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O observatório judiciário de Ronald Dworkin.

O império do Direito e o conceito de integridade

O observatório judiciário de Ronald Dworkin. O império do Direito e o conceito de integridade

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O Direito como integridade pressupõe que o juiz consciente de sua função deve apreciar vários critérios, dentre eles as circunstâncias do caso concreto, a moral política da comunidade e a opinião das instituições que estão ou devem estar coerentes com o grupo social e a constituição.

Resumo: o artigo transforma metodologicamente o livro O império do direito de Ronald Dworkin em um programa de pesquisa institucional qualificado para produzir conhecimento crítico sobre os processos judiciais no cotidiano do Poder Judiciário, refutando a influência do convencionalismo e do pragmatismo jurídico. O artigo contribui desse modo na ampliação do debate das ideias desenvolvidas por Ronald Dworkin propondo uma representação metodológica inédita sobre o livro O império do direito que é testada e bem sucedida, empiricamente, no estudo das decisões judiciais.

Palavras-chave: integridade; programa de pesquisa; juiz ideal.

Summary: the article makes the book methodologically Law’s empire Ronald Dworkin in a qualified institutional research program to produce critical knowledge about the judicial proceedings in the daily of the Judiciary, refuting the influence of legal conventionalism and pragmatism. The article contributes to the wider debate of ideas developed by Ronald Dworkin proposing a novel methodological representation on the book Law’s empire that is tested and successful empirically in the study of judicial decisions.

Keywords: integrity; research program; ideal judge.


Introdução

Vários autores nacionais têm procurado compreender e simplificar nos últimos treze anos o conteúdo do livro O império do direito de Ronald Dworkin, sobretudo a partir do momento em que esta obra foi traduzida e disponibilizada editorialmente para o grande público brasileiro. Nesse período, entretanto, chama a nossa atenção o fato de que a produção acadêmica resultante das tentativas "hercúleas" dos autores nacionais aqui selecionados não formalizou tecnicamente a estrutura epistemológica do conceito de integridade como um todo, muito menos aprofundou a importância do arcabouço weberiano que faz parte, implicitamente, da fórmula de pensamento dessa virtude política definida pelo autor Ronald Dworkin.

Diante dessa lacuna epistemológica, que em nossa avaliação é um tema relevante de pesquisa ainda não enfrentado satisfatoriamente pelos críticos nacionais, procuramos acrescentar a nossa contribuição demonstrando que o conceito de integridade possui uma estrutura metodológica qualificada para integrar os princípios transcendentes com os princípios práticos do direito, contando oportunamente com a ajuda de um juiz ideal de nome Hércules, que hipoteticamente é dono de um conhecimento perfeito sobre os critérios de ligação que podem resolver a demanda constitucionalista apontada pelo autor Ronald Dworkin no livro O império do direito.

O juiz ideal Hércules apresenta uma personalidade híbrida, incluindo vários atributos de natureza moral, existencialista, hermenêutica e democrática. Por essa razão, Hércules é dotado de uma consciência crítica, reflexiva e metódica especializada para juntar o real do cotidiano judiciário com o ideal da constituição. Além disso, Hércules tem poderes argumentativos extraordinários que lhe possibilitam superar simultaneamente a influência cultural do convencionalismo e do pragmatismo jurídicos.

Em nossa hipótese de trabalho, o existencialismo do conceito de integridade recomenda ao juiz que ele valorize o tempo presente como fonte imediata de inspiração jurídica e não mais exclusivamente o passado ou futuro conforme propõem o convencionalismo e o pragmatismo jurídicos em casos difíceis ou obscuros. Do ponto de vista moral, o desafio do conceito de integridade consiste fundamentalmente em orientar a realização da justiça e da equidade de forma simultânea, evitando que a maioria da comunidade tome decisões injustas sobre os direitos individuais no julgamento ou efetivação das políticas públicas (DWORKIN, 2007, p. 214; 215. Consequentemente, o juiz nesse quadro hipotético possui não só responsabilidade técnica, mas também moral e política sobre a garantia da justiça e do bem comum em relação aos cidadãos e à comunidade nacional. Além disso, no aspecto democrático "cada ponto de vista deve ter voz no processo de deliberação, mas a decisão coletiva deve, não obstante, tentar fundamentar-se em algum princípio coerente cuja influência se estenda então aos limites naturais de sua autoridade" (ibid., p. 217). De acordo ainda com Dworkin (ibid., p. 228), uma sociedade que aceita a integridade como virtude política "se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade especial num sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva". Para se defender o princípio legislativo da integridade, por exemplo, "devemos defender o estilo geral de argumentação que considera a própria comunidade como um agente moral" (ibid., p. 227).

Dworkin considerou no livro O império do direito que o processo da integridade é como se fosse um "veículo para transformação orgânica" da comunidade, mesmo que este processo nem sempre seja eficaz. O autor reconheceu, por outro lado, que o processo da integridade é menos eficiente quando as pessoas divergem, "como é inevitável que às vezes aconteça, sobre quais princípios são de fato assumidos pelas regras explícitas e por outras normas de sua comunidade" (ibid., p. 229). Positivamente, entretanto, o conceito de integridade contribui, segundo Dworkin, para aumentar a eficiência do direito, pois a partir do momento em que as pessoas reconhecem que são governadas não só por regras explícitas estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas sim por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem então:

[...] o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se, organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito.

A estrutura principiológica do conceito de integridade reúne uma série de princípios transcendentes ou fundamentais - responsabilidade, liberdade, igualdade, dignidade, fraternidade e legitimidade de coerção do Estado - que devem ser integrados, por sua vez, com os princípios operacionais ou práticos de natureza legislativa, jurisdicional e processual do direito (ibid., p. 212). Essa integração prático-transcendente dependerá sempre da atitude sintetizadora do juiz. Nesse sentido, a melhor estratégia para se conhecer os efeitos extremos dessa integração consiste em incluir a participação do juiz Hércules, que metodologicamente é uma hipótese auxiliar da atividade programática.

No sistema de valores do conceito de integridade o ideal de autogoverno apresenta um tópico especial que deve ser mencionado nessa parte introdutória. A observação desse aspecto, de acordo com o autor, "vai nos levar à nossa discussão principal de legitimidade e de obrigação política" (ibid., p.230). Conforme definiu Ronald Dworkin (ibid., p. 230) nesse sentido, "a integridade expande e aprofunda o papel que os cidadãos podem desempenhar individualmente para desenvolver as normas públicas de sua comunidade, pois exige que tratem as relações entre si mesmos como se estas fossem regidas de modo característico e não espasmódico, por essas normas". Ao mesmo tempo, "a integridade [...] promove a união da vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entram em conflito que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania" (ibid., p. 230).

Outra característica marcante desse sistema de valores ou estrutura principiológica deste conceito de trabalho é que "a integridade infunde às circunstâncias públicas e privadas o espírito de uma e de outra, interpenetrando-as para o benefício de ambas. Essa continuidade tem valor prático e indicativo, pois facilita a mudança orgânica que já mencionei há pouco, como uma vantagem prática" (ibid., p. 230).

No processo de trabalho conceitual da integridade o que se espera do juiz e de outros agentes do direito é que suas decisões sejam coerentes, abrangentes, adequadas, justificáveis, criativas e íntegras. Por exemplo, "[...] Cada estado federado fala com uma só voz, ainda que esta não esteja em harmonia com a de outros. Em um sistema federal, porém, a integridade impõe exigências às decisões de ordem superior, tomadas em nível constitucional, sobre a divisão do poder entre o nível nacional e os níveis locais" (DWORKIN, 2007, p. 225-6). Completa ainda o autor (ibid., p. 264) afirmando que o critério da coerência é tradicionalmente associado com a repetição de decisões anteriores de modo mais fiel ou precisamente possível. Entretanto, a coerência no domínio da integridade diz respeito, para Dworkin, com a articulação de princípios e não de regras ou de exemplos passados.

A integridade é uma norma muito mais dinâmica e radical do que parece inicialmente, explicou Dworkin, porque incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo na busca da coerência com algum princípio fundamental (ibid., p. 265). Uma interpretação bem-sucedida não deve tão somente adequar-se à prática que interpreta; deve também justificá-la. Portanto, as decisões só podem ser justificadas desenvolvendo-se algum sistema geral de responsabilidade moral que se pudesse considerar como um atributo dos membros de uma comunidade, no sentido de não prejudicar os demais. Nesse sentido, Ronald Dworkin (ibid., p. 264) considerou que:

A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo.

Em suma, o conceito epistemológico ou programático da integridade reúne uma série de proposições de natureza metafísica, metodológica, axiológica, teórica, pragmática e contextual que podem ser resumidas inicialmente do seguinte modo:

- No aspecto individual, a integridade é um comportamento sintético do juiz que possui atributos da filosofia moralista, existencialista, hermenêutica e democrática.

- Institucionalmente, a integridade é um conceito de trabalho encontrado no cotidiano dos Poderes Judiciário e Legislativo.

- A integridade é uma fórmula de pensamento inventada por Ronald Dworkin usada para descrever e avaliar a ação institucional dos juízes num determinado jogo principiológico.

- A integração prático-transcendente dos princípios depende da iniciativa criteriosa e filosófica de um juiz humano produzindo conhecimento especializado sobre a prática judicial representando virtualmente uma comunidade - ou cultura judiciária - de princípios.

- A integridade se distancia obrigatoriamente de dois extremos indesejáveis: o convencionalismo e o pragmatismo jurídicos.

- A integridade é um processo de releitura constitucional que utiliza o método da interpretação construtiva semelhante ao que é praticado nos estudos literários.

- A integridade valoriza constitucionalmente a liberdade, igualdade, fraternidade, legitimidade, responsabilidade, legitimidade e a dignidade dos cidadãos no âmbito do direito e da política. Todos esses princípios são transcendentes ou superiores no esquema de raciocínio de Ronald Dworkin.

- Da mesma forma existem princípios práticos representados pelos princípios jurisdicional, legislativo e do devido processo legal; esses três princípios são operacionais e inferiores em relação aos princípios transcendentes.

- Nessa estrutura principiológica abstraída pelo autor, a integridade é um princípio prático-transcendente; ou seja, ela sintetiza os princípios práticos com os princípios transcendentes. Em outras palavras, é um princípio intermediário ou integrador do direito.

- A ligação principiológica realizada pelo princípio da integridade desenvolve seis critérios de trabalho: coerência, adequação, abrangência, criatividade, justificação e integridade do juiz.

- O programa de pesquisa da integridade apresenta uma teoria crítica que julga a presença de outras teorias concorrentes na prática judicial.

- Este programa de pesquisa é um modo de produção de conhecimento juspolítico e pode realizar duas tarefas primordiais: diagnósticos e prognósticos dos processos legais, ou mais precisamente, descreve, interpreta, especula e transforma as informações jurídicas e judiciárias disponibilizadas pelo pesquisador.

- Idealmente, a integridade combina a estrutura principiológica do direito com o indivíduo (o juiz Hércules) proporcionando uma integração ou correlação positiva gerando conhecimento novo que indica como surge ou surgiria objetivamente uma comunidade de princípios (ou cultura principiológica) através da prática judicial.

- Vários fatores contribuem para a ausência da integridade.

- Sobrecarga de trabalho do juiz; corrupção institucional; desonestidade; falta de tempo; engajamento político-partidário; cultura convencionalista e pragmatista; massificação administrativa da lei; negação da autonomia e da criatividade do juiz; autoritarismo político e tecnicismo representam as forças centrífugas que contrariam a personalidade do juiz ideal Hércules, dificultando o aparecimento natural ou espontâneo do princípio convergente da integridade no cotidiano do Poder Judiciário.

