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A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld

A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld

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Quanto mais poderes forem conferidos ao Estado pelo sistema jurídico (normas constitucionais e infraconstitucionais), mais forte será a noção de supremacia de interesse público sobre o particular que se verificará na praxe jurídica.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO; 1. A NOÇÃO DE SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO À LUZ DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA; 1.1. A importância da análise do tema à luz das transições paradigmáticas 8 1.2. A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Liberal; 1.3. A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Social; 1.4. A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito 13 2. NOÇÕES GERAIS ACERCA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SEGUNDO A DOUTRINA E A LEGISLAÇÃO; 2.1. A supremacia do interesse público na doutrina de direito administrativo brasileira considerada tradicional; 2.2. A supremacia do interesse público sobre o privado na legislação e na Constituição Federal: desapropriação, poder de polícia, intervenção na economia, cláusulas exorbitantes nos contratos, etc.; 2.3. Recente movimento pela desconstrução da noção de supremacia do interesse público sobre o privado; 3. A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO VISTA SOB O ENFOQUE DA TEORIA DOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE WESLEY HOHFELD; 3.1. A teoria dos conceitos fundamentais de Hohfeld; 3.2. A supremacia do interesse público sobre o privado e as relações jurídicas entre o Estado e os particulares; 3.3. Em contraposição aos poderes estatais, os direitos fundamentais conferem imunidades aos indivíduos; 3.4. Conveniência do estudo da eventual supremacia do interesse público a partir do contraponto entre poderes estatais e imunidades dos indivíduos; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS

RESUMO: Propõe-se um estudo da noção de supremacia do interesse público sobre o articular sob o ponto de vista da passagem paradigmática do Estado Liberal para o Estado Social e deste para o Estado Democrático de Direito. Em seguida, afirma-se como, no atual paradigma, e considerando a doutrina e ordenamento jurídico atual, é conveniente que se estudem os conflitos entre interesses públicos e privados sob uma ótica diferenciada, proposta por Wesley Hohfeld, autor de uma teoria sobre os conceitos jurídicos fundamentais.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Supremacia do interesse público sobre o privado. Paradigma. Estado Democrático de Direito. Direitos fundamentais. Wesley Hohfeld. Conceitos jurídicos fundamentais.


INTRODUÇÃO

Vários institutos que são tidos como alicerces do Direito Administrativo brasileiro vêm, nos últimos anos, sendo estudados sob um enfoque crítico, voltado para a investigação de sua conformação com o atual modelo de Estado Democrático de Direito, acolhido pela Constituição Federal de 1988.

Nesse contexto, surgiu a necessidade de submeter também a noção de supremacia do interesse público sobre o privado – uma ideia comumente abordada nos compêndios de direito administrativo – a um estudo de sua extensão e sentido, com o objetivo principal de averiguar se há compatibilidade entre essa ideia e o acima citado modelo de Estado constitucional.

Atualmente, a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado é invocada para desempenhar, segundo a doutrina tradicional, o papel de guia da decisão do aplicador do direito quando há dúvida quanto a qual interesse deve prevalecer em caso de choque ou conflito. Contudo, a doutrina vem paulatinamente rechaçando a manutenção dessa concepção de supremacia do interesse público, atribuindo-lhe um caráter retrógrado e com vestígios de autoritarismo estatal.

No presente trabalho, pretende-se, em um primeiro momento, encontrar os elementos básicos que guiaram a conformação teórica da mencionada noção de supremacia, analisando a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado em contraste com as recentes mudanças paradigmáticas, quais sejam, do Estado Liberal para o Estado Social e deste último para o Estado Democrático de Direito.

Em seguida, sem firmar posição acerca da necessidade de reconstrução ou desconstrução da citada noção, aborda-se como a supremacia do interesse público sobre o privado é vista no âmbito da doutrina do Direito Administrativo brasileiro, por meio do estudo do tratamento dispensado por alguns autores brasileiros de Direito Administrativo, cujos estudos compõem a doutrina clássica nacional, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, Hely Lopes Meireles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, bem como dos institutos existentes no ordenamento jurídico – legislação e Constituição Federal, que denotariam a presença da citada supremacia.

Por fim, introduz-se a teoria dos conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld, sugerindo como referido estudo analítico das relações jurídicas pode servir para compreender melhor os direitos subjetivos invocados tanto em prol do interesse público (mormente pelo Estado) como pelo interesse privado (movido pelos particulares).

Pretende-se, nesse sentido, demonstrar que a noção de supremacia do interesse público sobre o privado encontra nítida relação com determinada modalidade de direito concebida por Hohfeld, a qual pode ser contraposta por outra modalidade de direitos, os quais derivam, em grande parte, pela interpretação dos direitos tidos por fundamentais.

Decerto que não será possível exaurir um tema de tamanha abrangência, mas se espera que esse estudo represente uma contribuição para a discussão, aportando elementos hábeis para compreender as deficiências da teoria tradicional da supremacia do interesse público sobre o particular e, ao mesmo tempo, demonstrando ser oportuna uma mudança de perspectiva, permitindo que se analise de forma mais clara os direitos postos em jogo em eventual conflito entre interesse público e interesse privado.


1. A NOÇÃO DE SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO À LUZ DA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA

1.1 A importância da análise do tema à luz das transições paradigmáticas

A noção de supremacia do interesse público sobre o privado constitui um marco do direito administrativo, construído ao longo de décadas de desenvolvimento da burocracia estatal e que tem seu papel posto em xeque na atualidade (BINENBOJM, 2008, p. 5).

Considerando, assim, que essa ideia não foi criada, como algo pronto, em determinado momento histórico, mas sim foi desenvolvida ao longo de séculos de história, convém abordar o conceito de paradigma jurídico, tal qual compreendido por autores como Menelick de Carvalho Netto e Cristiano Paixão Araújo Pinto, para melhor entender as nuances que permearam a consolidação dessa ideia no direito administrativo.

