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Sobre a constitucionalização do trato conferido aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça.

A proibição de excessos na intervenção penal sobre a liberdade e a aplicação do princípio da isonomia, considerados os benefícios garantidos na órbita dos crimes contra as ordens tributária e econômica (Lei nº 10.684/03)

Sobre a constitucionalização do trato conferido aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça. A proibição de excessos na intervenção penal sobre a liberdade e a aplicação do princípio da isonomia, considerados os benefícios garantidos na órbita dos crimes contra as ordens tributária e econômica (Lei nº 10.684/03)

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Há irracional desigualdade ao comparar os máximos benefícios assegurados para autores de crimes contra as ordens tributária e econômica com a ausência de garantias equivalentes aos agentes de crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça.

Resumo: A constatação de algumas situações no âmbito de incidência do Direito Penal causa perplexidade, na medida em que se descortina a irracional desigualdade no trato legal previsto para casos análogos. É o que se observa quando da análise dos máximos benefícios assegurados pelo art. 9º da Lei nº 10.684/03 para autores de crimes contra as ordens tributária e econômica, verificando-se a ausência de garantias equivalentes aos agentes de crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça. O absurdo da situação demanda pronta correção pelo Judiciário, o que pode dar-se através da analogia in bonam partem, com o que se estendem aos autores destes delitos os benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03. Pelas normas vigentes, é o meio que se encontra para o resgate da isonomia em preservação da liberdade, bases fundamentais do ideal de Justiça, que é pressuposto do que se entende por Direito num contexto pós-positivista.

Palavras-chave: Direito Penal; isonomia; liberdade; proibição de excesso; proibição de insuficiência.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. A mínima intervenção enquanto condição de legitimidade do Direito Penal 3. O tratamento legislativo conferido aos crimes contra as ordens tributária e econômica: o art. 9º da Lei nº 10.684/03 4. Breves considerações gerais sobre o que prevê a lei no trato dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça 5. A constatação do paradoxo e a necessidade de se proceder à equação constitucional da situação, a partir de uma solução que maximize e conjugue isonomia e liberdade 6. Considerações finais.


1. Introdução [01]

"O direito só pode ser compreendido no âmbito da atitude referida ao valor. O direito é uma manifestação cultural, isto é, um fato relacionado a um valor. O conceito de direito não pode ser determinado de modo diferente do que o dado, cujo sentido é o de tornar real a idéia do direito. O direito pode ser injusto (summum iussumma iniuria), mas só é direito por ter o sentido de ser justo."

Gustav Radbruch

Como se extrai do brilhante ensino de Radbruch, não se pode reconhecer como Direito a construção ordenadora que se faça cega a valores. Com isso, afirma-se que o Direito só se legitima na medida em que pretenda a Justiça, ideal que pressupõe igualdade e é pressuposto da liberdade.

Trata-se de construção claramente elaborada na superação ao positivismo jurídico e sua dogmática autorreferenciada, que, em sua pretensão de pureza e suficiência normativa, tentou apartar o Direito da Justiça, considerando-os instâncias incomunicáveis. Em busca de certeza e segurança, o positivismo marcou-se por tentar impor ao Direito o método próprio às Ciências Naturais, então cultuado como único meio legítimo ao alcance da verdade.

Sob tal pretexto, fomentou codificações e difundiu a ilusão quanto à possibilidade de, pela boa técnica, se elaborarem leis eternas, que se impusessem aos fatos, ordenando a realidade. Sem ideais que orientassem a produção jurídica, reduziu-se o Direito à lei positivada, confundido conceitos de legalidade e legitimidade.

"Voltando ao assunto de nosso curso, o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo" (BOBBIO, 2006, p. 26).

Ou seja, Direito era o que positivava o Estado, em construção teórica que fez da lei veículo para qualquer ideologia, como historicamente atesta o nazismo. Amparado pela lei, o nacional-socialismo alemão promoveu uma das maiores e mais bárbaras devastações étnicas inscritas na história, fato que, para além da perplexidade trazida ao mundo, marcou a falência do positivismo jurídico.

Assistiu-se, então, ao trágico ocaso da crença em uma ciência cega a valores, que seria capaz de conduzir a humanidade ao progresso a partir do bom uso de técnicas. Enfim, pôde-se constatar que a pretensão a um racionalismo puro conduziu a uma total ruptura significante, a uma perda do sentido que antes era garantido pelos ideais que orientavam as ações humanas. A barbárie nacional-socialista produzida em nome da lei e da ciência, logo, da razão, expôs aos olhos algo que não se podia compreender ou mesmo admitir, trazendo à tona um mal radical que, protagonizado por homens, ocasionou a ruptura quanto ao sentido da própria existência humana.

Tal ruptura significante estendeu-se a tudo que dizia respeito à cultura, mesmo porque é esse o espaço de existência humana. Assim também se instaurou a crise de sentido do Direito e, revelado o fracasso da tentativa arrogante de uma autojustificação dogmática, própria ao positivismo, impôs-se a conclusão de que sua significação dependia de ideais maiores para cuja busca se fizesse instrumento. Em síntese, "o direito pode ser injusto (summum iussumma iniuria), mas só é direito por ter o sentido de ser justo." (RADBRUCH, 2004, p. 11)

Nesse contexto crítico, em 1948, fez-se ao mundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que materializava a intenção de, a partir dali, se difundir um novo paradigma de Direito, orientado por ideais que o tornariam instrumento de Justiça e de proteção à dignidade humana. Nasce, então, o movimento pós-positivista que, sem desprezar as evoluções positivistas, se pôs a serviço de um Direito erigido a partir de princípios cuja força vinculante, em termos jurídicos, deveria ser garantida por sua expressa previsão nas constituições, as quais, doravante, deixavam de ser meras cartas programáticas para se transformarem na referência normativa máxima dos países.

