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O problema da discricionariedade judicial.

Existe uma única resposta correta para os casos difíceis?

O problema da discricionariedade judicial. Existe uma única resposta correta para os casos difíceis?

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Alinham-se subsídios para enfrentar problemas da discricionariedade judicial e da resolução dos casos difíceis – colisões entre princípios constitucionais, por exemplo – a partir de uma teoria da justificação judicial capaz de suprimir o déficit de racionalidade do discurso jurídico.

RESUMO

O problema da colisão entre princípios constitucionais desponta como uma das mais importantes e inquietantes questões a demandar respostas pelo modelo constitucionalista de discurso jurídico. Em um ordenamento extremamente complexo como o nosso, marcado por uma Constituição prolixa e aberta, garantidora de um amplo catálogo de princípios, o fenômeno da colisão entre princípios constitucionais faz parte da prática comum do Direito, o que exige a estruturação de mecanismos hábeis à resolução dessas contraditoriedades normativas. Aqui se pretende, em breves considerações, alinhar subsídios teóricos ao enfrentamento dos problemas da discricionariedade judicial e da resolução dos casos difíceis – colisões entre princípios constitucionais, por exemplo – a partir de uma teoria da justificação judicial capaz de suprimir o déficit de racionalidade do discurso jurídico.

Palavras-Chave: Discricionariedade judicial, casos difíceis, colisão entre princípios constitucionais, única resposta correta, justificação judicial.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O modelo teórico-filosófico que se vem consolidando em contrapartida ao positivismo jurídico reinante até a primeira metade do século passado, chamado de pós-positivismo [01] ou novo constitucionalismo [02], está fundado, preponderantemente, nas idéias de supremacia da Constituição, de força normativa dos princípios constitucionais e eficácia dos direitos fundamentais, um modelo necessariamente informado por uma estreita relação entre Direito, moral e política. A superação do positivismo jurídico impõe a revisão de inúmeras teorias e institutos jurídicos que, embora servissem ao modelo liberal de Estado de direito, atualmente não se sustentam no seio do novo constitucionalismo: a teoria liberal da separação de poderes, a própria noção de soberania, a postura da Administração Pública frente ao Poder Judiciário, o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa, do mérito administrativo, de políticas públicas e, o objeto central deste estudo, a resposta aos chamados casos difíceis, sobretudo aqueles decorrentes das colisões entre princípios constitucionais.

No seio do novo constitucionalismo, os princípios jurídicos são alçados à condição de verdadeiras espécies normativas. Servem como base de sustentação lógica e axiológica a todo o ordenamento, na medida em que reforçam as idéias de ordem e unidade sistemática, funcionando como vias de inter-relação entre o Direito e a moral. Os princípios devem ser considerados como as janelas por onde a moralidade é irradiada para dentro do ordenamento jurídico, um canal aberto ao diálogo constante entre os discursos prático e jurídico.

Essa é a função primordial dos princípios constitucionais: aproximar o Direito das questões práticas, tanto informando a sociedade a partir das diretrizes normativas que sustentam o ordenamento jurídico, quanto nutrindo o sistema com os elementos práticos da realidade social. A idéia de dupla função dos princípios constitucionais garante que o Direito não se afaste demasiadamente da complexa e dinâmica realidade social, permitindo, por outro lado, que não se torne refém das intempéries e sazonalidades axiológicas da sociedade. Indubitavelmente, o Direito não pode prescindir de seu caráter básico – a idéia de normatividade.

A teoria dos princípios pretende resolver um dos problemas centrais do modelo de sistema jurídico baseado em regras, a questão das lacunas de abertura e incompletude sistemática. De outro vértice, não se pode negar que, muito embora resolva os problemas centrais do positivismo jurídico, sua aplicação enseja um inegável déficit de indeterminação: qual dos princípios reconhecidos, explícita ou implicitamente, pelo ordenamento jurídico deve ser aplicado na solução de determinado caso prático?

O problema da colisão entre princípios constitucionais desponta como uma das mais importantes e inquietantes questões a demandar respostas pelo modelo constitucionalista de discurso jurídico. Em um ordenamento extremamente complexo como o nosso, marcado por uma Constituição prolixa e aberta, garantidora de um amplo catálogo de princípios, o fenômeno da colisão entre princípios constitucionais faz parte da prática comum do Direito, o que exige a estruturação de mecanismos hábeis à resolução dessas contraditoriedades normativas.

Aqui se pretende, em breves considerações, alinhar subsídios teóricos ao enfrentamento dos problemas da discricionariedade judicial e da resolução dos casos difíceis – colisões entre princípios constitucionais, por exemplo – a partir de uma teoria da justificação judicial capaz de suprimir o déficit de racionalidade do discurso jurídico.

Não se está assegurando, vale frisar, que toda situação de contradição entre princípios jurídicos caracteriza um caso prático de difícil solução. Há casos em que, muito embora seja possível defender a aplicação de diferentes princípios a apontar soluções jurídicas contraditórias, a carga argumentativa de um princípio é consideravelmente reduzida, exigindo uma menor complexidade do raciocínio argumentativo para justificar seu afastamento. Por outro lado, no mais das vezes, as situações de colisão entre princípios constitucionais exigem um processo argumentativo que nem sempre – ou quase nunca – aponta uma única solução correta. A legitimação da decisão judicial que aplica uma dentre uma pluralidade de soluções corretas demanda uma sólida teoria da justificação jurídica.

