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Teoria social do risco aplicada ao Direito Ambiental.

Precaução, sustentabilidade e os semares

Teoria social do risco aplicada ao Direito Ambiental. Precaução, sustentabilidade e os semares

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Este artigo analisa parte da cadeia produtiva dos resíduos sólidos urbanos de Caldas Novas sob o enfoque dos princípios da sustentabilidade, da precaução e da teoria social do risco, visando identificar como os trabalhadores do setor percebem os riscos inerentes à sua atividade.

RESUMO

Este é um artigo original sobre a aplicação jurídica da teoria do risco de Ulrich Beck, à percepção do risco inerente à atividade dos SEMARES (Separadores de Material Reaproveitável, Reutilizável e Reciclável) atuantes em Caldas Novas – GO, sob o enfoque dos princípios da precaução e da garantia do desenvolvimento econômico e social ecologicamente sustentável.

PALAVRAS-CHAVE: Risco. Precaução. Meio ambiente. Sustentabilidade. Resíduos sólidos urbanos. SEMARES.


INTRODUÇÃO:

Tema de destaque na sociedade e comunidade científica, os resíduos sólidos urbanos (RSU) tornaram-se um assunto de relevância social, econômica e jurídica, pois trata-se de uma realidade impactante ao meio ambiente, aos gestores públicos e à população.

O tratamento e destinação final dos RSU embora fosse internacionalmente uma preocupação antiga, somente hoje toma conta de todo território nacional por envolver uma cadeia ininterrupta de sujeitos que vai desde o produtor doméstico, o coletor, o separador dos materiais recicláveis e o depositor final dos resíduos.

Ulrick Beck (1997) compreende que a sociedade de classes foi substituída, pela sociedade de risco, tendo em vista que a ciência e a industrialização produzem riscos inerentes e indissociáveis a esse processo. Estes riscos atingem a toda população indiscriminadamente, porque a produção e distribuição de bens também gera a produção e distribuição de riscos à sociedade.

Os chamados "catadores de material reciclável", ou melhor, "separadores" são sujeitos dessa sociedade de risco e recebem, como todos, os riscos distribuídos a toda sociedade, contudo, assumem uma outra parcela de riscos ao trabalhar diretamente com os RSU.

Este artigo analisa parte da cadeia produtiva dos RSU de Caldas Novas onde atuam os Separadores de Materiais Reaproveitáveis, Reutilizáveis e Recicláveis (SEMARES), sob o enfoque dos princípios da sustentabilidade, da precaução e da teoria social do risco, visando identificar como eles percebem os riscos inerentes à sua atividade. Com o objetivo de revelar que a análise do risco, sob o enfoque dos vários sujeitos envolvidos, é importante e necessária para adotarem-se medidas preventivas, por meio de mecanismos jurídicos e de gestão pública, visando diminuir o impacto ambiental causado pelos RSU ao meio ambiente.

Por ser uma questão multidisciplinar essa discussão deve ser alinhavada necessariamente ao Direito Ambiental, especificamente pelo princípio da precaução e da garantia do desenvolvimento econômico e social ecologicamente sustentável, porque considera-se que, tanto Beck, na teoria social, quanto estes dois princípios jurídicos, especificamente, concebem a industrialização como um processo irreversível e o desenvolvimento deve aliar-se, necessariamente, à proteção do meio ambiente já que este é o espaço impactado por toda carga de riscos gerados pela sociedade.


MÉTODOS:

Esta é uma pesquisa social, qualitativa, exploratória realizada por meio de pesquisa de campo com os separadores de material reciclável do local de disposição final dos RSU de Caldas Novas – Goiás. Pautou-se em pesquisa bibliográfica sobre as temáticas envolvidas, participação em seminários e utilizou como instrumentos, entrevistas, relatos de falas e visitas ao aterro sanitário da cidade pesquisada.

Os sujeitos, foco deste estudo, foram os SEMARES "Separadores de Materiais Reaproveitáveis, Reutilizáveis e Recicláveis" do aterro sanitário de Caldas Novas – Goiás, aqui nesta pesquisa adotando a denominação dada por Holanda Camilo (2011).