Todas essas considerações mostram-se extremamente valiosas e necessárias, uma vez que o tema proposto demanda cuidadosa análise, trabalhada à luz dos princípios constitucionais, exorcizada dos demônios cegos do positivismo jurídico e de seus fetiches legalistas. Nesse sentido, introduzindo o debate, cabe desde já destacar a posição privilegiada conferida pela Constituição a dois princípios, que podem ser apontados como a base da Justiça, como já se antecipou. Refere-se aos princípios da igualdade e da liberdade, que, no entendimento de Alexy, constituem o núcleo dos direitos fundamentais:

"Com o direito à liberdade e o à igualdade está fundamentado o núcleo dos direitos fundamentais. Todos os outros direitos fundamentais são ou casos especiais de ambos esses direitos ou meios necessários para a produção e asseguramento de uma medida suficiente de liberdade e igualdade fática. O último vale, por exemplo, para o direito a um mínimo existencial." (2008, p. 34)

E, como aqui se debaterá uma incoerência legal cuja adequação constitucional depende da aplicação isonômica, logo, constitucionalizada do Direito Penal, nem é preciso muito esforço para se concluir que a base do raciocínio fundar-se-á justamente nos princípios da liberdade e da igualdade. Aliás, é de se aproveitar o contexto para reafirmar que todo o Direito Penal constrói-se em torno da ideia de liberdade, na medida em que a garante, bem como fundamenta as restrição que eventualmente lhe são impostas, o que deve ser feito com igualdade para que haja Justiça e o Direito Penal não se torne um mal maior que aquele a que visa punir e prevenir.

"Como a lei penal limita o indivíduo em sua liberdade de agir, não se pode proibir mais do que seja necessário para que se alcance uma coexistência livre e pacífica. Também o fato de que a dignidade humana e a igualdade devam ser protegidas é um resultado do pensamento iluminista, segundo o qual dignidade humana e igualdade compõem condições essenciais da liberdade individual." (ROXIN, 2008, p. 33)

Essa reflexão ganha relevo enquanto capaz de antecipar e impedir distorções na criação e aplicação das leis que possam converter o Direito Penal em simples instrumento de garantia de privilégios e contenção de um refugo social que transforma em inimigo. E, quando se analisa comparativamente o trato conferido a determinados crimes contra as ordens tributária e econômica em relação aos previstos para os delitos contra o patrimônio, de pequeno ou médio potencial ofensivo, é inevitável concluir que, no Brasil, a lei penal é uma para os economicamente favorecidos e outra para os estratos mais pobres da população.

A análise dessa afirmativa será desenvolvida nos tópicos seguintes, à luz de princípios que regem o Direito Penal, tais como proporcionalidade, lesividade e intervenção mínima. Assim, como o posicionamento que aqui se sustentará se funda na convicção de que a legitimidade do Direito Penal depende de seu emprego subsidiário, enquanto ultima ratio, nada mais apropriado que dar sequência ao trabalho partindo de algumas considerações sobre o princípio da intervenção mínima e sua relação com a situação concreta que se traz à discussão.


2. A mínima intervenção enquanto condição de legitimidade do Direito Penal

Embora não se trate de entendimento pacífico, defende-se aqui, com Roxin, que o Direito Penal tem como função a proteção subsidiária de bens jurídicos, considerados, estes, como os entes que expressem valores imprescindíveis à coexistência pacífica das liberdades individuais, com igualdade (2008, p. 35). Sobre a subsidiariedade a que se refere, segue-se com o mestre alemão:

"A finalidade do direito penal, de garantir a convivência pacífica na sociedade, está condicionada a um pressuposto limitador: a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas. O direito penal é desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extrajurídicas." (ROXIN, 2008, p. 33)

Consoante se verifica, as idéias acima expostas remontam a teorias contratualistas, como a de Rousseau, em seu Do contrato social. Assim, tomando-se a sociedade como resultante de um pacto, no qual cada um dos indivíduos contratantes abre mão de parcela de sua liberdade em nome da segurança e, mesmo, da liberdade de todos, é de se concluir que só em casos extremos aqueles que aderiram à avença, consentindo em limitações à própria liberdade, podem ser dela totalmente privados [02]. Desse raciocínio já é possível se deduzir que, tendo por um de seus principais efeitos a privação da liberdade do sujeito, o Direito Penal só se faz legítimo se previsto e aplicado a casos de extrema gravidade, diante da certeza de que na situação que se apresente – em termos abstratos ou concretos – nenhuma outra medida se faria eficaz para punir e prevenir a conduta danosa. Como se trata de violência empregada na repressão a outras violências, o Direito Penal deve ser administrado em proporções muito bem delimitadas e justificadas, sob pena de converter-se em instrumento de injustiças.

