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Política de cotas raciais para ingresso na universidade pública.

Análise da constitucionalidade

Política de cotas raciais para ingresso na universidade pública. Análise da constitucionalidade

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Ações afirmativas, como a institucionalização de sistemas de cotas, levam a sério o direito como fator decisivo de integração nacional, prosperidade na realidade fática e sobrevivência humana, pois além de ir ao encontro dos fundamentos de cidadania e da dignidade da pessoa humana.

"Treze de maio traição.

Liberdade sem asas e fome sem pão."

(autor desconhecido)

RESUMO

O presente estudo apresenta dados relativos à comprovação, através do método dedutivo, em que se observa disposições constitucionais, por seus regramentos e princípios, bem como disposições derivadas de leis e decretos, além de escritos doutrinários a respeito, da constitucionalidade da discriminação positiva, no sentido de estabelecer uma política de cotas raciais para ingresso na Universidade Pública. É feita, também, a análise do Racismo no Brasil em relação às disparidades sociais e culturais que têm causado, ao longo dos anos, uma segregação social dos negros e afro-descendentes no país.

Palavras-chave: Racismo. Segregação. Universidade Pública. Cotas. Constitucionalidade.


1.INTRODUÇÃO

Estudar o instituto das ações afirmativas compreende esforço que se faz relevante na medida em que tal temática representa forte dissonância, inclusive doutrinária, no seio social, principalmente quando tais ações afirmativas dizem respeito à política de cotas raciais.

O fato de o assunto estar no centro das principais discussões políticas da atualidade e de gerar muita polêmica quanto à sua implementação nos moldes já propostos por instituições de ensino superior no Estado brasileiro, representa, outrossim, forte instigação à pesquisa, principalmente pelo fato de todas as propostas terem, legitimamente, como base o Princípio da Igualdade, em seu aspecto material.

A noção de igualdade, como categoria jurídica de primeira grandeza, teve sua emergência como princípio jurídico incontornável nos documentos constitucionais promulgados imediatamente após as revoluções do final do século XVIII [01].

Neste período, com a ideia de um Estado Social, em que do ente estatal era cobrada uma prestação positiva em relação aos cidadãos, e não apenas o livre agir, foi que surgiram as primeiras tentativas de solucionar diferenças entre os iguais/desiguais.

Ainda hoje isso tem sido um desafio. Como exemplo tem-se o Brasil, que se encontra em um momento em que camadas da sociedade, que têm sido discriminadas há séculos, reivindicam prestações positivas por parte do Estado a fim de compensar toda uma tradição de mazelas.

Afinal, grupos sociais marginalizados, como a comunidade negra, afro-descendente, ou afro-brasileira, como preferem alguns, que sofrem um processo de marginalização, não só cultural, como também econômica, buscam junto ao Estado, medidas de fazer valer a plenitude do princípio da igualdade, insculpido na Constituição Cidadã.

Entre os direitos reclamados por esse grupo está a promoção do acesso ao ensino superior gratuito.

A fim de satisfazer a tal desiderato, algumas universidades públicas estipularam cotas, que geralmente reservam um percentual do total de vagas para serem disputados somente por alunos negros, e, em algumas instituições, tem-se, associado ao critério racial, a exigência de ter cursado o ensino médio em escola da rede pública de ensino.

Acontece que tais discriminações positivas estão provocando a insatisfação de candidatos não negros, que julgam tal critério como inidôneo, pois, segundo eles, furta-se à exigência do mérito previsto na Constituição Federal, como meio de ingresso ao ensino superior, além de usarem argumentos científicos que negam a existência de raças entre os seres humanos.

Embora a análise do instituto da ação afirmativa remeta bastante a questionamentos de cunho sociológico, pretende-se vislumbrar análises restritas ao campo do Direito e fazer a verificação do "grau de justiça" em tais medidas. É claro que para tanto não se esquivará de um todo dos fatos sociais e do que eles representam. Afinal, como já ministrara Miguel Reale [02], o Direito surge da implicação, mais precisamente da implicação-polaridade, entre fato, valor e norma.

Obviamente, como a sociedade está em constante mutação, far-se-á necessária a constante observação da realidade fática e, por conseguinte, a constante discussão da matéria a fim de que, através de um processo dialético de reflexão, possa-se amoldar a política implementada à condição social em que se encontre.


2.O ESTADO SOCIAL DE DIREITO E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

2.1.O ESTADO SOCIAL DE DIREITO: NOÇÕES GERAIS

A luta por um Estado de Direito se espalhou pelo ocidente, especialmente em países como Estados Unidos da América, Alemanha, França e Inglaterra, em um contexto de guerras e, também, do pós-guerra, em que a sociedade da época se contrapunha às diversas formas de manifestação de tirania, seja a nazista, a fascista, a socialista, enfim, qualquer manifestação de Estado totalitário.