Tudo isso para compreender como a teoria social do risco de Ulrick Beck (2006), os princípios jurídico-ambientais da precaução e do desenvolvimento, são importantes para compreender e caracterizar os separadores (SEMARES), identificar e descrever a percepção do risco por parte desses sujeitos tendo em vista a ampliação da compreensão do risco e o apontamento de medidas que possam dirimir o impacto ambiental e efetivar proteção jurídica ampla ao meio ambiente.


RESULTADOS E DISCUSSÃO:

Em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Brasil, construíram-se princípios importantes para o Direito Ambiental Internacional e brasileiro. Estes princípios baseiam-se, entre outros entendimentos, na compreensão de que qualquer política sobre o meio ambiente deve ser pautada na proteção ambiental e na sustentabilidade. (ONU, 1992)

Antes um aspecto apenso e posterior às discussões, a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, tornaram-se atualmente valores equivalentes a outros valores sociais e econômicos protegidos pelo Direito no mundo.

O artigo terceiro, inciso I da Lei nº 6.938/81, que criou e orienta a Política Nacional do Meio Ambiente, define que esta política deve se constituir em um "conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas". (BRASIL, 1981)

Por conseguinte, a partir da Constituição Federal de 1988, a compreensão do que é meio ambiente foi modificada, e com isso, o patrimônio protegido pela Política Nacional do Meio Ambiente, tornou-se mais amplo, subdividindo-se em meio ambiente físico ou natural (art. 225, §1º, I, VII, CF), cultural (art. 215, §1º e §2º, CF), artificial (art. 5º, XXIII, art. 21, XX e art. 182, CF) e do trabalho (art. 7º, XXXIII e art. 200, CF). (BRASIL, 1988)

O mérito principal de toda legislação ambiental nacional é o seu caráter preventivo, leia-se ainda, o caráter informativo e educativo que possui. (BRASIL, 1988) Para se perceber como é importante o estudo sobre as implicações da ação humana no meio ambiente, a sensibilidade legislativa reconhece a comprovação técnicocientífica e obriga com previsão expressa, a realização de análise de impacto ambiental entre outras medidas necessárias à proteção ambiental. (CONAMA, RES nº 001/86) A análise de impacto ambiental prevista no art. 225, VI da Constituição Federal de 1988, é a essência dos princípios aqui trabalhados. (BRASIL, 1988)

O meio ambiente é considerado como um direito difuso (MASCARENHAS, 2011), porque ultrapassa a esfera individual e está tão propalado em toda a sociedade que não há possibilidade de discriminar as esferas individuais atingidas por ele.

José Afonso da Silva (2003) aponta que existe no meio ambiente uma dimensão não palpável e não susceptível de apropriação como é o caso da "qualidade" do meio ambiente, dessa forma, ter um "meio ambiente de qualidade" pode ser considerado ainda, como um bem de interesse público de fim coletivo.

Não resta dúvida sobre a proteção jurídica ao meio ambiente é uma condição para a permanência das atividades produtivas e dos serem humanos, portanto, os debates atuais, não só sobre políticas públicas, como também, sobre a interelação entre Estado e particulares, devem ser travados respeitando-se o equilíbrio dos valores relevantes destacados pela sociedade. Afinal, toda sociedade elege, em determinada época, local e momento político, valores que devem ser protegidos. Nesse sentido, o Direito atua como guardião desses valores em estado latente, ou ainda, quando são mobilizados e enfrentados nas lides.

Por conseguinte, reitera-se nesse momento que o meio ambiente, ou a proteção do meio ambiente atual e futuro, é um valor eleito não só pela sociedade brasileira, como também, por toda a humanidade.

Por essa razão, ao se pensar em intervenção no meio ambiente, deve haver um equilíbrio entre os valores eleitos e o estudo contumaz sobre qual deles deve prevalecer, e em que medida será aplicado, tendo em vista não só o melhor para a sociedade hoje, objetivando a manutenção e conservação dos recursos naturais (sustentabilidade), o que faz-se pensar em gestão racional dos recursos naturais.