"Parece também evidente, em face do princípio da inviolabilidade da liberdade (CF, art. 5º), que a liberdade é neste regime a regra; a não liberdade, a exceção. Disso resulta que toda restrição jurídico-penal no particular há de pressupor a absoluta necessidade e adequação desse modo cirúrgico de intervenção estatal, vale dizer, violações autorizadas da liberdade pelo direito penal somente podem ser toleradas quando necessárias à afirmação da liberdade mesma, razão pela qual crime só pode consistir numa lesão grave à liberdade de alguém, isto é, lesão a um bem jurídico definido, não se tolerando intervenções pedagógicas ou moralizadoras para coibir comportamentos que não lesam ninguém (v.g., porte ilegal de drogas e o próprio tráfico entre adultos) ou possam ser objeto de suficiente repressão fora do direito penal (civil, administrativo etc.), como, por exemplo, as contravenções penais. Porque a liberdade, no sistema democrático, é a um tempo o limite e o fim do direito penal." (QUEIROZ, 2008, p. 116)

Como se observa, o Direito Penal incide em situações nas quais, em última instância, se verifica o confronto de dois direitos fundamentais: o de garantia de uma existência segura contra ataques de outros cidadãos [03] e o de liberdade. Assim, só se fará legítima a incidência do Direito Penal, através da previsão/aplicação da restrição à liberdade, nas hipóteses em que seguramente se conclua pela existência de efetiva lesão ou concreto risco de lesão a uma existência segura, livre de ataques de outros cidadãos. Fora dessas circunstâncias, é inevitável que se reconheça a incidência do Direito Penal como mal maior que o que determinou sua previsão/aplicação, o que o torna ilegítimo na hipótese [04].

Ou seja, é o alto grau de lesividade de uma conduta – ou o efetivo risco de grave lesão que representa a bem de terceiro – que permite concluir pela proporcionalidade e, em assim sendo, portanto, pela legitimidade da drástica intervenção penal. De outro modo ou, especificamente diante de um caso concreto, prevalecendo a dúvida, preserva-se a liberdade.

Feitas essas ponderações, considerando-se que um sistema jurídico que se pretende legítimo somente se pode constituir por uma totalidade ordenada, há de se concluir que não são admissíveis incoerências e contradições normativas [05], principalmente em se tratando de Direito Penal. Assim, caso sejam identificadas semelhantes situações de conflito, devem ser sempre resolvidas em prol da liberdade, estando-se em um ordenamento constitucional de bases garantistas.

Portanto, num ordenamento que almeje a coerência enquanto pressuposto de legitimidade, inadmissível se mostra a contradição expressa na existência de benefícios aplicáveis a condutas de alta lesividade, mas não autorizados àquelas análogas e, acrescente-se, de menor lesividade. Tal absurdo reclama pronta correção pelo Judiciário, que, com vistas à adequação constitucional das normas penais conflitantes, deve, orientado pelos princípios da isonomia e da liberdade, interpretá-las de modo a estender às situações menos graves os benefícios aplicáveis às mais danosas. A título de exemplo – drástico, para melhor transmissão do que se diz –, se num determinado ordenamento, sob certas condições (v.g., primariedade e suficiência da medida), garante-se aos autores de homicídio doloso simples a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, mas não o faz em benefício dos autores de lesão corporal dolosa, cabe ao juiz estender tal benefício aos agentes desta conduta, sob as mesmas condições. Verifica-se, pois, uma hipótese em que se faz possível a aplicação da analogia em Direito Penal, numa correção judicial do excesso na intervenção, em favor da liberdade, ou seja, in bonam partem, do que se cuidará mais detidamente em momento oportuno.

Noutras palavras, devendo ser mínima a intervenção penal, em razão da proibição de excessos na limitação à liberdade, se num mesmo ordenamento convivem normas umas conferindo tratamento mais brando em relação a delitos mais graves, enquanto outras, tratamento mais grave a delitos mais brandos, impõe-se, em nome da Justiça que se obtém da máxima proteção à igualdade e liberdade (favor libertatis), a aplicação da analogia in bonam partem, estendendo-se os mesmos benefícios garantidos às condutas mais ofensivas às menos ofensivas.

Posto isso, cabe agora analisar o que diz a lei penal acerca dos crimes contra as ordens tributária e econômica, mais precisamente o que garante o art. 9º da Lei 10.684/03 aos acusados pela prática de algumas dessas condutas.


3. O tratamento legislativo conferido aos crimes contra as ordens tributária e econômica: o art. 9º da Lei nº 10.684/03

As previsões legais atinentes aos crimes contra a ordem tributária marcam-se pelo tumulto e irracionalidade, especificamente no que concerne às causas de extinção da punibilidade e aos efeitos produzidos nesta pelo parcelamento dos débitos. Acerca de tal desorientação legislativa, em aclamado ensaio, assim expõe Heloisa Estellita, formulando breve histórico:

"A disciplina da extinção da punibilidade pelo pagamento da Lei nº 8.137/90 suprimida no ano seguinte (Lei nº 8.383), retomada em 1995 (Lei nº 9.249), alterada parcialmente em 2000 (Lei nº 9.983), retoma agora renovado fôlego com a nova disciplina inaugurada pelo art. 9º da Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003.

