindo-se tudo que fuja a esse propósito. No caso em questão, recorre-se à Gestação por Substituição toda vez que se constata a infertilidade do homem ou da mulher, sendo, esta última, expressa na sua incapacidade para "produzir óvulo, por não ter útero ou por não o ter apto a garantir a gestação" [03] sem risco de morte para ela ou para o bebê, além dos casos em que certas doenças podem ser transmitidas congenitamente para o bebê.


3 ASPECTOS LEGISLATIVOS

O Brasil não possui legislação expressa versando sobre a gestação por outrem. No máximo, possui projetos de lei que, dentro das considerações tendentes a regulamentar a Reprodução Medicamente Assistida, inclui propostas de normatização do fenômeno.

A única previsão regulamentadora da gestação sub-rogada é encontrada na Resolução nº 1.358/92, do CFM – Conselho Federal de Medicina – que, no seu anexo, apresenta normas éticas para a utilização das técnicas de RMA e dispõe da seguinte forma sobre o que chama de "doação temporária de útero":

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Embora não exista norma expressamente proibitiva da gestação sub-rogada no direito pátrio, e apesar da supra-referida resolução, mesmo não possuindo força de lei, preveja e regulamente a prática, sérias divergências pesam sobre a licitude ou não da gestação por substituição, ainda que adstrita às limitações impostas pela Resolução 1.358/92 do CFM.

A maio dos que têm tratado do tema, ainda que un passant, tem se inclinado à não admissão da gestação sub-rogada, arrolando argumentos que vão desde a esfera constitucional à esfera penal.

Estão em tramitação no Congresso Nacional alguns projetos de lei versando sobre as RMAs. Em linhas gerais, visam o estabelecimento de regras para sua utilização, definindo o que vem a ser embrião e abordando outras conseqüências da prática. Três desses projetos, particularmente, podem ser destacados: o PL nº 1.135, de 28 de maio de 2003; o PL nº 1.184, de 03 de junho de 2003; e o PL nº 2.061, também de 2003.

O primeiro e o último defendem a legalidade da gestação sub-rogada, diferindo quanto à relação de parentesco que deve haver entre as participantes do processo, enquanto o segundo proíbe taxativamente a prática e a criminaliza. No capítulo que trata das infrações e penalidades, o projeto de lei tipifica a prática de gestação sub-rogada, nos seguintes termos:

Art. 19.

III – participar do procedimento de gestação de substituição, na condição de beneficiário, intermediário ou executor da técnica:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Pune-se com reclusão de 1(um) a 3 (três) anos e multa, tanto os beneficiários da técnica (a mulher que manifesta a vontade procriacional e seu esposo, se casada for; a mãe portadora e a doadora), os intermediários (os responsáveis, no caso de fecundação heteróloga, pela coleta do gameta, masculino ou feminino, a ser empregado, dentre outros) e os executores (médicos e demais auxiliares que participarem do procedimento).

O PL vai mais longe, ao estabelecer a seguinte penalidade: "Art. 21. A prática de qualquer uma das condutas arroladas neste Capítulo acarretará a perda da licença do estabelecimento de Reprodução Assistida, sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis". Trata-se de verdadeira responsabilização penal da pessoa jurídica, possibilidade extremamente controversa no ordenamento jurídico-penal brasileiro.

Sobre a tramitação desses projetos no Congresso Nacional, sabe-se que o Deputado baiano Colbert Martins, na condição de relator do PL nº1.184/2003, aos quais foram apensados os PL nº 1.135/03 e PL nº 2.061/03, dentre outros, pronunciou-se da seguinte forma, manifestando seu voto no relatório apresentado no ano de 2005:

Desta forma, voto (...) pela constitucionalidade, boa técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição do Projeto de Lei nº 1.184, de 2003, e pela constitucionalidade (...), juridicidade, inadequada técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição dos de nº (...) 2.061/03; 1.135/03 (...)

3.1 POSSIBILIDADE DE LICITUDE

Dos poucos doutrinadores que têm tratado do assunto, a grande maioria posiciona-se contra a licitude da prática da gestação sub-rogada. Dentre eles, é possível destacar o posicionamento de Mônica Aguiar, que defende a ilicitude civil da prática de gestação sub-rogada, partindo da análise do contrato a título oneroso no contexto do direito pátrio.

Aguiar analisa os argumentos mais consistentes que têm sido apresentados a favor e contra a gestação por outrem a título oneroso. Contrariamente, se alega o fato "de que o pagamento pela gestação e conseqüente entrega do filho implica em coisificação da pessoa" [04] e viola os preceitos constitucionais protetivos da dignidade humana; favoravelmente, aduz-se que "o pagamento não se dá pela entrega de um objeto – a criança – mas, por um serviço pessoal – o aluguel do útero e a eventual doação de óvulo" [05]. Em defesa da ilicitude, Aguiar aduz que o objeto do acordo é o produto da gestação, e não o serviço, já que o preço é acertado pela entrega da criança, e não pela gravidez.