Ainda que não se possa, neste momento, apresentar uma proposta de teoria da justificação judicial que pretenda dar conta dessa problemática, isso já foi intentado alhures (CRISTÓVAM, 2011, passim). O discurso jurídico racional exige a correção das razões das decisões judiciais, quando da resolução de colisões entre princípios constitucionais. A pretensão de correção da argumentação jurídica decorre da própria noção de racionalidade prática, determinando que as questões práticas devam ser decididas a partir de uma pretensão de verdade lato sensu (correção). Essas idéias são centrais ao modelo teórico argumentativo de ALEXY, que defende o discurso jurídico (argumentação jurídica) como um caso especial do discurso prático geral (argumentação moral), com base em uma teoria procedimental da argumentação jurídica. Procedimental no sentido de que a adequação de uma norma – a correção de uma afirmação normativa – está relacionada à possibilidade de encarnar o resultado de um determinado procedimento ou método discursivo (ALEXY, 2001, passim).

Este trabalho limitar-se-á ao enfrentamento das problemáticas da unidade de solução correta para os casos difíceis e da discricionariedade judicial, apenas e modestamente no intento de oferecer subsídios preliminares à formação de uma teoria da justificação judicial.

Cabe, desde já, ponderar que dos autores aqui apresentados, somente DWORKIN defende a possibilidade de uma única solução justa para todos os casos práticos, vedada a discricionariedade judicial na decisão dos casos difíceis (DWORKIN, 1981, passim).

Entretanto, a tese dworkiniana da unidade de solução justa parece esbarrar em alguns problemas de difícil solução e que devem ser levados a sério. Destinada a resolver a questão da discricionariedade judicial, sua teoria acaba fomentando-a, quando assegura a ausência de responsabilidade dos julgadores como criadores do Direito. Da mesma forma, tanto a textura aberta e imprecisa dos princípios jurídicos, como a inexistência de um procedimento capaz de justificar a decisão pela prevalência de determinado princípio como a única decisão correta, conspiram contra a tese forte defendida pelo autor.

Mesmo assim, muito embora seja difícil ou até impossível alcançar a única resposta correta, ALEXY a defende como uma idéia reguladora do processo jurídico argumentativo. Como idéia reguladora, o conceito de correção não pressupõe a existência de uma única resposta correta para cada pergunta prática. Até porque, essa unidade somente poderia ser alcançada em condições ideais do discurso, que só podem ser atingidas de modo aproximado (ALEXY, 2001, p. 311).


2. UM CONCEITO PRELIMINAR À EXPRESSÃO "CASOS DIFÍCEIS"

A questão da unidade ou pluralidade de soluções justas e corretas aos casos difíceis desde há muito persegue a metodologia do Direito e, principalmente, a teoria da argumentação jurídica. A estrutura de um método racional que garanta a certeza da resposta, a partir de um determinado número de operações, tem sido empreendida e justificada de diferentes formas, sem que se tenha alcançado um resultado satisfatório.

Antes de avançar à análise de algumas propostas de abordagem dessa complexa problemática, é necessário determinar um conceito de casos difíceis, com base no qual se possa atestar a sua existência. Por outro lado, há que se admitir que o termo "caso" é empregado de forma ambígua e plurissignificativa no discurso jurídico, o que aconselha sua prévia definição.

O termo "caso" pode ser definido a partir de uma distinção entre um sentido amplo e um sentido estrito. Em sentido lato, os casos jurídicos são problemas práticos que envolvem certa pessoa (x), que se encontra em determinada circunstância (C) e pretende alcançar determinado resultado (R). Neste sentido, a primeira vista, os casos jurídicos podem apresentar várias soluções disponíveis, ou nenhum; a situação inicial dificilmente é passível de descrição integral; as regras aplicáveis à solução do caso podem ser complexas, vagas e ambíguas; e, sua solução pode ser influenciada por fatores morais, políticos e econômicos [03].

Os casos jurídicos stricto sensu podem ser considerados como aquelas situações nas quais interessa saber a qualificação deôntica de uma dada ação. Essas ações para as quais se estabelece a qualificação normativa integram o que se pode convencionar de universo de ações (UA), em um contexto determinado de universo do discurso (UD). Os casos em sentido estrito se relacionam com o âmbito fático de um problema e devem ser analisados a partir das circunstâncias a serem consideradas para sua resolução [04].

Mesmo com base nessas considerações, é difícil estabelecer quando um caso deve ser considerado difícil. Isso depende inclusive das concepções de sistema jurídico tomadas como ponto de partida, resultando em uma pluralidade de situações possíveis: quando não há resposta correta para o caso; quando os enunciados normativos são vagos e informados por uma textura jurídica aberta; nos casos de incompletude (lacunas) ou inconsistência do Direito; quando não há consenso na comunidade de juristas sobre a resposta; quando o caso não é comum ou solucionado pela aplicação mecânica da lei; naqueles problemas em que há conflito entre normas jurídicas, o que exige o sopesamento mediante argumentos não dedutivos; quando a resolução do caso exige um raciocínio jurídico baseado em argumentos de princípio; naqueles problemas em que a solução requer necessariamente juízos morais (NAVARRO, 1993, p. 252-53).

Há que se atentar, ainda, para a relação entre os casos difíceis e a dificuldade subjetiva dos julgadores para decidi-los. Neste sentido, pode-se partir de uma definição objetiva do que sejam casos difíceis, sem descuidar da existência de casos logicamente fáceis, com a possibilidade de simples subsunção do fato à norma, mas axiologicamente difíceis, quando existem razões morais que justifiquem a não aplicação da solução lógico-dedutiva. Isso conduz a uma discussão muito complexa, mas que aqui não será empreendida, sobre a obrigatoriedade do juiz de aplicar a lei, mesmo que injusta.