- Conhecendo essas limitações da realidade, Ronald Dworkin inventou um juiz híbrido, com poder argumentativo extraordinário, objetivando saber hipoteticamente até onde poderia chegar o princípio da integridade se Hércules concretamente atuasse na composição de um justo processo legal do ponto de vista da totalidade constitucional.


2 Revisão bibliográfica

Vários autores nacionais, como Botelho (2008) entre outros, simplificam a teoria da integridade afirmando que Dworkin é um hermeneuta preocupado fundamentalmente em criar algum modelo de interpretação que seja democrático e inclusivo. Dworkin teria criado nesse sentido um juiz fictício, pleno de habilidades, de sabedoria, de paciência e de perspicácia sobre-humanas, o que lhe permitiria finalmente realizar uma leitura coerente do direito, maximizando a constitucionalidade e as habilidades filosóficas de certo tipo ideal de juiz dificilmente encontrado no Poder Judiciário.

Botelho observou ainda que vários autores questionam a utilidade do juiz Hércules, afirmando que ele seria apenas uma abstração idealista sem maiores consequências sobre a realidade. Nessa direção, Dworkin teria construído um sistema de ideias como se fosse produto de uma pessoa coerente e íntegra moralmente, mas isso não teria validade empírica para ser usada no direito.

Nesse ponto, Botelho avaliou que Ronald Dworkin foi longe demais com a sua idealização, divorciando-se da realidade contingente e histórica do direito. Tudo aquilo que Dworkin escreveu no seu volumoso livro existiria tão somente na medida em que Hércules não atua na realidade; é pura idealização, enfatiza o analista.

O que acontece na realidade, verdadeiramente, é que os juízes estão inseridos no contexto histórico e sofrem sérias limitações de tempo e de conhecimento, e é exatamente nesse quadro que eles vão executar as suas atividades interpretativas.

Por isso mesmo, Botelho admitiu que a melhor referência para estudar as práticas democráticas e judiciárias é Habermas, pois ele atribui poder aos vários participantes do processo argumentativo do direito no sentido de que possam construir consensos e estabelecer conteúdos paradigmáticos; e não a um único juiz, como propõe Dworkin.

Na opinião do analista Botelho, a decisão judicial deve ser um procedimento público argumentativo, no qual todos devem ter acesso de forma livre e sem coerções internas e externas. A decisão judicial decorre nesse sentido da consciência de que a lei é fruto de uma decisão racional construída em processo público argumentativo.

Em outra direção, Lima (2006) afirmou em sua dissertação de mestrado que Ronald Dworkin elaborou uma teoria baseada nos direitos individuais, enfatizando principalmente o direito à igual consideração e ao respeito, que deveriam ser triunfantes sobre o princípio clássico da maioria.

Para Dworkin, originalmente, nenhuma determinação política ou coletiva poderia triunfar sobre um autêntico direito individual. Dworkin sustentou nesse sentido a tese de que os objetivos sociais serão apenas legítimos se respeitarem os direitos dos indivíduos, diferentemente do positivismo, que se preocupa com a legalidade dos direitos.

Para Dworkin, é preciso juntar os direitos legais com os valores morais. Por conseguinte, ele argumentou que a garantia dos direitos individuais é a função mais importante do sistema jurídico e judiciário.

O conceito de integridade consiste na reunião coerente da equidade, da justiça e do devido processo legal. Consequentemente, diante dessa trilogia, aumenta sobremaneira a responsabilidade pública dos decisores do direito, de acordo com o modelo inventado por Dworkin.

Refutando o principio da discricionariedade, Dworkin afirmou que o poder criativo do juiz fica atrelado ao passado - à retroatividade da lei por meio da analogia - ou simplesmente reproduzindo o sistema de regras válidas na comunidade.

Dworkin ressaltou, por outro lado, que os juízes se deparam sempre com princípios, dentro e fora do sistema, e preocupam-se basicamente com o tempo presente. O processo judicial não é para Dworkin uma máquina lógica, produtora de verdades, pois a cada momento os decisores do direito sentem necessidade de se comportar como seres morais, imaginando que o Estado e a comunidade seriam igualmente agentes morais.

Ainda de acordo com Lima (2006), a teoria da integridade de Dworkin pretendeu descobrir até que ponto os juízes têm diante de si caminhos abertos para aperfeiçoar o direito, ao mesmo tempo em que eles buscam estratégias que representam a virtude da fraternidade republicana.

Outra possibilidade crítica é apresentada pelo autor Dawe Junior (2008), que considerou radicalmente que a obra O império do direito é falaciosa, enganosa e constitui um "gênio maligno" reproduzindo-se aqui uma expressão crítica de René Descartes.

Do começo ao fim de sua dissertação, Dawe Junior criticou o livro de Ronald Dworkin mostrando que se trata de uma obra surreal, que não tem nada a ver com a realidade ordinária dos fatos jurídicos e judiciários.

Nesse sentido, Dawe Junior foi mais além, e denunciou que nada do que foi dito por Dworkin existe no mundo, nem mesmo nos Estados Unidos. Por exemplo, a comunidade de princípios é algo absurdamente concebido e indemonstrável racionalmente. Além disso, não se pode aceitar que os juízes estejam se tornando agentes kantianos visto que a moralidade para Kant fica originalmente fora do reino do direito; na prática, portanto, a moral não tem validade jurídica a priori, o que desautoriza conceitualmente o seu uso aleatório por cada juiz. Outra crítica apresentada contra o modelo de Dworkin é que ele seria monocrático e individualista, apostando todo o processo judicial na decisão de um único juiz.

Segundo Dawe Junior, a teoria de Ronald Dworkin preferiu atribuir menos valor à "norma" e mais aos princípios; dessa maneira a teoria desse autor introduziu um grau elevado de incerteza sobre os resultados das sentenças devido à prática subjetivista dos decisores. Enfaticamente, Dawe Junior alertou que os juízes não estão autorizados a transcender a lei e a julgar moralmente; por isso mesmo os princípios morais que surgem do lado de fora do sistema jurídico serão obrigatoriamente neutralizados e invalidados por instituições reais e não imaginárias.

No comentário de Dawe Junior, na realidade existe corrupção, defeitos de linguagens nos textos jurídicos, burocratismo, sobrecarga de trabalho, desvios de comunicação, autoritarismo do Estado, desinformação, etc., que invalidam radicalmente a figura do juiz Hércules usando o princípio da integridade ou da moralidade política.

Reforçando essa visão crítica, Dawe Junior considerou que a integridade é um absurdo, pois não é verdadeira, nem contingente, nem palpável, nem empírica. É, segundo ele, "uma teoria desnecessária".

Dawe Junior questionou, por exemplo, como Ronald Dworkin poderia falar de isonomia, igualdade e integridade num país governado pelo presidente Bush e pelas fraudes eleitorais e políticas arbitrárias?

Concluindo a sua análise crítica, Dawe Junior afirmou que a teoria da integridade não ajuda, atrapalha! Ironizou inclusive a respeito da confusão filosófica criada por Dworkin ao querer introduzir o reino da moral (que é individualista ao extremo) no reino ou império do direito (que é comunitarista).

Diante dessas críticas, o autor Dawe Junior concluiu que a teoria da integridade não possui nenhum valor científico, pois fecha os olhos para os conflitos e a impureza da realidade. O autor finaliza a sua crítica observando que as alegações que Dworkin ofereceu ao direito versam sobre fenômenos e sobre uma realidade inobservável.

No artigo do autor Arêas (2005), por outro lado, não encontramos uma leitura falsibilista do conhecimento por completo, como realizou anteriormente Dawe Junior (2008) contrapondo o realismo e ceticismo político contra o idealismo de Dworkin; descritiva ou estagnante como fez Lima (2006) reescrevendo as proposições do livro O império do direito. Particularmente na crítica do autor Arêas foi realizada uma abordagem surpreendentemente degenerativa do conhecimento da integridade aplicado ao estudo da súmula de efeitos vinculantes. Afirmamos surpreendentemente porque o autor no começo do seu trabalho exaltou a teoria da integridade, mas acabou concluindo que esse conceito não funciona diante do instituto da súmula vinculante, chegando ao ponto inclusive esse mesmo autor de negar o espírito de rebeldia constitucional do juiz Hércules que, como se sabe, é adversário perpétuo do convencionalismo jurídico no tempo e no espaço.

No primeiro momento, Arêas reescreveu a teoria da integridade contra o convencionalismo, porém, na parte final do seu artigo ele argumentou que o juiz Hércules seria, em outras palavras, derrotado pelo convencionalismo da súmula vinculante, sem direito à resistência no presente e no futuro. Arêas não considerou, por exemplo, que quando existe algum ponto nebuloso, obscuro ou controverso na súmula vinculante aí surge um espaço convidativo para Hércules começar suas atividades constitucionais, democráticas, moralistas, hermenêuticas e existencialistas do direito. Conforme definiu o próprio Dworkin, no capítulo intitulado As leis, não existem casos difíceis, nem fáceis no direito, mas casos obscuros, contestáveis, duvidosos, que demandam uma metodologia judiciária de esclarecimento, argumentação, coerência, abrangência e de adequação através da integridade do juiz. Entretanto, de acordo com a observação empírica de Arêas, a súmula vinculante impede, a priori, o florescimento do princípio da integridade, pois a Emenda Constitucional n. 41, de 2005 declara que os juízes são forçados por Lei a seguirem o mesmo padrão decisório:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Admitiu Arêas - na primeira fase do seu artigo - que o direito como integridade começa no tempo presente e apenas se volta para passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine.

A integridade não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. O que o juiz Hércules faz é relativizar a teoria da intencionalidade do locutor incluindo outras vozes no debate da lei.

Segundo o que estabeleceu originalmente Dworkin, a teoria da integridade pretende justificar o que os legisladores fizeram (às vezes incluindo, o que disseram) formando uma história geral digna de ser recontada pelo juiz Hércules; uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser reorganizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. Admitiu Arêas neste ponto que o direito como integridade deplora [grifo nosso] o mecanismo do antigo ponto de vista de que "lei é lei".

De acordo ainda com esse analista, Dworkin nos proporcionou uma alternativa entre o convencionalismo e o pragmatismo. Paradoxalmente, entretanto, no segundo momento do seu artigo Arêas negou, por completo, essa definição ontológica, que ele mesmo enalteceu, e passou a atribuir ao juiz Hércules uma atitude conformista e autodestruidora dos seus poderes de juiz; pouco a pouco, Hércules se torna uma figura acomodada, sem função e impotente diante da determinação do convencionalismo imposto pela súmula vinculante no futuro. Em outras palavras, Arêas não estabeleceu com clareza que a súmula vinculante seria naturalmente respeitada por Hércules até o momento que surgisse um ponto crítico ou obscuro nos padrões decisórios, pois é justamente nesse ponto crítico que surge a batalha jurídica entre o dogmatismo do passado e a integridade do presente. Basicamente, essa incompatibilidade contextual constitui o cerne ou núcleo do modelo programático de Ronald Dworkin. Portanto, negar essa tese significa condenar o programa de pesquisa de Ronald Dworkin à degeneração ou fracasso, usando-se aqui, oportunamente, o critério avaliativo do epistemólogo Imre Lakatos (ver MONTARROYOS, 2006)

De acordo ainda com o que escreveu textualmente Arêas, é forçoso afirmar que, analisada a doutrina de Dworkin sob tal aspecto, o sistema de súmula vinculante adotado recentemente no Brasil representaria "séria afronta" à visão do direito como integridade, uma vez que impossibilitaria o juiz de inovar quanto à interpretação já solidificada.