Prosseguindo em suas considerações, afirma que, ainda que se considere um contrato oneroso de gestação por substituição, nos casos em que o pai biológico seja o "outorgante comprador", este não poderia comprar aquilo que já é seu, não se devendo considerar como válida a prática. Assim, ter-se-ia um "contrato de venda do status de mãe" que, em sua opinião, não pode ser interpretado analogicamente aos casos de adoção. Ipsis literis:

É que, nesta hipótese, o desfazimento do laço biológico é feito, judicialmente, sempre em consideração ao interesse maior da criança, enquanto na maternidade sub-rogada, sequer existe, previamente, criança a ser protegida. Naquela situação dá-se a destituição do pátrio poder após o nascimento; nessa, a manifestação dos pais biológicos e sociais é anterior à inseminação. [06]

Ainda considera que o contrato oneroso iria de encontro ao que determina o art. 199, § 4º da Constituição Federal, que veda a comercialização de qualquer parte do corpo, por ser atentatório ao princípio da indisponibilidade da pessoa humana e do seu corpo [07].

Quanto à possibilidade da forma gratuita da gestação por substituição, a autora se manifesta, também, contrária à sua adoção. Considera como inválido o preenchimento do conteúdo jurídico da liberdade de procriar, prevista no art. 226, § 7º da Constituição Federal, "com tudo aquilo que se pense possa ser por ela albergado". E prossegue: "não se insere em uma tal faculdade a utilização de toda e qualquer técnica que tenha fins procriativos. Há que limitá-los (...) conforme o interesse da criança" [08]. Também considera a prática, em suas duas modalidades, atentatória ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a sua admissão seria uma "conduta contra a ontológica condição humana" [09].

Outro posicionamento é o exarado por Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Em sua tese de doutorado, que versa sobre a nova filiação nas relações surgidas no âmbito do biodireito, NOGUEIRA DA GAMA levanta algumas questões que, no seu entendimento, são de demasiada importância para desautorizar a gestação sub-rogada.

Além de referir-se, de um modo geral, às questões supracitadas, o autor propõe o problema da mudança de ânimo da mãe portadora ou substituta, de preferência desta última, considerada como aquela que não apenas cede o útero, mas que também doa o óvulo para a fecundação. No caso desta recusar-se a entregar a criança à que desejou ser mãe, o que fazer? A quem assistiria razão, visto não existir, no direito pátrio, norma que regulamente o assunto?

Mas, muito mais enfatiza o autor, em sua argumentação, o problema da preservação da dignidade humana, tanto da pessoa que cede seu útero e/ou seu gameta para a fecundação, como do ser por nascer, a criança. Associa ao problema a necessidade de se verificarem os valores culturais e religiosos, alegando que, em se permitindo o contrato de por substituição, pugnar-se-ia pela "coisificação" da pessoa, em desrespeito à sua dignidade humana, transformando-a em um objeto comercializável e tornando-a bem disponível [10].

Quanto aos argumentos pró-gestação sub-rogada, verifica-se que pouquíssimas vozes têm se levantado em sua defesa. Por todos, tem-se o trabalho de Cristine Keler de Lima Mendes, que escreveu artigo intitulado "Mães substitutas e a determinação da maternidade". De suas observações, subtrai-se, primeiramente, sua apreciação do conteúdo contido no já referido art. 226, § 7º, da Constituição Federal, que diz:

Art. 226.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Assim, a Constituição erigiu ao patamar da dignidade da pessoa humana a satisfação e o exercício do planejamento familiar. Existiria, portanto, um direito à fecundidade, de categoria constitucional, contra o exercício do qual não haveria barreiras, desde que se enquadrando dentro dos limites das possibilidades científicas e éticas dadas.

Sob o ponto de vista do Princípio da Legalidade, Mendes ainda se refere à viabilidade da gestação sub-rogada, expressando-se nos termos seguintes:

Segundo o Principio da Legalidade, o direito de ter filho por qualquer método que seja não pode ser vedado, visto que em nosso Estado, tudo o que não é proibido é permitido, pois ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Assim, é de se afirmar que no ordenamento jurídico não há qualquer barreira ou impedimento para a concepção artificial, necessário apenas o consentimento da mulher, e se casada, de seu marido ou companheiro. [11]

Quanto ao problema dos valores culturais e religiosos da sociedade contrapostos à da gestação por substituição, a autora defende que a sociedade não deve insurgir-se contra as novas possibilidades trazidas pelas técnicas de RMA em socorro das mulheres inférteis e impedidas de gestar, na tentativa de terem seus filhos. Sua postura deveria ser a de amparo, posto que "defender a liberdade de procriar é enfatizar que, se existe direito à fecundidade, nem a lei civil, nem a religiosa o negam. A sociedade, bem como o Estado tem a incumbência de amparar os casais, que se chocam contra o obstáculo da esterilidade, a superar esta barreira" [12].

Já sobre as crianças órfãs, entregues à adoção, este não seria suficiente para impedir a prática, segundo Mendes. Dando destaque à observância e ao respeito do direito de procriar, constitucionalmente tutelado, aduz que "apoiar e regulamentar o direito de procriar é autorizá-lo independentemente da existência de inúmeras crianças aptas à adoção, ao Estado não compete a prerrogativa de se furtar quanto a este problema de ordem social e não individual". [13] E continua com as seguintes palavras:

Alegar, conforme se tem ouvido com certa freqüência, que a procriação artificial é inaceitável enquanto existirem crianças abandonadas aptas à adoção corresponde a encarar a questão com confusão de conceitos, ao mesmo tempo em que se radicaliza o discurso sobre o direito de ter filhos. Este direito é de foro íntimo e nada tem a ver com a questão social da adoção. [14]

Como limitação à gestação sub-rogada, Mendes apresenta o fato de a mãe portadora não revelar condições fisio-psicológicas e nem responsabilidade maternal para tanto, preservando-se o interesse da criança. Ainda considera que, mesmo não possuindo força de lei, não sendo coativo e, portanto, não vinculando quem quer que seja à sua observância, o Código de Ética Médica, através Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, na ausência de lei proibitiva da prática, promove sua regulamentação e define os seus parâmetros.