Procurando identificar em que sentido se pode qualificar um caso como difícil, ATIENZA se refere a quatro tipos de problemas jurídicos: problemas de relevância, quando há dúvidas sobre a norma aplicável ao caso; problemas de interpretação, quando não se tem certeza como deve(m) ser entendida(s) a(s) norma(s) aplicável(eis) ao caso, ou porque há insuficiência de informação (não é possível interpretar a norma como aplicável) ou porque há excesso de informação (a norma possibilita interpretações incompatíveis entre si); problemas de prova, quando a dúvida se remete à existência ou não do fato alegado; problemas de classificação, quando não se tem certeza se um fato provado está sob o âmbito de aplicação do enunciado normativo (ATIENZA, 1994, 63).

Aqui, a concepção de casos difíceis será, essencialmente, informada pela problemática da interpretação, sem descuidar das questões de relevância e classificação. Essas questões têm relação direta com a colisão entre princípios constitucionais, idéia que serve como ponto de partida para a definição de casos difíceis ora empregada.

Apenas para informar a problemática adiante enfrentada, vale frisar que o raciocínio jurídico admite considerar a expressão "única resposta correta" a partir de dois diferentes prismas: do ponto de vista interno, pode-se entendê-la como resposta logicamente adequada com relação a um conjunto de premissas e regras de derivação (inferência lógica); do ponto de vista externo, entende-se como a decisão que harmoniza satisfatoriamente pretensões antagônicas (construção da decisão jurídica). Como se sabe, essa dualidade exige diferentes estruturas de justificação (BARRAGÁN, 1990, p. 63).


3. A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL NO PENSAMENTO POSITIVISTA DE HANS KENSEN E HERBERT L. A. HART

Não se pode negar que as contribuições de KELSEN e HART representam as duas mais influentes concepções do positivismo jurídico contemporâneo, com indelével marca no estudo da metodologia jurídica no século XX. Aqui não serão apresentadas todas as principais teses destes autores, mas tão-somente suas contribuições acerca da problemática da discricionariedade judicial e da unidade de solução correta para os casos difíceis.

O tema é analisado por KELSEN quando discute a questão da interpretação, que é definida como "uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior". Trata-se, portanto, do processo de fixação de sentido das normas a serem aplicadas, "o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto" (KELSEN, 1994, p. 387).

Essa relação entre os escalões superior e inferior do ordenamento jurídico – o processo de aplicação do Direito – é marcado por uma relativa indeterminação. As normas do escalão superior não conseguem vincular integralmente o ato de sua aplicação, remanescendo ao aplicador uma margem, maior ou menor, de livre apreciação ou discricionariedade, que é parte do Direito e deve ser exercida dentro dos limites de competência traçados. Desde que a interpretação da norma esteja dentro da moldura normativa estabelecida, há que se considerá-la conforme o ordenamento jurídico.

A indeterminação do ato de aplicação do Direito pode tanto ser intencional, expressamente disposta pela norma superior, ou não-intencional, como ocorre quando o enunciado normativo contém termos ou expressões plurissignificativos, vagos ou elásticos. Intencionalmente ou não, a indeterminação própria do processo de aplicação do Direito deixa ao seu aplicador a discricionariedade para decidir por uma dentre uma pluralidade de possibilidades de aplicação.

Neste sentido, pode-se concluir com KELSEN que "a decisão do magistrado será sempre uma decisão política, pois, assim como o legislador age politicamente ao elaborar uma lei que complemente a Constituição, o magistrado, ao manifestar sua decisão, estará, num patamar inferior, implementando a lei" (VIEIRA, 1999, p. 190).

Com base nessas considerações, KELSEN sustenta que a interpretação de uma lei não conduz, necessariamente, a uma única solução correta, mas possivelmente a várias soluções, cumprindo ao aplicador da lei escolhê-la discricionariamente. Além do caráter declaratório, a função jurisdicional possui necessariamente um caráter constitutivo, como verdadeiro espaço de criação do Direito. Assim, uma sentença judicial não deve ser entendida como a norma individual, mas apenas "uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral" (KELSEN, 1994, 390-91).

A problemática da discricionariedade judicial na resolução dos casos difíceis também foi abordada por HART, que procurou estabelecer uma via conciliadora entre as concepções formalistas e realistas. Hart alega que, diferentemente do que sustentam os formalistas, as decisões judiciais estão sujeitas a fatores psicológicos, políticos e ideológicos, o que desautorizaria uma idéia de interpretação unívoca da lei. Por outro lado, naqueles casos repetitivos e que não exigem uma ação intelectual do magistrado, a decisão seria tomada de maneira quase automática, sem grandes exercícios interpretativos, como defendem os formalistas (HART, 1996, p. 137 e ss.).

O problema surge com aqueles casos em que a lei é omissa ou confusa, demandando um considerável e complexo exercício interpretativo por parte dos juízes, exercício informado por certo grau de discricionariedade. Assim, nos casos difíceis certamente algumas das considerações dos realistas fazem sentido (VIEIRA, 1999, p. 191).

Discutindo acerca do déficit de incerteza que decorre da aplicação da linguagem geral aos casos concretos, HART sustenta que em "todos os campos de experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza humana, quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer". Assim, haverá "casos simples que estão sempre a ocorrer em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são claramente aplicáveis… mas haverá casos em que não é claro se se aplicam ou não" (HART, 1996, p. 139).

Nestes últimos, em que o raciocínio meramente silogístico não é suficiente, abre-se caminho para a atividade discricionária do juiz, que deverá escolher dentre as opções de interpretação oferecidas pela norma, que servem de limite e parâmetro à discricionariedade judicial. A indeterminação é constitutiva do próprio Direito, que se vale de termos e conceitos multisignificativos, de textura aberta. Esses problemas de indeterminação e abertura lingüística do Direito devem ser completados pelos tribunais, a partir das circunstâncias de cada problema prático.