Para os referidos autores, um paradigma é espécie de marco interpretativo, um conjunto de ideias que, em certo momento histórico e lugar, ajustam a visão dos que praticam determinada ciência (CARVALHO NETTO, 2002, p. 74). A condição paradigmática, assim, predispõe e condiciona a forma de se ver determinado aspecto do mundo e de agir sobre ele. Essa noção, que é extraída da teoria da ciência de Thomas Kuhn (apud CARVALHO NETTO, 2000, p. 236), busca demonstrar como ocorre a evolução do conhecimento, a qual, segundo sua visão, não se daria pacificamente, de forma gradativa, mas por meio de saltos e rupturas, ocorrendo, então, a troca de um paradigma por outro.

É importante mencionar que, embora tenha se encontrado aplicação para seu conceito também nas ciências sociais, Kuhn deu enfoque, em seu estudo, às ciências tidas por exatas ou da natureza. A despeito disso, ao aplicar esse conceito ao direito, descobriu-se que nele também havia paradigmas, que operam da mesma forma que na proposição inicial de Kuhn, isto é, enquanto substrato da gramática social em uso por determinado grupo de pessoas em relação a certa área do conhecimento (CARVALHO NETTO, 2002, p. 74-75). Como afirma Jürgen Habermas (2003, p. 129-131), a doutrina e a prática do direito tomaram consciência de que existe uma teoria social que intervém na consciência de todos os atores, dos cidadãos e dos clientes, do legislador, da justiça e da administração.

O estudo paradigmático serve bem para contextualizar, de um ponto de vista temporal, a inserção da noção de supremacia do interesse público sobre o privado, revelando os esquemas gerais que se encontram por trás do conhecimento jurídico daqueles períodos históricos.

Para os fins do presente estudo, interessam mais os paradigmas correspondentes à organização política e jurídica da modernidade, isto é, do Estado Liberal (ou Estado de Direito), do Estado Social (ou Estado do Bem-Estar Social), e, por fim, do Estado Democrático de Direito, que serão, a seguir, abordados separadamente.


1.2 A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Liberal

O paradigma jurídico do Estado Liberal caracteriza-se pela consolidação do constitucionalismo clássico enquanto instrumento de proteção das liberdades dos indivíduos – sujeitos autônomos de direitos – em uma sociedade marcada pela diferenciação funcional, e não mais pela diferenciação por estratos, que marcava o regime anterior (PINTO, 2003, p. 33-36).

Nesse novo paradigma o indivíduo se vê voltado contra a estrutura anterior, “pré-moderna” no dizer de Menelick Carvalho Netto (2000, p. 237), na qual o direito e a organização política

encontravam tradução, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O direito é visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social, tida como absoluta e divinizada.

O direito, assim, passou a ser considerado um sistema mínimo de regras que garantam, ao mesmo tempo, a liberdade dos indivíduos e o não retorno ao absolutismo, estabelecendo, ainda, seus limites (CARVALHO NETTO, 2000, p. 239). É um direito formal, no sentido de que previa, de forma genérica, liberdades subjetivas iguais aos indivíduos, sem considerar as diferenças materiais existentes entre eles.

Se, de um lado, estabelecem-se certas proibições, as quais, em última instância, pretendem delimitar os espaços de liberdade dos indivíduos como o mínimo então considerado para possibilitar a vida em sociedade (não matar, não roubar, etc) (CARVALHO NETTO, 2000, p. 240), por outro, o Estado, nesse momento, assume uma função minimalista, de estado-policial, que busca tão somente garantir a autonomia privada, protegendo os interesses econômicos particulares – essencialmente a propriedade e a liberdade contratual – manipulados no âmbito da autonomia de cada indivíduo (HABERMAS, 2003, p.138). Daniel Sarmento (2007, p. 35) sintetiza de forma clara essa situação, ao afirmar que

o Estado Liberal baseou-se numa rígida separação entre Estado e sociedade. O Estado deveria cuidar da segurança interna e externa, protegendo a propriedade privada, mas não lhe cabia intervir nas relações travadas no âmbito da sociedade. Nestas, indivíduos, formalmente igualizados após a abolição dos privilégios estamentais, perseguiriam livremente os seus próprios interesses privados, ao abrigo das interferências do poder público.

Há, portanto, uma nítida assimetria entre as noções de público e de privado, pois o domínio do privado de então é de tal forma agigantado que a ideia de público se relaciona apenas com o dever (estatal) de proteger o campo das relações privadas (PINTO, 2003, p. 36). A seara do público, assim, se confunde com a atuação do Estado, essa criação política feita apenas para garantir o curso da sociedade civil, isto é, dos interesses privados dos indivíduos (CARVALHO NETTO, 2002, p. 77).

Dessa forma, observa-se que a defesa do interesse privado é a força motriz do direito criado sob o paradigma do Estado Liberal, e seu elemento-chave é o contrato (PINTO, 2003, p. 37), enquanto símbolo da radical liberdade conferida aos indivíduos de regerem suas próprias vidas.

Portanto, se, nessa ótica, o campo do público se confunde com o que é estatal, um eventual choque entre o interesse público-estatal e o interesse dos particulares acabaria por ser resolvido em favor desses últimos, pois o Estado apenas propiciaria regras gerais e abstratas, não podendo se imiscuir no livre jogo de vontades dos atores sociais de então.

Não se fala, assim, em relação àquele paradigma, de uma noção de supremacia do interesse público sobre o privado como a que é comumente discutida nos dias de hoje. Essa noção, como se verá, só ganha força e sentido com a ascensão de um novo modelo paradigmático, o do Estado Social.