Se a súmula vinculante exige que todos os juízes sigam a interpretação sumulada pelo Tribunal, essa proposta - a despeito dos existentes aplausos que recebe de parte da doutrina por tornar o processo mais célere - acabaria por "engessar" o direito da "integralidade". Por outro lado, Arêas observou que a súmula vinculante estaria impedindo a natural evolução do direito da integridade conforme a modificação das exigências dos valores socialmente estabelecidos.

A ilustração feita originalmente por Dworkin, ao recorrer ao juiz Hércules para demonstrar a completeza do direito, demonstrou que dentre as várias possíveis soluções jurídicas para o caso judicial sempre há alguma que se apresenta como sendo a mais acertada.

Tal recurso, segundo Arêas, serviria para desvendar respostas aos casos que, não solucionáveis "prima facie" pelo direito, e precisariam de um raciocínio mais profundo no qual trabalhar-se-iam várias hipóteses, todas elas dentro do direito.

Assim, para as demais questões que não se incluiriam na categoria dos casos difíceis (hard cases), não seria necessário socorrer-se de tal procedimento, pois seria de pouca utilidade tendo em vista a fácil tarefa de encontrar soluções jurídicas para elas. Aqui, contudo, permanece a seguinte questão polêmica: "o instituto da súmula vinculante se compatibilizaria com a tutela dos casos considerados fáceis?" Talvez essa pergunta não seja de grande utilidade, escreveu o analista, no contexto da imposição da súmula vinculante.

O que se apreende disso tudo é que, fazendo um estudo comparativo entre a integridade do direito e o novo sistema da súmula vinculante, ambos não guardam grande compatibilidade entre si. O efeito vinculante das súmulas impede a natural evolução dos conceitos e interpretações jurídicos. Infelizmente, porém, o ilustre analista não considerou que a incompatibilidade entre texto-contexto (relevante na escola hermenêutica!) é exatamente o núcleo do livro O império do direito e também o ponto de partida do programa de pesquisa de Ronald Dworkin.


3 A reação do positivismo

Segundo Herbert Hart (no pós-escrito do livro O conceito de direito), Ronald Dworkin propôs discutir a prática do direito observando a interação de três diferentes teorias jurídicas - o convencionalismo, o pragmatismo e a integridade. Para Dworkin, todas essas teorias são interpretativas, porque funcionam a partir da escolha moral dos operadores do direito, que decidem pelo uso desta e não daquela teoria.

Para o juspositivista Hart, diferentemente, a sua teoria geral do direito é moralmente neutra e não depende, internamente em relação ao sistema jurídico e judiciário, daquilo que os juízes pensem ou pensariam moralmente do lado de fora do sistema.

Desse modo, Hart enfatizou que a sua teoria da prática cotidiana dos profissionais do direito não entra na dimensão moral das leis, mas sim na validade pública que unifica as regras. Não se discute, portanto, no cotidiano acerca dos fundamentos do direito, mas sim a respeito de melhor adequação das normas aos fatos.

Entretanto, admitiu Hart, a divergência que caracteriza a dinâmica do positivismo não será resultado única e exclusivamente das questões semânticas diante dos fatos do passado conforme acusou Dworkin, mas sim produto de uma regra de textura aberta, a regra de reconhecimento, que segundo Hart comunica flexivelmente os critérios que podem ser usados para a identificação das leis que os tribunais devem aplicar.

A partir desse elemento normativo, Hart acusou Dworkin de estar errado quando afirmou que o positivismo moderado é um convencionalismo de fatos históricos do passado, e que, além disso, a teoria positivista preocuparia apenas em encontrar as melhoras palavras ou estrutura lógica de pensamento nos tribunais.

Segundo Hart, a regra de reconhecimento possibilita ao juiz exercer o seu poder criativo ou discricionário. Nessa direção, Hart se contrapôs à teoria de Dworkin afirmando que a teoria deste autor é moralista, enquanto que a teoria moderada do positivismo dele é melhor porque apresenta como ponto forte a realidade prática e também flexível das regras jurídicas.

Por meio das regras, segundo Hart, são definidos os critérios de validade do direito. Desse modo, se usamos este ou aquele princípio essa escolha será autorizada por alguma regra de reconhecimento, de julgamento ou de alteração válida no sistema oficial. E não o contrário, como postulou Dworkin, focalizando os princípios que dominariam, segundo ele, as regras e os critérios.

Indo mais além, Hart enfatizou que ele nunca se esqueceu dos princípios, mas é impossível, segundo o autor, que o sistema seja dominado pelos princípios, pois são estruturas morais, inconcludentes, extensas, genéricas, não específicas e subjetivistas. Nesse aspecto, não haveria mais segurança, nem certeza jurídica.

Hart admitiu que os princípios existem e devem ser reconhecidos e usados, por isso mesmo é que existem as regras de reconhecimento na teoria jurídica positivista. Entretanto, para Dworkin, as regras do convencionalismo se fundamentariam equivocadamente no esquema clássico do tudo ou nada.

Hart rebateu essa definição superficial dizendo que a regra de reconhecimento do seu modelo positivista é flexível, variável, e apresenta uma textura aberta. Nesse ponto, Dworkin está errado, segundo Hart, ao supervalorizar a liberdade dos princípios, pois eles estão sempre subordinados às regras válidas que autorizam ou não a sua presença no cotidiano judiciário.

Em outras palavras, a teoria de Dworkin não conseguiu ser bem sucedida na missão de desqualificar a teoria do positivismo moderado visto que a aceitação dos princípios é algo obviamente necessário e coerente dentro do império do direito positivo. Hart (1994., p. 329) considerou inclusive que:

A principal diferença nesta matéria entre meu ponto de vista e o de Dworkin reside em que, enquanto eu atribuo o acordo geral existente entre os juízes quanto aos critérios de identificação das fontes de direito à sua aceitação partilhada das regras que atribuem tais critérios, Dworkin prefere falar não de regras, mas de consensos, de paradigmas e de precompreensões que os membros da mesma comunidade interpretativa partilham.

Indo mais além, Hart afirmou que existe uma relação importante entre direito e moral, porém, fora do sistema jurídico e judiciário. Segundo ele, "direitos e deveres jurídicos não têm qualquer justificação ou eficácia morais". Por outro lado, Dworkin refutou essa idéia básica, afirmando que os direitos jurídicos "devem ser entendidos como uma espécie de direitos morais" (HART, op. cit., p. 331).

Considerando esse pensamento, Hart (op.cit., p. 332) afirmou que a diferença mais fundamental de sua teoria em relação ao modelo do seu crítico, deve-se ao fato de que "a existência e o conteúdo do direito podem ser identificados por referência às fontes sociais do direito (por exemplo, legislação, decisões judiciais, costumes sociais) sem referência à moral, exceto quando o direito assim identificado tenha ele próprio incorporado critérios morais para a identificação do direito".

Estranhamente para Dworkin (in: HART, 1994, p. 332) as proposições do direito seriam conduzidas pelos princípios morais, sendo que sua teoria interpretativa globalmente holística teria, por isso, uma dupla função: serviria não só para identificar o direito, como também para lhe conferir justificação moral.

Finalmente, considerou Hart (op. cit., p. 335) que o ponto crucial da polêmica com Dworkin diz respeito ao poder de criação do juiz. Segundo Hart, em casos juridicamente não previstos ou não regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe os seus poderes de criação do direito.

Entretanto, essa imagem de que existe o direito parcialmente indeterminado ou incompleto, e que o juiz preenche lacunas através do seu poder discricionário, é descartada radicalmente por Dworkin, que considerou ser uma visão enganadora, pois o direito, para ele, seria sempre "completo".

Duas formas populares de criação do direito bastante conhecidas segundo Hart e Bobbio (no livro Teoria do ordenamento jurídico) são a analogia e a interpretação sistêmica. Segundo Hart, particularmente, no uso das analogias podem existir várias soluções concorrentes. Entretanto, os juízes não jogam fora os seus manuais, nem a história legislativa e judiciária neste momento crítico: "eles inventam direito novo, embora em conformidade com os princípios ou razões subjacentes, reconhecidas como tendo já uma base no direito existente" (HART, 1994, p. 337).

Para Dworkin, a "imagem criada pelos positivistas", segundo Hart, é que seria infelizmente incompleta. Nesse sentido, para Dworkin o juiz nunca teria oportunidade de sair do ordinário e de exercer o poder de criação [aqui é justo salientar para o leitor que para Dworkin o poder criativo é algo ordinário e elementar sempre, e não extraordinário diante da lacuna conforme problematiza Herbert Hart neste parágrafo. Em outras palavras, enquanto para Hart o juiz aparece como sujeito autônomo apenas quando falha o direito, para Dworkin, radicalmente, o juiz é sempre um sujeito na rotina judiciária; além disso, para Dworkin o direito nunca falha, o que realmente falham são as interpretações do direito].


4 Reorganização programática do livro O império do direito

A tecnologia observacional da integridade fabricada pelo autor Ronald Dworkin apresenta seis tipos de peças na sua estrutura epistemológica: ontologia, metodologia, axiologia, teoria, práxis e sociologia das ideias (conforme o modelo sintético de MONTARROYOS, 2006; 2009; 2010, baseado, por sua vez, em LLOYD, 1995; e CHIAPPIN, 1996).

Em primeiro lugar, a ontologia declara o que é essencial e irrefutável na atividade do pesquisador. Na concepção do físico Imre Lakatos, por exemplo, a ontologia seria o núcleo rígido do sistema programático como um todo (MONTARROYOS, 2006; CHIAPPIN, 1996). Para o historiador Christopher Lloyd (1995, p. 47), de outro modo, na ontologia encontramos os problemas filosóficos centrais do sistema que dizem respeito a questões sobre a existência e a interpretação do objeto de estudo na prática.

Em segundo lugar, na categoria metodológica da integridade encontramos os métodos e as técnicas de obtenção do conhecimento aplicado. A metodologia pressupõe que não existe conhecimento social neutro principalmente quando são estipulados os caminhos que podem ser ou não trilhados pelo pesquisador.

Em terceiro lugar, a axiologia formaliza os valores, desvalores e contravalores que são estruturas construtivas do conhecimento [e nunca "ruídos"] encontrados regularmente na prática do cientista social. A inclusão da categoria axiológica em nosso modelo não representa nada do que postulam os positivistas, os físicos e matemáticos em geral acerca da neutralidade do observador como se isto fosse uma virtude metodológica ideal a ser perseguida dentro de um suposto laboratório de pesquisa antropológica ou jurídica.

Na sequência das categorias, em quarto lugar, encontramos a categoria teórica oficializando o discurso interpretativo ou explicativo do pesquisador a respeito da identidade do seu objeto de estudo, apresentando neste caso uma linguagem generalizante, transcendente e afirmativa do conhecimento científico. Aqui novamente nos afastamos do modelo do físico e matemático Imre Lakatos, e optamos por incluir o que afirmou o filósofo Michel Foucault, na sua obra Microfísica do Poder, considerando pontualmente que o discurso é uma prática social constituída de verdade, poder e saber.