Tema essencial abordado por este artigo e um aspecto da modernidade que afeta o meio ambiente local e mundial, são os RSU. Esta pesquisa pondera que qualquer ação dos seres humanos gera resíduos. A qualidade e quantidade de resíduos produzidos são ditadas pelo número populacional, pelo sistema econômico e pelo modelo atual de produção e consumo. Trabalhar com RSU implica na análise e ponderação sobre as conseqüências ambientais, sociais e de saúde pública envolvidas. (BRASIL, 2008)

Sendo assim, adotando-se uma análise sistêmica, não se pode, por exemplo, supervalorizar o desenvolvimento econômico em detrimento do uso racional dos recursos ambientais, porque essa decisão também implicará em conseqüências ao meio ambiente devido ao esgotamento dos recursos disponíveis e por causa dos resíduos produzidos.

Deve-se estabelecer políticas de gestão integrada (ZVEIBIL, 2010) que reduzam ou evitem os riscos de impactos ambientais, motivo ainda que solidifica a necessidade de se trabalhar com o conceito de sociedade de risco, que será tratado à frente.

A escolha dos dois princípios apresentados a seguir justifica-se por serem eles que, diretamente, sobrelevam a necessidade de conciliar interesses e necessidades, isto é, interesses e necessidades do mercado financeiro com os interesses sociais e ambientais.

Portanto, devem ser invocados para essa discussão os princípios da precaução e da garantia do desenvolvimento econômico e social ecologicamente sustentado, já que o meio ambiente é um patrimônio de toda humanidade, fato que abrange a sociedade atual e as futuras gerações.

O princípio da precaução aponta que toda ação humana no meio ambiente pode gerar riscos que devem ser avaliados. Se dessa avaliação, houver grande possibilidade de gerar impactos ambientais irreversíveis, recomenda-se que não se realize a intervenção, ou seja, estes princípios ponderam que se há risco do impacto ambiental se tornar irreversível, a recomendação é que não se faça aquela intervenção no meio ambiente. (MIRRA, 2011; ONU, 1992; MACHADO, 2006;)

A precaução traduz o entendimento de que os recursos disponíveis devem ser geridos com responsabilidade mediante a ponderação sobre os valores envolvidos na questão.

Contudo, considera-se também que quando as intervenções forem desenvolvidas no meio ambiente elas devem respeitar, além de outros princípios e regras contidas na legislação, visar à sustentabilidade, princípio referendado pela RIO/92 e também previsto no art. 225, CF, art. 2º, II, da Lei nº 9.433/97 (águas) e no art. 4º, IV, da Lei nº 9.985/2000 (Unidades de Conservação da Natureza).

O princípio da garantia do desenvolvimento econômico e social ecologicamente sustentado (MIRRA, 2011), ou a sua conhecida redução terminológica para princípio do desenvolvimento sustentável ou da sustentabilidade, prevê que toda atividade a ser desenvolvida deve sempre buscar o cumprimento, em sua maior amplitude, do desenvolvimento econômico em equilíbrio com o desenvolvimento social de forma sustentável ao meio ambiente. (MASCARENHAS, 2011)

Há algum tempo esse princípio sofreu críticas amplamente divulgadas na mídia sobre a permeabilidade conceitual ou a sua "utópica" aplicação. Contudo, este conceito não foi criado para ser aplicado isoladamente por alguns, e sim de forma sistêmica, pensado na gestão de recursos, como regras estendidas a todos, do cidadão comum às grandes empresas. Porque, principalmente para os RSU, o principal entrave é o próprio sistema produtivo que fomenta o consumismo, gerando assim, uma enorme quantidade de resíduos que devem ser geridos pelo Poder Público. Essa ainda é uma questão que demanda reavaliação de todo o funcionamento da cadeia produtiva dos RSU, visto que, a responsabilidade não pode ser apenas do Estado, incluindo ainda, que os RSU se tornaram hoje mais um grande e rentável mercado de investimento.

A compreensão que a autora deste artigo apresenta sobre esse último princípio, o princípio da sustentabilidade, aponta que ele não impede o desenvolvimento, desde que este, equilibre/equalize os interesses envolvidos, adote formas de diminuir o impacto ambiental causado, e promova, além da atividade econômica, melhorias sociais em relação à população envolvida, perpassando necessariamente pela educação dessas populações. Todas essas previsões devem andar juntas e uma, ser condição para a realização da outra. Pois a partir do momento em que haja desequilíbrio entre os interesses, o que geralmente acontece quando o interesse social é dirimido, haverá o descumprimento deste preceito. Com isso, o "desenvolvimento" econômico deve ser gerido, como mecanismo de regulação estatal do mercado, constituindo-se em um dos aspectos necessários de um planejamento, a longo prazo, de cidades, estados e de país.