1.3 A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Social

A igualdade formal que compunha o direito sob a égide do paradigma do Estado Liberal foi posta em xeque por uma série de eventos que, ganhando força na segunda metade do século XIX (PINTO, 2003, p. 38), possibilitaram a formação de outro paradigma jurídico.

Dentre esses eventos, destacam-se “a eclosão de movimentos revolucionários na Europa (a partir, principalmente, de 1848), o surgimento e crescimento de doutrinas de feição socialista ou anarquista (que tinham como ponto comum a forte rejeição ao Estado Liberal então vigente) e a organização de setores da sociedade em novos grupos de pressão (sujeitos coletivos de direito, como associações ou sindicatos profissionais)” (PINTO, 2003, p. 39).

Nesse novo paradigma, torna-se claramente necessário garantir não apenas de forma geral e abstrata uma igualdade entre os indivíduos perante o direito. O conteúdo jurídico decorrente dessa ideia de igualdade precisava ser especificado, criando-se uma nova categoria de direitos com fins a viabilizar uma distribuição mais justa da riqueza produzida, bem como proteger os indivíduos dos perigos gerados pela produção dessa riqueza (HABERMAS, 2003, p. 139-140).

Os direitos individuais, tal qual a liberdade e a igualdade, foram redimensionados de forma a abranger também os direitos chamados de coletivos e sociais. A liberdade e a igualdade, sob essa ótica, não são garantidas apenas pela ausência de leis, mas pela internalização, na legislação, do reconhecimento das diferenças materiais existentes entre os indivíduos, criando-se privilégios aos que detém posição social ou econômica de desvantagem (CARVALHO NETTO, 2000, p. 242). De fato, como menciona Habermas (2003, p. 154),

a crítica do Estado social contra o direito formal burguês concentra-se na dialética que opõe entre si a liberdade de direito e a liberdade de fato dos destinatários do direito, portanto, em primeira linha, na implantação de direitos sociais fundamentais.

A inserção desses direitos sociais no panorama de direitos fundamentais traz para o Estado uma grande responsabilidade, que é a de lhes dar concretude. O Poder Público sai da função de mero espectador para assumir as rédeas das relações econômicas, balizando-as por intermédio de regras cogentes, normas de ordem pública que passar a ser respeitadas a despeito da autonomia da vontade das partes (SARMENTO, 2007, p. 39).

Em razão disso, o Estado se agiganta, tanto do ponto de vista físico como em relação ao seu poder social, pois, como afirma Cristiano Paixão Araújo Pinto (2003, p.40), ele passa a ter como finalidade a compensação e a inclusão de setores da sociedade numa determinada rede de proteção. Ocorre que tal fenômeno é circular, pois novas demandas de compensação e inclusão continuam surgindo, ocasionando o contínuo crescimento do aparato técnico-burocrático no interior do Estado e, daí, o gigantismo logo acima mencionado.

Importante mencionar, ainda, que é sob o paradigma do Estado Social que o Direito Administrativo aparece como disciplina autônoma no seio da dogmática jurídica (PINTO, 2002, p. 41), fato que tem relação direta com a já mencionada expansão das missões governamentais e a intensificação da sua atuação regulamentar, impondo ao Estado o dever de disciplinar juridicamente os mais variados campos da vida social.

Nesse paradigma, as noções de público e de privado permanecem semelhantes às do paradigma do Estado Liberal, isto é, a ideia de público continuava reduzida ao que dizia respeito ao Estado, e o privado se relacionava com os anseios dos indivíduos. Contudo, essa mudança paradigmática trouxe uma inversão de valor no que diz respeito à dicotomia público-privado, pois, se sob o paradigma do Estado Liberal a dimensão privada encontrava realce, no Estado Social ela será vista com desconfiança, identificada com o egoísmo e com a própria negativa do exercício da vida pública (PINTO, 2003, p. 40).

Vê-se, assim, que a nova posição ocupada pelo Estado na sociedade era propícia para a formação da ideia de que existia uma verdadeira supremacia entre os interesses públicos – confundidos, aí, com os interesses do Estado – e os interesses privados. Se o liberalismo anterior era visto como representação do egoísmo da vida particular, os interesses privados eram consequentemente confundidos com interesses egoísticos, que se contrapunham aos interesses públicos, representativos da coletividade e que alcançariam concretude por meio da atuação estatal.

Assim, o sacrifício dos interesses individuais em prol da concretização da atuação estatal era, mais do que tolerada, plenamente justificada pela noção paradigmática correspondente ao Estado Social, que havia avocado para si a missão de guiar a coletividade rumo à plena cidadania por meio da concretização dos direitos sociais (MENELICK, 2002, p. 78), não podendo ter esse rumo desviado para atender a anseios particulares.

Mostra-se coerente, portanto, a absorção dessa ideia de supremacia do interesse público pelo privado pelo Direito Administrativo, ramo do direito que acabara de adquirir sua autonomia. Cria-se, assim, em torna dessa ideia, a perspectiva de que há um princípio de direito que determina o sacrifício dos interesses privados em prol dos interesses públicos/estatais. É essa a noção de supremacia do interesse público que se consolidou no âmbito do direito positivo brasileiro e na jurisprudência dos tribunais nacionais, como será ainda demonstrado.

Ocorre que a mudança paradigmática sentida com a chamada crise do Estado Social e a introdução do paradigma do Estado Democrático de Direito alterou o conteúdo das noções de público e de privado, demandando, assim, uma nova abordagem da ideia de supremacia do interesse público sobre o privado.


1.4 A noção de supremacia do interesse público sobre o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito

Embora os fatores que contribuíram com a crise desse modelo de Estado Social ainda seja objeto central de estudo da teoria política contemporânea, é certo que alguns dentre eles podem ser destacados como motivos determinantes para a derrocada do paradigma social e a ascensão do modelo de Estado Democrático de Direito.