Os efeitos do parcelamento sobre a punibilidade, por seu turno, têm uma história mais tortuosa. Sob a égide da disciplina do art. 34 da Lei nº 9.249/95, seus efeitos foram interpretados diferentemente pelas diversas Cortes de Justiça brasileiras, sendo célebres as divergências de posicionamento entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça e, dentro deste, entre suas Quinta e Sexta Turmas (divergência esta encerrada tão-somente com o julgamento do RHC nº 11.598/SC pela Terceira Seção do STJ). Mas a melindrosa história dos efeitos do parcelamento sobre a punibilidade nos crimes tributários não se resume à interpretação do artigo antes mencionado; em 2000, a Lei nº 9.964, ao criar o Programa de Recuperação Fiscal - Refis, instituiu uma causa de suspensão da punibilidade nos crimes tributários para as empresas que aderissem ao programa antes do recebimento da denúncia. Ao cabo do pagamento da última parcela do referido parcelamento, extinta estaria a punibilidade (art. 15)." (2003, p. 2-3)

De fato, como indicado pela citada autora, as inovações apresentadas no art. 9º da Lei nº 10.684/03 deram ensejo a muitos debates, podendo-se afirmar, inclusive, que causaram certa perplexidade. Afinal, garantiu aos acusados – e mesmo condenados – pela prática dos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137/90, bem como nos arts. 168-A [06] e 337-A [07] do Código Penal as possibilidades de 1) extinção da punibilidade, a qualquer tempo, mediante pagamento do débito (§2º) e 2) suspensão da pretensão punitiva, enquanto perdurar o acordo de parcelamento (caput) – ao final do qual, é claro, caso tenha a dívida sido quitada, deverá ser extinta a punibilidade. E, dentre tais inovações, talvez a que causou mais espanto tenha sido a que determinou a supressão do marco temporal de referência à produção de efeitos sobre a punibilidade, anteriormente limitados ao momento de recebimento da denúncia.

Ou seja, enquanto tramitar o processo – se não estiver suspenso pelo parcelamento do débito – ou mesmo no curso da execução penal, quitando a dívida que lhe opõe a fazenda pública, extingue-se a punibilidade do acusado pela prática dos crimes previstos no caput do art. 9º da Lei nº 10.684/03 [08].

Tais benefícios não agradaram a muitos [09], como faz prova a ADIn nº 3.002, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em face do referido dispositivo (CAPEZ, 2008, p. 630).

Enfim, o tratamento condescendente do Legislativo em relação aos acusados pelo cometimento de crimes fiscais fez letra morta os arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, do mesmo modo atingindo os arts. 168-A e 337-A do Código Penal. Com isso, esvaziou a repressão penal em relação a boa parte das condutas danosas à ordem tributária, com o que suscitou importante debate quanto à proteção insuficiente em relação aos bens jurídicos tutelados aos tipos previstos nos mencionados dispositivos.

Nesse contexto, diante da abstratamente considerada gravidade das condutas tipificadas como crimes contra a ordem tributária, são muitos os que entendem que o art. 9º da Lei nº 10.684/03 mostra-se inconstitucional. Para tanto, sustenta-se que há uma proteção insuficiente contra violações ao dever constitucional de pagar impostos, tratando-se a tributação da principal fonte de arrecadação do Estado e, assim, um meio importante à garantia das condições de maximização das expectativas do cidadão, no que tange a uma vida próspera em comunidade, asseguradas educação, saúde, assistência e previdência social (FELDENS, 2005, p. 207).

"Exprimindo a Constituição brasileira, portanto, de maneira explícita ou implícita, um rol de deveres – mínimos que sejam – cuja nota de essencialidade decorre da própria necessidade de manutenção dos valores cunhados por esta mesma ordem constitucional, afigura-se nos de todo recomendável que reconheçamos nessa categoria jurídica dos deveres fundamentais um relevante e legítimo paradigma para o exercício (positivo e negativo) da atividade legislativa incriminadora, notadamente quando os bens jurídicos protegidos (v.g., a ordem econômica e tributária) em face da imposição desses deveres (v.g., dever fundamental de pagar impostos) postam-se de forma a identificar-se aos próprios fins perseguidos pelo Estado Democrático de Direito, presente a noção que se vem de sustentar de um Direito Penal funcionando como um instrumento de proteção de valores essenciais." (FELDENS, 2005, p. 208)

Partindo-se do pressuposto que a arrecadação obtida mediante a tributação, ainda que não vinculada, de algum modo é aplicada na gestão do Estado e da sociedade, é de se concluir que as condutas praticadas contra a ordem tributária produzem danos coletivos graves [10], na medida em que dificultam a promoção dos direitos sociais, afrontam o poder público e rompem com a confiabilidade mútua, necessária à estabilização da sociedade. Pelo exposto, impõe-se reconhecer que o grau de lesividade da conduta aos direitos [11] e deveres mencionados justifica – e reclama – a adequada e efetiva intervenção penal.


4. Breves considerações gerais sobre o que prevê a lei no trato dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça

Como se sabe, as condutas tipificadas sob o rótulo de crimes contra o patrimônio estão contidas no Título II da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, entre seus arts. 155 e 183. Sobre tais, com muita segurança, pode-se afirmar que, ao lado do tráfico de drogas, são as que mais povoam o quotidiano de quem atua na justiça criminal. Além disso, cabe ainda destacar que os autores da ampla maioria das condutas ali incriminadas são oriundos dos estratos economicamente menos favorecidos da sociedade.

