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A aplicabilidade do princípio da presunção de inocência ao processo decorrente da comunicação disciplinar

A aplicabilidade do princípio da presunção de inocência ao processo decorrente da comunicação disciplinar

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A viabilidade, jurídica e doutrinária, da aplicação do princípio da presunção de inocência em contraposição ao atributo da presunção de legitimidade e veracidade do ato administrativo, ao processo administrativo disciplinar praticado na Polícia Militar de Minas Gerais.

RESUMO

Trata-se de um estudo acerca dos princípios atinentes ao processo administrativo disciplinar, traçando uma discussão sobre o processo oriundo da comunicação disciplinar, instrumento previsto no Código de Ética e Disciplina dos Militares de Minas Gerais, a partir de numa análise comparativa com os dispositivos constitucionais, os princípios deles decorrentes, além da legislação internacional correlata ao assunto, vigente no Brasil, sob um enfoque hermenêutico e doutrinário. A partir desta discussão, objetivou-se verificar a viabilidade, jurídica e doutrinária, da aplicação do princípio da presunção de inocência em contraposição ao atributo da presunção de legitimidade e veracidade do ato administrativo, ao processo administrativo disciplinar praticado na Polícia Militar de Minas Gerais.

Palavras-chave: processo administrativo disciplinar, ética, disciplina, presunção de legitimidade e veracidade, presunção de inocência

ABSTRACT

That’s a study about the concerning principles to the administrative discipline proceeding, tracing a quarrel about the process originated from the discipline communication, instrument instituted in the Code of Ethics and Disciplines of the Military of Minas Gerais State, from in a comparative analysis approaching the constitutional devices, the principles decurrent from them, beyond the related international legislation effective in Brazil, under a hermeneutic and doctrinal approaching. From this quarrel, it was objectified, in a first plan, to verify the viability, legal and doctrinal, of the application of the principle of the presumption of innocence in contraposition to the attribute of the presumption of legitimacy and veracity of the administrative act, to the administrative discipline proceeding practiced in the Military Policy of Minas Gerais.

Key-words: administrative discipline proceeding, ethics, discipline, presumption of the legitimacy and veracity, presumption of innocence


1 INTRODUÇÃO

A disciplina, por implicações jurídicas, legais, históricas e filosóficas, constitui um dos pilares das organizações militares e como tal não deve ser jamais negligenciada. Tamanha é sua importância, que mesmo as milícias mais primitivas sempre instituíram os seus regulamentos, com o objetivo precípuo de, em quaisquer situações, pacíficas ou beligerantes, manter inabalável a disciplina e o comando da tropa. Como exemplo, pode ser citado o Regulamento Disciplinar de Conde Lippe, adotado pelas forças militares mineiras já em meados do século XVIII, ainda em sua fase embrionária, e que perdurou até meados do século XX (COTTA, 2006, p. 49).

Com a evolução histórica, social e política da sociedade, as forças policiais também se viram na necessidade de implementar mudanças em todos os seus setores, principalmente após o período que ficou conhecido como a era da Grande Reforma Policial, marcado pela promulgação do decreto-lei federal n. 667 de 02 de julho de 1969. Este decreto-lei tirou das polícias militares a função de exército estadual, até então responsáveis pela defesa interna das unidades federativas, e às atribuíram a missão de cuidar da segurança pública, através da execução do policiamento ostensivo fardado.

A marcha das transformações não parou e o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe uma nova gama de direitos e garantias fundamentais, os quais não excluíram os policiais militares de gozá-los em pé de igualdade com o cidadão civil. Dentre estes novos institutos, e talvez os mais pertinentes ao presente trabalho, pode-se citar a ampla defesa e o contraditório, o devido processo legal nos processos administrativos e judiciais, que se mostraram incompatíveis com o sistema disciplinar vigente à época (COTTA, 2006), e que justamente em decorrência desta nova ordem jurídica imposta pela Constituição, implicaram na sua adequação ao ordenamento jurídico vigente no país.