Ainda lembra o argumento de que o contrato de cessão de útero, a título gratuito ou oneroso, teria como objeto não a criança em si, mas a própria cessão do útero e a eventual doação de gametas. Tem-se defendido, também, que a liberdade contratual entre particulares não deve ter limites, não devendo ser objeto de intervenções mais intensas do poder estatal.

3.3 FIRMANDO POSIÇÃO

Convém iniciar a abordagem pela gestação por outrem a título oneroso. Considerá-la inválida com base no art. 199, § 4º da Constituição Federal é, no mínimo, inconsistente. A interpretação teleológica do dispositivo prontamente identifica sua inadequação para tratar do tema. Eis o texto legal:

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

Vê-se claramente que o objetivo da norma é regulamentar as questões atinentes aos transplantes de órgãos, vedando sua comercialização. Não se destina a tratar das RMAs e, portanto, não encontra respaldo jurídico para disciplinar suas práticas.

Outro argumento que parece um tanto falacioso é o que assevera haver não um aluguel de útero, mas sim pagamento pelo filho. Não haveria pagamento pela prática, mas pelo produto final. O problema está em que o mesmo raciocínio poderia, com razão, ser estendido a todas as modalidades de emprego das RMAs. Em nenhuma delas, o casal que se socorre dos recursos biotecnológicos busca, simplesmente, os serviços prestados por médicos e clínicas, mas do produto final, o filho que desejam e não conseguem ter pelas vias naturais. Pagariam igualmente pelo filho, pela realização do sonho da prole e, de igual modo, considerando-se válido o raciocínio que considera errada a comercialização, por coisificar o ser, dispondo de algo que é indisponível, também as demais aplicações da RMA estariam vedadas, ainda que regulamentadas em lei, por não se coadunarem aos preceitos constitucionais.

Nada obstante, a contraprestação onerosa na gestação por outrem, naquilo a que se chama "barriga de aluguel", não encontra respaldo jurídico no ordenamento pátrio por outra razão – ela vai de encontro ao melhor interesse da criança. Permitir-se a contratação de pessoa estranha para gerar um filho, mediante paga ou promessa de recompensa, é transformar o processo da gestação numa mera obrigação legal, em prejuízo de sua formação.

Sabe-se, atualmente, que o período de nove meses de formação fetal são decisivos para sua saúde futura, física e psicológica, constituindo fator crucial na formação da sua personalidade. Sendo assim, o processo gestatório deve ser algo prazeroso e voluntariamente aceito por quem gesta, para permitir ao bebê a sua formação em meio seguro e confiável. Um contrato que vise pagamento pela gestação é algo frio e calculista, e o sentimento social em nosso meio informa que as mulheres que a isso se prestam não o fazem com dedicação humanitária, altruísta, mas sim visando o lucro. Neste sentido, sim, se estaria reduzindo o instituto da maternidade a um mero acordo de vontades em troca de benefícios financeiros.

Diferentemente se revela a gestação sub-rogada gratuita. A mulher que se compromete a carregar consigo um filho alheio, não recebendo dinheiro por tanto, presta-se a "cooperar" com aquela que deseja ser mãe e não o pode. A mãe portadora, aqui, adere voluntariamente ao desejo da outra, colaborando para a realização do seu sonho de maternidade. Para tanto, e a fim de que os traços do respeito e da maternidade responsável sejam observados, faz-se necessário que a mãe portadora seja parente próxima daquela que deseja ser mãe. A relação afetiva existente entre ambas torna sensível a primeira à causa da segunda, além de permitir o não rompimento brusco dos laços de afeto por ventura formados entre a portadora e o bebê. Admite-se, assim, conforme a orientação da Resolução de nº 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, a forma gratuita da gestação sub-rogada, desde que praticada em parente até o segundo grau de parentesco com aquela que deseja ser mãe.

E quando a mulher que deseja ser mãe não possuir pessoa apta, em sua família, para servir como colaboradora? Aí, pode-se pensar na ampliação do conceito de parente, podendo estendê-lo, por exemplo, a amigas de infância ou pessoas muito próximas. Além disso, é possível pensar na hipótese da mãe portadora ser parente até o segundo grau do futuro pai, o que aponta uma alternativa satisfatória e congruente.

Entende-se, sim, que a liberdade de procriar e o direito ao planejamento familiar abarcam plenamente a gestação sub-rogada, como mais uma forma de se favorecer, ao casal impedido, um meio a mais para concretização de seus anseios. De nada interessa dizer que existem crianças entregues à adoção e que estas deveriam ser preferidas. Avançando por esse raciocínio, a concepção natural também deveria ser desestimulada, incentivando-se os casais a abandonarem a vontade de constituir sua própria prole para solucionarem um problema social que exorbita de suas forças.