Junto a tal irresignação com o quadro presente, qual seja, o Liberalismo, em que do Estado se exige um não fazer, no sentido de proporcionar a maior liberdade possível à burguesia da época, que precisava de um Estado abstencionista nos moldes do laissez faire, laisser passer, le monde va du lui même, um novo prisma surgia por meio das críticas ao sistema, pois a sociedade passou a não se conformar com o fato de o Estado ter o dever único de garantir liberdade aos indivíduos.

Passa-se, então, à ideia de um Estado social de direito, em que do Estado se exige um postura ativa, a fim de atingir, não só a segurança jurídica, mas, sobretudo, os ideais de igualdade e de justiça.

Paulo Bonavides, apud Siddharta Legale Ferreira [03], explica que "o Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal".

Voltando-se os olhares para os fatos sociais, através da ótica da história, Siddharta deduz que:

O Estado social é, de fato, um modelo que se mostrou em vários regimes, cujas principais propostas podem ser exemplificadas em três documentos históricos.

O primeiro deles foi a Declaração dos direitos do povo e do trabalhador, na revolução russa de 1917.

Os outros dois foram a Constituição mexicana de 1917, resultado da revolução mexicana, e a Constituição de Weimar de 1919, resultado da Alemanha arrasada pela primeira guerra mundial.

Sabe-se que, além da revolução mexicana, que culminou na primeira constituição social do mundo, a Constituição mexicana de 1917, a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, com seus efeitos catastróficos, impulsionou o então presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, a adotar uma postura intervencionista, através de uma política conhecida como New Deal, que visava a solucionar as demandas sociais relativas à recuperação do emprego e reestruturação como um todo da vida social.

No pós segunda guerra mundial, os Estados demonstraram a preocupação em, de fato, recuperar as cidades das mazelas decorrentes da guerra. Com tal desiderato, adveio uma série de políticas intervencionistas, principalmente financiando projetos relacionados a pesquisas técnico-científicas.

A partir de então, os Estados passam a realizar uma simbiose de democracia e direitos sociais, combinando liberdades individuais com direitos sociais, econômicos e culturais. Surge, então, o caráter nitidamente de Estado social.

A constitucionalização do Estado social, no entanto, ocorreu somente com a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949, que em seu artigo 20 definiu a República Federal da Alemanha como sendo um Estado democrático e social de direito.

Observe-se que sob o prisma social do Estado não se busca um completo distanciamento das liberdades individuais, tão valorizadas pelos liberais ortodoxos, tampouco equiparar-se a um Estado socialista, mas sim combinar, como já demonstrado, elementos do Estado liberal com a necessidade de um Estado com uma postura mais ativa, mais intervencionista, a fim de proporcionar a chamada igualdade material.

Aliás, o Estado social surge como contraponto do liberalismo, influenciado pelo socialismo e pelo New Deal, mas sem romper com a ordem capitalista, tentando assegurar rumos mais igualitários à sociedade.

Assim, o Estado social é produto de uma longa transformação do Estado liberal clássico, e é parte do Estado de direito, pois incorpora direitos que vão além dos direitos civis.

2.2.O ESTADO SOCIAL NO BRASIL

2.2.1.Percepção histórica

Verificando-se o transcorrer da história constitucional brasileira tem-se que, com a Constituição de 1934, pela primeira vez, considerações sobre a ordem econômica estiveram presentes, além de uma legislação trabalhista que garantia a ordem sindical, a jornada regulamentada de 8 (oito) horas de trabalho, a previdência social e os dissídios coletivos.

Trata-se, a referida Constituição, da primeira Constituição programática do Brasil, que só foi possível após um ano de Assembléia Constituinte. Aliás, foi exatamente durante a era Vargas que o Estado brasileiro passou a tender principalmente à classe trabalhista, promulgando um conjunto efetivo de direitos sociais.

Com a Constituição de 1946, voltou-se aos princípios liberais, mas sem olvidar dos direitos sociais já garantidos durante a era Vargas. Tentou-se equilibrar o ideário social com as liberdades básicas.

Diante desse complexo panorama, Gilberto Bercovici, apud Siddharta, afirma que:

O Estado brasileiro constituído após a Revolução de 1930 é, portanto, um Estado estruturalmente heterogêneo e contraditório. É um Estado social sem nunca ter conseguido instaurar uma sociedade de bem-estar: moderno e avançado em determinados setores da economia, mas tradicional e repressor em boa parte das questões sociais. Apesar de ser considerado um Estado forte e intervencionista, é, paradoxalmente, impotente perante fortes interesses privados e corporativos dos setores mais privilegiados. Entretanto, apesar das contradições e limitações estruturais, é um Estado que pode terminar o projeto de formação nacional, ultrapassando a barreira do subdesenvolvimento.

Posteriormente, adveio a constituição de 1967, que manteve, em seu texto, e somente lá, vários dos projetos intervencionistas já previstos, assegurando os direitos sociais já previstos nas constituições anteriores. Todavia, o que se constata, através da história, é uma verdadeira violação à democracia e aos direitos sociais. Enfim, o Estado social transformou-se numa mentira, já que presente somente na lei maior, e ausente da realidade fática.