Todas as mudanças trazidas pela nova Constituição culminaram com a substituição do último Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, vigente desde a década de 80, pelo Código de Ética e Disciplina dos Militares de Minas Gerais (CEDMG), instituído pela lei estadual n. 14.310, promulgada em 19 de junho de 2002. Talvez as mudanças mais relevantes, trazidas pelo novo regulamento, como corolário da nova Magna Carta, tenham sido a obediência aos princípios processuais da ampla defesa e do contraditório em todos os processos e procedimentos previstos em seus dispositivos, bem como a extinção da prisão disciplinar e a efetivação da punição somente após não caber mais recurso da decisão da autoridade.

Não obstante, aspectos como os princípios que devem ser considerados especificamente no processo administrativo não foram objeto da lei, de modo que não existe uma definição, por exemplo, de como a autoridade deve proceder para o julgamento de uma comunicação disciplinar, processo mais freqüente no âmbito da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG). Seria razoável e de bom alvitre que houvesse uma previsão legal de aspectos tão importantes, pois a omissão do legislador enseja a autoridade administrativa a produzir normas que muitas vezes podem não estar de acordo com os princípios que a fundamentaram, gerando polêmicas quando da sua aplicação.

O presente trabalho foi desenvolvido como objetivo de colocar em discussão um tema que é alvo de discussão dentre aqueles que operam o processo administrativo disciplinar sob a égide do Código de Ética, que é qual deve ser o fundamento da decisão da autoridade disciplinar diante da situação em que não houver provas complementares à comunicação disciplinar. Muito embora, exista uma instrução, oriunda da Corregedoria da PMMG, que oriente a autoridade a fundamentar suas decisões, nesses casos, com base na presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo ainda não há um posicionamento pacífico, nem mesmo no âmbito da instituição. Mesmo porque a referida instrução não tem caráter de vinculação de condutas, mas sim de fornecer orientações e esclarecimentos respectivos aos processos praticados internamente na corporação.

Pelo exposto, não há uma definição normativa quanto à principiologia que deverá ser aplicada quando da ausência de provas suficientes para a condenação do acusado, surgindo o questionamento: deve-se aplicar nestes casos o atributo da presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo – entendendo que a comunicação disciplinar assim se constitui - ou o princípio da presunção da inocência?

É neste mister que foi elaborado o presente trabalho de pesquisa. Para que a partir da investigação de pontos de vistas doutrinários e jurisprudenciais pudesse se verificar a viabilidade de uma tomada de posição institucional e vinculante que venha balizar todas as decisões administrativas concernentes à aplicação de sanções disciplinares, quando o caso concreto se enquadrar nas circunstâncias anteriormente descritas.


2 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA FACE AO ATRIBUTO DA PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE E VERACIDADE: Análise e conclusão acerca do tema

Após realizadas as considerações necessárias ao entendimento do contexto que envolve o assunto tratado no presente trabalho, esta seção se encarregará de abordar o tema central desta pesquisa, qual seja, a aplicabilidade do princípio da presunção de inocência ao processo decorrente da comunicação disciplinar. Para tanto, será apresentado primeiramente um breve histórico e os antecedentes deste princípio e posteriormente, será traçada uma discussão acerca dos aspectos jurídicos e doutrinários que envolvem o tema em tela.

2.1 Antecedentes históricos do princípio da presunção de inocência

O primeiro registro que se tem da instituição do princípio da presunção da inocência no Direito positivo remonta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa, em dois de outubro de 1789. Este documento, promulgado em plena Revolução Francesa, trazia em seu artigo IX que "Todo homem sendo julgado inocente até quando for declarado culpado, se é julgado indispensável detê-lo, qualquer rigor, que não seja necessário para assegurar-se da sua pessoa, deve ser severamente proibido pôr lei" (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS…, 1789) (grifo deste autor).

Mas o processo de consolidação deste postulado, até sua positivação, não ocorreu de modo repentino, houve antes um processo de amadurecimento que se iniciou ainda na Inglaterra, onde no Direito não escrito daquele país, já vigorava o princípio do beyond any reasonable doubt, ou seja, o postulado de que só haveria condenação quando não houvesse mais quaisquer dúvidas razoáveis acerca da culpa do réu. Mais tarde, já no século XVIII, a Constituição dos Estados Unidos em sua emenda de número cinco já reconhecia como direito dos cidadãos americanos o due process of law (devido processo legal) que nas palavras de Canotilho (2001, p. 241) significou também a garantia da presunção de inocência, vez que segundo o autor, a Suprema Corte daquele país, ao interpretar a garantia do devido processo legal, afirma que este pressupõe a presunção de inocência quando estatui que "Nadie puede ser condenado si la acusación no há probado su culpabilidad más allá de cualquier duda razonable", acabando por positivar o princípio da Constituição não-escrita inglesa.