Com efeito, é no início da década de 1970 que a crise do paradigma do Estado Social se manifesta em toda a sua dimensão. Os dois choques do petróleo e a crise econômica deles decorrente, a globalização dos meios de produção, a criação de normas de cunho jurídico por fontes privadas, o endividamento do setor público, entre outros fatos históricos, colocaram em xeque o Estado e seu papel de provedor do bem-estar social e de planejador das economias nacionais (SARMENTO, 2004, p. 395-399).

Entretanto, como afirma Cristiano Paixão Araújo Pinto (2002, p. 41), “é fundamental assinalar que a crise do Estado Social não é exclusivamente fiscal ou administrativa. Ela é, antes de tudo, uma crise de déficit de cidadania e de democracia”.

É que, como visto, no paradigma do Estado Social há uma identificação entre o público e o estatal, em um processo que tende a simular a participação efetiva da sociedade no meio político tão somente por meio do instrumento do voto. Com a crise do Estado Social, fica nítido o distanciamento entre os anseios da sociedade e as pretensões do poder público interventor, em uma verdadeira crise de cidadania e de identidade social.

Alia-se a isso uma nova demanda por direitos até então ignorados, como os de caráter difuso ou coletivo, referentes à tutela das relações de consumo, do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico, cultural e paisagístico, como também os direitos atribuídos a parcelas excluídas da sociedade, a exemplo dos portadores de necessidades especiais e das minorias raciais, sexuais e religiosas.

São, pois, esses os fatores que servem de substrato para a construção do paradigma do Estado Democrático de Direito, caracterizado por um direito participativo, pluralista e aberto (CARVALHO NETTO, 2000, p. 244).

A mudança paradigmática em comento afeta de forma direta a relação público-privado. Se, antes, o privado era visto como egoísmo individualista e o público encontrava-se diluído no que era estatal, a emergências dos novos direitos e a (re)descoberta da sociedade que não se sentia representada pelo Estado – na já mencionada crise de cidadania – agrega novos valores à esfera privada, abrindo-lhe espaços de atuação antes reservados apenas à seara pública. O público passa, então, a não mais se identificar com o que é estatal, assumindo uma dimensão totalmente diferente. A dicotomia público-privada é rompida, permitindo que essas esferas sejam vistas como complementares, com a participação crescente dos indivíduos no debate político e no núcleo da atuação estatal. A redescoberta da esfera pública figura, desta forma, como tema central no paradigma do Estado Democrático de Direito, pois, como corretamente afirma Cristiano Paixão Araújo Pinto (2002, p. 46),

a emancipação de uma esfera pública independente dos comandos estatais e que viabilize a redefinição da relação entre a dimensão privada da existência e o aspecto público da organização social constitui o maior desafio a ser enfrentado por sociedades que se pretendam democráticas.

Nesse novo paradigma, atribui-se nova significação às ideias de público e de privado, refletindo especialmente na conceituação do interesse público, que não pode mais ser visto apenas como interesse estatal, mas, sim, como o fruto da participação da sociedade no debate político, podendo redundar, muitas vezes, na satisfação de interesses privados e na consequente proteção de direitos individuais.


2 NOÇÕES GERAIS ACERCA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SEGUNDO A DOUTRINA E A LEGISLAÇÃO

2.1 A supremacia do interesse público na doutrina de direito administrativo brasileira considerada tradicional

Nos tradicionais compêndios de direito administrativo, é recorrente a menção à ideia de que a supremacia do interesse público sobre o privado figura como um elemento presente em todas as funções do Estado e em todos os ramos do direito público, servindo de sustentáculo ao próprio exercício do poder estatal (DI PIETRO, 2009, p. 36).

Tal entendimento é acolhido por Hely Lopes Meirelles (2009, p. 105-107), que registra que a noção de supremacia do interesse público sobre o privado decorre da desigualdade entre a Administração e os administrados, constituindo um dos pressupostos do direito administrativo e da existência do próprio Estado.

Celso Antônio Bandeira de Mello ( 2007, p. 66), por sua vez, caracteriza a supremacia do interesse público sobre o privado como um princípio basilar de direito administrativo, o qual representa

verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.

Segundo o referido autor, todo o sistema de direito administrativo se constrói com base no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (MELLO, 2007, p. 29) e, em razão do referido princípio, é conferida aos órgãos públicos uma posição de supremacia ao se relacionar com os particulares, configurando-se tal relação em uma situação de “verticalidade”, diversa da que se forma com os particulares entre si, que seria marcada pela “horizontalidade”. Essa marcante diferença no relacionamento do Estado com os particulares decorre da situação de autoridade, de verdadeiro comando, de que se revestem os órgãos do Poder Público, como condição indispensável para gerir os interesses públicos postos em confronto (MELLO, 2007, p. 67).

Partilhando de entendimento semelhante, José dos Santos Carvalho Filho (2008, p.26) afirma que as atividades administrativas do Estado são realizadas para o benefício da coletividade e, por isso, o indivíduo não pode ser considerado destinatário da atuação estatal, mas sim o grupo social como um todo. Dessa forma, os particulares não podem pretender ter seus direitos equiparados aos direitos sociais, de forma que, ocorrendo um conflito entre o interesse público e o interesse privado, deve prevalecer o primeiro.

Em suma, observa-se que os autores mencionados comungam do entendimento de que a supremacia do interesse público sobre o privado é um pilar da atuação estatal e faz parte da própria estrutura do direito administrativo, na medida em que o Estado não pode se relacionar com os particulares da mesma forma que os particulares se relacionam entre si.

Em razão disso, a supremacia do interesse público sobre o privado é tida como um princípio que informa a atuação de todos os Poderes da República (DI PIETRO, 2009, p. 64), garantindo também ao Estado inúmeros privilégios e garantias (MEIRELLES, 2009, p. 107), como a sua atuação cogente e a consequente possibilidade de restringir direitos de forma unilateral, que serão a seguir exemplificados.