2.2.2.O Estado social e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

A Constituição de 1988, embora não tenha inserido em seu bojo a cláusula "Direitos Sociais", ultrapassou, formal e materialmente, os textos anteriores ao erigir os direitos sociais em capítulo próprio. Com ela, houve, como nunca na história constitucional brasileira, a extensão profunda dos direitos sociais, inaugurando uma nova fase do constitucionalismo brasileiro.

A Propósito, ressalta Paulo Bonavides, apud Francisco das C. Lima Filho [04]:

A constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma constituição do Estado Social. Portanto, os problemas constitucionais referentes a relação de poderes e exercício de direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra coisa a constituição do Estado social. A primeira é uma constituição antigoverno e anti-estado; a segunda uma Constituição de valores refratários ao individualismo do Direito e ao Absolutismo do Poder.

Ademais, como bem ressalta Lima Filho, no próprio preâmbulo da CRFB (Constituição da República Federativa do Brasil)/88, na medida em que o constituinte afirma que o Estado Democrático de Direito por ela instituído destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, resta patente os princípios identificadores de um Estado Social de Direito.

Como resultado de uma reflexão antiliberal, e inspirada nos direitos chamados de 2ª geração ou de 2ª dimensão, que prezam pela busca da igualdade, típicos do século XX, converteu-se em tarefas incumbidas ao Estado, dentre outras, saúde, assistência social, previdência, acesso à justiça, trabalho, lazer, segurança, moradia, bem como educação.

Na CRFB/88, os direitos sociais encontram-se, principalmente, integrando os direitos e garantias fundamentais, no Título II da mesma, logo após a descrição dos princípios fundamentais do Título I.

Entretanto, é no título Da Ordem Social, dos artigos 194 ao 217, que as regras relacionadas à seguridade social, à saúde, à previdência social, à educação, ao lazer, à maternidade e à infância se encontram.

Dentre os direitos sociais, que representam dever ao Estado, a educação se apresenta como sendo aquele de grande valia à concretização dos objetivos da República, pois se trata de um autêntico direito social, que objetiva o pleno desenvolvimento da pessoa, o seu preparo para o exercício da cidadania e para o trabalho.

Aliás, compreende a essência de um Estado Social de Direito que a Administração Pública atue visando a satisfazer os interesses da sociedade com fito na concretude dos direitos sociais, seja através de políticas de redistribuição, seja através de políticas de reconhecimento que vise a minorar ou a eliminar desigualdades e a combater as injustiças sociais.

Para a realização de políticas distributivas, faz-se necessário o dispêndio de recursos, por vezes muito altos, mas imprescindíveis para o cumprimento dos objetivos previstos no artigo 3º da CRFB de 1988, que busca erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais.

Aliás, a realização de políticas distributivas tem íntima relação com a justiça distributiva aristotélica, segundo a qual é necessário tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na proporção de suas desigualdades.

As políticas de redistribuição (distributivas) são voltadas às camadas mais pobres da população. São exemplos de sua implementação nos últimos anos a disponibilidade, a tais pessoas carentes, de bolsas, nas suas mais variadas modalidades, como o bolsa família e o bolsa escola.

As políticas de reconhecimento, por outro lado, exteriorizam-se através das chamadas Ações Afirmativas. Dentre elas, destaca-se a Política de cotas raciais para ingresso na universidade pública, a fim de promover a realização da justiça social àqueles grupos que historicamente são marginalizados e oprimidos em um modelo burguês de sociedade, em que se valoriza o estigma do europeu, em detrimento de suas raízes.

Na constituição de 1988, as políticas distributivas e de reconhecimento não se apresentam como modelos ou sistemas estanques, isolados entre si, pelo contrário, busca-se a conjugação de tais políticas, a fim de melhor atingir seu desiderato.

São exemplos concretos, na CRFB/88, do caráter intervencionista do Estado, o contido nos artigos 1°, incisos III e IV; 3º, incisos I, II, III e IV; 170, incisos III, VI, VII, VIII e IX; 193; e 194.


3.AÇÕES AFIRMATIVAS

3.1.CONCEITO, ORIGEM E AMPLITUDE

De acordo com Joaquim Barbosa [05], pode-se conceituar as ações afirmativas da seguinte maneira:

Consistem em políticas públicas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional, de compleição física e situação socioeconômica. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados, e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, tem como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade de observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano.

Inicialmente, tais intervenções foram conhecidas como mecanismos de integração largamente adotados nos Estados Unidos sob a denominação de affirmative action (ação afirmativa) e na Europa sob o nome discrimination positive (discriminação positiva) e action positive (ação positiva).

Marcos importantíssimos para traçar a origem da implementação das políticas de ação afirmativa no Estado brasileiro estão nos anos de 1968, 1980 e, sobretudo, no de 1988, com a abertura política concebida pela nova constituição.