Ressalvadas as condutas perpetradas mediante violência ou grave ameaça à pessoa – que não só atingem o patrimônio, mas também a liberdade, a integridade física ou mesmo a vida das vítimas, além de caracterizarem-se pela maior ousadia de seus agentes –, é de se concluir que a criminalidade contra o patrimônio caracteriza-se, em regra, pelo seu baixo grau de lesividade, pelos pequenos danos causados aos ofendidos. Apesar disso, se comparados ao previsto no art. 9º da Lei nº 10.684/03, é de se reconhecer que não são relevantes os benefícios garantidos pela lei àqueles acusados por tais práticas.

Além das possibilidades limitadas de aplicação da Lei nº 9.099/95 e de algumas causas especiais de diminuição ou isenção de pena (v.g., arts. 155, §2º [12], e 171, §1º [13], do CP), em relação à generalidade dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça, somente merecem destaque a causa geral de diminuição de pena contida no art. 16 do CP [14], relativa ao arrependimento posterior (limitada temporalmente à ocasião do recebimento da denúncia), a atenuante prevista no art. 65, III, b do CP [15] e, por fim, as causas de isenção de pena previstas no art. 181 [16] do CP – com as ressalvas do art. 183 [17]. Como se vê, nada que possa ser comparado às possibilidades de extinção da punibilidade abertas pelo art. 9º da Lei nº 10.684/03. Aliás, cabe destacar que aquilo que, com limitações temporais, é minorante ou atenuante para os agentes dos crimes contra o patrimônio a que se refere – reparação dos danos provocados –, é causa de extinção da punibilidade para determinados crimes cometidos contra a ordem tributária (arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90).

Com isso, assiste-se à absurda e irracional realidade do aprisionamento [18] de autores de pequenos furtos que não façam jus aos benefícios da Lei nº 9.099/95 ou a outros – como à substituição da pena privativa de liberdade por multa ou pena restritiva de direitos ou, mesmo, ao sursis – por serem, por exemplo, reincidentes específicos, enquanto responsáveis por fraudes milionárias contam com a confortável possibilidade de nem mesmo serem processados, sendo-lhes garantida a extinção de sua punibilidade pela quitação do débito que tenham com a Fazenda Pública. E, frise-se, esse débito pode, inclusive, ser parcelado.


5. A constatação do paradoxo e a necessidade de se proceder à equação constitucional da situação, a partir de uma solução que maximize e conjugue isonomia e liberdade

As semelhanças entre as condições de incriminação e os bens tutelados nas situações acima abordadas são muitas, afigurando-se claros o paradoxo e a inconstitucional desigualdade decorrente do trato privilegiado garantido relativamente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, 168-A e 337-A do CP, quando comparado ao que reserva a lei penal aos acusados pela prática de delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça. Afinal, em ambas as hipóteses, o que se verifica é a tutela contra o patrimônio, ainda que nos casos previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, 168-A e 337-A do CP diga-se do patrimônio de uma coletividade, arrecadado e gerido pelo Estado em nome daquela mesma coletividade. Aliás, para que não restem dúvidas quanto às efetivas semelhanças, basta verificar que a conduta tipificada no art. 168-A do CP, cujos acusados de sua prática gozam dos benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03, está prevista justamente no Título II da Parte Especial do Código Penal, em meio aos demais crimes contra o patrimônio.

Se assim é, não há razão que justifique a desigualdade do tratamento reservado a uma e outra situação, mesmo porque – e é aqui que se encontra a mais grave e irracional das contradições – impõe-se a conclusão de que o que a lei faz é garantir uma repressão bem mais branda – verdadeira descriminalização indireta – a condutas mais graves, destinando uma intervenção penal mais drástica a condutas com menor potencial lesivo.

Em termos práticos, a única diferença que se pode destacar entre as situações sob análise diz respeito aos estratos sociais ocupados pelos autores dos delitos tipificados nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 [19], 168-A e 337-A do CP, em relação aos estratos dos quais, em regra, são oriundos os que praticam delitos contra o patrimônio. Porém, sob a égide de uma ordem constitucional que – em nome do princípio da igualdade – só pode admitir um Direito Penal que se aplique a fatos, negar a possibilidade de correção judicial da irracional contradição que se apresenta significa dar ares de legalidade a um Direito Penal de autor. Em última análise, equivaleria a – até que enfim – reconhecer-se abertamente a intervenção seletiva e, logo, perversa do Direito Penal no Brasil, como forma de controle do refugo social e das contradições não desejadas, mas produzidas pelo atual modelo capitalista de consumo, que traz em si o gérmen da desigualdade social.

Nesse sentido, vale transcrever a lição de Vera Regina Pereira de Andrade:

"Com efeito, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua, e a clientela do sistema penal é composta regularmente em todos os lugares o mundo por pessoas pertencentes aos baixos estratos sociais, isto indica que há um processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinqüentes e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas qualificadas como tais. O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que contra certas ações legalmente definidas como crime." (ANDRADE, 2003, p. 267)

E segue a autora:

"Desta forma, a ‘minoria criminal’ a que se refere a explicação etiológica (e a ideologia da defesa social a ela conecta) é o resultado de um processo de criminalização altamente seletivo e desigual de ‘pessoas’ dentro da população total, enquanto a conduta criminal não é, por si só, condição suficiente deste processo. Pois os grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas. Enquanto a intervenção do sistema geralmente subestima e imuniza as condutas às quais se relaciona a produção dos mais altos, embora mais difusos danos sociais (delitos econômicos, ecológicos, ações da criminalidade organizada, graves desviantes dos órgãos estatais) superestima infrações de relativamente menor danosidade social, embora de maior visibilidade, como delitos contra o patrimônio, especialmente os que têm como autor indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais débeis e marginalizados. (Zaffaroni, 1987, PP. 22 e 32, e Baratta, 1991ª, p. 172, 1982b, p. 35, 1993, p. 49, e 1991b, p. 61)." (ibidem)