Quanto aos valores culturais, convém anotar que eles vêm se alterando, a cada dia, para reconhecer o direito do casal de ver formar-se um novo ser para ter como filho. As próprias experiências bem sucedidas de gestação por outrem, em se tornando públicas, têm revelado a simplicidade da prática e a sua utilidade, materializando os sonhos de inúmeros casais. Aliás, o próprio conceito cultural de maternidade já se alterou. Há muito se tornou comum dizer: "mãe não é aquela que gera, mas a que cria", reconhecendo-se que o verdadeiro vínculo materno-filial se estabelece pela afetividade, e não pelos liames biológicos. No caso da gestação sub-rogada, mãe seria, não há o que duvidar, a que manifesta a vontade procriacional e que, a partir de então, dispara o processo, comprometendo-se a ter como filho a criança havida, independentemente de ter sido, a fecundação, homóloga ou heteróloga.

Já que se falou em fecundação homóloga e heteróloga, convém estabelecer os termos em que devem ser admitidas, já se considerando a forma gratuita como única possível. Quando se tratar de fecundação homóloga, ou seja, quando os materiais fecundantes forem os gametas do casal, a prática é aceitável. Contudo, e quando se tratar de fecundação heteróloga? Neste caso, a única possibilidade cabível, em que não há atentado ao ordenamento jurídico, é aquela em que pelo menos um dos gametas seja de um dos membros do casal, isto é, quando a fecundação é "uni-heteróloga". É o caso em que participa o esperma do marido e o óvulo de uma doadora, ou o esperma de um doador e o óvulo da esposa. Registre-se que, nesta situação, o doador ou doadora sempre deverá ser pessoa anônima, vedando-se, portanto, a possibilidade de haver mãe substituta que, além de portar a criança, doa o seu gameta.

No que toca à fecundação duplamente heteróloga, em que o casal não participaria com quaisquer dos materiais fecundantes, entende-se que é contrária ao direito brasileiro. Aqui, mais do que em qualquer outra hipótese, estaria havendo real compra ou encomenda do bebê, devendo ser desaconselhada e rechaçada.


4 GESTAÇÃO POR SUBSTITUIÇÃO E DIREITO PENAL

A utilização dos princípios da bioética – que é um "conhecimento complexo de natureza pragmática" [15] –, quais sejam o da autonomia, da beneficência, da não-maleficência e da justiça, não tem sido suficiente para equacionar todos os problemas suscitados ao longo do tempo, em face das complexas relações que têm derivado dos novos paradigmas.

Até então, tem-se procurado opor à utilização dos recursos biotecnológicos os costumes morais de cada sociedade considerada em si mesma, como realidade viva que é. Assim, vem-se recorrendo às mais variadas formas de lidar com os conflitos surgidos, em atenção à pluralidade de previsões morais encontradiças em cada contexto sócio-cultural. Refletindo sobre esse aspecto, André Soares escreve:

Para tomar tais decisões, a bioética procede analisando, em uma determinada realidade, a complexidade micro e macrossocial, micro e macroeconômica e a repercussão de suas decisões no interior de uma sociedade com seu sistema de valores. [16]

Nada obstante as dificuldades com que se deparam as sociedades na disciplina dos conflitos oriundos da sua adesão às novas tecnologias, o direito, enquanto instância de normatização e regulação de controvérsias, não deve permanecer à margem do problema. Aliás, a esse respeito, vejamos o que afirma Maria Auxiliadora Minahim:

O direito deve, porém, na medida do possível, apresentar-se com abertura suficiente para atender ao pluralismo moral, realizando o princípio da tolerância e respeito à diversidade, incentivado nas sociedades ocidentais contemporâneas. Esta, porém, é uma tarefa delicada, em se tratando de temas tão impregnados de crenças, religiosidade e valores distintos. [17]

Essa abertura se dá principalmente com uma mudança de foco da normatização jurídica, pois o direito deve, a partir dessas novas necessidades, centrar-se cada vez mais no ente humano enquanto sujeito de direito, que pretende ver seus valores respeitados e protegidos para além de qualquer tipo de moralidade ou de crença. [18]

O biodireito possui a tarefa melindrosa de estender a longa manus do Estado a essa nova e desafiadora instância de relações sociais. Melindrosa porque, ao mesmo tempo em que do direito se exige o máximo de precisão e objetividade, buscando observar e regular os fenômenos com o maior acerto possível, esse mesmo direito não pode simplesmente calar-se ou ignorar os novos acontecimentos, verdadeiros achados sociais que se caracterizam por traços de incerteza e instabilidades e que oferecem risco à sadia convivência humana.

Cabe ao direito abarcar, o mais que possível, o conjunto dessas expectativas sociais, através dos comandos abstratos que encerram suas normas. "Ocorre que é difícil", assevera Minahim, "alcançar e manter uma convergência de valores sobre certas matérias em um contexto de conflito e diversidade, porque o próprio antagonismo é estimulado nas sociedades democráticas". [19]

Na disciplina dos fenômenos da bioética, torna-se indispensável a criação de "espaços jurídicos" para a convivência da diversidade, em atenção à multiplicidade de crenças, costumes e expectativas que alimentam a vida dos indivíduos. Deve-se pugnar pela tolerância e aceitação das diferenças, que são reclamos do pluralismo em que a democracia nos lança.