Nessas zonas de penumbra e incerteza do Direito, o julgador desempenha uma função de produção normativa. A discricionariedade judicial consiste basicamente em escolher um dentre a pluralidade de sentidos que podem ser atribuídos ao enunciado normativo em questão. A textura aberta das normas confere ao juiz a possibilidade de decidir em um ou outro sentido, desde que nos limites do ordenamento jurídico. Não se pode, por outro lado, confundir discricionariedade com arbitrariedade. O exercício de interpretação de uma disposição normativa imprecisa não admite qualquer interpretação. Ainda que atuando discricionariamente, o juiz está limitado pelo conjunto do sistema jurídico.

A partir dessas considerações, HART não defende a idéia de unidade de soluções corretas para os casos difíceis, que decorrem de problemas de omissão ou obscuridade da lei. Para esses casos que se encontram na penumbra, HART dá razão aos realistas e admite que as decisões judiciais são discricionárias.


4. A TESE DE RONALD DWORKIN ACERCA DA ÚNICA RESPOSTA CORRETA

As teses positivistas de KELSEN e HART de que, quando chamado a decidir um caso considerado difícil, o juiz disporia de discricionariedade para decidi-lo em favor de quaisquer das partes envolvidas no processo, é frontalmente combatida por DWORKIN. Não se admite que o juiz introduza novos direitos para serem aplicados, retroativamente, ao problema em questão. Mesmo nos casos difíceis, quando não há claramente uma resposta prevista pelo ordenamento, é dever do juiz descobrir no sistema jurídico quais os direitos das partes, sem inventar retroativamente direitos novos. O juiz não pode atuar como legislador (DWORKIN, 1981, p. 05).

Na exposição da teoria forte da unidade de solução correta, DWORKIN parte do estabelecimento de uma tese dos direitos em que distingue argumentos de princípio (arguments of principle) e argumentos de política (arguments of policy). Estes fundamentam uma decisão política, sob a justificativa de que contribuem à satisfação ou proteção de algum objetivo da sociedade como um todo. Já os argumentos de princípio fundamentam a decisão, sob a justificativa de que a mesma respeita ou garante algum direito individual ou coletivo (DWORKIN, 1981, p. 07).

Neste sentido, DWORKIN defende que os indivíduos possuem direitos anteriores e independentes do ato de adjudicação judicial. Eles estão em algum lugar do ordenamento jurídico, no conjunto de normas, princípios e diretrizes políticas, cabendo ao julgador encontrá-los a partir de um processo de construção argumentativa da decisão judicial. Não a partir da criação de direito novo, mas descobrindo o direito previamente estatuído. O juiz não possui discricionariedade para tomar a decisão em determinado sentido, devendo sempre buscar a solução apontada pelo ordenamento jurídico. Como visto, o autor está preocupado em estabelecer uma teoria da decisão judicial.

Não se pode olvidar, por outro lado, que uma análise mais apurada do pensamento dworkiniano permite situar a problemática de saber se os juízes são criadores ou intérpretes do Direito como uma falsa questão. Os juízes são ambos e nenhum.

Quando DWORKIN defende que o juiz não possui discricionariedade para decidir acerca de determinado problema levado a sua jurisdição, está fazendo referência a um sentido forte de discricionariedade. A este se opõe um sentido fraco ou mitigado, pelo qual em determinados casos exige-se certo grau de discernimento na aplicação de certas normas jurídicas. A crítica à tese positivista da discricionariedade judicial se refere, certamente, àquele sentido forte de discricionariedade (DWORKIN, 1989, p. 84-86).

A tese dos direitos de DWORKIN está respaldada por uma teoria forte dos princípios, que garante sua prevalência sempre que postos em contradição com as diretrizes políticas. Assim, cabe ao julgador encontrar a única resposta certa, inclusive para os casos difíceis, que não é algo previamente dado pelo sistema jurídico, podendo ser extraído a partir de um procedimento argumentativo norteado, essencialmente, pela teoria forte dos princípios. Essa tarefa de descobrimento da única resposta justa para todos os problemas práticos, certamente exige um juiz extremamente qualificado e dono de um aguçado poder de discernimento.

O projeto teórico dworkiniano não está pautado por um modelo de interpretação semântica, mas sim pragmática dos princípios à luz de um caso concreto e singular. A única decisão correta ocorre em face de um caso determinado, marcado por um contexto histórico-social. Desta forma, a tese da unidade não está respaldada por um procedimento atemporal que permita conduzir à decisão correta em todos os problemas práticos, até porque a integridade opera caso a caso.

Para tentar resolver essa problemática, DWORKIN estabelece seu conhecido modelo ideal de julgador, o Juiz Hércules, dotado de habilidades, aprendizagem, paciência e agudeza intelectual sobre-humanas, um modelo de juiz onisciente, que conhece o ordenamento jurídico por completo e dispõe de todo tempo necessário para encontrar a única solução correta. O sistema jurídico em que o Juiz Hércules atua não possui lacunas, sendo construído um esquema de princípios abstratos e concretos capazes de proporcionar uma justificação coerente a todos os casos julgados, bem como para as disposições constitucionais e infraconstitucionais (DWORKIN, 1981, p. 44-61).