E, tratando-se de benefícios favor libertatis, a não extensão do previsto no art. 9º da Lei nº 10.684/03 – especialmente do contido em seu §2º – a situações circunstancialmente análogas e menos danosas significa violação drástica e frontal aos direitos fundamentais da igualdade e liberdade. Com isso, converte o Direito Penal em veículo de injustiça, em situação de flagrante inconstitucionalidade por afronta à proibição de excesso, valendo reportar em termos auxiliares ao que dispõe o art. 60, §4º, IV, da CF [20].

Em situações eventuais e absurdas como a que se descortina no presente caso, portanto, deve-se admitir "a analogia in bonam partem para salvar a racionalidade do direito e, com ela, o princípio republicano de governo, que exige esta racionalidade" (ZAFFARONI, 2008, p. 155).

A partir de uma análise sistêmica, com a qual se devolve a coerência ao ordenamento, conclui-se pela necessidade de, a partir de analogia in bonam partem, diante do gritante paradoxo exposto, estenderem-se os benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03 a todos os acusados pela prática de crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça, aos quais seja cominada pena máxima igual ou inferior a 05 (cinco) anos, que é o limite maior previsto entre os delitos abrangidos pelo mencionado dispositivo. Assim, caberá declarar extinta a punibilidade daqueles que, nessas condições, a qualquer tempo repararem o dano causado à vítima, que é alçada ao primeiro plano do litígio, seguindo a tendência expressa na última reforma processual penal. Pode-se inclusive cogitar do parcelamento do débito decorrente do dano causado pelo autor, a ser autorizado pelo juiz, ouvidos Ministério Público e vítima, numa forma de aplicação da justiça restaurativa a tais casos.


6. Considerações finais

Essas são as conclusões puras a que se chega. Contudo, nada impede que o juiz module os efeitos da analogia e extraia de uma análise sistêmica do ordenamento jurídico-penal outras condições à concessão dos benefícios, com vistas a amenizar o choque que a postura eventualmente possa causar na comunidade jurisdicionada, que, em regra, sofre as influências dos clamores punitivos difundidos pelos meios de comunicação de massa, os quais acolhe de forma passiva, acrítica.

Dessa forma, por exemplo, com amparo no que prevêem os incisos II e III do art. 44, I e II do art. 77, dentre outros dispositivos do CP e da legislação penal, como condição à concessão do benefício da suspensão pelo parcelamento do valor do dano ou extinção da punibilidade pelo pagamento desse valor à vítima, poderá o juiz exigir que o submetido à persecução penal por crime contra o patrimônio, cometido sem violência ou grave ameaça, seja primário, tenha a seu favor as circunstâncias judiciais passíveis de análise na ocasião, bem como se mostre a medida suficiente à prevenção de futuras condutas delinqüentes. Ainda, para evitar que a medida fomente novas práticas delitivas, pode exigir que o investigado/processado/condenado comprove ocupação lícita, da qual possa extrair a quantia necessária ao pagamento do valor do dano. De se consignar, todavia, que tais exigências não se fazem necessárias e, inclusive, mostram-se excessivas, uma vez que não constam do art. 9º da Lei nº 10.684/03, que ora se toma por referência.

Enfim, o que não se pode admitir é que o juiz, no contexto pós-positivista, permaneça inerte diante de tão flagrante disparidade legislativa, especialmente em se tratando de Direito Penal, cuja intervenção é estigmatizante, por si só dotada de potencial criminógeno. Ao juiz cabe conferir efetividade à Constituição, ao que procede quando interpreta a lei de modo a maximizar seus princípios, atribuindo-lhes eficácia "tão alta quanto possível relativamente às possibilidades fáticas e jurídicas" (ALEXY, 2008, p. 37). E, impende lembrar, os princípios em causa no presente debate são os da liberdade e igualdade que, como já dito, compõem o núcleo fundamental dos direitos fundamentais e da própria noção de Justiça.

Aliás, a interpretação que aqui se propõe nada mais faz senão promover uma efetiva busca por Justiça, que é pressuposto de um Direito que possa ser reconhecido como tal (RADBRUCH, 2004, p. 11). Sobre o papel do juiz nessa busca por Justiça, a que chama pretensão de correção, eis o que diz Alexy, especialmente acerca de situações complexas, em que a lei não basta e se faz necessária a ponderação de princípios:

"Mas, se lei, precedente e dogmática não determinam a resposta a uma questão jurídica, o que define casos difíceis, são necessárias valorações adicionais, que não se deixam depreender somente do material fundado em autoridade dado. Se a pretensão de correção deve ser satisfeita, essas premissas adicionais devem ser fundamentadas. Mas isso é, se o fundado em autoridade ou institucional sozinho não dá resposta, possível somente no caminho da argumentação prática geral. Em seu quadro, reflexões de conformidade com a finalidade e idéias daquilo que é bom para a comunidade têm, sem dúvida, o seu lugar legítimo. Isso, porém, nada modifica nisto, que a questão diretiva do decidir judicial no âmbito da abertura é a questão sobre a compensação correta e a distribuição correta. Questões sobre a distribuição correta e a compensação correta são questões de justiça. Questões de justiça, porém, são questões morais. Assim, a pretensão de correção funda, também, no plano da aplicação do direito, uma união necessária de direito e moral." (2008, ps. 39-40)

Ao intérprete cabe dar sentido à norma, contextualizando a aplicação do Direito em relação à realidade, com o que o vivifica. Para isso servem os princípios em sua plasticidade, através da qual asseguram aberturas ao ordenamento jurídico, possibilitando que se (re)acomode diante das sempre renovadas demandas da realidade.