Vale mencionar ainda que além das normas constitucionais que suscitavam a garantia da presunção de inocência como forma de se diminuir os erros nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário, uma obra literária do século XVIII também exerceu grande influência no Direito sancionador da época. Trata-se do livro dos Delitos e das penas de Cesare Beccaria, conhecido como Marquês de Beccaria, o qual defendia que "A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode negar-lhe a sua proteção pública, senão quando se decidir que violou os pactos com os quais se outorgou. Qual é, pois, o direito, senão o da força que dá potestas ao juiz para impor uma pena a um cidadão enquanto há dúvidas se é réu ou inocente?" (BECCARIA, 2001, p. 21)

Por fim, estas influências das Constituições da Inglaterra e dos Estados Unidos e também da obra dos Delitos e das Penas de Beccaria, anteriores à Revolução Francesa, foram suficientes para que o já citado artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 consolidasse, de uma vez por todas, a aplicação do princípio da presunção de inocência aos processos movidos pelo Estado contra os seus administrados, estabelecendo que "Tout homme étant présumé innocent jusqu’à ce qu’il ait été déclaré coupable (...)." (BECCARIA apud MATTOS, 2005, p. 06)

Após a Segunda Grande Guerra Mundial, ocorreu na Europa a constitucionalização dos direitos fundamentais da pessoa humana e a tutela de garantias mínimas que devem guarnecer todo o processo judicial. Tais modificações ocorreram em decorrência, principalmente, dos documentos da Organização das Nações Unidas (ONU), mormente a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, que trazem em seus textos a previsão de vedação à presunção da culpabilidade antes da sentença passada em julgado.

Decorridas as breves considerações acerca dos antecedentes históricos do princípio da presunção de inocência, a subseção seguinte se encarregará de discutir a sua aplicabilidade ao processo administrativo disciplinar a partir de fundamentação jurídica e doutrinária.

2.2 Viabilidade jurídica e doutrinária da aplicação do princípio da presunção de inocência ao processo decorrente da comunicação disciplinar

A comunicação disciplinar, por suas características, constitui-se como ato administrativo, gozando de todos os atributos a ele inerentes, dentre os quais o da presunção de legitimidade e veracidade. Mas, daí surge o questionamento central da pesquisa aqui desenvolvida, pois como ficaria então a decisão da autoridade militar diante da inexistência de provas complementares para subsidiar o seu julgamento? Deveria ele então absolver o acusado pelo fato de haver dúvidas quanto à autoria e materialidade da transgressão ou deveria se valer das afirmações contidas na comunicação disciplinar como meio de prova suficiente para fundamentar a sua opção pela condenação do comunicado? Qual das alternativas poderia ser considerada como mais justa? Pois não se pode nunca deixar de ponderar que o objetivo maior do Direito é a justiça, e esta deve ser a meta dos seus operadores.

Não há dúvidas de que o tema em tela é fonte de grande discussão doutrinária no Direito Administrativo Disciplinar, uma vez que não existe possibilidade de coexistência entre o atributo da presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos e o princípio constitucional da presunção de inocência. Principalmente, quando se trabalha com a questão da ausência de provas, pois ambos os institutos tratam-se de presunções relativas, isto é, são verdadeiras até prova em contrário, sendo assim, se não há provas, prevalecerá a presunção, podendo este fato ser fonte de erros nos julgamentos e causa de injustiças praticas pela Administração no exercício do seu poder disciplinar, além do mais, a adoção de um ou de outro, é fator determinante para se estabelecer o ônus de produzir a prova do mérito da ação disciplinar, haja vista que se adotado o atributo da presunção de legitimidade e veracidade, caberá então ao acusado elidir as infrações a ele imputadas, enquanto se for estabelecida prevalência do princípio da presunção de inocência, o ônus ficará para a Administração.