O Juiz Hércules, onisciente e sobre-humano, sabe que não possui legitimidade para criar normas, sabe também que as partes em conflito buscam uma resposta baseada em um direito próprio e pré-existente. Sua tarefa, portanto, consiste em "desenvolver a melhor e mais coerente teoria que explique e justifique o Direito explícito e, de modo particular, que integre e compreenda todas as exigências que derivam do sistema constitucional" (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 111).

A confiança de DWORKIN na unidade de solução justa está assentada, além da teoria forte dos princípios, na estrutura peculiar do raciocínio jurídico. Como sustenta o autor, as questões levadas pelas partes à apreciação jurisdicional são mutuamente excludentes, deixando ao julgador somente dois caminhos, reconhecer o direito a uma ou outra das partes. As demandas colocadas ao julgador discutem se um contrato é válido ou não, se uma pessoa é responsável por determinado fato ou não, se houve crime ou não. Não existe uma terceira via, uma resposta intermediária. Todas as pretensões levadas ao juiz devem ser devidamente justificadas, com os argumentos indicativos da existência do direito subjetivo da parte (DWORKIN, 2001, p. 178).

A concepção dworkiniana pode ser melhor entendida a partir da sua tese da fusão, ou quase uma relação de indiferenciação, entre Direito, moral e política. Seu pensamento é marcado por uma concepção objetivista da moral, um modelo de objetivismo axiológico capaz de garantir a completude do Direito, com base em uma idéia de integridade. Para aqueles casos não alcançados pelas normas institucionalizadas explícitas ou que não há claramente uma única solução justa, a moral surge como elemento garantidor da completude do ordenamento jurídico, estipulando um conjunto de princípios implícitos capazes de conduzir a decisão no caminho da única resposta correta. Portanto, mesmo nos casos mais difíceis, quando parece faltar qualquer resposta jurídica, o juiz está submetido ao ordenamento jurídico e deve encontrar a decisão a partir dos princípios explícitos ou implícitos.

O conjunto de princípios sempre deve prevalecer, inclusive quando em confronto com determinados interesses ou objetivos coletivos. O Juiz Hércules justifica sua decisão quando aplica os princípios explícitos ou implícitos em conformidade com os direitos subjetivos dos indivíduos, mesmo que sua decisão contrarie objetivos sociais expressamente estabelecidas. Os direitos subjetivos dos cidadãos devem prevalecer sobre as diretrizes políticas.

Essas concepções de DWORKIN vêm sendo muito mais refutadas que seguidas. Trata-se de uma tese que apresenta poucos pontos favoráveis e muitas objeções. Uma crítica pode ser norteada pela idéia de que suas concepções não servem para todos os sistemas jurídicos, mas somente para os substancialmente justos. Da mesma forma, em um sistema jurídico informado por uma infinidade de princípios explícitos e implícitos, a sua aplicação acarreta certa dose de discricionariedade ou eleição entre alternativas diferentes. Do ponto de vista semântico, tanto a textura aberta e imprecisa dos princípios, como a inexistência de critérios seguros para aferir o peso relativo de cada princípio que compõe o ordenamento, indicam a impossibilidade de defesa da tese da única resposta correta (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 122).

Há que se refutar, ainda, a carga ideológica que vem no bojo da tese da unidade, assegurando uma situação de ausência de responsabilidade dos julgadores como criadores do Direito, o que acaba fomentado a discricionariedade judicial. Pela tese de DWORKIN os juízes apenas descobrem e aplicam um Direito pré-existente, que não está limitado ao conjunto de normas jurídicas expressas, espraiando-se pelos confins da moral e da política, de onde o julgador extrai as razões justificadoras de sua decisão (PRIETO SANCHÍS, 1992, p. 123).

Pelo visto, a proposta de DWORKIN, baseada no alargamento das fronteiras do Direito estrito e no alcance dos limites da moral pela via dos princípios – o que garante a transformação do modelo lacunoso e impreciso do Direito em um sistema claro, completo e objetivo – parece suscitar vários problemas conceituais e até ideológicos. Por outro lado, essa versão forte da tese da única resposta correta, muito embora não tenha conquistado grande número de seguidores, certamente tem contribuído genuína e crucialmente para o debate dos problemas da discricionariedade e da correção das decisões judiciais.


5. A PROBLEMÁTICA NO PENSAMENTO DE AULIS AARNIO

A esta altura, faz-se sumamente relevante a análise do pensamento jurídico-filosófico de AARNIO, que ostenta lugar destacado na metodologia jurídica contemporânea, sobretudo a partir de seu modelo de justificação jurídica baseada na idéia de razoabilidade, o que se pode chamar de uma teoria social da justificação do Direito. Este autor tem oferecido uma contribuição impar à renovação da hermenêutica jurídica, além dos férteis contrapontos às propostas teóricas de DWORKIN e ALEXY [05].

Discutindo acerca do conceito de única resposta correta, AARNIO defende a prévia necessidade de se distinguir entre resposta final e resposta correta. Ora, qualquer sistema jurídico racional, informado pela idéia de Estado de direito, pressupõe a imprescindibilidade de que, em algum momento do processo jurídico, o sistema produza uma decisão aplicável a cada caso particular. Essa resposta final, não necessariamente se constitui na única correta, que implica certos critérios de correção formais e substanciais (AARNIO, 1995, p. 51).

Parece inquestionável que o conceito de única solução correta é ambíguo. Partindo dessa questão, AARNIO divide a noção em duas diferentes versões: a versão forte (DWORKIN), que defende a existência de uma única solução correta para cada caso concreto, solução esta que, por mais escondida que esteja, pode ser encontrada em algum lugar do ordenamento, exigindo a habilidade do juiz para tornar explícito o que está latente no sistema jurídico; a versão fraca ou mitigada (ALEXY), que aceita a existência da resposta correta, mas não concorda que ela possa ser sempre alcançada. O fundamento desta versão é principalmente ideológico, já que a busca pela única resposta correta serve como objetivo norteador da atuação do juiz e do jurista (AARNIO, 1990, p. 24).