O direito brasileiro tem estado à margem dessa preocupação. O vazio legislativo em torno da bioética é lamentável, por conservar um distanciamento pernicioso da realidade. No que toca à RMA e, especialmente, à gestação por substituição, a ausência de parâmetros para solução de conflitos é ainda mais gritante, por tocar diretamente no cotidiano dos indivíduos, lidando com valores delicados, como a vida, a dignidade, a família e o direito à procriação.

Contudo, apesar da urgência em regular os novos conflitos, tal regulamentação não deve ser feita de maneira irresponsável, com legislações que contenham prescrições infelizes e abordagens no mínimo inadequadas do problema. Não se pode pretender resolver a nossa defasagem legislativa com leis notadamente insossas. Sobre isso, pronuncia-se Minahim:

Podem ser identificadas, pelo menos, três causas que contribuem para a defasagem entre o fato e a norma na matéria em apreço: as incertezas e a provisoriedade dos achados científicos, assim como a fluidez da ética contemporânea e a pluralidade de expectativas dos diversos segmentos sociais. Mesmo admitindo que o sistema jurídico é incompleto, provisório, e não definitivo, porque a vida é um processo constante de mudanças, é preciso encontrar um ponto de convergência, a partir de princípios comuns. [20]

A convocação do direito penal para, através do seu caráter coercitivo e tutelar de bens jurídicos relevantes para a convivência humana, promover a proteção dos indivíduos contra as lesões e as ameaças a direitos surgidas do emprego dos fenômenos da biotecnologia, vem se mostrando como uma necessidade e, ao mesmo tempo, como uma temeridade.

Ante a instabilidade das relações, dos conceitos e dos reflexos oriundos da utilização da biotecnologia, o direito penal se vê ao mesmo tempo acuado e requisitado a se manifestar: na primeira hipótese, em vista da fluidez que, mais nele do que em qualquer outro ramo do direito, não pode servir de fundamento a normas e regras, posto que a sua efetiva atuação é e sempre será marcada pela afetação e restrição de bens e garantias fundamentais; na segunda, porque essas mesmas instabilidades podem trazer, em si mesmas, lesões e ameaças a bens e garantias fundamentais, de natureza individual, difusa e supra-individual, que interessa tutelar e manter ao abrigo das incertezas. É que o direito penal vai mergulhando "nas turbulentas águas do risco" [21], podendo ver afetadas suas matrizes e, principalmente, a noção de bem jurídico-penal e necessária proteção. Como conseqüência, "dar-se-ia uma expansão das leis simbólicas, com o recurso abusivo à criminalização de condutas de perigo abstrato, às normas penais em branco e à criação de bens jurídicos destituídos de substancialidade." [22] Essas são as condições da sociedade de risco em que se vive, atualmente, que faz com que o direito penal seja, cada vez mais, um direito do perigo em si mesmo.

Nesse sentido, Ulrich Beck afirma que a produção da nossa sociedade se torna cada vez mais associada à produção de riscos, sendo, a tecnologia, a principal fonte de fabricação dessas incertezas. Afirma Beck:

[...] a ganância do poder do progresso técnico-econômico vê-se eclipsada cada vez mais pela produção de riscos. (...) No centro figuram riscos e conseqüências da modernização que se plasmam em ameaças irreversíveis à vida das plantas, dos animais e dos seres humanos. Ao contrário dos riscos empresariais e profissionais do século XIX e da primeira metade do século XX, estes riscos já não se limitam a lugares e grupos, mas contêm uma tendência à globalização que abarca a produção e a reprodução e não respeita as fronteiras dos Estados nacionais, com a qual surgem ameaças globais que neste sentido são supranacionais e não específicas de uma classe, possuindo dinâmica social e políticas novas. [23]

Vai-se esvaziando o conceito de bens jurídicos, que deixam de expressar as necessidades da sociedade frente à proteção devida do Estado para significarem, "cada vez mais, bens produzidos pelo Estado, no que se refere às infra-estruturas, aos complexos organizativos e às funções relacionadas à atividade do Estado e das instituições públicas". [24]

É com base nessa realidade que Wolter introduz, no plano jurídico-penal, a ideia de "direito penal do risco", de caráter preventivo e simbólico, que tende a fracassar, dentre outros motivos, por promover a negação do Estado de direito, do direito penal liberal, da autoridade do direito e do destinatário da norma [25] e por causar um "mero efeito simbólico na opinião pública, um impacto psicossocial, tranqüilizador do cidadão". [26] Nesse contexto, a noção de bem jurídico tende a perder sua substância material, havendo quem defenda sua eliminação.

Por conta dessas discussões, e para o melhor enfrentamento de toda essa problemática, três posições podem ser pensadas quanto às funções e o alcance do direito penal face à nova sociedade de risco. Num primeiro grupo, propõe-se o realinhamento e a expansão da dogmática penal, buscando-se fornecer instrumentos adequados para regulação dos problemas da biotecnologia, mas sem que, com isso, se perca de vista a conservação de certos princípios garantísticos, como o da intervenção mínima do direito penal, sobremodo em tudo o que respeita aos direitos humanos ditos fundamentais. Implicaria na relativização de alguns princípios e na admissão de um processo criminalizador focado em crimes de perigo concreto e abstrato.