2.2 A supremacia do interesse público sobre o privado na legislação e na Constituição Federal: desapropriação, poder de polícia, intervenção na economia, cláusulas exorbitantes nos contratos, etc.

A doutrina considerada tradicional, aludida no tópico anterior, afirma que os privilégios e as garantias especiais conferidas à Administração Pública pela legislação e pela Constituição Federal decorrem do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (CARVALHO FILHO, 2008, p. 26).

Um exemplo comumente citado de privilégio ou de garantia especial conferida ao Estado, como sendo a demonstração da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, é o instituto da desapropriação, previsto no art. 5º

, inciso XXIV da Constituição Federal, mediante o qual é facultado ao Estado restringir o direito de propriedade dos particulares de forma unilateral, mediante o pagamento de indenização (CARVALHO FILHO, 2008, p. 26). Outro exemplo clássico de ressalva ao direito de propriedade, apontado como decorrente da supremacia do interesse público sobre o privado, consiste na possibilidade de o Estado exigir tributos, na forma prevista no art. 145 da Constituição Federal.

Quanto à liberdade dos particulares, Maria Silvia Zanella Di Pietro (2009, p. 37) aponta certas restrições decorrentes da supremacia do interesse público sobre o privado, tais como as impostas pelo poder de polícia do Estado, bem como as decorrentes da atividade estatal de intervenção no domínio econômico.

No que tange ao direito à igualdade, o ordenamento jurídico possui vários exemplos de tratamento diferenciado em razão da presença da figura estatal, como a admissão das cláusulas ditas exorbitantes, existentes nos contratos administrativos por força da Lei n. 8.666/93. Figuram como cláusulas exorbitantes a possibilidade de alteração e rescisão unilateral do acerto, a retomada do objeto do contrato em certos casos e as restrições ao uso do princípio da exceção do contrato não cumprido (isto é, o Estado pode exigir que o outro contratante cumpra a sua parte no contrato sem que ele próprio tenha cumprido a sua), entre outras.


2.3 Recente movimento pela desconstrução da noção de supremacia do interesse público sobre o privado

Recentemente, alguns autores[1] brasileiros de direito administrativo e constitucional buscaram voltar seus estudos para descobrir como se adequaria a noção de supremacia do interesse público e o Estado Democrático de Direito.

Tais estudos geraram conclusões tendentes a negar a existência da discutida supremacia na atualidade, em um movimento pela “desconstrução” da referida noção. Outros buscaram adequar as bases teóricos do princípio ao paradigma vigente, em uma linha direcionada para a “reconstrução” do referido princípio para as bases constitucionais atuais (BORGES, 2007, p.2).

De todo modo, concordam tais autores que a noção de supremacia do interesse estatal encontrava-se embebida na ideia de que os interesses entabulados pelo Estado Social possuíam equivalência com os interesses da coletividade, equivalência esta que não encontra necessária correlação com a realidade, tendo em vista as situações em que o interesse específico da Administração diverge do interesse dos grupos administrados.

Assim, compreende-se que, apesar do ocaso do Estado Social, certas categorias jurídicas do direito administrativo permaneceram sendo utilizadas como se ainda se estivesse sob a égide daquele paradigma. De fato, a emergência do Estado Democrático de Direito tornou claro o descompasso entre os antigos paradigmas e as reais necessidades e expectativas das sociedades contemporâneas em relação à Administração Pública (BINENBOJM, 2008, p. 5), a exemplo da mencionada ideia de supremacia do interesse público sobre o privado, que ainda permaneceria arraigada na doutrina nacional de direito administrativo com certos aspectos só justificáveis à época do Estado Social.

Todavia, compreende-se que há certos aspectos da governabilidade que não podem ser deixados de lado ou mesmo serem negados quando se discute a supremacia do interesse público sobre o particular, pois são inerentes à conformação constitucional do poder do Estado estabelecido no Brasil. Como afirma Alice Gonzales Borges,

Se a Administração Pública, no exercício de suas funções, não pudesse usar, por exemplo, de certas prerrogativas de potestade pública, tais com a imperatividade, a exigibilidade e a presunção de legitimidade dos seus atos, nem, em circunstâncias especiais perfeitamente delineadas pela lei, a auto-executoriedade de certas medidas urgentes, então teríamos verdadeiro caos. Ficaríamos com uma sociedade anárquica e desorganizada, e os cidadãos ver-se-iam privados de um de seus bens mais preciosos, que é o mínimo de segurança jurídica indispensável para a vida em sociedade. (BORGES, 2007, p. 2)

Assim, sem tomar partido para a necessidade de “desconstrução” ou de “reconstrução” da noção de supremacia do interesse público sobre o privado, pretende-se, neste texto, agregar ao debate sobre a referida noção de supremacia uma discussão acerca do cerne dos direitos envolvidos quando se travam conflitos entre o Estado e particulares sob a égide da supremacia do interesse público.

De fato, discute-se, atualmente, qual seria a verdadeira natureza da noção de supremacia do interesse público, isto é, se ela se comportaria como um princípio ou como uma regra jurídica, a fim de servir como base para a tomada de decisões judiciais, administrativas e legislativas.

Todavia, na referida discussão toma-se por base a tradicional ideia de direito subjetivo constituída do binômio direito-dever, a qual, como se verá a seguir, pode acabar por negar ao intérprete várias outras faces que um determinado direito pode assumir.

De fato, o binômio direito-dever, de tradição germânica, não esclarece várias situações nas quais o sujeito pode estar envolvido ao invocar um direito, tornando-o (o direito) uma palavra desnecessariamente ambígua (FERREIRA, 2007, p. 36).

Pretende-se, portanto, examinar outro enfoque dado à teoria do direito, especialmente à dos direitos subjetivos, e pontuar como esse novo enfoque pode servir para explicar vários fenômenos atrelados à noção de supremacia do interesse público sobre o privado.