Busca-se com essa discussão evitar, de fato "(...) a privatização dos lucros decorrentes do uso dos recursos naturais" e diminuir "(...) a socialização dos prejuízos decorrentes da escassez e degradação dos mesmos" (CAVEDON, 2003, p. 99).

Nesse sentido, Ulrick Beck (2006) nomeia e classifica a sociedade atual como sociedade de risco, apontando que a anterior sociedade de classes, organizada em hierarquia socioeconômica, não define mais a estrutura social moderna. Porquanto o fator socioeconômico seja ainda discrepante e relevante, aponta o autor, que os riscos gerados pela industrialização atingem toda a sociedade indistintamente, pois o meio ambiente como patrimônio comum a todos, se for atingido, será "democrático" ao distribuir a poluição e os riscos a ele submetidos.

Torna-se ainda mais simples perceber essa situação ao analisar a contaminação dos rios ou de outro patrimônio ambiental, que serve a toda população de uma cidade por exemplo. O rio que abastece os reservatórios da cidade, poluído ou não, recebe tratamento e tem sua água distribuída a toda a população por um único sistema de abastecimento, sistema esse que em tese, é projetado para abastecer todas as regiões da cidade, e assim, da periferia ao centro ou do centro à periferia, a mesma água é utilizada.

Beck aponta que estes riscos são inerentes à industrialização porque toda tecnologia produzida gera várias possibilidades de uso e de impacto na sociedade. A evolução da sociedade e das tecnologias ainda não conseguiu com que os técnicos responsáveis por ela, previssem, em sua totalidade, controlassem ou mesmo extinguissem os riscos produzidos. Há uma limitação da ciência e dos técnicos ao não conseguir prever e controlar o risco, isto é, o produto dos excessos de produção industrial (BECK, 2006).

Já não existem fronteiras territoriais seguras, tendo em vista que própria circulação de bens no mundo, se encarrega de distribuir os riscos.

A cientista política Wynne aponta que:

(...) a estimação de riscos não é um processo científico, objetivo; fatos e valores, frequentemente, fundem-se quando temos que lidar com assuntos de graves consequências; fatores culturais afetam a forma com que as pessoas estimam os riscos; os peritos percebem os riscos de forma diferente que outros membros do público; a comunicação dos riscos é mais efetiva quando está estruturada como um diálogo do que como uma transferência da direção peritos-público. (apud Guivant, pg. 16, 2010)

Pode-se visualizar melhor essa questão no exemplo utilizado por Beck para ilustrar a potencialidade e imprevisibilidade dos riscos: o acidente nuclear de Chernobil em abril de 1986, na Ucrânia (antiga União Soviética) que espalhou contaminação no ambiente 400 vezes mais potente que a bomba atômica lançada sobre Hiroshima.

Outro exemplo da imprevisilibidade dos riscos está no acidente com o Césio-137 na cidade de Goiânia (Goiás), em 13 de setembro de 1987, quando as pessoas não imaginaram que o abandono de equipamento radiológico poderia causar algum mal, bem como, gerar problemas de contaminação radioativa à população, e ainda, não dimensionar precisamente, em que proporção o acidente provocou e provoca conseqüências até hoje.

De forma semelhante, sobre a análise dos riscos, tem-se em 2011 o acidente com a Usina Nuclear de Fukushima no Japão, pois após ser atingida por uma tsunami que devastou parte do país, espalhou radioatividade pela região, contaminando inclusive as águas marítimas próximas ao local.

Este último exemplo é interessante porque traz em si a observação de que toda tecnologia e todos os riscos são produzidos em um dado espaço, e este espaço em termos de meio ambiente, é integrado por fronteiras geográficas e políticas invisíveis aos olhos dos riscos. Por esse motivo sem receio de generalizações, pode-se considerá-lo como meio ambiente global, porque por mais diferenças culturais e econômicas existentes entre os povos, o meio ambiente é único e integrado. É o fator físico que conecta todo o planeta, por ser onde a população mundial está reunida, e, desta forma, há neste espaço um patrimônio a ser protegido.