Em quinto lugar, na categoria praticológica aparecem os modelos de ação do programa de pesquisa que orientam e protegem o pesquisador no sentido de que ele não se perca no "oceano de anomalias" da realidade, conforme propôs, oportunamente, a heurística positiva do físico Imre Lakatos. Na heurística positiva, particularmente, encontramos pistas ou sugestões de como o cientista pode ser criativo em suas análises sem perder o controle sobre os dados empíricos que foram coletados metodologicamente pela heurística negativa do modelo programático inventado por esse mesmo autor (ver LAKATOS in: MONTARROYOS, 2006; CHIAPPIN, 1996; LLOYD, 1995).

Por último, a categoria contextual reorganiza os elementos históricos e sociológicos do programa de pesquisa como sendo duas dimensões fundamentais do entendimento humano, diferentemente, no entanto, do que sugeriu o modelo programático do físico Imre Lakatos, que fixou na "parte externa" do programa de pesquisa a interferência dos modismos, biografias, ideologias, história social, da cultura e do sistema político vigente, considerando que todos eles seriam elementos estranhos ou desestabilizadores do conhecimento científico. Abraçando esse tipo postura, Lakatos considerou a interferência desses elementos sociais ou ruídos como sendo forças não lógicas e algumas vezes destruidoras do conhecimento científico, citando inclusive em seu livro Metodologia do programa científico de pesquisa a interferência degenerativa dos governos socialistas sobre o destino de certos programas de pesquisa, sem admitir, igualmente, o que ocorria de arbitrário na maioria dos governos capitalistas de sua época durante a Guerra Fria (MONTARROYOS, 2006).

A tecnologia observacional da integridade - ou programa de pesquisa - estuda "o modo como os juízes decidem casos" (DWORKIN, 2007, p. 3). Nesse sentido, aborda os processos judiciais na tentativa de revelar a importância que o argumento do juiz exerce na prática do Poder Judiciário. No cotidiano, segundo Dworkin, "as pessoas frequentemente se vêem na iminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência do aceno da cabeça do juiz do que de qualquer norma geral que provenha do legislativo" (ibid., p 3).

Os processos judiciais são investigados neste programa de pesquisa incluindo a dimensão moral do direito onde existe um "risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça pública". O juiz deve decidir não somente sobre "alguém vai ter o quê", mas sobre "quem agiu bem", corretamente, com "responsabilidade de cidadão" ou exagerou nos seus interesses prejudicando a comunidade. Esse fato moral é sempre encontrado, de algum modo, na história do direito. Por exemplo, no século XIX, is juízes ingleses declararam que o operário de uma fábrica não podia exigir indenização judicial de seu patrão se tivesse sido lesado devido à negligência de outro operário. Afirmavam que um trabalhador "assume" o risco da imprudência de seus "companheiros de trabalho" e que, de qualquer modo, o trabalhador sabe melhor que seu empregador quem são os operários imprudentes e talvez tenha mais influência sobre eles. (ibid., p. 5).

O programa de pesquisa da integridade considera importante estudar o modo como os juízes decidem as causas judiciais e nessa perspectiva de trabalho procura conhecer o que os juízes pensam sobre o que é o direito e também por que eles divergem tanto sobre esse assunto (ibid., p. 5). A divergência empírica acontece porque existem questões de fato, de direito e de moral fazendo parte da atividade de juízes e advogados.

Os juízes e advogados podem concordar sobre uma determinada proposição sobre os fundamentos do direito, porém, divergem ao questionarem se o caso concreto se enquadra perfeitamente bem a esses fundamentos elencados. Existem divergências empíricas sobre a veracidade dos fatos e também divergências teóricas sobre os postulados do direito e sua devida adequação ao caso concreto.

Curiosamente, o público não se preocupa com a divergência teórica, pois sua preocupação é voltada para a questão da fidelidade. Por isso, aqueles juízes que supostamente inventem direitos são considerados tiranos.

Na verdade, para Dworkin, a crença nessa visão de que o direito é uma questão de fatos e não de interpretações, desde já aponta que existe uma divergência teórica sobre o que realmente é o direito (ibid., p. 9). Nesse caso, existe uma crença no objetivismo da prática judicial que é contestável por outras teorias, sobretudo hermenêuticas.

Diante dessas considerações, o programa de pesquisa da integridade procura estudar a divergência teórica dentro do direito. Seu objetivo é compreender de que tipo de divergência se trata e então, logo depois, procura criar e defender uma teoria particular sobre os fundamentos apropriados do direito. Consequentemente, estaremos interessados em saber por que motivo um júri decide que o trabalhador tem ou não direito em certos casos, e também por que outros juízes decidem diferentemente o mesmo caso.

Outra limitação importante do programa de pesquisa da integridade é que ele aborda exclusivamente a decisão judicial através dos juízes togados, embora eles não sejam os únicos protagonistas do drama jurídico, nem mesmo os mais importantes. Nosso estudo vai levar em consideração os legisladores, diretores de escola, gerentes, líderes sindicais, e tantos outros atores sociais, entretanto, no final, admitimos que as decisões judiciais afetam os direitos jurídicos dos seus concidadãos. Também não estamos interessados em descobrir a consciência de classe ou as inclinações econômicas dos juízes a favor do capitalismo. Consideramos, particularmente, que o direito é um fenômeno social, e sua complexidade deve ser percebida como sendo uma prática argumentativa e que, portanto, suas proposições só ganham sentido quando passam pela discussão de seus fundamentos na comunidade como um todo.

Muitos estudiosos têm procurado encontrar definir o direito como fenômeno histórico ou sociológico, para nós, o que interessa é a estrutura do argumento jurídico (ibid., p. 18). Por isso, nosso programa de pesquisa vai adotar um ponto de vista interno do participante - sua subjetividade. Concretamente, estudaremos o argumento jurídico formal a partir do ponto de vista do juiz, não apenas porque os juízes são importantes, ou porque podemos compreendê-los totalmente se prestarmos atenção ao que eles dizem, mas justamente porque o argumento jurídico nos processos judiciais é um paradigma para a exploração do aspecto central e proposicional da prática jurídica (ibid., p. 19)

4.1 Definição ontológica: a prática do direito é argumentativa (DWORKIN, 2007, p. 17)

O programa de pesquisa da integridade estuda os processos judiciais, onde se pode notar o modo de conceber o direito e a divergência entre os profissionais do Poder Judiciário. Concretamente, este programa de pesquisa pretende desenvolver uma nova teoria sintética sobre os fundamentos do direito onde as divergências acontecem geralmente por questões de fato, de direito e de moral. As questões de fato têm a ver com a verdadeira dimensão do acontecido; as de direito têm a ver com a pertinência ou ligação com as leis, e as de moral, têm a ver com a opinião ou juízo de convicção do juiz quando ele acredita que está fazendo justiça.

Diante da complexidade e da instabilidade decorrente das opiniões, Dworkin apontou um fato de natureza hermenêutica nos seguintes termos: existem reformulações constantes, relatos daquilo que o direito já é. Existem os realistas, empiristas, positivistas, naturalistas, intuicionistas, todos eles estabelecendo um determinado modo de produção das proposições jurídicas.

No programa de pesquisa da integridade, considera-se que o direito é um fenômeno social e que ele se manifesta através da prática argumentativa, cujas verdades só ganham sentido através do debate, discussão. Por isso, o direito deve ser estudado do ponto de vista histórico e atual. Será priorizada, consequentemente, neste programa de pesquisa a decisão judicial porque ela mostra o que os especialistas da lei pensam sobre o que é o direito ontem e hoje. Na concepção hermenêutica, os juízes discordam sobre o sentido da lei que, por sua vez, reflete a teoria jurídica preferencial de cada um.

Particularmente, consideramos que o texto jurídico fala, porém, cada teoria tem um modo de extrair ou comunicar essa fala para o mundo. Encontramos autores que acreditam no poder textual da lei pela lei; autores que admitem que a lei faz parte de um contexto jurídico e judiciário mais amplo; e autores que acreditam que a intuição pessoal fala mais alto, causando assim uma enorme imprevisibilidade nos resultados institucionais.

4.2 Definição metodológica: a interpretação criativa do direito não é conversacional, mas construtiva como acontece na critica literária A interpretação das obras de artes e das práticas sociais se preocupa essencialmente com o propósito, não com a causa (DWORKIN, 2007, p. 63)

O método de trabalho - hermenêutico - determina que o pesquisador tenha uma atitude interpretativa sobre a divergência das práticas sociais, entretanto, não se pode ficar limitado a uma visão individualista nem holística. O pesquisador deve buscar uma correlação ou integração entre sujeitos e objetos, entre indivíduos e estruturas sociais. Nessa direção, o pesquisador deve considerar que seu trabalho não é neutro, visto que valor e conteúdo se misturam e se confundem.

Na hermenêutica em geral, não existem objetos, mas na verdade tudo é sujeito porque fala, inclusive o texto jurídico. Por isso mesmo o trabalho do pesquisador é dialógico, conversacional.

Entretanto, essa conversação não busca descobrir as intenções dos legisladores ou dos autores das obras no passado. Indo mais além, cada um de nós impõe um sentido, um propósito na releitura atual do direito nessa conversa, uma adaptação.

Consequentemente, temos de falar aqui de uma combinação do aspecto individual com o institucional cujo resultado integrativo gera coletivamente uma comunidade ou cultura de princípios.

Para descrever essa dinâmica, o modelo da arte é oportuno. Não se busca saber apenas o que o autor da obra quis dizer no passado, mas atribuímos à sua obra novos sentidos, significados; ou seja, nos apropriamos dela positivamente para falar de muitas outras coisas que o autor do passado nem sequer imaginou. Em outras palavras: a interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto. É produto da correlação de duas categorias: sujeito e objeto.

O ponto básico dessa metodologia crítica parte da premissa de que os indivíduos, juízes e pesquisadores apresentam preferências, opiniões, interesses e convicções diversas.

Uma interpretação, acima de tudo, é um relato de um propósito e segue um paradigma ou modelo de como se lê, pensa, ou mesmo de como se seleciona um detalhe e não outro. O desafio teórico-metodológico da interpretação é reconstruir a tradição interpretativa que se forma e que se mantém viva no tempo e no espaço jurídico e judiciário.

A grande questão é saber até onde pode ser verdadeira e fiel a interpretação de uma obra. E aquilo que for respondido neste sentido aceitará a ideia de que o processo crítico é construtivo especificamente quando maximiza tanto o potencial da obra como a expressão do crítico do momento.

De fato, as divergências e as diferentes abordagens serão comuns, porém, para se estabelecer um diálogo hipotético ou mesmo real entre elas devemos partir do pressuposto de que falam a mesma língua, usam os mesmos recursos jurídicos e institucionais, os mesmos materiais e a mesma fonte literária. Tudo isso é condição básica para se delimitar o ambiente inicial da conversação.

Segundo Dworkin, precisamos refinar a interpretação construtiva transformando esse método num instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social. Para se desenvolver esse método existem três etapas fundamentais: pré-interpretativa, interpretativa e pós-interpretativa.

Na fase pré-intepretativa são identificadas as regras e os padrões que fornecerão o conteúdo ou limite experimental da prática interpretativa. Na interpretação de obras literárias a etapa equivalente seria aquela em que são identificados textualmente os romances, peças teatrais, etc., constituindo, por exemplo, a etapa na qual o texto Moby Dick é identificado e diferenciado do texto de outros romances. Esse procedimento é "pré-interpretativo" entre aspas porque mesmo nessa etapa de mapeamento se faz necessário algum tipo de interpretação porque precisamos estabelecer um rótulo ou esquema classificatório anterior ao material, caso contrário, ficamos perdidos no emaranhado das informações empíricas.