Em outro ponto, agrupam-se os defensores da completa reformulação e expansão do direito penal, para que possa facear os riscos surgidos com a biotecnologia, assegurando-se sua sobrevivência de maneira compatível com os problemas da pós-modernidade. Dotar-se-ia, na visão destes, o direito penal, de instrumentos capazes de proteger as gerações futuras, embora com abandono dos princípios da idade moderna que inda hoje o norteiam.

Por último, um terceiro grupo pugna pelo fechamento do direito penal em si mesmo, num núcleo básico composto de bens individuais, conservando suas garantias clássicas. Entendem que o direito penal não deve buscar expandir-se com prejuízo de sua forma e identidade, pois as exigências de flexibilização contribuiriam para sua "funcionalização" e transformação em um mero instrumento de pacificação, usado para aplacar os receios das coletividades e para servir aos mais diferentes propósitos, democráticos ou não.

Nada obstante, a opção pela tutela de bens jurídico-penalmente relevantes é o melhor caminho a ser seguido pelo direito penal, com a possibilidade de adequá-lo, dentro de certos limites e mediante um repensar de conceitos que não importe em sua destruição, aos reclamos que o emprego das modernas tecnologias tem suscitado. Tais são o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à família e à procriação, este devendo ser igualmente tratado como fundamental. Somente assim, qualquer tentativa de criminalizar condutas que girem no seu entorno se justifica, já que a intervenção penal recai sobre outro bem constitucionalmente tutelado – o direito à liberdade. É o que diz Yuri Carneiro Coelho:

(...) à medida que se afeta de forma direta o valor liberdade, restringindo-o através da aplicação da sanção criminal, em qualquer de suas modalidades, está-se limitando o âmbito de concretização deste valor, representativo de um princípio de natureza constitucional, e que, portanto, necessitaria, para sua relativização, que se estivesse a proteger outro valor fundamental, de natureza constitucional, seja expresso ou implícito. [27]

Mas... com que intensidade e em que situações a prática da gestação sub-rogada afetaria aqueles bens e valores constitucionais supra-mencionados?

Nas suas formas homóloga e "uni-heteróloga" gratuitas, atendidas as condições de parentalidade da mãe portadora, o anonimato da doação do gameta e a necessidade médica do recurso, não há qualquer afetação a bens jurídicos, por não revelar ofensa à da dignidade da pessoa humana, não atingir a vida da criança, trazendo-lhe prejuízos e por haver plena concretização do direito constitucional à procriação, que não encontra limites dentro dos meios reprodutivos aceitos e não proibidos pelo direito.

Na forma duplamente heteróloga, ainda que gratuita, a gestação sub-rogada deve ser repelida. Ainda que a mãe portadora nada receba em troca, por não haver qualquer participação do casal manifestante da vontade procriacional com seu material genético, o emprego de todos os recursos da técnica pode muito bem caracterizar real "compra" de bebê, o que atinge a dignidade da pessoa humana e a indisponibilidade do bem vida.

Quanto à gestação sub-rogada a título oneroso, em qualquer modalidade, compreende-se que não atende ao melhor interesse da criança por nascer, implicando em graves prejuízos para sua vida, ainda que – e principalmente porque – tais lesões só possam ser verificadas a posteriori, com o seu desenvolvimento, podendo afetar sua vida psicológica dados os danos causados durante o período da sua formação intra-uterina.

Outras condutas associadas à gestação sub-rogada e dela decorrentes merecem ser verificadas. Tais são: a recusa da mãe portadora em entregar a criança; a recusa do casal em receber a criança havida no processo; as condutas praticadas pela mãe portadora, durante a gestação, que podem implicar em graves danos à formação do bebê ou que podem predispô-lo a certas doenças, no futuro.

4.1 ILICITUDE PENAL DAS POSSIBILIDADES

Já se disse que nenhuma lei existe, no Brasil, que trate do tema; há, no máximo, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tendem a não ser aprovados, caso se siga o voto do deputado relator. Dentre os aludidos projetos, apenas um tipifica condutas relacionadas à gestação sub-rogada, e o faz condenando a própria prática.

Outra possibilidade tentada amiúde é a de enquadramento da conduta de quem manifesta a vontade procriacional e tem, como seu, filho gestado por outrem, no artigo 242 do código penal, que trata do parto suposto. Eis a dicção do dispositivo:

Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:

Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

Discute-se sobre a aplicação da primeira figura desse dispositivo à gestação sub-rogada, o que redundaria em proibir a técnica. Este entendimento, contudo, não pode prevalecer, tendo em vista que ao se registrar a criança nascida por gestação por substituição, não se está lesando o bem jurídico tutelado pelo tipo, que é o estado de filiação [28]. Com efeito, a criança está sendo registrada em nome de quem possui os direitos de filiação, que não é a mãe portadora. Se não há lesão a bem jurídico-penalmente relevante, não há qualquer crime.