AARNIO não segue nenhuma dessas correntes, defendendo que não se pode pretender a resposta correta no raciocínio jurídico, mas sim a resposta melhor justificada em um determinado momento. A explicação para sua tese parte da importância da justificação jurídica. O Estado de direito, sustenta AARNIO, garante um máximo de certeza jurídica para as partes no processo, caracterizando-se essa certeza jurídica, inclusive, como uma expectativa jurídica primária dos membros das sociedades democráticas. As sociedades modernas, desenvolvidas sob um modelo de Estado de bem-estar social, exigem uma concepção de justificação jurídica que afaste a arbitrariedade e a irracionalidade da autuação dos juízes. Exigem, portanto, respostas judiciais que possam ser justificadas de forma racional, a partir de argumentos apropriados (razões) (AARNIO, 1990, p. 25-26).

Mas o que se deve entender por razões apropriadas? Esta questão está visceralmente relacionada com a problemática da democracia e seu caráter de abertura e controle social. Em um Estado democrático de direito, o controle social exige que os tribunais justifiquem suas decisões, um processo de fundamentação baseado em razões apropriadas (substanciais), o que vai muito além da mera referência a textos jurídicos ou outras fontes formais do Direito (fontes autoritativas).

O problema da justificação dos casos difíceis tem relação direta com a perspectiva externa de fundamentação, a justificação das premissas empregadas na decisão. Essa questão deve ser analisada levando-se em conta que o discurso jurídico de justificação segue o modelo de argumentação racional, buscando o convencimento do auditório. Mas isso não garante o alcance de uma solução absolutamente correta. O que o discurso jurídico racional exige é a melhor argumentação possível às decisões, ou seja, a melhor justificação possível, a justificação ideal.

Partindo da discussão acerca dos modelos idéias de discurso e de justificação, AARNIO refuta a tese dworkiniana do Juiz Hércules. A objeção é a seguinte: se existissem dois ou mais Juízes Hercules, todos seres racionais, é possível que tomassem decisões contraditórias, mas igualmente bem justificadas? Como seria possível escolher a única solução correta? Dever-se-ia recorrer a um meta-Hércules? Isso levaria a um regresso ao infinito argumentativo (AARNIO, 1995, p. 62).

A fim de estabelecer seu conceito de justificação judicial dos casos difíceis, AARNIO remete à idéia de Comunidade Jurídica II, um conceito ideal que, da mesma forma que o Juiz Hércules, pretende medir "a racionalidade e a correção da interpretação jurídica. Ambos analisam a atividade judicial, porque nela se refletem de maneira mais clara as relações entre o Direito, a sociedade, as questões morais e políticas, e em torno delas giram as expectativas sociais de certeza e segurança jurídica" (DOBROWOLSKI, 2002, p. 114).

A Comunidade Jurídica I seria formada por todos os juristas profissionais e as demais pessoas envolvidas com os assuntos jurídicos – um auditório concreto que existe na prática jurídica. Já a Comunidade Jurídica II seria formada por todos aqueles que se comprometam com as regra e princípios da racionalidade discursiva – um auditório ideal. Mas se esta comunidade é ideal e nela todos os participantes podem usar as informações dadas sem nenhuma limitação específica, como é possível chegar a mais de uma resposta correta? É que o discurso jurídico é influenciado por valores (concepções morais) que podem ter implicação direta no raciocínio jurídico (AARNIO, 1990, p. 33-34).

Para tentar resolver o problema dos casos difíceis e da pluralidade de soluções corretas, AARNIO sustenta que uma resposta à questão pode ser dada a partir do princípio da maioria. Mesmo ante os riscos do princípio majoritário e a questão dos direitos das minorias, sustenta-se que a decisão justificada por razões apropriadas, em última análise, é aquela que tem o apoio da maioria da Comunidade Jurídica II, uma resposta justificada no momento como a melhor possível para o caso em discussão (AARNIO, 1990, p. 35-38).

Esse apelo de AARNIO ao princípio da maioria é devidamente dosado por um caráter contrafático. O autor se refere a um procedimento racional ideal, que respeite todas as regras e exigências da racionalidade discursiva, o que exige serem levadas em consideração as opiniões das minorias nos processos de tomada de decisão, até porque o que deve prevalecer nessa sociedade ideal é a força do melhor argumento. Todos os participantes desse discurso racional aceitam o critério da maioria como um critério racional de decisão, preferível a outros critérios como o sorteio (DOBROWOLSKI, 2002, p. 122-23).

Neste sentido, pode-se dizer que AARNIO descarta a possibilidade de unidade de solução correta, no caso de conflitos de valores ou interesses entre os participantes do discurso, a regra em uma sociedade democrática e pluralista. Inclina-se para a idéia de aceitabilidade racional das decisões jurídicas, funcionando o princípio da maioria como critério pragmático para a estabilização das respostas jurídicas. Os julgadores ficam obrigados a justificar da melhor maneira possível suas decisões, uma vez que as sociedades democráticas estabelecem um diálogo racional entre os juízes e os destinatários da atividade judicial. Esta exigência de justificação baseada na comunicação entre os atores do discurso jurídico serve como fator de legitimação e controle do poder de julgar.