Em segundo lugar, deve haver uma fase interpretativa em que o intérprete se concentre numa justificativa geral para os principais elementos da prática e do material identificados na etapa anterior. Isso vai resultar numa argumentação sobre a conveniência, ou não, de se de buscar algum tipo de prática interpretativa inovadora. A justificativa não precisa se ajustar a todos os aspectos ou características da prática estabelecida anteriormente na comunidade dos críticos, mas deve ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prática, não como alguém que inventa uma nova prática necessariamente a partir do nada.

Por último, deve haver uma fase pós-intepretativa ou reformuladora - ou sintética - quando o crítico ajusta ou adequa sua idéia com a prática interpretativa objetivando melhor servir à justificativa que foi declarada na fase anterior.

4.3 Definição axiológica: nem regras, nem critérios

O convencionalismo jurídico faz duas afirmações pós-interpretativas. A primeira é positiva: os juízes devem respeitar as convenções jurídicas em vigor na sua comunidade, e não em raras circunstâncias. Insiste em outras palavras, que os juízes devem tratar como direito aquilo que a convenção estipula como tal. Uma vez que a convenção na Grã-Bretanha, por exemplo, estabelece que as leis do Parlamento são direito, assim, um juiz britânico deve aplicar até mesmo as leis do Parlamento que considerar injustas ou insensatas. Esse aspecto positivo do convencionalismo corresponde plenamente ao lema popular que diz que os juízes devem seguir o direito e não substitui-lo por um novo direito.

A segunda afirmação é negativa. Declara que não existe direito - nenhum direito decorrente de decisões tomadas no passado - a não ser aquele que é extraído de tais decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção e que, portanto, em alguns casos não existe direito algum. Não existem direitos sobre danos morais, por exemplo, se nunca se decidiu este problema por meio de nenhuma lei precedente ou por qualquer outro procedimento especificado por convenção, que as pessoas têm ou não direito a indenização por danos morais. Não se segue daí que os juízes confrontados com tal problema devam cruzar os braços e mandar as partes para casa sem propor alguma decisão. Esse é o tipo de caso em que os juízes devem exercitar o poder discricionário usando padrões extrajurídicos para fazer o que o convencionalismo considera ser um novo direito. Depois em casos futuros, a convenção do precedente transformará esse novo direito em direito antigo ou convencional (DWORKIN, 2007, p. 144-45).

O convencionalismo defende a autoridade da convenção ao insistir em que as práticas convencionais estabelecem tanto o fim quanto o princípio do poder do passado sobre o presente. Insiste em que o passado não concede nenhum direito sustentável diante de um tribunal, salvo quando for incontestavelmente aquilo que todos sabem e esperam. Se a convenção for omissa, não existe direito; e a força dessa afirmação negativa está exatamente no fato de que os juízes não devem fingir que suas decisões decorrem de algum modo daquilo que já foi decidido (ibid., p. 146).

Em situações limites, o juiz deve decidir de um modo que envolva o mínimo possível suas convicções políticas ou morais, e atribua nesse sentido a máxima deferência possível para com as instituições convencionalmente habilitadas a criar o direito. Uma vez que se deixe claro que o juiz cria novo direito sob tais circunstâncias, como insiste o convencionalismo, parece plausível que ele escolherá uma regra que ele acredita, ou então a intenção da legislatura de sua época, ou não sendo isso possível, escolherá a regra que em sua opinião melhor representa a vontade do povo como um todo (ibid., p. 147).

O convencionalismo é uma concepção ou interpretação da prática e da tradição jurídicas e judiciárias. Se não pudermos encontrar as convenções jurídicas especiais que o convencionalismo requer, essa teoria estará derrotada tanto em suas afirmações interpretativas quanto em suas instruções pós-interpretativas voltadas para o futuro (ibid., p. 148).

Segundo Ronald Dworkin, o convencionalismo fracassa na reconstrução da totalidade constitucional porque os juízes dedicam mais atenção às chamadas fontes convencionais do direito, como as leis e os precedentes. O juiz convencionalista que exerce seu poder discricionário deve estar particularmente atento a esse risco, pois seu poder de alterar o direito já existente é bastante limitado (ibid., p. 162). Por outro lado, não podemos ignorar que para muitos adeptos a virtude do convencionalismo é a sua capacidade de reduzir incertezas, muito embora segundo Dworkin, a surpresa nem sempre seja algo injusto. Essa virtude tem a ver com o fato de que a incerteza "é ineficaz, impõe riscos desnecessários, assusta as pessoas, e não é do interesse geral" (ibid., p. 173). O convencionalismo busca o equilíbrio entre previsibilidade e flexibilidade, porém, o critério usado é absolutamente respeitar as decisões explícitas tomadas no passado pelas instituições políticas e judiciárias.

Em outra direção, o pragmatismo jurídico adota uma atitude cética em relação às regras e práticas do passado, alegando que o passado não oferece qualquer justificativa útil para o uso ou não do poder coercitivo do Estado (ibid., p. 185). O juiz pragmático encontra suas justificativas na eficiência ou em alguma outra virtude contemporânea da própria decisão coercitiva; e justifica que a coerência com qualquer decisão anterior não contribui para a justiça ou a virtude de qualquer decisão atual. Pensando dessa forma, o trabalho dos juízes tornará o futuro da comunidade mais promissor, "liberado da mão morta do passado e do fetiche da coerência pela coerência" (ibid., p. 185).

O pragmatismo não recomenda aplicar alguma noção de boa comunidade como um todo, entretanto, estimula os juízes a decidirem e a agirem segundo seus próprios pontos de vista.

O convencionalismo, diferentemente, apresenta uma teoria positiva não cética em relação ao passado, visto que suas pretensões jurídicas são extraídas a partir das decisões tomadas na tradição.

Já o pragmatismo nega que as pessoas têm quaisquer direitos concretos pré-fabricados; e adota o ponto de vista de que as pessoas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade, ou porque alguma legislação assim o estabeleceu, ou porque alguma longa fileira de juízes decidiu que outras pessoas tenham determinado direito concreto baseado na experiência do passado.

Na sua dinâmica, o pragmatismo deve agir às vezes como se as pessoas tivessem direitos, mas é cada juiz quem vai decidir a concretude dos direitos e deveres. O pragmatismo, segundo Dworkin, "trata-se de uma concepção de direito mais poderosa e persuasiva do que o convencionalismo e um desafio mais forte ao direito como completeza" (ibid., p. 189).

Direito como completeza que caracteriza a teoria da integridade é "uma teoria não cética das pretensões juridicamente protegidas através da garantida dos princípios que proporcionam a melhor justificativa da prática jurídica como um todo" (ibid., p. 186).

O desafio do pragmático é encontrar o equilíbrio entre a previsibilidade institucional e a flexibilidade dos acontecimentos. O pragmatismo inclui em sua lista de direitos o princípio do "como se" que faz parte do direito abstrato; porém, não se sente obrigado a fazer cumprir todos os direitos conferidos por todas as leis. Seu critério pessoal de leitura vai observar o que é útil na coordenação atual do comportamento social. Ou seja, pode excluir leis que sejam muito antigas.

O pragmatismo é uma concepção cética do direito rejeitando a existência de pretensões juridicamente tuteladas genuínas. Não rejeita, propriamente, a moral, nem mesmo as pretensões políticas e morais. Afirma, no entanto, que para decidir os casos judiciais, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo que acreditam ser a melhor comunidade futura; para alguns, significa uma comunidade mais rica, mais feliz, mais poderosa; para outros, uma comunidade com menos injustiças e com aquilo que chamamos de alta qualidade de vida (ibid., p. 195).

O pragmatismo não exclui teorias sobre o que torna a comunidade melhor. Mas evita o dogmatismo e a tutela dessas teorias. Nessa direção, os direitos não estão prontos na lei, portanto "aquilo que chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor futuro; são instrumentos que construímos para esse fim e não possuem força ou fundamento independentes" (ibid., p. 195).

O pragmático pensa que os juízes deveriam sempre fazer o melhor possível para o futuro, em circunstâncias dadas, desobrigados de qualquer necessidade de respeitar ou assegurar a coerência de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou farão.

O pragmático dará toda a atenção ao passado exigida por uma boa estratégia. Aceita os direitos abstratos da lei. Entretanto, nos casos difíceis, exclui leis ultrapassadas, ou quando são, em sua avaliação, as leis ou precedentes judiciais injustos e ineficientes. Rejeita também os princípios que foram observados ou não por outros juízes anteriormente. Sua preocupação é com a eficiência e a justiça. Suas opiniões giram em torno da preocupação sobre qual decisão será menos ineficiente ou que reduzirá, ao mínimo, a ocorrência de injustiça dentro de um modelo argumentativo com alta dosagem de individualismo.

4.4 Definição teórica: o princípio da integridade é uma virtude política

No trato cotidiano, desejamos naturalmente que nossos vizinhos se comportem de modo que consideramos correto, mas sabemos que, até certo ponto, as pessoas divergem quanto aos princípios corretos de comportamento. Na política, por exemplo, a integridade é um ideal quando exigimos o mesmo comportamento do Estado ou da comunidade concebidos como agentes morais. Tanto no caso individual como no político, admitimos a possibilidade de reconhecer que os atos das outras pessoas expressem uma concepção de equidade, justiça ou decência, mesmo quando nós mesmos muitas vezes não endossemos tal concepção.

O sentimento moral é uma parte importante da nossa capacidade mais geral de tratar os outros com respeito, sendo, portanto, um requisito prévio de civilização. Diferentes exigências encontradas no cotidiano justificam o compromisso que devemos ter com a coerência de princípios.

O primeiro princípio prático solicita que a integridade na legislação crie direitos mantendo coerência quanto aos princípios magnos; o segundo princípio prático pede às pessoas responsáveis por decidir o que é a lei que a vejam e a façam cumprir como sendo igualmente coerentes nesse sentido. Aqui, curiosamente a integridade valoriza o passado mais que o pragmatista.

A integridade explica porque os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo e não como um amontoado de departamentos ou uma série de decisões distintas ou arbitrárias de indivíduos livres, que usam ou trocam uma lei por outra refletindo seus interesses estratégicos ou conveniências particulares sem se preocupar com o restante da comunidade e com a estrutura constitucional.

O princípio da integridade pressupõe a existência de uma comunidade personificada na figura do Estado e admite deste modo que o Estado pode, indiretamente através de seus funcionários públicos, se engajar nos princípios de equidade, justiça e devido processo legal adjetivo, de forma análoga às pessoas físicas que se engajam em favor de suas convicções, ideais ou projetos pessoais.

O modelo de Dworkin assume a personificação da comunidade, distinta do seus indivíduos particulares, dos seres reais, os cidadãos. Pior ainda, diz o autor, sua concepção atribui influência e responsabilidades morais ao Estado. Quando Dworkin declarou que uma comunidade é fiel a seus próprios princípios, ele não se referiu à sua moral convencional ou popular, às crenças e convicções da maioria dos cidadãos; na verdade, o que o autor quis dizer é que a comunidade tem seus próprios princípios e pode honrar ou desonrá-los; ou então que pode agir de boa ou ma fé, com integridade ou de maneira hipócrita, assim como o fazem as pessoas no dia a dia.