3 A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO VISTA SOB O ENFOQUE DA TEORIA DOS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE WESLEY HOHFELD

3. A teoria dos conceitos fundamentais de Hohfeld

Wesley Hohfeld é um autor norteamericano do início do século XX que mostrou, ao longo de sua obra, uma permanente preocupação com a prática e com a interpretação do direito.

Assim, em seu artigo mais comentado, intitulado “Some fundamental legal conceptions as applied to judicial reasoning”, o autor buscou traçar uma formulação da ideia de direito subjetivo mais precisa e que pudesse conferir maior objetividade na intepretação jurídica cotidiana, atestando a existência de novos conceitos jurídicos fundamentais que servem para explicar as relações jurídicas.

Afirmava o autor que um dos maiores obstáculos para uma compreensão clara dos problemas jurídicos seria a suposição (expressa ou tácita) de que todas as relações jurídicas pudessem ser reduzidas a direito e deveres (HOHFELD, 1968, p. 45). Segundo o próprio autor, tal conceituação de direito seria insuficiente para explicar, por exemplo, “os interesses de pessoas coletivas”, afirmação esta que ressoa diretamente no âmbito do direito público.

Assim, o autor estabelece a criação de mais três categorias de relações jurídicas, a fim de emprestar mais precisão à análise do fenômeno do direito. Segundo ele, os direitos poderiam ser divididos em: claim-rights (pretensões ou direitos em sentido estrito), liberty-rights (privilégios), powers (poderes) e immunities (imunidades).

Para cada uma das categorias, o autor propôs um termo correlato e um termo oposto. Para os primeiros, tem-se a seguinte relação: pretensão correlato a dever; privilégio correlação à ausência de pretensão; poder correlato à sujeição; e imunidade correlata à incompetência. Quanto aos conceitos opostos, enumeram-se os seguintes: pretensão, em contraposição à ausência de pretensão; privilégio, em contraposição à dever; poder, em contraposição à incompetência; e imunidade, em contraposição à sujeição (FERREIRA, 2007, p. 38).

Para o autor, o direito que se opõe a dever jurídico é o direito em sentido estrito, isto é, uma pretensão. Para ele, os titulares de direitos violados pedem, através de ações judiciais, que o estado faça com que suas pretensões prevaleçam, exercendo, desse forma, um direito em sentido estrito. Privilégio, por sua vez, é uma posição na qual o sujeito se encontra sem dever algum para com a outra parte, isto é, é uma liberdade reconhecida e garantida pela lei dentro de uma relação jurídica. Poder representa, a seu turno, uma situação na qual o sujeito pode modificar algum elemento da relação jurídica independemente da vontade da outra parte (a exemplo do poder dos indivíduos de alienar sua propriedade). Imunidade, por fim, constitui a situação na qual o indivíduo se encontra protegido da ingerência de outrem na relação jurídica (FERREIRA, 2007, p. 45 e ss).

Vejamos, portanto, como tais conceitos podem ser aplicados à noção de supremacia do interesse público sobre o privado.


3.2 A supremacia do interesse público sobre o privado e as relações jurídicas entre o Estado e os particulares

Como visto, segundo Hohfeld, os direitos se apresentam no sistema jurídico de diversas formas, o que dificulta a compreensão do que efetivamente se dá em uma relação jurídica.

Ocorre que, ao se observar mais detidamente apenas os exemplos mencionados no tópico anterior, referentes às formas como se daria a citada supremacia do interesse público sobre o particular na legislação e doutrina brasileiras, pode-se verificar a existência marcante de uma modalidade específica de direitos, de acordo com o sistema de Hohfeld, titularizados pelo Estado: os powers.

De fato, no tópico anterior, foram analisados as normas que disciplinariam a desapropriação; a tributação; o exercício do poder de polícia; a intervenção estatal no domínio econômico e a presença de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos.

Nesses grandes grupos de instituições jurídicas, vê-se que se destacam, em face do Estado, os direitos considerados como powers, isto é, isto é, faculdades de produzir determinados efeitos jurídicos em relação aos particulares, inserindo-o em uma situação jurídica, a despeito de sua vontade.

O Estado, por exemplo, ao exigir e cobrar um tributo, possui o direito-poder de constituir o seu crédito em dívida ativa independentemente da aquiescência do contribuinte, cobrando-o judicialmente mediante processo executivo especial (rito da execução fiscal).

Quando se utiliza do poder de polícia, o Estado pratica atos autoexecutórios, como os referentes à aplicação de penalidades, que independem da vontade dos particulares, exercendo, da mesma forma, powers.

Na desapropriação, o traço marcante e distintivo é o da ausência de intervenção do particular no processo expropriatório (que ocorre por interesse público ou social), cabendo-lhe apenas discutir o preço a ser pago, traço característico do exercício de um direito-poder titularizado pelo Estado.

Na intervenção estatal na economia, da mesma forma, o Poder Público pratica atos que interferem nas relações negociais sem que os particulares tenham qualquer ingerência, a exemplo do controle de preços, caracterizando, mais uma vez, direitos enquadrados como powers.

Por fim, nas cláusulas exorbitantes nos contratos, percebe-se a possibilidade de o Estado praticar atos que independem da vontade do particular e que podem lhe ser prejudiciais, a exemplo da possibilidade de alteração e rescisão unilateral do acerto ou a assunção do objeto contratado, utilizando-se equipamentos e pessoal do particular para a execução do serviço.

Vê-se que abundam os exemplos de poderes (powers), no sentido hohfeldiano, exercidos pelo Estado quando em relações jurídicas com particulares.