Segundo Salazar (2005, p. 78) "A presunção de legitimidade e veracidade visa preservar a autoridade dos atos administrativos, uma vez que a Administração goza de superioridade em relação ao particular, ou seja, os interesses gerais devem sobrepujar os interesses individuais, em prol da coletividade".

Sob um enfoque diferente, mas com ponto de vista análogo, pela não aplicação da presunção de inocência ao processo administrativo disciplinar, Oliveira (2005, p. 131) manifesta-se no sentido de que os princípios aplicáveis ao processo penal, no campo das garantias procedimentais, não devem ser aplicados integralmente no campo do processo administrativo, em virtude da independência entre as instâncias penal e administrativa. Devem ser guardadas as diferenças entre o processo penal e administrativo para a aplicação da presunção da inocência. Oliveira apud Salazar (2005, p. 79) salienta que mesmo no campo do processo penal, a justiça deu interpretação restritiva ao princípio da presunção de inocência quando o Superior Tribunal de Justiça expediu a Súmula n. 09, no sentido de que: "A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção da inocência." Da mesma forma, a referida garantia não impede que, em alguns casos, o ônus da prova se inverta em desfavor dos acusados, como ocorre com as causas excludentes de ilicitude, que devem ser comprovadas pelo acusado e conclui dizendo que "infere-se que a inocência no âmbito do regime administrativo disciplinar se presume até certo ponto. Há circunstâncias que podem inverter essa presunção, criando aos acusados uma necessidade de provar determinados fatos ou situações. (OLIVEIRA, 2005, p. 135)

Segundo a Instrução de Corregedoria da Polícia Militar n° 01/05, em seu art. 40 as declarações contidas na comunicação disciplinar presumem-se verdadeiras, pois o comunicante age em nome da Administração Militar e no cumprimento de um dever legal, cabendo ao comunicado provar o contrário. No mesmo documento, consta no citado artigo que:

Art. 40 – (…)

§ 1º O princípio da presunção da inocência é inerente especificamente ao Direito Penal e Processual Penal e não ao Direito Administrativo, assim a presunção de legitimidade e veracidade prevalece sobre a presunção de inocência em prol da disciplina militar, fazendo prova dos fatos que tenham ocorrido na presença de funcionário público, nos termos do art. 364 do CPC.

§ 2º Pode e deve a autoridade competente valer-se do atributo da presunção de legitimidade e veracidade para o julgamento de transgressões disciplinares, depois de asseguradas as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, cumprindo-se o devido processo legal. (POLÍCIA MILITAR…, 2005, p. 14)

Cabe mencionar, que o dispositivo retrocitado foi objeto de lide judicial entre a associação representativa das praças da Polícia Militar de Minas Gerais e o Estado de Minas Gerais, sendo que em decisão de segundo grau, transitada em julgado, suas disposições foram consideradas ilegais e, por conseguinte, impossíveis de serem aplicadas aos processos administrativos no âmbito de Minas Gerais, sob os seguintes fundamentos:

(…) o art. 40 da Instrução também afronta a legalidade, uma vez que cria para o comunicado o ônus de provar o contrário das alegações contidas na comunicação disciplinar. De acordo com a Instrução, não haverá para o comunicado presunção de inocência; entretanto, como visto, a comunicação disciplinar não é ato administrativo vinculado, portanto, não possui presunção de legitimidade e veracidade. A Instrução 01/05 - CPM visa a formulação de orientações, no âmbito interno da Corporação, acerca dos procedimentos disciplinares, tendo como base a Lei estadual nº 14.310/02 (Código de Ética e Disciplina do Militares), que, por sua vez, não retira do comunicado a presunção de inocência, mas sim concede-lhe oportunidade de ampla defesa e contraditório, sem previsão de presunção de veracidade. (grifo deste autor) (MINAS GERAIS, 2007)

Ainda na defesa da prevalência do atributo da presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo, neste caso, da comunicação disciplinar, Cintra, Grinover e Dinamarco (1999, p. 84), inferem que a presunção de não-culpabilidade ou presunção de inocência dos acusados trata-se de uma garantia específica do processo penal, mesmo pensamento de Berguel apud Costa (2002, p. 182) que assim se posiciona:

(...) a presunção de inocência, em direito penal, protege as pessoas contra a arbitrariedade; a presunção de legalidade da coisa decidida pela administração pública facilita o exercício da função pública. Tais presunções, fundamentadas na situação mais verossímil ou na idéia de que, se não fossem presumidos, certos fatos seriam impossíveis ou muito difíceis de estabelecer, constituem vantagens em geral decisivas que a lei concede a uma das partes em nome de considerações de política jurídica e de certos valores que ela tende a proteger.