Ao trazer o exemplo do Césio-137, o principal sujeito atuante no episódio, foi um personagem intitulado como "catador de papel" que recolheu à sua casa o material radioativo. Este sujeito que à época disseram ter a função de catador, pode-se dizer que, realizava atividade laborativa semelhante à dos sujeitos pertencentes a essa pesquisa. Antigamente conhecidos como "catadores de papel" ou "carroceiros", hoje, neste estudo, adotar-se-á a denominação de SEMARES. (HOLANDA CAMILO, 2011)

Os SEMARES ou Separadores de Material Reciclável, Reutilizável ou Reaproveitável, atualmente compõem o cenário de várias cidades do Brasil. Segundo a definição da Christiane de Holanda Camilo, devido à função que desempenham, os SEMARES devem ser compreendidos como os:

(...) sujeitos atuantes na cadeia produtiva dos resíduos sólidos urbanos, de onde obtém fonte de renda principal ou secundária, a partir da separação de materiais reutilizáveis, reaproveitáveis ou recicláveis, que desempenham suas funções em diversos ambientes, sob organização econômica formal ou informal, em entidades coletivas ou de forma independente. (CAMILO, 2011).

O conceito apresentado acima define a amplitude de atuação que tem um separador, ou também denominado pela autora como SEMARE (Separador de Material Reutilizável, Reaproveitável e Reciclável), porque o conceito amplia a compreensão das funções realizadas pelos separadores e também atende os preceitos do 3R’s da Agenda 21 (ONU, 1992; HOLANDA CAMILO, 2011).

Atualmente, a maioria dos separadores não realiza o reaproveitamento nem a reutilização e estes poderiam, também, se constituir em outro mercado econômico a ser descoberto.

Atualmente no Brasil, após vinte anos de tramitação, foi aprovada a Política Nacional de Resíduos Sólidos instituída em 2 de agosto de 2010, pela Lei Federal nº 12.305, e regulamentada pelo Decreto Federal nº 7.404 em 23 de dezembro do mesmo ano. Estados e municípios terão prazo de dois anos para adequarem-se às regras.

De acordo com informações da CEMPRE (Compromisso Empresarial para a Reciclagem), empresa contratada para fazer pesquisa sobre a reciclagem

Isto posto, passa-se à caracterização deste sujeito atuante nacionalmente na cadeia produtiva dos RSU, parte importante para a compreensão dos riscos. Para tanto, este estudo concentrou-se na identificação do SEMARE que atua no local de disposição final dos resíduos de Caldas Novas (Goiás – Brasil).

Caldas Novas é uma cidade turística do sul do estado de Goiás composta de uma população fixa estimada em 65.970 habitantes e outra flutuante. A cidade recebe um fluxo intenso de pessoas o ano inteiro e picos populacionais na alta temporada. A produção de resíduos por dia é estimada em sessenta toneladas (SEMARH, 2009)

O conjunto de sujeitos foco do estudo são aqueles reunidos em cooperativa constituída que desde 2002 e atua diretamente no aterro sanitário da cidade. Há em Caldas Novas outros SEMARES que atuam de forma independente e não trabalham diretamente no aterro sanitário da cidade.

Em 2010 foram realizadas três visitas à Caldas Novas para a realização de entrevistas, relatos e observações com os SEMARES ali presentes. Dessa coleta de dados obtiveram-se os resultados expostos a seguir sobre a percepção desses trabalhadores sobre os riscos inerentes à atividade que desempenham:

Alcançou-se um universo de doze pessoas entrevistadas, dessas pessoas, três eram mulheres e nove homens com a média de idade em torno dos 31,3 anos, contabilizando 1,5 filhos por pessoa (não havia casais trabalhando juntos). Todos possuíam cadastro no Registro Geral e no Cadastro de Pessoas Físicas. Contavam com uma média de 5 anos de escolaridade, 2,5% deles tem moradia própria (algumas dessas moradias situam-se ao lado da área do aterro. Tudo o que as separa é uma cerca de arame liso e uma rua não asfaltada. Segundo os moradores as casas foram adquiridas através de pagamento parcelado e são servidas pela rede elétrica da cidade, mas não contam com água encanada nem esgoto. Aquele aglomerado de cinco casas está situado no setor conhecido como Estância Alto da Boa Vista ou apenas Alto da Boa Vista.