A proposta construída no presente trabalho, para além de corrigir pela via judicial algumas das muitas injustiças legisladas [21] em matéria penal, representa mais uma forma de evitação do encarceramento e seus estigmas, garante economia e, ainda, promove a pacificação social, talvez o principal escopo da jurisdição, ao viabilizar o restabelecimento do estado de coisas anterior, a partir da reparação dos danos ocasionados à vítima através da conduta criminosa. Frise-se, inclusive, que a interpretação sugerida supera uma das críticas sempre feitas ao Direito Penal, que diz respeito à incapacidade de algumas de suas penas assegurarem a pacificação social, dada sua inépcia quanto ao restabelecimento do status quo ante e uma vez que são aplicadas sem a participação da vítima, que é confiscada para o exercício monopolizado do jus puniendi.

"A característica diferenciada do poder punitivo é o confisco do conflito, ou seja, a usurpação do lugar de quem sofre o dano ou é vítima por parte do senhor (poder público), degradando a pessoa lesada ou vítima à condição de puro dado para a criminalização. Os paliativos que hoje se ensaiam para não vitimizar pela segunda vez não conseguem dissimular a essência confiscatória da vítima que caracteriza o poder punitivo e, menos ainda, podem garantir sua anulação. Só quando se retira o conflito desse modelo e ele é resolvido de acordo com um dos outros modelos de decisão de conflitos chega-se a uma solução; porém, nessa condição, o poder punitivo desaparece, porque, por definição, teremos saído de seu modelo." (ZAFFARONI, 2007, p. 30-31)

Aliás, se a decisão estivesse a seu dispor, segundo seu juízo de conveniência e oportunidade, é bem provável que a ampla maioria das vítimas de crimes contra o patrimônio preferisse ser ressarcida dos danos sofridos a ver o acusado submetido a outra medida, como, por exemplo, o aprisionamento. Os tempos são outros, os bens mais abundantes e até mesmo descartáveis, razão pela qual, diante de possibilidades como as aqui diagnosticadas, deve o intérprete construir a melhor alternativa para a adequação do Direito Penal à realidade, sempre orientado pela primazia da liberdade.

Já ao final deste estudo, afigura-se plausível que surjam questões quanto a qual solução se constituiria como a mais correta para as duas situações confrontadas: uma punição mais incisiva em relação aos crimes abrangidos pelo art. 9º da Lei nº 10.684/03, ou um tratamento mais benigno com relação aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça?

Entendemos que tanto uma quanto outra coisa, desde que se mantenha a coerência do ordenamento em relação aos princípios constitucionais, de modo a conciliar a proibição de excesso, quanto aos crimes contra o patrimônio de que se trata, com a proibição de insuficiência, no que concerne à intervenção penal nos crimes contra as ordens tributária e econômica.

Assim, caso não alcance o objetivo de chamar a atenção para o cada vez mais evidente processo de deslegitimação do Direito Penal pela sua instrumentalização perversa – que tem por única finalidade a conservação do status quo,com a neutralização do refugo social –, servirá o presente debate para destacar a necessidade de se proceder a uma adequada intervenção penal relativamente aos crimes contra as ordens tributária e econômica, constatada a proteção insuficiente em relação aos bens jurídicos violados por essas condutas. Enquanto tal adequação não ocorre, constatado o excesso punitivo que emerge da comparação entre as situações expostas no decorrer deste trabalho, cabe ao Judiciário corrigir a injustiça legislada e, em nome da igualdade, conjugada à primazia da liberdade, estender os benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03 aos autores dos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça, o que se faz possível a partir da analogia in bonam partem ora sugerida.


Referências bibliográficas:

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. 166p.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. 336p.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. 239p.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. 184p.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. atualizada. São Paulo: Malheiros, 2005. 807p.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação especial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 792p.

FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle das normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005. 223p.

QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 3. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 143p.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 302p.

ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 232p.

SALOMÃO, Heloisa Estellita. Pagamento e parcelamento nos crimes tributários: a nova disciplina da lei n. 10.684/03. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11, n. 130, p. 2-3, set. 2003.

STRECK, Lenio Luiz; In: FELDENS, Luciano. Crime e constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 114p.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 224p.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 766p.