Dworkin perguntou nesse sentido: "posso mesmo atribuir um poder ao Estado ou comunidade de princípios que esteja além da maioria dos seus membros?". Ele respondeu: sim. Mas não se trata de promover uma abordagem metafísica, tirânica, extrajurídica, ou utópica de que o Estado seria uma pessoa real, de carne-osso.

O ponto fundamental nesse tipo de analogia se refere ao debate da responsabilidade moral da mesma forma quando alguém faz parte de uma sociedade e comete um crime ambiental; ou quando uma pessoa é prejudicada pela decisão de um grupo econômico e a empresa tem responsabilidade; ou em outro caso, quando alguém teve responsabilidade no atropelamento de alguém; ou responsabilidade sobre os produtos defeituosos que a empresa colocou para vender no mercado.

Enfim, estamos sempre utilizando esse princípio moral - a responsabilidade - para compreender e julgar o nosso cotidiano pessoal. É dessa forma que tratamos, igualmente, a responsabilidade do Estado como um todo constitucional.

Para visualizarmos essa responsabilidade geral precisamos personificar um agente ou pessoa que se comporte desta e não daquela maneira. A responsabilidade é produto da ação e da avaliação de alguma pessoa viva, ou semelhantemente viva.

A personificação contribui programaticamente para julgarmos a responsabilidade do Estado. No direito, bem sabemos que a responsabilidade se desdobra em várias práticas: civil penal, pública, privada, comercial, eleitoral, coletiva, individual. Acreditamos, portanto, que os dirigentes políticos e operadores do direito têm responsabilidades especiais e complexas. Eles devem tratar todos os membros da comunidade como iguais, mas ainda assim não conseguimos entender a responsabilidade política dos servidores públicos usando a mesma analogia com o a moralidade privada. Precisamos, na verdade, de uma idéia de responsabilidade mais transcendente que não se encontra pronta na esfera doméstica. Ou seja, a comunidade como um todo tem obrigações de imparcialidade para com seus membros. E as autoridades vão se comportar como agentes da comunidade ao exercerem essa responsabilidade.

Aqui, como no caso da empresa, precisamos tratar a responsabilidade coletiva como logicamente anterior às responsabilidades concretas de cada uma das autoridades públicas. Ao aceitarmos que nossas autoridades agem em nome de uma comunidade da qual somos todos membros, tendo uma responsabilidade solidária que, portanto, compartilhamos, automaticamente é reforçado e sustentado o caráter da culpa coletiva, o sentimento de que cada um de nós deve sentir vergonha quando as autoridades agem de modo injusto sobre a nossa comunidade (ibid., p. 212).

4.5 Definição prática: o programa de pesquisa da integridade faz diagnósticos e prognósticos institucionais

A função descritiva do programa de pesquisa da integridade observa o comportamento das teorias jurídicas na prática dos juízes entre elas, possivelmente o convencionalismo, o pragmatismo e a teoria da integridade do direito. Descrevendo a dinâmica dos processos e das sentenças judiciais, podemos mapear empiricamente as disputas teórico-argumentativas, observando criticamente as virtudes e vícios institucionais de cada uma das teorias concorrentes.

Em segundo lugar, a função especulativa do programa de pesquisa da integridade é definida através do modelo que fica concentrado na pessoa fictícia de um juiz denominado Hércules. Empregando esse tipo ideal de juiz, o programa de pesquisa da integridade especula sobre como deveria ser a decisão dos juízes se Hércules estivesse realmente presente no Poder Judiciário. A especulação nos permite encontrar uma nova paisagem teórica (e moral) do direito mostrando o surgimento no cotidiano judiciário do princípio do dever-ser casado com o dever fazer na prática dos juízes.

Hércules é um juiz fictício paciente, íntegro, bem informado; conta com tempo infinito à sua disposição; é cheio de sabedoria; seu estilo de trabalho é metódico, reflexivo, criterioso, perspicaz e cheio de virtudes. Entretanto, quando observamos o cotidiano dificilmente encontramos o juiz Hércules presente no Poder Judiciário. Para compreendermos a ausência dessa raridade institucional, devemos recuperar estrategicamente algumas advertências metodológicas de Ronald Dworkin no seguinte aspecto (ibid., p. 454-55):

Já é tempo, porém, de repetir uma das advertências que fiz anteriormente. Hércules serve a nosso propósito porque é livre para concentrar-se nas questões de princípio que, segundo o direito como integridade formam o direito constitucional que ele aplica. Não precisa preocupar-se com a urgência do tempo e dos casos pendentes, e não tem dificuldade alguma, como inevitavelmente acontece com qualquer juiz mortal, de encontrar uma linguagem e uma argumentação suficientemente ponderadas para introduzir quaisquer ressalvas que julgue necessárias, inclusive a suas caracterizações iniciais do direito. Também não se preocupa [...] com um problema prático adicional que é particularmente sério nos casos constitucionais. Um verdadeiro juiz deve às vezes introduzir ajustes naquilo que acredita ser o certo enquanto questão de princípio, e, portanto, também questão de direito, para poder ganhar os votos de outros juízes e tornar a decisão conjunta suficientemente aceitável à comunidade, que desse modo poderá continuar atuando como uma comunidade de princípios no nível constitucional. Servimo-nos de Hércules para fazer uma abstração desses problemas de ordem prática, como deve fazer qualquer análise bem fundada, para assim podermos ver quais soluções de compromisso os juízes reais consideram necessárias enquanto compromissos com o direito.

4.5.1 Hipótese auxiliar: o juiz Hércules

O conceito de integridade é uma virtude metodológica ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal. Esse conceito é decisivo para aquilo que um juiz reconhece como direito. Reina, por assim dizer, sobre os fundamentos do direito, pois não admite nenhum outro ponto de vista que "decorra" de decisões políticas tomadas no passado (ibid., p. 262).

A integridade é um princípio prático-transcendente ou metodológico e se preocupa primeiramente com os princípios que justificariam a aplicação das regras jurídicas. O juiz que aceita a integridade pensará que o direito estabelece os direitos genuínos que os litigantes têm a uma decisão dele. Os litigantes têm o direito, em princípio, de ter seus atos e assuntos julgados de acordo com a melhor concepção processual daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigem ou permitem na época em que se dão os fatos. A integridade exige que essas normas sejam consideradas coerentes, como se o Estado tivesse uma única voz (ibid., p. 263).

O princípio da integridade instrui os juízes a identificarem direitos e deveres legais até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor - a comunidade personificada, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade.

No direito como equidade as proposições jurídicas são verdadeiras se constam ou derivam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que juntos oferecem a melhor interpretação construtivas da prática jurídica da comunidade (ibid. p. 273).

O direito como integridade é mais inflexivelmente interpretativo do que o convencionalismo e o pragmatismo. Essas duas últimas concepções pretendem descrever e comandar as práticas jurídicas, entretanto, os seus programas não recomendam - ou não pedem - aos juízes encarregados da decisão de casos difíceis que façam novos exames, essencialmente interpretativos da doutrina jurídica. Ao contrário deles, o programa de pesquisa da integridade pede aos juízes que continuem sempre interpretando o mesmo material que eles próprios afirmam ter interpretado com sucesso (ibid., p. 273).

A história é importante para a integridade, mas num determinado sentido; ou seja, a coerência de princípio é mais horizontal do que vertical no tempo. Admite-se que as leis foram feitas no passado e que as decisões precedentes revelam muitos aspectos relevantes, porém, o direito como integridade começa no presente e se volta ao passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine (ibid., p. 274).

O conceito de integridade não busca os ideais e objetivos práticos dos políticos que criaram a lei. Deplora-se também aqui o mecanismo do antigo ponto de vista de que lei é lei.

A sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma em uma forma especial de comunidade; entende-se aqui como especial no sentido de que promove sua autoridade moral para então assumir e mobilizar o monopólio legítimo da força coercitiva do Estado (ibid., p. 228).

Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas.

4.6 Definição contextual: comunidade de princípios

O programa de pesquisa da integridade não se preocupa inicialmente com os fins, mas com os meios ou "modo como os juízes decidem casos judiciais" (cf. cap. 1 do livro O império do direito).

A integridade é a chave para a melhor interpretação construtiva das práticas judiciais e particularmente do modo como os juízes decidem casos difíceis nos tribunais (ibid., p. 260).

Segundo Ronald Dworkin, o conceito de integridade oferece uma interpretação melhor da prática jurídica e judiciária do que o convencionalismo e o pragmatismo, porque não se perde em departamentos nem fragmentos e ao invés disso busca sempre recuperar a "totalidade constitucional". Conforme escreveu o autor nesse sentido:

- "[...] Se podemos compreender nossas práticas como apropriadas ao modelo de princípios, podemos sustentar a legitimidade de nossas instituições, e as obrigações políticas que elas pressupõem como uma questão de fraternidade, e deveríamos, portanto, tentar aperfeiçoar nossas instituições em tal direção " (ibid., p. 258).

- "Não afirmo, como parte de minha tese interpretativa, que nossas práticas políticas aplicam a integridade de maneira perfeita. Admito que não seria possível reunir, num único e coerente sistema de princípios, todas as normas especiais e outros padrões estabelecidos por nossos legisladores e ainda em vigor. Nosso compromisso com a integridade significa, contudo, que devemos considerar esse fato como um defeito, e não como o resultado desejável de uma justa divisão do poder político entre diferentes conjuntos de opinião, e que devemos nos empenhar em remediar quaisquer incoerências de princípio com as quais venhamos a deparar" (ibid., p. 261)

- "[...] o direito como integridade oferece uma interpretação melhor da prática jurídica do que as outras duas concepções [pragmatismo e convencionalismo]" (ibid., p. 261).

- "A integridade como um ideal político se adapta e explica características de nossa estrutura e prática constitucional que, de outro modo, mostram-se enigmáticas" (ibid., p. 259).

No modelo da comunidade de regras pressupomos, abstratamente, que as pessoas tratam a sua associação com os demais aceitando sempre o compromisso geral de obedecer a regras preestabelecidas. Quando essas pessoas precisam fazer algum contrato ou transação, obedecem às regras e "admitem que o conteúdo dessas regras esgota sua obrigação". Essas pessoas consideram também que as regras já representam por si só um acordo de diferentes interesses ou pontos de vista antagônicos. Nesse ponto, as regras funcionam como réguas, dando margem para que sejam feitos acordos justos e previsíveis. Nesse modelo, os indivíduos são livres para agir de modo quase tão egoísta quanto em uma comunidade de circunstâncias (ibid., p. 256). Cada um pode usar o aparelho político vigente para promover seus próprios interesses ou ideais e usam tecnicamente as regras para fazer acordos extremamente formais, sem acrescentar nenhum sentimento moral e constitucional de fraternidade no sentido mais amplo, além da demanda contratual em questão.

Já no modelo da comunidade de circunstâncias ou de estratégias pressupõe-se que os membros dessa comunidade tratam sua associação com os demais como se isto fosse um acidente dos fatos sociais, da história e também da geografia. As diferenças interpessoais existem; porém, se cada um precisa do outro, circunstancialmente são realizados acordos pontuais, sem levar em conta o interesse geral da comunidade. As pessoas podem, por exemplo, chegar a uma forma de divisão do trabalho, mas cada um vai manter o acordo enquanto achar que este lhe é benéfico, nada além desse aspecto utilitário. A associação aqui admite que as pessoas não se interessam pelas outras a não ser como "meio" de atingir os seus objetivos econômicos e sociais (ibid., p. 255).