4.1.1 Gestação por substituição com fecundação duplamente heteróloga

A prática de gestação sub-rogada duplamente heteróloga deve ser considerada como crime. Percebe-se claramente a afetação do bem jurídico vida da criança por nascer, exposta a condições degradantes de convivência, sujeita a uma gestação por pessoa destituída de sentimentos humanitários – quando onerosa – e por ter sido concebida como uma verdadeira encomenda, a ser entregue ao casal que a desejou. Aqui, verifica-se verdadeira coisificação do bebê que, não tendo vínculo genético com pelo menos um membro do casal, vê-se transformado em mero objeto de desejo e comércio.

A tutela penal da vida do bebê na situação em apreço obedece aos mesmos cuidados que o legislador teve ao estatuir, na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, a tipificação da seguinte conduta, nesses termos:

Art. 238. Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa:

Pena - reclusão de um a quatro anos, e multa.

Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.

Percebe-se que o tipo penal supra-citado tem aplicação aos casos de gestação sub-rogada duplamente heteróloga a título gratuito, por haver a efetiva entrega ou promessa de entrega de filho (entendido como o fruto da gestação), mediante pagamento ou recompensa. A forma gratuita, contudo, estaria a descoberto, não sendo abrangida pela norma.

4.1.2 Gestação por substituição a título oneroso

Se a prática anterior merece tipificação penal, com muito mais razão a gestação sub-rogada a título oneroso, mesmo que homóloga ou "uni-heteróloga". A criança por nascer não pode ser apenas desejada e conter o material fecundante de pelo menos um dos seus futuros pais – ela precisa ser gestada por pessoa idônea, que seja inclinada aos sentimentos maternais e que se preste à sub-rogação da gestação por sentimento altruísta, guardando vínculos afetivos com um dos membros do casal e disponibilizando-se a cooperar com a realização deste sonho, e não para o recebimento de valores por um serviço prestado. Entende-se que essa posição é a que atende ao maior interesse da criança, favorecendo-lhe o meio mais propício para o seu bom desenvolvimento.

4.1.3 Recusa em entregar ou receber a criança

E quando a mãe portadora se recusar a entregar a criança, fruto da gestação sub-rogada, haveria crime em sua conduta?

Embora se trate de uma ação atentatória tanto ao direito de filiação da criança, quanto ao direito à paternidade e à maternidade dos futuros pais, não há que se falar em crime. É compreensível que a mãe portadora vincule-se de tal forma à criança que não queira entregá-la a quem de direito. Pensar diferente seria deslegitimar a própria prática, já que, em sendo gratuita, a gestação sub-rogada é aceita pela portadora que se compadece da dificuldade do casal e consente, imbuída de sentimento humanitário e maternal, a colaborar no processo. Além disso, é possível que a recusa resulte de uma mera alteração temporária de ânimo, em virtude do estado puerperal, sob cuja influência a mulher se vê modificada mesmo em suas características de personalidade, o que pode levá-la até ao infanticídio, previsto pelo CPB. Recusando-se a entregar a criança, a mãe portadora deve ser instada judicialmente a cumprir a aquilo com que se comprometera, sem que lhe seja imputada prática de crime.

Outro se dá no caso em que o casal manifestante da vontade procriacional se recuse a receber a criança. Sendo os responsáveis legais pela criança, ou seja, os detentores do poder familiar, não lhes cabe simplesmente renunciar a esse direito/dever por ato de mera vontade, pois somente mediante decisão judicial qualquer pessoa pode ser destituída do poder familiar. A ninguém compete, sob quaisquer alegações, recusar-se ao exercício de seu poder familiar, especialmente no que toca à gestação sub-rogada, um processo que é realizado mediante manifestação de vontade do casal impedido de procriar pelas vias naturais.

Compreende-se que, diante do nascimento de um bebê portador de anomalia física ou mental, o casal possa querer recusar a criança. Nesse caso, sendo que a mãe portadora compromete-se com a criança até o seu nascimento, ficaria o bebê sem pai e mãe? Tal absurdo não pode ser aceito, sequer convalidado juridicamente, e quem busca o procedimento da gestação sub-rogada para a realização do sonho da paternidade/maternidade tem o dever de acolher a criança havida desta forma, em quaisquer condições.

Recusar-se a receber a criança que se buscou ter como filho mediante gestação sub-rogada deve ser considerado como crime, podendo, até, configurar abandono de incapaz.

4.1.4 Condutas nocivas à saúde do feto

A mãe portadora é a mulher que, sendo parente até o segundo grau de um dos membros do casal ou, na ausência de parente em condições aptas, pessoa de convívio fraterno que se compromete a colaborar no processo, entregando, ao final da gestação, a criança aos seus pais de direito.

Nessas condições, entende-se que a mãe portadora, sob cujos cuidados irá se desenvolver o feto, deve guardar toda atenção possível para garantir esse bom desenvolvimento, devendo-se furtar, durante a gestação, a toda prática nociva a esse fim.

Pode acontecer, contudo, que esses cuidados não sejam observados. A mãe portadora, por exemplo, pode expor-se a drogas de todo gênero, como alcoólicos e outras, expondo a saúde do feto a grave perigo, mediato ou imediato. Pode, também, expor-se a perigos ou envolver-se em atividades que resultem no abortamento espontâneo da criança, visto como o provocado já é penalmente previsto. Aqui, qual deve ser a ingerência do direito penal?