De todas as pessoas entrevistadas, quatro delas apresentavam problemas de saúde que, segundo eles, decorriam do trabalho.

O grupo trabalhava com separação de materiais no local há cerca de 4,2 anos. Apenas um deles acreditava que obteve melhoras "de suas condições de vida" através do trabalho de separação.

Os entrevistados ressaltam que há uma variação em sua renda entre a alta e a baixa temporada (devido à quantidade de resíduos produzidos pelos turistas), com isso, ao vender os produtos separados recebem uma média de R$ 440,75 por mês, cada um. Porém, observa-se que os separadores recebem por produção, ou seja, a renda depende da quantidade de material que separaram para vender.

Ao serem questionados sobre a percepção da situação de risco em relação a atividade que realizam, as respostas foram diferenciadas: um deles disse que não gerava risco nenhum aquela atividade; uma pessoa disse que corria risco de acidente; uma pessoa disse que havia risco apenas se tivesse contato com o lixo hospitalar; uma outra pessoa disse que o risco era apenas o de se retirado de seu trabalho pelo promotor da cidade; oito pessoas disseram que têm receio de ficarem doentes. Todos os entrevistados têm essa atividade como principal fonte de renda.

Observações feitas durante a pesquisa descrevem a vestimenta que utilizam para o trabalho: calça de jeans ou brim, camisa ou camiseta e um calçado fechado, como tênis, bota (uma pessoa utilizava uma bota plástica), chapéu ou boné.

O local onde os resíduos da cidade são depositados é classificado pela prefeitura local como aterro sanitário. A deposição do lixo doméstico ocupa a maior parte do local e o lixo hospitalar é depositado em um galpão aberto coberto por telhas de alumínio em local próximo, dentro do aterro.

Os entrevistados relataram que existe "concorrência" entre os SEMARES que atuam na cidade e os que atuam no aterro. Apontam que os que atuam na cidade "diminuem" a quantidade de material a ser separado no aterro e encaminhado à reciclagem.

Relataram ainda que, por Caldas Novas ser uma cidade turística, há também separadores que só exercem a atividade nos períodos de alta temporada, quando o fluxo de turistas produz mais resíduos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A existência da sociedade de risco é cada vez mais perceptível na medida em que os riscos, antes considerados controláveis e previsíveis pelos técnicos e peritos revelam-se incontidos, perigosos e disseminados em toda a sociedade.

Seja em Chernobil, em Fukushima ou em Goiânia, os riscos são iminentes reflexos da ação humana por meio da ciência e da tecnologia.

Pode-se comprovar com essa pesquisa que os SEMARES conseguem se perceber como sujeitos participantes da cadeia produtiva dos RSU, observam que o seu trabalho é importante para manter além da "limpeza da cidade", como observaram, diminuir o impacto sofrido pelo meio ambiente.

Por atuar diretamente na cadeia produtiva dos resíduos sólidos urbanos os SEMARES podem ser considerados como agentes ou até "gestores de riscos", de uma determinada parcela de riscos.

Estes trabalhadores, de certa forma, conseguiram se organizar e reunir-se em cooperativa, contudo admitem desconhecimento sobre como é gerida a entidade e demonstram certo desinteresse em se envolver na gestão alegando falta de conhecimento administrativo por causa de sua reduzida escolaridade.

Percebem que devido ao seu desconhecimento deixam livre a negociação e valores de venda do material que separam no aterro, permanecem sem poder de negociação, pois dizem que há apenas um comprador.

A maioria revela medo de adoecer em razão da atividade que desempenham, mesmo porque, observou-se que não utilizavam E.P.I. (Equipamento de Proteção Individual). (NR-6, 6.2, "a", "b" e "c", 31 e CLT, artigos 166 e 191).