Notas

  1. A tese trabalhada não se invalida pelo disposto na Lei nº 12.382/11, em vigor desde março deste ano. Afinal, em razão da extra-atividade da lei penal, o raciocínio desenvolvido no texto continua se aplicando integralmente a todos os delitos por ele abarcados – em termos breves, crimes contra o patrimônio, praticados em suas formas mais simples, sem violência ou grave ameaça –, que tenham sido praticados até a entrada em vigor da mencionada lei. E, mesmo no caso da prática desses delitos após a entrada em vigor da Lei nº 12.382/11, incide a tese ora construída, a seus agentes devendo se estender todos os benefícios garantidos aos que perpetram delitos contra a ordem tributária e econômica.
  2. "O recuo do direito penal para trás de outros mecanismos de regulamentação pode também ser explicado com base no modelo iluminista de contrato social. Os cidadãos transferem ao Estado a faculdade de punir somente na medida em que tal seja indispensável para garantir uma convivência livre e pacífica. Uma vez que a pena é a intervenção mais grave do Estado na liberdade individual, só pode ele cominá-la quando não dispuser de outros meios mais suaves para alcançar a situação desejada." (ROXIN, 2008, p. 33)
  3. "Um primeiro exemplo de um direito fundamental a atuações positivas do estado é o direito clássico do cidadão contra o estado a isto, que este lhe proteja diante de ataques de outros cidadãos. Tais direitos são direitos de proteção ou direitos à segurança." (ALEXY, 2008, p. 94)
  4. E se tais situações são corriqueiras no âmbito de determinado ordenamento jurídico, é de se reconhecer a ilegitimidade do próprio Direito Penal que ali se aplica.
  5. "Entendemos por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação." (BOBBIO, 2008, p. 71)
  6. "Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
  7. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

    § 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

    I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

    II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

    III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social."

  8. "Art. 337-A. Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
  9. I - omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária segurados empregados, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços;

    II - deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços;

    III - omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias:

    Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa."

  10. Entendimento acolhido pelo STF, conforme decisões proferidas nas seguintes ações: HC 82.929-0/RJ, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence (relator para o acórdão: Min. Cezar Peluso); HC 99.844/SP, de relatoria do Min. Dias Toffoli; e, dentre outras, RHC 89.618, de relatoria do Min. Marco Aurélio.
  11. "Daí por que a descriminalização – direta ou indireta – dessas condutas há de passar, principalmente, por um crivo de razoabilidade que venha a discernir situações a serem evidentemente distinguidas (v.g., situações de mero inadimplemento em comparação com as gigantescas fraudes fiscais antes referidas), sob pena de esvaziamento do conteúdo do dever constitucional em relação àqueles que o descumprem deliberada e fraudulentamente, hipótese a traduzir situação de evidente desigualdade jurídica em relação àqueles que o observam rigorosamente. Exemplo recente envolvendo essa questão foi a recente aprovação, no Brasil, da Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003, oferecendo a extinção da punibilidade àqueles acusados que, ainda que já condenados, ofereçam – e teoricamente cumpram – um parcelamento do débito perante o fisco." (FELDENS, 2005, p. 209)
  12. "’A Secretaria da Receita Federal diagnosticou que, no ano de 1998, 11,7 milhões de pessoas e 464.363 empresas não declararam imposto de renda. Todavia, tiveram capacidade financeira suficiente para movimentar nas instituições financeiras (bancos) 341,6 bilhões de reais, valor esse que escapou integralmente ao fisco. Naquele exercício (1998), o Produto Interno Bruto brasileiro, índice que registra toda a produção de bens e serviços do País e representa, em termos monetários, o porte da economia nacional, alcançou o patamar de R$ 899,8 bilhões. Em face desses dados, o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul, atuando em paralelo à Receita Federal, procedeu a uma minuciosa investigação, por meio da qual houve identificar, a partir de lançamentos efetuados nas contas correntes a título de Contribuição Provisória de Movimentação Financeira (CPMF) verificados no ano de 1998, que naquele período transitaram pelas contas correntes de apenas 15 (quinze) pessoas físicas o montante astronômico de R$ 10.300.000.000,00 (dez bilhões e trezentos milhões de reais), sem que R$ 1,00 (um real) tenha sido recolhido aos cofres públicos. Outras 84 pessoas jurídicas, insolitamente inscritas dente as categorias ‘ISENTAS’, ‘OMISSAS’, ‘INATIVAS’ e optantes pelo sistema ‘SIMPLES’ de tributação, revelaram uma também absurdamente incompatível movimentação financeira de R$15.000.000.000,00 (quinze bilhões de reais). Cf. FELDENS, Luciano. Tutela Penal de Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, PP. 143-144.’" (in STRECK; apud FELDENS, 2006, p. 19-20)
  13. Pode-se, inclusive, dizer do direito que todo cidadão tem de contar com o pagamento de tributos por seus concidadãos.
  14. "155. (...)
  15. § 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa."

  16. "171. (...)
  17. § 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º."

  18. "Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços."
  19. "Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena:
  20. (...)

    III - ter o agente:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

    (...)

    b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano;"

  21. "Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
  22. I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;

    II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural."

  23. "Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:
  24. I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;

    II - ao estranho que participa do crime.

    III - se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos."

  25. Refere-se também ao aprisionamento cautelar.
  26. "Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
  27. I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

    II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

    III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

    IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

    V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

    Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

    Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.

    Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)

    I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

    II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

    III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;

    IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;

    V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.

    Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa."

  28. "Art. 60. (...)
  29. § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

    (...)

    IV - os direitos e garantias individuais."

  30. BONAVIDES, 2005, p. 124.

Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Domingos Barroso da; AZEVEDO, Juarez Morais de. Sobre a constitucionalização do trato conferido aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça. A proibição de excessos na intervenção penal sobre a liberdade e a aplicação do princípio da isonomia, considerados os benefícios garantidos na órbita dos crimes contra as ordens tributária e econômica (Lei nº 10.684/03). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3093, 20 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20602. Acesso em: 29 mar. 2024.