Pode-se identificar entre as medidas adotas na criação de 1980, dentre outras coisas, a adoção da reserva de vagas em 20% para mulheres e homens negros no serviço público; bolsas de estudo; incentivo às empresas privadas que trabalhassem a fim de promover a eliminação da discriminação racial; e introdução no currículo básico de ensino o estudo da história e da cultura das civilizações africanas.

Em 1988, através da promulgação da Constituição Cidadã, as discussões em torno das ações afirmativas tomaram alçada constitucional. Afinal, a referida constituição trouxe, em seu artigo 37, a obrigatoriedade da reserva de vagas em concursos públicos às pessoas portadoras de deficiência. Esta foi a porta que necessitava ser aberta para que discussões relativas à raça, gênero, dentre outras relativas a ações afirmativas, fossem discutidas como de ordem constitucional.

Tudo isso fez com que em 1995 fosse adotada nacionalmente uma política de reserva de vagas às mulheres no poder político, tais correspondendo a 30% do total de membros. O ano seguinte, 1996, culminou com o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, em que se tentou promover o acesso a cursos de graduação e tecnólogos de ponta à comunidade negra, além de políticas compensatórias a esta mesma classe.

Como já afirmara Joaquim Barbosa e Fernanda da Silva [06],

Esses projetos apresentados por parlamentares das mais diversas tendências ideológicas, em geral buscam mitigar a flagrante desigualdade brasileira atacando-a naquilo que para muitos constitui a sua causa primordial, isto é, o nosso segregador sistema educacional, que tradicionalmente, por diversos mecanismos, sempre reservou aos negros e pobres em geral uma educação de inferior qualidade, dedicando o essencial dos recursos materiais, humanos e financeiros voltados à educação de todos os brasileiros, a um pequeno contingente da população que detém a hegemonia política, econômica e social no País, isto é, a elite branca.

Joaquim Barbosa e Fernanda da Silva, citando Cármen Lúcia Antunes Rocha, escrevem:

em nenhum Estado Democrático, até a década de 60, e em quase nenhum até esta última década do século XX se cuidou de promover a igualação e vencerem-se os preconceitos por comportamentos estatais e particulares obrigatórios pelos quais se superassem todas as formas de desigualação injusta. Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas ou psíquicas, por idade, etc., continuam em estado de desalento jurídico em grande parte do mundo. Inobstante a garantia constitucional da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos, não são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política, de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da convivência social, da experiência democrática na sociedade política.

O dilema americano com a marginalização social e econômica do negro fez com os Estados Unidos fossem o país pioneiro na adoção das políticas de ação afirmativa. Posteriormente, passou-se, outrossim, a atender a outros setores da sociedade, visando a romper não só as manifestações flagrantes de discriminação, mas também aquelas enraizadas, de cunho cultural e histórico.

Políticas aptas a induzir à ampliação de oportunidades, além das transformações de cunho psicológico e pedagógico constituem a relevância da adoção das ações afirmativas. Tudo isso sem falar na mácula que ainda há atualmente na identificação da cor de pele, derivada de um passado opressor. A discriminação positiva viria a suprimir do imaginário coletivo o ideal de superioridade advindo da cútis.

Assim, além de dissipar os conflitos trazidos pelo passado, ainda impede a perpetuação de tais injustiças no futuro.


4.A QUESTÃO DAS COTAS

4.1.PANORAMA SOCIAL HODIERNO DO NEGRO NO BRASIL

O Brasil abriga a segunda maior população negra do mundo. No Censo de 2000 os pretos e pardos eram mais de 75 milhões de pessoas em todo o país.

Do ponto de vista proporcional, o maior município negro do Brasil é a cidade sergipana de Nossa Senhora das Dores. No ano 2000, esta cidade era um verdadeiro quilombo, pois os negros correspondiam a 98,7% da população. Santo Inácio do Piauí vinha em segundo lugar, com 97,2% de negros. Entre as maiores concentrações de pretos e pardos também encontrava-se Caapiranga, no Amazonas, Serrano do Maranhão, no Maranhão e Pracuuba, no Amapá.

De acordo com a revista Tempo em curso, [07]

No mês de abril de 2010, o rendimento habitual médio do trabalho principal da PEA metropolitana branca foi de R$ 1.825,24, e o da PEA metropolitana preta & parda foi de R$ 939,48. O mesmo indicador, entre os trabalhadores brancos do sexo masculino, correspondeu a R$ 2.105,37; e entre as trabalhadoras brancas a R$ 1.495,41. Entre os trabalhadores pretos & pardos, aquele mesmo indicador foi de R$ 1.070,57 para os homens e de R$ 771,13 para as mulheres.