6. A PROPOSTA CONCILIADORA DE ROBERT ALEXY

Conforme brevemente aventado no início deste trabalho, um dos limites do discurso jurídico seria a impossibilidade de alcançar uma única solução correta para cada caso prático, por meio de um procedimento discursivo racional, em um número finito de operações. E a teoria da argumentação jurídica de ALEXY não consegue resolver completamente o problema do déficit de racionalidade do discurso jurídico, sobretudo no plano da justificação judicial. Isso leva ALEXY a não seguir a teoria radical ou forte defendida por DWORKIN, pela qual cada problema prático pode ser solucionado pelo ordenamento jurídico, que oferece uma única decisão correta, que deve apenas ser encontrada pelo juiz.

A tese da unidade somente poderia ser aceita, argumenta ALEXY, se fosse possível desenvolver uma lista completa de todos os princípios que compõem o sistema jurídico, com o posterior estabelecimento de todas as relações de prioridade abstratas e concretas. A partir dessa teoria forte dos princípios poderiam ser expressos os pesos e intensidades de realização dos princípios em uma escala numérica, o que garantiria a obtenção de uma única reposta correta para todos os problemas práticos (ALEXY, 1988, p. 145-46).

Segundo ALEXY, a "aceitação da existência de uma única resposta correta independente de procedimento para cada pergunta prática é uma tese ontológica, contra a qual há poucos pontos a favor e muitos pontos contra". Não se pode, neste sentido, aceitar "que só exista uma única resposta possível para cada pergunta prática" (ALEXY, 2001, p. 310-11).

Certamente, essa teoria forte fracassa ante os problemas de medição do peso e da intensidade de realização dos diferentes princípios, o que sugere o abandono da idéia de unidade de solução correta. Em troca dessa concepção mais forte, o autor defende uma tese fraca ou mitigada, segundo a qual os princípios seriam ordenados a partir de três elementos: um sistema de condições de prioridade; um sistema de estruturas de ponderação; e um sistema de prioridades prima facie (ALEXY, 1988, p. 146).

A idéia de condições de prioridade enseja a formulação de uma lei de colisão, segundo a qual "as condições, sobre as quais um princípio prevalece sobre outro, formam o suposto de fato de uma regra que determina as conseqüências jurídicas do princípio preponderante". A partir das condições de prioridade estabelecidas em um sistema jurídico e das correspondentes regras de precedência, pode-se aferir o peso relativo dos princípios. Quanto ao sistema de estruturas de ponderação, este deve ser informado por uma lei de ponderação que leve em conta a qualidade dos princípios enquanto mandamentos de otimização, segundo as condições fáticas (adequação e necessidade) e jurídicas (proporcionalidade em sentido estrito). Por fim, o sistema de prioridades prima facie estabelece cargas de argumentação, não contendo obviamente determinações definitivas, apenas com a exigência da argumentação àqueles que pretendem seu afastamento (ALEXY, 1988, p. 147-48).

Partindo dessas concepções ALEXY defende a noção de unidade de solução correta como uma idéia reguladora, ou seja, enquanto objetivo a ser perseguido por todos os participantes do discurso. "Como idéia reguladora, o conceito de correção não pressupõe que exista uma resposta correta para cada pergunta prática, que resta apenas encontrar". No campo do processo judicial, cada parte deve fazer a defesa, independentemente da efetiva existência, de que a sua seja a única solução correta (ALEXY, 2001, p. 311).

Como visto, ALEXY até admite que possa haver uma única solução correta para cada problema prático, desde que a aplicação do discurso prático conduza sempre ao consenso, o que não ocorre, inclusive, porque algumas de suas regras somente podem ser cumpridas de maneira aproximada. Ademais, a unidade de solução correta somente seria possível segundo condições ideais do discurso, como tempo ilimitado, informação ilimitada, clareza lingüística conceitual ilimitada, etc. (ALEXY, 1988, p. 150-51).

Portanto, admitir a inexistência de um procedimento discursivo capaz de conduzir a uma única resposta correta, não significa que se deva abandoná-la completamente. Esta há de ser perseguida por todos os participantes do discurso prático geral e do discurso jurídico, inclusive no âmbito do processo judicial, em que cada parte deve defender sua pretensão como sendo a única correta.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão acerca da discricionariedade judicial e a problemática da unidade de solução justa para os casos difíceis continua extremamente viva na pauta de debates da filosofia e da metodologia jurídica contemporânea. No presente estudo não foi possível, até por conta de suas limitações objetivas, apresentar de forma ampla e satisfatória toda a teoria da argumentação jurídica de ALEXY, tomado aqui como o marco teórico. Uma adequada apresentação de seu pensamento exigiria o estudo de seu conceito de princípio jurídico como mandamento de otimização, a distinção entre regras e princípios jurídicos, a problemática das colisões entre princípios constitucionais, a teoria da justificação judicial, a tese do discurso jurídico como um caso especial de discurso prático, enfim, seu modelo de sistema jurídico e de teoria da argumentação jurídica [06].

Por outro lado, no que tange ao objeto central do presente estudo, ALEXY sustenta o que poderia ser definido como uma versão fraca ou mitigada da tese da unidade de solução correta. É que, mesmo estruturado com base em um amplo e complexo arsenal de regras e formas de argumentação, o discurso jurídico não consegue resolver completamente o déficit de racionalidade próprio do discurso prático geral.

ALEXY defende que a tese da unidade de solução correta assume uma importante função reguladora do discurso jurídico, servindo de parâmetro sob o qual devem ser apresentadas as afirmações jurídicas. Dito de outra forma, que todos os participantes do discurso jurídico devem defender sua afirmação como sendo a única correta, independente de existirem outras afirmações igualmente válidas. As partes de um processo judicial devem sustentar suas razões como sendo as únicas justas, independentemente da existência de outros argumentos que possam justificar uma decisão correta desfavorável a sua pretensão.