Daí poder se concluir que, intrinsicamente à noção de supremacia do interesse público sobre o particular, existe a ideia do exercício, pelo Estado, de direitos subjetivos com características de powers, posto que estes permitem a modificação da situação jurídica da outra parte da relação jurídica independentemente de sua aquiescência.

Prosseguindo nesta linha de raciocínio, tem-se que, quanto mais powers forem conferidos ao Estado pelo sistema jurídico (normas constitucional e infraconstitucionais), mais forte será a noção de supremacia de interesse público sobre o particular que se verificará na praxe jurídica.

E, de fato, quando se utiliza, no discurso jurídico, a ideia de supremacia do interesse público sobre o particular, seja no âmbito judiciário (para julgar determinado caso), no legislativo (produzir determinada norma legal) ou executivo (editar determinado ato administrativo), o que se busca é afirmar que, na relação jurídica estabelecida entre o particular e o Estado, este último detém a capacidade de agir, de atuar, independentemente da vontade da outra parte, e isto se dá, mais das vezes, por meio do exercício de powers.

Com efeito, pela sucinta análise histórica que se iniciou neste artigo, já se observa que a própria noção de supremacia do interesse público por muitas vezes se confundiu com a ideia de supremacia do próprio Estado, dada a confusão existente entre o “público” e o “estatal”, mormente no paradigma do Estado Social.

No antigo regime o Estado se confundia com o próprio governante e detinha poder absoluto, poder este que se minimiza durante o paradigma do Estado Liberal, voltando a ganhar força no Estado Social.

Ora, o engrandecimento do papel do Estado se reflete justamente no maior arcabouço de competências que lhe são atribuídas, aumentando, por conseguinte, a gama de direitos subjetivos que prestigiem seu poder de alterar relações jurídicas dos indivíduos a despeito de sua vontade, a exemplo da concepção de power que agora se discute.

Conclui-se, assim, que a noção de supremacia do interesse público sobre o particular encontra nítida relação com a quantidade de regras que atribuem ao Estado direitos subjetivos que Hohfeld classificaria como sendo powers, isto é, que admitem a alteração unilateral da relação jurídica.


3.3 Em contraposição aos poderes estatais, os direitos fundamentais conferem imunidades aos indivíduos

Imunidade ou Immunity, para Hohfeld, é um conceito correlato à incompetência (ausência de poder). Assim, detém uma imunidade aquele sujeito que não se encontra sujeito a ter sua relação jurídica afetada por simples ato da outra parte, sendo, portanto, a “liberdade que um indivíduo possui de não sofrer o controle de outrem, sendo que este é detentor de um poder na relação jurídica” (FERREIRA, 2007, p. 60).

Tem-se, assim, que, em contraponto à atribuição de poderes ao Estado, a deferência ou o reconhecimento de direitos subjetivos do tipo immunities para os particulares funciona como uma espécie de proteção à massiva quantidade de powers invocados pelo Estado, em prol do interesse público.

Assim, quanto maior a possibilidade de se reconhecer imunidades aos particulares, menor será a noção de supremacia do interesse público no sistema jurídico.

No cenário brasileiro, tais imunidades podem ser apontadas pela interpretação dos direitos fundamentais.

De fato, o paradigma do Estado Democrático de Direito é marcado por uma significativa valorização dos direitos fundamentais, na medida em que estes representam a substantivação, no âmbito jurídico, do princípio da dignidade da pessoa humana, norteador dos regimes democráticos.

Segundo Ingo Sarlet (2005, p. 70-71), os direitos fundamentais, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais, integram uma espécie de núcleo substancial das decisões básicas próprias de um Estado democrático e têm um papel especial de materializar valores básicos como a igualdade, a liberdade e a justiça, em plena oposição a ideais totalitários e ditatoriais de regimes passados. Funcionam, assim, como um fundamento funcional da ordem democrática e, neste sentido, servem-lhe como parâmetro da legitimidade.

Importante destacar que os direitos fundamentais não devem ser considerados benesses ou favores do Estado, mas, muito antes disso, constituem a própria razão de ser do regime democrático. Nesse sentido, Ricardo Schier (2007, p. 223) aduz que um Estado democrático “legitima-se e justifica-se a partir dos direitos fundamentais e não estes a partir daquele. O Estado gira em torno do núcleo gravitacional dos direitos fundamentais”.

No Brasil, os direitos fundamentais passaram a gozar de grande prestígio com o texto da Constituição Federal de 1988, não sendo desarrazoada a afirmação de que, a despeito de possíveis críticas ao modelo implementado, os direitos fundamentais vivem o seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, ao menos em sua feição normativa (SARLET, 2005, p. 80).

Os direitos fundamentais são também direitos subjetivos, e, nessa acepção, permitem que os particulares invoquem direitos enquanto immunities. Afirma textualmente Konrad Hesse que os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos, protegem o indivíduo dos poderes estatais, o que se faz necessário ainda que se trate de um estado democrático:

Como direitos do homem e do cidadão, os direitos fundamentais são, uma vez, direitos de defesa contra os poderes estatais. Eles tornam possível ao particular defender-se contra prejuízos não autorizados em seu status jurídico-constitucional pelos poderes estatais no caminho do direito. Em uma ordem liberal constitucional são necessários tais direitos de defesa, porque também a democracia é domínio de pessoas sobre pessoas, que está sujeito às tentações do abuso de poder, e porque poderes estatais, também no estado de direito, podem fazer injustiça (HESSE, 1998, p. 235, grifo nosso).