O argumento de que a desigualdade no Brasil é de classe é falso na medida em que estudos sobre mobilidade social constatam que para o mesmo nível de renda, ou seja, mesma origem social, brancos tem possibilidade de ascensão social bem maior que pretos e pardos. Senão veja-se:

Brancos são muito mais eficientes em converter experiência e escolaridade em retornos monetários, enquanto que os não brancos sofrem desvantagens crescentes ao tentarem subir a escada social. [08]

A mobilidade social do negro, ou seja, sua ascensão relativa ao conjunto da sociedade, mantém-se em patamares residuais. Não houve alteração do quadro de oportunidades no mercado de trabalho, principal fonte de renda e de mobilidade social ascendente. [09]

As probabilidades de fugir às limitações ligadas a uma posição social baixa são consideravelmente menores para os não brancos que para os brancos de mesma origem social. Em comparação com os brancos, os não brancos sofrem uma desvantagem competitiva em todas fases do processo de transmissão do status. [10]

4.2.A CONSTITUCIONALIDADE DA DISCRIMINAÇÃO POSITIVA NO ENSINO SUPERIOR

Segundo o disposto na norma do artigo 206, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil, reproduzida no enunciado do artigo 3º, inciso I, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a todos deve ser assegurada igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.

A educação, consagrada em nossa Carta Magna como direito fundamental, considerada serviço público essencial, deve ser entendida não apenas como o simples aprendizado da leitura, da escrita e do cálculo, mas como o direito ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, como preparo ao exercício da cidadania.

Segundo os ensinamentos de José Celso de Mello Filho, o conceito de educação:

é mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático.

O direito à educação teve diferentes enfoques durante a história das constituições brasileiras, sempre dentro do modelo político adotado em cada época. Desde a primeira Constituição, em 1824, quando existia o entendimento de que a educação deveria ficar a cargo da família e da Igreja Católica; passando pela de 1937, elaborada sob um regime fascista, que elaborou diretrizes que deveriam obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e da juventude e pela de 1967, que foi antecedida de diversos atos jurídicos antidemocráticos iniciados com o Golpe de Estado de 1964.

A Constituição mesma já considerou que o acesso ao ensino fundamental, obrigatório e gratuito, é direito público subjetivo; equivale dizer que é direito plenamente eficaz e de aplicabilidade imediata, segundo a classificação de José Afonso da Silva, isto é, direito exigível judicialmente, se não for prestado espontaneamente.

Como diria Norberto Bobbio, apud Hédio Silva Júnior, o exercício da interpretação demanda um olhar sobre a floresta, e não sobre a árvore, de sorte que não basta destacar uma regra específica referente à igualdade. Impõe-se cotejar tal regra com o regime constitucional da igualdade. Isto é, considerá-la em conexão com as demais regras do sistema jurídico.

De acordo com Hédio Silva Júnior [11], a dimensão positiva do princípio da igualdade encontra sustentação em três espécies de regras constitucionais.

A primeira, de teor rigorosamente igualitarista, de alta densidade semântica, atribui ao Estado o dever de abolir a marginalização e as desigualdades, destacando-se, entre outras:

Art. 3º, III – erradicar a [...] marginalização e reduzir as desigualdades sociais [...]

[...]

Art. 23, X – combater [...] os fatores de marginalização;

[...]

Art. 170, VII – redução das desigualdades [...] sociais; [...]

Já uma segunda espécie de regras fixa textualmente prestações positivas destinadas à promoção e integração dos segmentos desfavorecidos, merecendo realce:

Art. 3º, IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

[...]

Art.23, X – combater [...] as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;

[...]

Art. 227, II – criação de programas [...] de integração social dos adolescentes portadores de deficiência; [...]

Por último, mas não em último lugar, tem-se as normas que textualmente prescrevem discriminação, discriminação justa, como forma de compensar desigualdade de oportunidades, ou, em alguns casos, de fomentar o desenvolvimento de setores considerados prioritários, devendo ser ressaltadas:

Art. 7º, XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei:

[...]

Art. 37, VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios e sua admissão;

[...]

Art. 145, § 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...];

[...]

Art. 170, IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País;

[...]

Art. 179 – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

Voltando-se os olhares para o plano das regras infraconstitucionais, destacam-se:

a)O Decreto-Lei nº 5 452/43 (CLT), que prevê, em seu artigo 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas;

b)O Decreto-Lei nº 5 452/43 (CLT), que estabelece, em seu artigo 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualação de direitos entre homens e mulheres;

c)A Lei nº 8 112/90, que prescreve, em seu artigo 93, cotas para os portadores de deficiência no serviço público civil da União;

d)A Lei nº 8 213/91, que fixou, em seu artigo 93, cotas para os portadores de deficiência no setor privado, compreendida como reserva sistemática de acesso;

e)A Lei nº 8 666/93, que preceitua, em seu artigo 24, inciso XX, a exigibilidade de licitação para a contratação de associações filantrópicas de portadores de deficiência;

f)A Lei nº 10 678/03, que cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; e

g)A Lei nº 9 504/97, que preconiza, em seu artigo 10, § 2º, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias.