Um dos principais argumentos dos estudiosos e operadores do Direito para defenderem a inaplicabilidade do princípio da presunção de inocência ao Direito Administrativo é o de que não existe menção expressa na Constituição de tal possibilidade, como ocorre com os princípios da ampla defesa e do contraditório e, também do devido processo legal. No entanto, partindo-se para as alegações em favor da prevalência do princípio da presunção de inocência, deve-se levar em conta aí, a finalidade específica desta área do Direito Administrativo que é a Disciplinar, a qual é idêntica ao do Direito Penal, qual seja a aplicação de sanção pelo cometimento de determinada infração ao ordenamento legal. As características e intensidades das penas são distintas, todavia o fundamento para a aplicação é comum, isto é, o fato ilícito.

À primeira vista, aceitar a vigência do princípio da presunção de inocência do Direito Administrativo brasileiro pode soar estranho e contrário às prerrogativas da Administração Pública, como representante dos interesses coletivos dos seus administrados. É o que se percebe pelas afirmações de autores como Vitta (2003, p. 108 - 109), o qual entende que "apesar de ser aplicável o princípio da presunção de inocência ao Direito Administrativo, manifesta-se no sentido de que o fato de caber à Administração o ônus da prova, poderia trazer impunidades e prejuízos aos interesses coletivos". Para fortalecer o seu argumento o mesmo autor cita o exemplo clássico do agente da autoridade de trânsito que presencia determinado veículo avançar o semáforo com o farol no vermelho, e questiona como poderia esse agente da autoridade de trânsito provar a infração cometida senão através da lavratura do auto de infração de trânsito?

Não restam dúvidas que o próprio ordenamento jurídico brasileiro já contém alternativas para a solução da citada querela, bastaria o ilustre autor se reportar ao Código de Processo Civil, em seu artigo 333, parágrafo único, item II que dispõe "É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando: (…) II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito". O dispositivo ora mencionado contém a essência da teoria do perfil dinâmico do ônus da prova, a qual, em linhas gerais, estabelece que cabe o ônus da prova àquele que tiver melhores condições de fazê-lo no curso do processo, segundo a decisão da autoridade processante, é o que diz Azevedo (2007, p. 1): a "Teoria Dinâmica de Distribuição do Ônus da Prova consiste em retirar o peso da carga da prova de quem se encontra em evidente debilidade de suportar o ônus da prova, e impondo-o sobre quem se encontra em melhores condições de produzir a prova essencial ao deslinde do litígio"

Pelas razões expostas, é óbvio que a Administração Pública, em virtude de seu poder econômico, diversidade de profissionais nas inúmeras áreas do conhecimento e pluralidade de órgãos com especialidades variadas, possui muito mais condições de produzir as provas necessárias a materializar a culpa do acusado. Deste modo, mostra-se muito mais razoável caber a ela o ônus de produzir as provas no processo administrativo disciplinar por se encontrar em posição de vantagem perante o administrado.

Trazendo à baila o texto da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVII, verifica-se, que apesar de os defensores da inviabilidade do princípio da presunção de inocência ao processo disciplinar, afirmarem ser o mesmo seja restrito ao processo penal, deve-se considerar que mesmo não havendo menção expressa de sua aplicabilidade ao processo administrativo, o que em tese afastaria esta possibilidade, ainda assim a presunção da não-culpabilidade se mostra plenamente aplicável ao Direito Administrativo, em decorrência dos parágrafos 2º e 3º do mesmo artigo, os quais assim dispõem:

(…) § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (grifo deste autor)

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (…) (ANGHER, 2007)

Neste mister, vale mencionar que os dispositivos contidos nos documentos internacionais que versam sobre os direitos humanos, civis e políticos, os quais não excluem da sua proteção os militares, não podendo ser, portanto, a eles renegadas tais garantias.

A Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25/09/1992, prescreve em seu art. 8º que "Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. (…)", disposição idêntica à contida no item 2 do artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ANGHER, 2007). No mesmo sentido, o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas, aborda que "Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa"(MELLO e FRAGA, 2003, p. 66).

Poder-se-ia questionar então o emprego do axioma da presunção de inocência ao processo administrativo disciplinar pela interpretação semântica restritiva do termo "delito", comum às legislações citadas, considerando que ele teria o significado apenas de crime ou contravenção, aplicando-se apenas ao contexto penal. Tal questionamento não teria sustentação, pois segundo Angher (2007, p. 08) delito é "(…) toda infração de direitos por ação ou omissão contrária à lei.", o que confere ao verbete um entendimento extensivo, capaz de abranger qualquer espécie de infração à lei, inclusive as transgressões disciplinares, de natureza administrativa.

Enfim, ficou demonstrado que sob o crivo da legislação nacional e internacional aplicável ao Direito brasileiro, o princípio da presunção de inocência é totalmente aplicável ao processo decorrente da comunicação disciplinar, previsto no CEDMG. A seguir, serão expostos alguns posicionamentos doutrinários acerca do tema, com vistas a reforçar as alegações até aqui expostas e demonstrar que o entendimento deste autor não se encontra desconsonante com os estudiosos deste ramo do Direito Público.

Para Bacelar Filho apud Ferreira, (2001, p. 121): "O princípio da presunção de inocência impede que a presunção de legitimidade do ato administrativo possa exercer influência sobre o regime do ônus da prova." Desta maneira, por sua origem constitucional, o princípio da presunção da inocência deveria prevalecer sobre a presunção de legitimidade do ato administrativo, incumbindo à Administração Pública Militar provar a substância das afirmações do comunicante.

De modo análogo, entende o espanhol Guasp apud Mattos (2005, p. 07) ao defender que "Las simples alegaciones procesales no bastan para proporcionar al órgano jurisdicional el instrumiento que éste necessita para la emissión de su falha".

Contrapondo ao entendimento dos autores que pugnam pela não aplicação da presunção de inocência ao processo administrativo, sob a alegação de que não existe menção expressa na Constituição Federal de 1988, vale citar a lição de autores como Ferreira (2001, p. 120) que assevera que "(…) todas as normas constitucionais garantidoras dos direitos fundamentais devem ser interpretadas ampliativamente, emprestando-lhes a maior eficácia possível, fazendo-se obrigatória, portanto, a manutenção do sentido, conteúdo e alcance sugeridos ao já anotado primado da presunção de inocência".

O mesmo é acompanhado por Ferrara apud Vitta (2003, p. 107) que assim assevera:

(...) todo o edifício jurídico se alicerça em princípios supremos que formam as suas idéias diretivas e o seu espírito, e não estão expressos, mas são pressupostos pela ordem jurídica. Estes princípios obtêm-se por indução, remontado de princípios particulares a conceitos mais gerais, e por generalizações sucessivas aos mais elevados cumes do sistema jurídico. (...) Na aplicação dos princípios gerais do Direito passa-se sucessivamente dos mais particulares aos de mais vasto e superior conteúdo, e deve fazer-se o confronto da relação a regular com os princípios jurídicos a que tal relação há de subordinar-se.

Finalmente, ficou demonstrado que tendo a nossa Constituição da República de 1988, positivado o princípio da presunção de inocência como aplicável ao exercício do seu direito de punir, todo o ordenamento infraconstitucional deve estar de acordo com estes dispositivos, sob pena de inconstitucionalidade. Conforme ficou evidente neste trabalho, a presunção de inocência ou da não-culpabilidade não é particularidade do Direito Penal, seja ele material ou formal, mas sem sombra de dúvidas é aplicável ao processo administrativo. Sendo assim, a autoridade disciplinar, mormente a militar, não deve entender que a asseguração de tal garantia ao acusado constitui guarida para a prática de infrações à disciplina e ao regulamento da caserna. Mas sim como um instituto que busca encontrar um equilíbrio saudável entre o interesse punitivo da Administração e a dignidade do acusado, estabelecendo uma relação processual consoante aos ditames constitucionais.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, João Paulo Fiuza da. A aplicabilidade do princípio da presunção de inocência ao processo decorrente da comunicação disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3041, 29 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20302. Acesso em: 29 mar. 2024.