Para tanto, amplo é o leque de direitos fundamentais que conferem imunidades aos indivíduos, principalmente os que considerados direitos de defesa ou de primeira geração, como os direitos relativos à liberdade, à vida, à propriedade, à manifestação, à expressão, ao voto, etc. É este o exemplo dado por Alon Harel:

Consagrados direitos constitucionais frequentemente incluem imunidades, que tolhem o poder legislativo dos poderes que, de outra maneira, manteriam. A legislatura que é inabilitada a tal poder, sujeita-se a uma “incapacidade”. Por exemplo, as pessoas têm direito à liberdade de expressão, o que impede o poder legislativo de editar leis que eliminem a liberdade de discurso.[2] (HAREL, 2003, p. 7)

Constata-se, portanto, que os indivíduos podem invocar, partindo especialmente dos direitos fundamentais assentes no ordenamento jurídico, immunities para contrapor os poderes arvorados pelo Estado ao utilizar a ideia de supremacia do interesse público sobre o privado.


3.4 Conveniência do estudo da eventual supremacia do interesse público a partir do contraponto entre poderes estatais e imunidades dos indivíduos

Partindo dos conceitos já expostos neste trabalho, tem-se que a supremacia do interesse público sobre o privado é uma evolução histórico dos próprios poderes do Estado, os quais mudam de figura com a chegada do Estado Moderno e, no paradigma do Estado Democrático de Direito, começam a ser revisitados.

Quando o Estado invoca a supremacia do interesse público sobre o particular, busca-se, em verdade, afirmar a existência de um direito estatal qualificável como power, na acepção de Hohfeld, isto é que permite a alteração unilateral de relações jurídicas.

Vê-se, assim que, não é a existência de prerrogativas em favor da Administração Pública nas leis e na Constituição Federal que comprovam a existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Na verdade, é a interpretação dessas prerrogativas como powers, isto é, como direitos do Estado a alterar unilateralmente as relações jurídica que este possui com os particulares, que ensejam a utilização da máxima da supremacia do interesse público.

Assim, diante de uma situação de conflito, propõe-se que seja realizado um estudo analítico do direito invocado pelo Estado para averiguar se há, em contraposição a esse direito, uma imunidade (immunity) atribuída ao particular, na forma proposta por Hohfeld.

Ao minudenciar o tipo de direito que é invocado em determinada relação jurídica, aclara-se a forma como o problema pode ser resolvido, inclusive ao se perceber que o Estado, mesmo invocando a supremacia do interesse público sobre o particular como cláusula geral do Direito Administrativo, acaba por violar immunities dos particulares, o que não pode ser admitido.


CONCLUSÃO

O paradigma do Estado Democrático de Direito é caracterizado pelo fim da dicotomia entre público e privado, existente à época dos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social. De fato, referido paradigma modela um Estado que não se pretende totalmente inerte em relação à vontade dos indivíduos, nem tampouco paternalista e visionário, a ponto de podar a liberdade de agir das pessoas. O direito no Estado Democrático se caracteriza por ser construído por meio da participação dos interessados e por ser alentado por um ideal de justiça material, afastando, assim, a antiga dicotomia entre as noções de público e privado, que passam a ser não mais opostas, mas sim complementares.

Nesse contexto, contesta-se a noção de que há um princípio de Direito Administrativo que impõe a supremacia do interesse público sobre o privado, tido até bem pouco tempo como ponto pacífico na doutrina brasileira e elevado ao status de fundamento do regime jurídico-administrativo.

De fato, em que pese o surgimento de um movimento de crítica à noção de supremacia do interesse público sobre o privado, vários autores de renome do direito administrativo, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Mello, apontam, ainda hoje, para a existência, no ordenamento jurídico brasileiro, de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado de natureza axiomática, isto é, que prescinde de comprovação, constituindo um fundamento do regime jurídico-administrativo e que deve sempre orientar a atuação dos poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário).

De acordo com essa linha de pensamento tradicional, o tratamento desigual conferido por certos dispositivos constitucionais e legais ao Poder Público em desfavor dos particulares decorre do referido princípio da supremacia do interesse público, a exemplo dos institutos da desapropriação, do exercício do poder de polícia, das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, dentre outros.

Todavia, ao se observar o fenômeno com base na teoria dos conceitos fundamentais proposta por Wesley Hohfeld, acaba-se por constatar que, ao invocar a supremacia do interesse público sobre o particular, pretende-se, na realidade, afirmar a existência de powers, isto é, de direitos subjetivos que conferem a uma parte o controle sobre a relação jurídica, afetando a esfera jurídica da outra parte independentemente da sua aquiescência.

Assim, quanto mais powers se atribui ao Estado, mais forte será a noção de supremacia do interesse público sobre o particular, uma vez que o interesse público, na maioria das vezes, é um conceito jurídico indeterminado utilizado pelo Estado na sua atuação.

Em contraposição aos powers, segundo Hohfeld, há direitos que representam imunidades ou immunities. Tais direitos subjetivos, que são embasados em grande parte por direitos fundamentais, podem ser invocados pelos particulares para se contraporem aos poderes estatais.

Dessa forma, entende-se que o estudo analítico das relações jurídicas, na forma proposta por Hohfeld, confere instrumentos para o intérprete averiguar se os direitos subjetivos postos em conflito se tratam, na realidade, de conceitos jurídicos contrapostos, especialmente se os invocados em prol do interesse público são powers e se os aduzidos pelos particulares são immunities. Partindo dessa análise, facilita-se a resolução dos conflitos de interesses ao tratar de forma mais coerentes os diversos tipos de direitos invocados, sabendo de antemão quais são as consequências de cada uma delas para a relação jurídica.


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Notas

  1. A exemplo de Alexandre Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila, Paulo Ricardo Schier e Marçal Justen Filho.
  2. Enshrined constitutional rights often include immunities, which deprive the legislature of powers, which it would otherwise have. The legislature, which is incapable of exercising power, is subject to a “disability”. For instance, one has an immunity-right to freedom of expression, which bars the legislature from enacting legislation that extinguishes one’s liberty to speak.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Costa. A supremacia do interesse público sobre o privado e os conceitos jurídicos fundamentais de Wesley Hohfeld. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3069, 26 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20509. Acesso em: 29 mar. 2024.