Acerca das cotas referidas no item "g", assim se manifestou o TSE:

Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres. Tal texto do parágrafo 3° do artigo 11 da Lei nº 9 100/95, não é incompatível com o inciso I do artigo 5º da constituição (TSE – Recurso Especial nº 13 759 – Rel. Nilson Vital Naves – j. 10-12-1996).

Segundo Joaquim B. Barbosa Gomes,

As leis 9.100/95 e 9.504/97 tiveram a virtude de lançar o debate em torno das ações afirmativas e, sobretudo, de tornar evidente a necessidade premente de se implementar de maneira efetiva a isonomia em matéria de gênero em nosso país. As cotas de candidaturas femininas constituem apenas o primeiro passo nesse sentido. Se é certo que é preciso tempo para se fazer avaliações mais seguras acerca da sua eficácia como medida de transformação social, não há dúvida de que já anunciam alguns resultados alvissareiros, como o incremento significativo, em termos globais, da participação feminina nas instâncias de poder. (grifado)

A utilização do critério racial como sucedâneo de distribuição de direitos encontra ampla aceitação na produção internacional. O Brasil, inclusive, ratificou alguns destes textos, e. g., a Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Decreto nº 65 810/69, que no artigo 1º, item 4, preceitua que

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem alcançado os seus objetivos.

Há, ainda, a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino, promulgada pelo Decreto nº 63 223/68:

Art. 1. Para os fins da presente Convenção, o termo "discriminação" abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino e, principalmente:

a)privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos tipos ou graus de ensino;

b)limitar a nível inferior a educação de qualquer pessoa ou grupo;

c)sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção, instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos de pessoas; ou

d)de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições incompatíveis com a dignidade do homem.

Art. 2. Para os fins da presente Convenção, a palavra "ensino" refere-se aos diversos tipos e graus de ensino e compreende o acesso ao ensino, seu nível e qualidade e as condições em que é subministrado.

Na classificação da LDB [12] (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), em seu artigo 16, a educação superior se enquadra no sistema federal de ensino, que abrange as instituições educacionais mantidas pela União e pelos estabelecimentos de educação superior particulares.

O acesso ao ensino superior está enfatizado no art. 208, V da CF/88 e no art. 44, II da LDB.

Da análise desses dispositivos legais extrai-se que o acesso ao ensino superior se faz pela análise do mérito/capacidade de cada estudante que conclua o ensino médio; o que, na grande maioria das instituições de ensino superior, se aplica por meio de exame vestibular.

O vestibular é a principal forma de ingresso na universidade, pois é por ele que o conhecimento do candidato é aferido e a legitimidade de assento em um banco universitário é garantida.

No entanto, não está claro o que se quer dizer com o termo capacidade. Afinal não será qualquer capacidade pessoal levada em consideração no exame de admissão. Certamente, a capacidade referida é aquela que está de acordo com as atividades-fins da instituição.

Fazem-se questões de cunho meramente cognitivo, avaliando somente a capacidade intelectual e o grau de conhecimento do candidato.

As ações afirmativas atuariam como mecanismo de incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos minoritários, que invariavelmente assistem ao bloqueio de seu potencial de inventividade, de criação e de motivação ao aprimoramento e ao crescimento individual, vítimas das sutilezas de um sistema jurídico, político, econômico e social concebido para mantê-los em situação de excluídos.

Essa igualdade de oportunidades, na forma de inclusão social, viria a propiciar o combate às distorções econômicas e sociais verificadas ao longo do tempo e relacionadas, por exemplo, ao direito à educação, ao emprego, ao salário.

Cabe elucidar o princípio da igualdade e suas duas concepções, formal e material, neste trabalho, tendo em vista que os objetivos das ações afirmativas, em especial a restauração do equilíbrio entre grupos historicamente excluídos e o resto da sociedade, estão intimamente ligados ao conceito de políticas afirmativas.

A concepção do princípio da igualdade e dos direitos fundamentais tem origens ligadas ao pensamento cristão, como fonte remota; a doutrina do direito natural dos Séculos XVII e XVIII; o pensamento iluminista; e, posteriormente, o manifesto comunista e as doutrinas marxistas; a doutrina da Igreja, a partir do Papa Leão XIII e o intervencionismo estatal.

A primeira maneira de utilização da concepção de igualdade como princípio foi a formal. A formal é a igualdade perante a lei, tendo seu conceito estreitamente ligado aos moldes do Estado Liberal Burguês. Este modelo estatal primava pela liberdade, com supremacia dos direitos civis e políticos, em confronto com a ausência de qualquer direito social, econômico e cultural.

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]".

A Constituição Federal de 1988 no primeiro artigo do título que trata dos

direitos e garantias fundamentais (art. 5º, caput), traz o princípio da igualdade em sentido formal.

Segundo José Afonso da Silva,

Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, [...] especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social.

A Constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, na medida em que não se limita ao simples enunciado da igualdade perante a lei; menciona também igualdade perante homens e mulheres e acrescenta vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação.