Diferentemente, no modelo da comunidade de princípios as pessoas divergem sobre justiça e equidade (ibid., p. 257), considerando como cenário a existência de uma sociedade "moralmente pluralista". Esse modelo torna específicas as responsabilidades da cidadania e faz com que as responsabilidades sejam inteiramente pessoais. Além disso, exige que ninguém seja excluído e determina que na política estejamos todos juntos para o melhor ou o pior, pois ninguém pode ser sacrificado como os "feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total". Esse modelo busca uma comunidade associativa baseada no princípio maior da fraternidade. O direito será escolhido, alterado, desenvolvido e também interpretado de modo global através da linguagem transcendente apoiada em princípios. Aqui, nossos juízes deverão tratar o atual sistema de normas públicas como se este sistema expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios. Com essa conduta espera-se que os juízes e políticos interpretem essas normas de modo a descobrir, em seguida, normas implícitas "entre e sob as normas explícitas".

4.6.1 Princípios transcendentes ou constitucionais da integridade

-Liberdade: "as pessoas que pertencem a comunidades políticas básicas têm obrigações políticas, desde que sejam atendidas as outras condições necessárias às obrigações de fraternidade - devidamente definidas para uma comunidade política" (ibid., p. 250). "A obrigação central é a da fidelidade geral ao direito" (ibid., p. 253).

- Igualdade: "os membros da comunidade devem pressupor que as práticas do grupo mostram não apenas interesse, mas um igual interesse por todos os membros. Nesse sentido, as associações fraternais são conceitualmente igualitárias. Podem ser estruturadas, e inclusive hierárquicas, da mesma maneira que se verifica em uma família, mas a estrutura e a hierarquia devem refletir o pressuposto de que seus papéis e suas regras digam respeito aos interesses de todos, e que a vida de uma pessoa não é mais importante que a de nenhuma outra. Se essa condição for observada, os próprios exércitos podem ser organizações fraternais. Não são fraternais, porém, nem geram responsabilidades comunitárias, os sistemas de castas para os quais alguns membros são intrinsecamente menos dignos que outros" (ibid., p. 243). "Um governo que aceite o princípio igualitário abstrato necessita de uma concepção de interesse equitativo, e a integridade exige que o governo se decida por uma única concepção que não venha a rejeitar em nenhuma decisão, inclusive nas decisões de política. Assim, um governo comprometido com a concepção utilitária visa a estratégias legislativas que, em conjunto e a longo prazo, aumentem o bem-estar medido mais do que o fariam quaisquer outras estratégias; um governo comprometido com a igualdade material adota programas que tornam segmentos e classes mais iguais em termos de riqueza material enquanto grupos, e assim por diante. Por exemplo, subsídios a um grupo de agricultores podem ser justificados ainda que os subsídios a um grupo diferente, como parte de outra estratégia geral, também pudessem ter contribuído para aumentar o bem estar geral, possivelmente na mesma medida" (ibid., p. 268)

- Fraternidade: "o valor expressivo da integridade é confirmado quando pessoas de boa fé tentam tratar umas às outras de maneira apropriada à sua condição de membros de uma comunidade governada pela integridade política e ver que todos tentam fazer o mesmo, mesmo quando divergem sobre o que exatamente a integridade exige em circunstâncias particulares. A obrigação política deixa de ser, portanto, apenas uma questão de obedecer a cada uma das decisões políticas da comunidade, como em geral a representam os filósofos políticos" (ibid., p. 231). A integridade "torna-se uma ideia mais impregnada da noção protestante de fidelidade a um sistema de princípios que cada cidadão tem a responsabilidade de identificar, em ultima instância, para si mesmo, como o sistema da comunidade à qual pertence" (ibid., p. 231)

- Responsabilidade: pressupõe que em certo sentido "somos os autores das decisões políticas tomadas por nossos governantes, ou pelo menos, que temos boas razões para pensar assim. Esse ideal precisa, no entanto, de integridade pois um cidadão não pode considerar-se o autor de um conjunto de leis incoerentes em princípio, nem pode ver tal conjunto como algo patrocinado por alguma vontade geral rousseuaniana" (ibid., p. 229). "O ideal de autogoverno tem um aspecto especial que a integridade promove diretamente e a observação desse aspecto vai nos levar à nossa discussão principal da legitimidade e da obrigação política. A integridade expande e aprofunda o papel que os cidadãos podem desempenhar individualmente para desenvolver as normas públicas de sua comunidade, pois exige que tratem as relações entre si mesmos como se estas fossem regidas, de modo característico, e não espasmódico, por essas normas" (ibid., p. 230). "Não devemos nos esquecer de que as responsabilidades associativas estão sujeitas a interpretação, e que a justiça vai desempenhar seu papel interpretativo normal ao decidir, para qualquer pessoa, quais são, de fato, as suas responsabilidades associativas" (ibid., p. 246).

- Legitimidade: a integridade pública ou constitucional insiste em afirmar que cada cidadão deve aceitar as exigências que lhes são feitas e pode fazer exigências aos outros que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas. A integridade promove a união da vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entram em conflito que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania. A integridade infunde às circunstâncias públicas e privadas o espírito de uma e de outra, interpretando-as para o benefício de ambas. Essa continuidade tem valor prático e indicativo, pois facilita a mudança orgânica como vantagem prática.

- Dignidade: "o valor expressivo [da integridade] é confirmado quando pessoas de boa fé tentam tratar umas às outras de maneira apropriada à sua condição de membros de uma comunidade governada pela integridade política e ver que todos tentam fazer o mesmo, mesmo quando divergem sobre o que, exatamente, a integridade exige em circunstâncias particulares" (ibid., p. 231)

4.6.2 Princípios práticos ou operacionais

- Equidade ou princípio legislativo: a equidade exige que os princípios políticos necessários para justificar a suposta autoridade legislativa sejam plenamente aplicados ao se decidir o que significa uma lei quando sancionada. "Este princípio pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente" (ibid., p. 213). "A integridade na legislação restringe aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação do direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas" (ibid., p. 261). O princípio legislativo da integridade exige que o legislativo se empenhe em proteger, para todos, aquilo que vê como seus direitos morais e políticos, de tal modo que as normas públicas expressem um sistema coerente de justiça e equidade.

- Justiça ou princípio jurisdicional: a concepção de justiça de uma comunidade exige que os princípios morais necessários para justificar a substância das decisões de seu legislativo sejam reconhecidos pelo resto do direito. Isto "demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente do ponto de vista moral. A integridade na deliberação judicial requer que até onde seja possível, que nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios, e com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas. "O princípio judiciário da integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram criados por um único autor - a comunidade personificada, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade"(ibid., p. 272).

- Devido processo legal: segundo Ronald Dworkin, o devido processo legal adjetivo insiste em que sejam obedecidos totalmente os procedimentos previstos nos julgamentos e que se considere nesse tipo de processo alcançar o correto equilíbrio entre a exatidão e a eficiência na aplicação de algum aspecto do direito.


5 O que aconteceria no Poder Judiciário (extraído do capítulo As leis)

O juiz Hércules sabe que na prática judiciária os juízes convencionalistas referem-se constantemente às múltiplas declarações feitas pelos membros do Congresso e de outras instituições governamentais, incluindo relatórios de comissões especializadas e debates oficiais a respeito da finalidade da lei antes de ela ter sido aprovada definitivamente pelo Poder Legislativo.

Os juízes convencionalistas defendem a metodologia da intenção do locutor ou interpretação conversacional acreditando piamente que chegarão deste modo ao verdadeiro estado de espírito do legislador antes e durante a votação da lei.

Tentando realizar uma profundareconstrução do passado político da lei, os juízes ordinários buscam descobrir qual foi a intenção do legislador ao propor este ou aquele tópico no texto legal. Pouco a pouco, entretanto, os juízes ordinários acabam descobrindo uma teia de significados e questões enigmáticas que envolvem o trabalho legislativo no passado. Por exemplo:

Quais personagens históricos podem realmente ser considerados legisladores?

Como devemos agir para descobrir as suas reais intenções na época?

Quando as intenções não são consensuais, o que devemos focalizar?

Em que momento exato a lei ganhou significado, antes ou durante a votação no plenário?

Indo mais além na sua investigação histórica, os juízes ordinários encontram como surpresa, muitas falhas em sua metodologia constatando que o ideal de neutralidade de investigação do passado não pode sobreviver razoavelmente nas mãos de um sujeito crítico e reflexivo.

Não se dando por vencidos, os juízes ordinários começam naturalmente a desenvolver outras estratégias de investigação. Admitem, gradativamente, que devem empenhar-se mais em descobrir as atitudes mentais subjacentes da legislação do que propriamente investigar os estados de espírito de cada um das centenas de legisladores. Ao buscar as ideias do passado, os juízes ordinários perguntam:

Qual era o estado de espírito dos que foram contra e favor da aprovação da lei?

Quem foram os assessores dos legisladores?

Quem foi o presidente da sessão?

Cartas e lobbies deveriam ser incluídos nessa reconstrução histórica?

Atores sociais teriam algum valor decisivo antes ou durante a aprovação dessa lei?

Os juízes ordinários começam a perceber que qualquer visão realista sobre o processo legislativo implica a influência dos grupos de interesse, portanto, todos esses atores deverão merecer atenção de alguma forma por terem participado direta ou indiretamente na elaboração da lei. Também, se uma lei não foi revogada ao longo do tempo, os juízes ordinários levam em consideração na sua pesquisa do passado as intenções de vários legisladores que poderiam ter revogado, mas que não o fizeram por algum motivo na época.

Conforme se percebe, ficando a investigação do passado insustentável os juízes ordinários avaliam que a teoria da intenção do locutor precisa ser purificada considerando para isto que os lobbies, conluios e comitês de ação política representariam uma corrupção do processo democrático. Desse modo, os juízes ordinários decidem, moralmente, que apenas valem as intenções dos congressistas que votaram pela lei e que as intenções de todos eles devem ter, genericamente, o mesmo peso no estudo da intencionalidade. Nada mais, nada menos.

Sabendo, portanto, que existiam sérias divergências sobre o texto da lei na época de sua votação, os juízes convencionalistas começam a usar outra estratégia, não mais baseada na intenção individual, mas na intenção da maioria dos legisladores.

Nesse momento, existem vários subcritérios que devem ser avaliados. Por exemplo:

Haveria uma pluralidade intencional?

Um legislador médio?

Existiriam outras formas de combinar o individualismo como o coletivismo da assembléia legislativa?

Mais uma vez, os juízes ordinários precisarão confiar no seu próprio julgamento político. Deverão definir a maioria como algo quantitativo ou qualitativo. Ao estabelecer, contudo, a intenção da maioria como critério alternativo, os juízes ordinários escolhem um legislador representante dessa idéia geral, acreditando assim que ao descobrirem a sua intenção em votar numa determinada lei estariam fielmente descobrindo a intenção da maioria genérica de legisladores.

Na sequência da investigação convencionalista, os juízes ordinários decidem conhecer as ideias de uma senadora que votou favoravelmente na aprovação da lei. Ao definir uma congressista como objeto de estudo, que serve como exemplar do tipo médio, digamos de nome Maria, os juízes ordinários não imaginam que vão encontrar um novo problema, pois não existe nada escrito sobre as opiniões formais dessa senadora em relação ao projeto de lei que agora está sendo debatido no tribunal; nem mesmo nos relatórios de comissões e nos debates legislativos. Além disso, diga-se de passagem, a vida mental desta senadora é complexa demais e muitas vezes incoerente na história do poder legislativo.