A quebra do dever de cuidado da mãe portadora na gestação sub-rogada, expondo a perigo a saúde do feto ou mesmo concorrendo para o seu abortamento espontâneo deve ser tida como prática criminosa, merecendo a sanção penal. O direito não pode tolerar essa negligência, que faz parte da própria conduta lesiva, posto que o zelo pelo nascituro deve ser uma das principais preocupações de toda gestante, especialmente daquela que estiver carregando consigo, em gestação sub-rogada, um filho alheio.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se vê, não apenas é possível fazer-se uma abordagem penal do fenômeno da gestação sub-rogada, como também se torna imprescindível a convocação do direito repressor por excelência para interferir nessas relações. Bens de extrema relevância, como o direito à vida, à procriação, à filiação e ao planejamento familiar, estão a reclamar sua ingerência.

Embora situada dentro de relações de risco, exigindo da ciência penal um certo esforço de adaptação às novas situações postas, entende-se que a gestação sub-rogada, não obstante fruto das novas relações biotecnológicas, pode encontrar, sim, satisfatória e necessária consideração no âmbito penal, pela natureza das conseqüências que tende a gerar.

Espera-se que, o quanto antes, as relações oriundas da gestação sub-rogada encontrem regulamentação e guarida no direito brasileiro, recebendo o devido tratamento e permitindo que cada ramo do ordenamento jurídico cumpra com sua função normativa.

Nesse mesmo passo, espera-se que o direito penal, em sua tarefa de tutela de bens jurídicos relevantes e dentro dos parâmetros de intervenção e garantia do indivíduo frente ao jus imperii e ao jus puniendi do Estado, cumpra com seu papel de ultima ratio, sim, mas nem por isso inoperante ou negligente frente aos conflitos sociais.


REFERÊNCIAS

AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e Bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

COELHO, Yuri Carneiro. Bem jurídico-penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto e DELMANTO JR., Roberto. Código Penal Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: UERJ, 2003.

MENDES, Cristine Keler de Lima. "Mães substitutas e a determinação da maternidade". Disponível em: http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=445.

MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

PIÑEIRO, Walter Esteves; SOARES, André MARCELO M. Bioética e biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

PROJETOS DE LEI versando sobre reprodução assistida. Sem título. Autor não informado. Disponível em http://www.ghente.org/doc/juridicos/.

SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: contributo para compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

  1. MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 113..
  2. MINAHIM, Op. Cit., p. 118-176.
  3. AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e Bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 107.
  4. AGUIAR, Op. Cit., p. 109.
  5. AGUIAR, Op. Cit., p. 109.
  6. AGUIAR, Op. Cit., p. 109-110.
  7. AGUIAR, Op. Cit., p. 111.
  8. AGUIAR, Op. Cit., p. 111.
  9. AGUIAR, Op. Cit., p. 112.
  10. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: UERJ, 2003, p. 854.
  11. MENDES, Cristine Keler de Lima. "Mães substitutas e a determinação da maternidade". Disponível em: http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=445. Acesso em 28 de julho de 2011.
  12. MENDES, Cristine Keler de Lima. Op. Cit.
  13. MENDES, Cristine Keler de Lima. Op. Cit.
  14. MENDES, Cristine Keler de Lima. Op. Cit.
  15. PIÑEIRO, Walter Esteves; SOARES, André MARCELO M. Bioética e biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 28.
  16. PIÑEIRO; SOARES. Bioética e biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, p. 29.
  17. MINAHIM, Op. Cit., p. 45.
  18. MINAHIM, Op. Cit., p. 46.
  19. MINAHIM, Op. Cit., p. 46.
  20. MINAHIM, Op. Cit., p. 48.
  21. FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, "sociedade de risco" e futuro to direito penal, p. 71-97. apud MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 49.
  22. 36 MINAHIM. Op. cit., p. 49.
  23. BECK, U. La sociedad Del riesgo global. Trad. J. Alborés Rey. Madrid: Siglo XXI de Espana, 2002, p.19. apud SOUZA, Paulo V. S. de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana:contributo para compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 114-115.
  24. SOUZA, Paulo V. S. de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana, p. 119.
  25. SOUZA. Op. Cit., p. 123.
  26. GARCIA-PABLOS, A. Derecho Penal. Introdución. Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho Universidad Complutense Madrid, 1994, p.51. apud SOUZA, Op. Cit., p. 123.
  27. COELHO, Yuri Carneiro. Bem jurídico-penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 97.
  28. DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto e DELMANTO JR., Roberto. Código Penal Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 434.

Autor

  • Pedro Camilo de Figueirêdo Neto

    Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (2012). Graduado em DIREITO pela UFBA (2006) e especialista em Ciências Criminais pela UFBA (2008). Advogado. Ex-diretor do Centro de Observação Penal, da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia (2007-2009). Ex-membro suplente do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia (2011). Professor Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor convidado do Programa de Pós-graduação "latu sensu" da Faculdade de Direito da UFBA, da FTC da cidade de Itabuna, Bahia e das Faculdades Maurício de Nassau. Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V. Professor da Faculdade Ruy Barbosa e das Faculdades Maurício de Nassau, em Salvador, Bahia. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, atuando principalmente nos seguintes temas: direito penal e processual penal.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIRÊDO NETO, Pedro Camilo de. Gestação por substituição e sua abordagem pelo Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3034, 22 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20267. Acesso em: 28 mar. 2024.