A visão da igualdade formal, por se demonstrar ineficaz em seu sentido

prático, insuficiente para tornar as mesmas oportunidades acessíveis a todos, foi perdendo espaço para a idéia da igualdade material.

Na lição de Joaquim B. Barbosa Gomes,

[...] Cuida-se, nos dias atuais, de se consolidar a noção da igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção dinâmica, militante de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade.

Como já demonstrado acima, em capítulo próprio, muito embora o Brasil tenha ratificado, em 1968, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1965, o debate sobre a situação dos negros só se iniciou em 1995, no Governo do Fernando Henrique Cardoso, sob pressão dos movimentos negros. O então presidente admitiu oficialmente, pela primeira vez na história brasileira, que os negros eram discriminados.

Apesar desse primeiro passo, de reconhecimento oficial do racismo no Brasil, pode-se dizer que até agosto de 2000 o governo brasileiro não havia empreendido grandes esforços para que a discussão e implementação de ações afirmativas entrasse na agenda política e/ou nacional brasileira.

Insta destacar que o documento oficial brasileiro apresentado à Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, em Durban, na África do Sul (31 de agosto a 7 de setembro de 2001), defendeu [...] a adoção de medidas afirmativas para a população afro-descendente, nas áreas de educação e trabalho.

O documento propôs a adoção de ações afirmativas para garantir o maior acesso de afro-descendentes às universidades públicas, bem como a utilização, em licitações públicas, de um critério de desempate que considere a presença de afro-descendentes, homossexuais e mulheres, no quadro funcional das empresas concorrentes.

A Conferência, em suas recomendações, especialmente nos seus parágrafos 107 e 108, endossa a importância de os Estados adotarem ações afirmativas, enquanto medidas especiais e compensatórias voltadas a aliviar a carga de um passado discriminatório, daqueles que foram vítimas da discriminação racial e de outras formas de intolerância correlata.

Antecipando-se ao Governo Federal, o estado do Rio de Janeiro destacou-se como pioneiro na aplicação de políticas afirmativas raciais por meio de lei.

Entre os anos 2000 e 2001, foram editadas as Leis Estaduais nº 3.524 e 3.708, que fizeram ingressar nas universidades estaduais, em 2003, a primeira turma pelo sistema de cotas.

Após debates entre a direção das universidades, o governo do estado e setores do Movimento Negro, houve a elaboração da Lei nº 4.151/2003, que unificou e modificou as leis anteriores, prevendo em seu artigo 5º que seriam reservadas aos estudantes carentes um mínimo de 45% das vagas, distribuídas da seguinte forma: 20% para estudantes da rede pública de ensino; 20% para negros e 5% para pessoas com deficiência.

Depois da realização de diversos estudos, foi elaborada a Lei nº 5.346, de 11 de dezembro de 2008, que criou o novo sistema de cotas para ingresso nas universidades do estado do Rio de Janeiro.

As vagas passaram a ser reservadas da seguinte forma (art. 2º): 20% para estudantes negros e indígenas, 20% para estudantes oriundos da rede pública de ensino e 5% para pessoas com deficiência e filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.

Com tal exemplo, a partir da implantação pelas universidades do Rio de Janeiro, várias outras instituições de ensino superior começaram a adotar políticas afirmativas.

A Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por intermédio da Resolução nº 196/2002, estabeleceu a cota mínima de 40% das vagas para a população afrodescendente, relativas aos cursos de graduação e pós-graduação (medida implementada no processo seletivo/vestibular/2003), cuja seleção operou-se em dezembro de 2002.

Em junho de 2004, a Universidade de Brasília foi a primeira Universidade Federal a implementar a política de cotas raciais, com a adoção do Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial, que reservou 20% de suas vagas para estudantes negros.

Há, ainda, instituições que adotam sistema diverso das universidades acima. Estas implementaram, como ação afirmativa racial, uma política de bônus, na qual o alunos afrodescendentes teriam acrescidos em sua nota final uma nota bônus, a fim de minimizar as diferenças entre os grupos étnicos.

Assim, verifica-se que, baseadas na autonomia universitária, as instituições utilizam-se de meios diversos para a instituição das cotas.

Existem aquelas que aplicam as políticas afirmativas por meio de resoluções dos conselhos universitários e algumas se valem dos próprios editais dos vestibulares.

A UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), por meio da Resolução nº 008/2007, disciplinou:

- o candidato que optar por participar pode escolher somente uma das modalidades previstas no Programa de Ações Afirmativas e também concorrerá às vagas destinadas à classificação geral;

- negros oriundos de escolas privadas podem ser beneficiados pela reserva de vagas, desde que não sejam preenchidos os 10% destinados aos afrodescendentes que cursaram o ensino médio e fundamental em escolas públicas;

- o candidato autodeclarado negro poderá ser entrevistado por uma comissão institucional para validar sua matrícula;

- os candidatos que estudaram somente um ano ou foram beneficiados por bolsas de estudos em escolas particulares não podem concorrer às vagas destinadas aos egressos do ensino público;

- caso o percentual destinado aos egressos de escola pública não venha a ser preenchido, as vagas remanescentes serão ocupadas por candidatos da classificação geral.