São sujeitos que revelam opção por este trabalho, demonstrando reduzida percepção sobre outros agentes/fatores econômicos e sociais que determinam essa contingência.

No entanto, pode-se estabelecer outra sequência de riscos não percebidos pelos SEMARES, como a contaminação pelo lixo hospitalar depositado em local aberto; possibilidade de contaminação da família ao retornar para casa repleto de detritos; ingerirem água contaminada de córrego próximo ao aterro; desconhecimento sobre o que é de fato uma cooperativa, os subsídios e apoio devido aos seus cooperados; falta de E.P.I. adequado para o desempenho daquela atividade, condições dignas de trabalho; posição frágil e injusta (elo fraco) na cadeia produtiva do RSU; desconhecimento sobre o mercado que envolve os RSU; desconhecimento sobre as formas de reivindicar melhorias para as suas condições atuais de trabalho através dos órgãos públicos de gestão, como a prefeitura e de defesa do homem e do meio ambiente, como o Ministério Público, entre outros.

Ver o Ministério Público com ente adverso às suas atividades laborais é um fator de atenção, pois nesse caso, além de fiscal da lei, deve atuar em defesa dos interessas difusos e coletivos. Se a atividade dos SEMARES diminui o impacto ambiental, o MP deve ser um parceiro ao garantir condições dignas para que exerçam o seu trabalho.

Retirar o SEMARE do aterro sem lhe garantir alternativa de trabalho até que se realize as adequações necessárias, implica em retirar a fonte de renda para no mínimo 2,5 pessoas, no caso de Caldas Novas, ou, de forma geral, as conseqüências da retirada da ocupação profissional de uma pessoa gerará aumento das contingências sociais de desemprego e criminalidade.

Há que se perceber que a gestão integrada dos RSU é um tema complexo porque depende da atuação de diferentes vertentes do governo e da sociedade.

Outra necessidade é o reconhecimento de que boa parte dos municípios brasileiros são carentes em mão de obra e conhecimento técnico sobre o assunto. Tema que implica em planejamento urbano e em vontade política.

O Ministério Público deve exercer as suas funções de "custus legis" e promover ações em defesa do meio ambiente em sua amplitude, contudo, deve ainda ampliar o estudo sobre as circunstâncias que cercam a questão.

Como aponta Guivant (2010, pg. 36) é importante observar que tanto os peritos quanto os leigos são sujeitos com "racionalidade e interesses diversos, que podem estabelecer alianças cruzadas nos casos de conflitos e negociação em torno dos riscos", com isso, ponderar-se-ia sobre situações mais concretas a partir da compreensão da realidade sob ponto de vista técnico, jurídico e experimental.

É indispensável a aliança multidisciplinar sobre essa questão para que haja um diálogo entre o Poder Público e toda sociedade. Onde se cumpram as exigências legais como forma de garantir condições de atuação dos separadores e também possa com isso, criar condições para a manutenção do meio ambiente.

O impacto ambiental causado por um aterro sanitário em qualquer cidade é grande, por esse motivo, ele deve ser implantado mediante o respeito às normas ambientais, com a realização da AIA (Avaliação de Impacto Ambiental) (BRASIL, 1981) e demais análises necessárias ao controle do risco. Estabelecer um sistema de gestão integrada dos resíduos sólidos urbanos é outra necessidade urgente para que todos os sujeitos envolvidos nessa cadeia possam atuar de forma mais efetiva na realização de sua atividade.

Ante o exposto, é nítida e veemente a observação dos princípios da precaução e da garantia do desenvolvimento econômico e social economicamente sustentado como condições para que se desenvolvam as atividades no meio ambiente, diminuindo com isso, o impacto ambiental que causam.

O Direito Ambiental é um ramo do direito público que deve ser sempre considerado em sua amplitude e multidisciplinaridade porque envolve demandas políticas, econômicas e sociais indissociáveis e no caso dos separadores, urgentes, para até mesmo preservar-se não só o meio ambiente como também a dignidade humana e a vida.


REFERÊNCIAS

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CAMILO, Christiane de Holanda. Teoria social do risco aplicada ao Direito Ambiental. Precaução, sustentabilidade e os semares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3087, 14 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20626. Acesso em: 28 mar. 2024.