Em verdade, a idéia de unidade de solução justa para todos os problemas práticos, principalmente os casos difíceis, depende de uma série de fatores que somente podem ser efetivados em condições ideais do discurso. Na prática, há que se admitir a pluralidade de soluções corretas como resultado comum ao procedimento jurídico-discursivo. A tese da unidade parece desconsiderar, até certo ponto, a indeterminação da linguagem, os limites de tempo e de informação que são próprios da argumentação jurídica.

A impossibilidade de uma única decisão correta para o problema das colisões entre princípios constitucionais não desautoriza a busca por uma teoria da justificação judicial, muito pelo contrário, reforça sua utilidade e relevância na medida em que permite o estabelecimento de parâmetros aferitórios da correção das decisões judiciais. A impossibilidade de se alcançar uma única solução correta não significa que seja impossível alcançar uma solução correta.

Neste sentido, as contribuições de ALEXY representam um importante ponto de partida para o processo de justificação das decisões judiciais, o que é reforçado no caso das colisões entre princípios constitucionais, que exigem um amplo e complexo processo de fundamentação, a fim de legitimar e respaldar a solução apontada. Com isso, não se está defendendo que o único fim da teoria da argumentação jurídica seja a legitimação do poder de decidir. Por outro lado, não se pode negar que uma de suas funções principais seja o estabelecimento de contornos racionais e razoáveis ao poder de julgar, o que não deixa de servir como fonte de legitimação.

Não se pode negar que a teoria de ALEXY consegue estruturar, racionalmente, a solução das tensões entre princípios constitucionais. Mas sua importância não fica limitada a esse âmbito do discurso jurídico, possibilitando ainda uma razoável e racional via intermediária entre a vinculação e a flexibilidade ligadas à eficácia dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais, com a vedação da simples defesa da não-vinculatividade àquelas normas constitucionais que não se deixam cumprir completamente.

A partir da máxima da ponderação, inegavelmente os direitos fundamentais e os princípios constitucionais gozam, de forma otimizada, dos atributos da eficácia e aplicabilidade. Atributos que devem ser temperados e ponderados, em cada caso concreto, com os limites da reserva do possível, problema que demanda um ativismo judicial responsável, conseqüente e comprometido com a implementação da Constituição enquanto unidade tópico-sistemática.

A defesa de um ativismo judicial informado por estes contornos, nem de longe, inspira uma lógica de supremacia do Poder Judiciário ou da discricionariedade judicial ilimitada. O discurso jurídico – e principalmente o discurso judicial – deve ser respaldado por uma adequada teoria da justificação judicial, capaz de conferir parâmetros de racionalidade e razoabilidade ao processo de decisão. Neste sentido, a pretensão de correção do discurso jurídico, certamente, não gravita em torno da unidade de solução justa, mas sim na consecução de decisões racionalmente adequadas, implementadoras dos princípios constitucionais e da vontade da Constituição.


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Notas

  1. Não se pode desvincular as mudanças teóricas que respaldaram a passagem do positivismo jurídico para o pós-positivismo ou novo constitucionalismo, das profundas mudanças sociais e econômicas do final do século XIX e do século XX. O positivismo jurídico, aqui entendido como aquela teoria jurídica que encara o direito positivo como o único objeto da ciência jurídica e que não admite conexão entre o Direito, a moral e a política, servia a um modelo de sociedade, o modelo liberal-individualista. Em uma sociedade marcada pela homogeneidade política e igualdade formal jurídica, o sistema normativo que melhor garante a propriedade e a liberdade de mercado é o sistema de regras. Com a mudança no cenário social, a consolidação dos movimentos de classe, o fortalecimento de novos atores sociais, o pluralismo político e jurídico, a heterogeneidade política da sociedade, evidencia-se a necessidade de repensar as bases teóricas do Direito. Neste sentido, fala-se em pós-positivismo, aqui entendido como a teoria contemporânea que procura enfrentar os problemas da indeterminação do Direito e sustenta a situação de estreita relação entre Direito, moral e política. Para um estudo mais aprofundado acerca do pós-positivismo, pode-se consultar, entre outros CALSAMIGLIA (1998, passim). No Brasil, o termo "pós-positivismo" é usado com forte semelhança de sentido, entre outros, por BONAVIDES (2000, p. 228-66).
  2. A expressão "novo constitucionalismo" é aqui empregada para caracterizar um modelo teórico surgido a partir da segunda metade do século XX, baseado na superação das idéias que marcam o positivismo jurídico, principalmente no que concerne à relação de tensão entre Direito e moral. No decorrer desse trabalho o novo constitucionalismo será preferido à equivalente expressão "pós-positivismo". Em sentido semelhante, o pensamento de ATIENZA (2001, p. 672-73).
  3. Essa definição é sugerida por NAVARRO, com base no pensamento de CARRIO. Neste sentido, pode-se consultar NAVARRO (1993, p. 250).
  4. NAVARRO apresenta essa definição de casos em sentido estrito a partir da teoria de sistema normativo de ALCHOURRÓN e BULYGIN (NAVARRO, 1993, p. 250-51).
  5. Para estudos complementares acerca do pensamento de AARNIO, pode-se consultar na doutrina nacional DOBROWOLSKI (2002, passim).
  6. Para estudos complementares pode-se consultar o próprio ALEXY (1993, passim; 2001, passim).

Autor

  • José Sérgio da Silva Cristóvam

    Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

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CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O problema da discricionariedade judicial. Existe uma única resposta correta para os casos difíceis?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3082, 9 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20582. Acesso em: 28 mar. 2024.