A autonomia universitária está prevista no art. 207 da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos: "As Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão".

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9.394/96, consagra a autonomia universitária no capítulo IV, que trata do ensino superior. Os artigos 53 e 54 demonstram os limites e atribuições das instituições de ensino superior.

Tal autonomia vem ganhando destaque nas discussões a respeito da implantação das políticas de ação afirmativa nas instituições públicas de ensino. Tanto nas ações propostas contra as Resoluções Normativas que instituem, quanto nos projetos de lei acerca do tema.

É dever do Estado, garantir o acesso aos níveis mais elevados do ensino, conforme artigo 208, inciso V, da Constituição Federal de 1988, e tal acesso deverá ser feito em igualdade de condições e permanência na escola.


5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um primeiro momento, o Estado brasileiro, ao instituir oficialmente uma ordem de escravidão e permitir a vigência de direitos de um homem sobre outro apenas por ser sua raça supostamente superior, produz um prejuízo moral que, no curso do tempo, sob a ótica da historiografia, e com a manutenção dessa ordem injusta, traz consigo um prejuízo material de produção de desigualdade racial e posteriormente a social.

O preconceito, que outrora fora racial, no seu conceito mais puro, fez-se enraizar na sociedade, de forma que sua perpetuação, que agora é de natureza cultural, solidificasse nas mentes humanas, com forte elemento psicológico, a ideia de inferioridade do homem negro.

Assim, políticas baseadas verdadeiramente na raça, sem abster-se do cerne do debate, cumprem preceitos constitucionais melhor do que plataformas públicas neutras, incolores e defensivas do ponto de vista racial que de fato não o encaram com a devida urgência.

Em suma, ações afirmativas, como a institucionalização de sistemas de cotas, levam a sério o direito como fator decisivo de integração nacional, prosperidade na realidade fática e sobrevivência humana, pois além de ir ao encontro dos fundamentos de cidadania e da dignidade da pessoa humana, atende aos objetivos da Carta Política, no sentido de promover o bem de todos, a justiça social e a igualdade material.

A política de cotas raciais apresenta-se apenas como mais um passo que o Estado brasileiro dá em busca da igualdade material, afinal outro não é o entendimento que se pode extrair diante de todo o arcabouço legislativo e constitucional, referente à promoção da discriminação, com o desiderato de se atingir a plenitude e eficácia de direitos em um Estado Democrático de Direito.

Por tudo isso, há de se entender como legitimamente constitucional a política de cotas raciais para ingresso na universidade pública.


REFERÊNCIAS

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Tempo em curso. Publicação eletrônica mensal sobre as desigualdades de cor ou raça e gênero no mercado de trabalho metropolitano brasileiro. Ano II, vol. 2, nº 6, junho, 2010, pag. 3.


Notas

  1. GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa no Direito Constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 38 n. 51 jul./set. 2001, p. 130.
  2. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5. ed. São Paulo, 1994.
  3. FERREIRA, Siddharta Legale. Estado social e democrático de direito: história, direitos fundamentais e separação de poderes. Disponível em: http://www.cspb.org.br/docs_concursos2009/monografiasiddharta.pdf. Acesso em: 4 de julho de 2010.
  4. LIMA FILHO, Francisco das C. O Estado social: modelo espanhol e modelo brasileiro. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=891. Acesso em: 4 de julho de 2010.
  5. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 6-7.
  6. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. As ações afirmativas e o processo de promoção da igualdade efetiva. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/revista/seriecadernos/vol24/artigo04.pdf. Acesso em : 9 de julho de 2010.
  7. Tempo em curso. Publicação eletrônica mensal sobre as desigualdades de cor ou raça e gênero no mercado de trabalho metropolitano brasileiro. Ano II, vol. 2, nº 6, junho, 2010, pag. 3.
  8. SILVA. Nelson do Valle. Black-White income differentials in Brazil. Doutorado, sociologia. Universidade de Michigan: Michigan, 1978. p. 287, 291. (traduzido)
  9. SOARES, Sergei in Theodoro, Mário (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. p. 128.
  10. HASENBALG, Carlos A. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de janeiro: Graal, 1979.
  11. SILVA JÚNIOR, Hédio. Ação afirmativa para negros (as) nas universidades: a concretização do princípio constitucional da igualdade. IN: SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). Educação e Ações Afirmativas / Entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: INEP, 2003. p. 101 – 113.
  12. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2762/ldb_5ed.pdf. Acesso em: 29-11-2011.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Gerson Mesquita de. Política de cotas raciais para ingresso na universidade pública. Análise da constitucionalidade . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3097, 24 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20705. Acesso em: 5 maio 2024.