Os juízes ordinários vão atrás da opinião desta senadora porque acreditam basicamente no poder da conversação como meio de revelação da verdade da maioria abstrata dos legisladores do passado. Entretanto, vai ficando nítido que a senadora Maria pode ter votado na época a favor de determinada lei estando pressionada por força de algum lobbie ou então estaria antenada com o clima da próxima eleição.

Além disso, a senadora pode ter votado a favor da mesma lei acreditando que seria efetivada de um modo e não de outro; acreditava, por exemplo, que a lei cairia nas mãos de juízes liberais ou conservadores e assim sofreria restrições ou ajustes diversos, equilibrados e coerentes com a realidade concreta do caso. Em outras palavras, quando os congressistas votaram em favor da lei existiam certas esperanças que não ficaram explicitadas no texto oficial. Os congressistas esperavam, curiosamente, que seriam feitas leituras adaptativas da parte dos juízes no futuro, tornando assim a aplicação da lei razoável ou condizente com o caso concreto.

Já nessa altura dos acontecimentos, os juízes ordinários começam a intuir que a história de determinada lei está repleta de convicções, esperanças e expectativas de cada legislador tornando assim impossível entender coerentemente o que todos eles queriam realmente comunicar através da aprovação lei no poder legislativo.

Aqui, paradoxalmente, começa a surgir o reconhecimento objetivo de que os legisladores têm uma variedade de crenças e de atitudes com relação à justiça e equidade. Ao fazerem a interpretação das convicções dos legisladores, os juízes ordinários percebem que a senadora Maria apresenta uma variedade enorme de opiniões embaraçosas e momentâneas sobre o justo e injusto, sábio ou tolo, favorável ou contrário ao interesse nacional ou coletivo; muitas vezes, inclusive, a senadora manifestou interesses circunstanciais, partidários e pessoais contraditórios em outros episódios legislativos.

Tendo em vista que a opinião atual da senadora não parece razoável com a sua posição tomada no passado aprovando neste sentido uma lei que hoje é interpretada de outra forma totalmente contrária por ela mesma, os juízes ordinários são obrigados a buscar outro critério. Passam então a olhar para as suas próprias convicções no estágio atual do caso difícil, o que, aliás, nunca deveriam fazer no domínio do convencionalismo.

Os juízes ordinários abandonam a intencionalidade do legislador, o seu estado de espírito e a intencionalidade da maioria genérica e abstrata. Esse esquema de trabalho chega ao ponto de saturação empírica e teórica quando se descobre finalmente que cada legislador não tinha e não têm as mesmas opiniões concretas sobre a lei aprovada; nem mesmo havia no passado um sistema geral de convicções políticas e morais uniformes, nem antes, nem depois de aprovada a lei no poder legislativo.

Os juízes ordinários interpretam o histórico dos legisladores individuais para descobrir as convicções que justificariam o que cada um fez, para em seguida, combinar essas convicções individuais numa convicção institucional global. Ou em apenas uma etapa, buscariam interpretar o histórico da própria legislatura para descobrir as convicções que justificariam no passado o que a senadora fez.

Especialmente no momento de crise, os juízes ordinários podem optar pela segunda alternativa por motivos que são melhor recomendados pela teoria da integridade; buscam convicções gerais porque numa comunidade de princípios a legislação deve ser entendida como a expressão de um sistema coerente de princípios. Nesse ponto de saturação, os juízes ordinários vão percebendo que desde o inicio eles deviam interpretar muito mais o histórico da legislação e muito menos a biografia de cada um dos legisladores.

De acordo com a crítica do juiz Hércules, a notória doutrina da retórica judiciária de que as leis devem ser aplicadas observando-se as intenções contidas por trás delas, mostra agora a sua verdadeira natureza ou debilidade. Nesse limite, o juiz Hércules declara que seu método de trabalho tem mais poder e capacidade de ir além do individualismo ou do coletivismo metodológicos.

Hércules respeita a originalidade do texto legal e sabe desta forma que não vai corromper uma lei só por estar projetando no texto jurídico as suas próprias convicções. Ao mesmo tempo, Hércules respeita a equidade política, por isso não vai ignorar jamais a opinião pública e a intenção do poder legislativo.

Acima de tudo, Hércules se pergunta: "por que algumas declarações do Congresso, aquelas consideradas como partes essenciais do histórico legislativo são mais importantes que outras? Além disso, muitos episódios verdadeiros não entram, como, por exemplo, os discursos solitários dos legisladores numa sessão vazia nem as entrevistas de TV que tanto afetam a opinião pública".

Hércules evita praticar uma metodologia processual fragmentada, olhando só para as regras ou para os critérios tradicionais da Justiça. Ele adota outro ponto de vista: considera, virtualmente, que o Estado como um todo é um agente moral, por isso, pressupõe obrigatoriamente que todos os atos legislativos e decisões judiciais devem sempre sintetizar os princípios constitucionais.

Em outras palavras, o agente principal da política não é o legislador, mas o Estado que personifica uma comunidade moral de princípios. Nessa perspectiva, o juiz Hércules tem por objetivo compreender o conjunto histórico legislativo da melhor forma possível. No entanto, irá fazê-lo da pior maneira se a sua interpretação mostrar o Estado dizendo uma coisa e fazendo outra. Por isso, é absurdo para Hércules considerar que cada declaração feita por um legislador sobre a finalidade da lei aprovada seria a própria lei do Estado. Hércules vai interpretar - e precisa encontrar - alguma avaliação da prática que se ajuste a ela, e finalmente a justifique.

Uma comunidade de princípios não encara a legislação como comunidade baseada em códigos, como acordos negociados, que não tem significado nenhum adicional ou mais profundo além daquele declarado pelo texto da lei. Hércules é um juiz íntegro e pressupõe que o Estado - que ele representa profissionalmente - não pretende jamais enganar o público, nem os indivíduos, nem a comunidade.

Hércules não tem dúvida que as últimas declarações do Congresso devem ser levadas em consideração; elas são parte da documentação pública, além das decisões políticas posteriores sobre a importância relativa, no sistema geral de propósitos da comunidade e dos diferentes interesses em jogo. Mas são partes e não o todo da ordem constitucional.

Na teoria da intenção do locutor a legislação é um ato de comunicação entre emissor e receptor. Pergunta-se: quem fala, quem escuta, qual estado de espírito influenciou a votação? Em que tempo? Em que espaço? Fundamentalmente, na teoria da intenção "os juízes devem escolher entre a mão morta, porém, legítima do passado e o encanto claramente ilícito do progresso".

O método de Hércules condena a teoria da intenção do locutor e rejeita a hipótese de um momento canônico no qual a lei nasce e tem todo e o único significado que sempre terá. Hércules interpreta não só o texto da lei, mas também a sua vida legislativa, o processo que se iniciou antes dele se transformar em lei, e tudo mais que se estende além do passado. Ou seja, Hércules observa o contexto. Ele quer utilizar da melhor forma possível esse desenvolvimento contínuo e por isso sua interpretação muda à medida que a história vai se transformando.

Querendo melhorar ou ampliar a interpretação coletiva da lei, Hércules vai identificar uma multiplicidade de pessoas, grupos, cientistas, especialistas e instituições, cujas afirmações ou convicções podem ser relevantes de diferentes maneiras. Por exemplo, ao tratar da equidade Hércules não se limita aos gabinetes e abre as portas para a opinião pública, inclusive aceita com respeito a introdução, no processo legal, de algum discurso razoável televisionado de um político que muitas vezes pode ser mais relevante do que uma bela página impressa de um relatório de uma comissão técnica.

Na teoria da intenção do locutor não se pode incluir as opiniões posteriores ou estranhas à lei, pois se trataria de anacronismo dentro da visão historicista da lei. Porém, Hércules é diferente. Ele pergunta para si próprio qual é a interpretação que oferece a melhor descrição de uma história política que agora inclui não apenas a lei. Nesse sentido, Hércules vai perceber que o texto legal tem a sua estrutura, mas levará em consideração o que outros tribunais fizeram em casos semelhantes. Sua recorrência ao tempo passado e futuro será feita, no entanto, de um modo bem especial neste processo.

O juiz Hércules precisa denunciar passo a passo a dificuldade encontrada pela teoria da intenção do locutor levando essa metodologia à exaustão máxima. Como alternativa Hércules introduz o seu modo de produção da verdade, articulando política, direito e moral, e, sobretudo defendendo a abertura do direito como espaço da multivocalidade.

De fato, nesse prognóstico não sabemos o que Hércules decide finalmente na sua sentença porque estamos preocupados nesta seção apenas como o modo como os juízes decidem casos. Conhecemos, no entanto, com transparência, a sua metodologia judiciária, usando o conceito de integridade na construção de um justo processo legal.

O juiz Hércules é um agente moral. Ele se preocupa em exercer da melhor maneira possível a sua responsabilidade profissional representando o Estado de Direito Democrático como um todo. Agindo de forma sintética ou integradora, Hércules não é apenas um agente moral, mas também um agente cultural que enfrenta a cultura do convencionalismo infiltrada no Poder Judiciário.

Sendo uma criatura existencialista, Hércules olha para o presente, considerando que o passado é um relato do tempo presente importante, mas não determinante da solução do caso difícil. Nesse sentido, Hércules também respeita a sua própria convicção pessoal e dos demais envolvidos, por isso mesmo, promove a abertura democrática do direito para outras vozes se manifestarem, pois ele busca integrar a legalidade com a legitimidade social. Como criatura hermeneuta, Hércules compreende que o caso judicial é difícil no exato momento em que o texto entrou em conflito com o contexto.


6 O que aconteceu no Poder Judiciário

Em brilhante estudo de caso, as autoras Ana Cléia Clímaco Rodrigues da Silva e Thamyres Camarço Oliveira (2011) mostram que o conceito da integridade aparece na sentença do juiz Alcides da Fonseca Neto, da 11ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, envolvendo um processo judicial relacionado com atos de violência doméstica e familiar entre dois parceiros homoafetivos masculinos.

Diante da denúncia formalizada de que um dos parceiros e vítima das agressões era espancado frequentemente nos últimos três anos; considerando também o fato de que no mês de março de 2011 a vítima foi atacada com uma garrafa de vidro, que cortou seu rosto, lábios, coxas e pernas; e que, além disso, a vítima sofria constantemente ameaças de morte para não denunciar os maus tratos à Polícia, o juiz do Rio de Janeiro encontrou-se diante de um caso difícil e obscuro para julgar a violência doméstica principalmente porque não existe nenhuma lei brasileira disciplinando a convivência entre casais homoafetivos masculinos.

O juiz encontrou uma lacuna jurídica que precisava ser preenchida ou pelo princípio da discricionariedade do convencionalismo; ou pela intuição pessoal do pragmatismo, ou então por meio do princípio combinatório da integridade.

Se fosse pelo princípio da discricionariedade, no exercício de sua liberdade criativa o juiz encontraria como exemplo a ser copiado um caso anterior julgado na comunidade judiciária do Rio Grande Sul, na comarca de Rio Prado, através do juiz Osmar de Aguiar Pacheco, que concedeu uma medida protetiva a um dos parceiros ameaçado pelo companheiro agressor.

Indo nessa direção, entretanto, o juiz do Rio de Janeiro seria permanentemente questionado pelo fantasma do aguilhão semântico dos textos legais, que no ordenamento jurídico brasileiro são direcionados exclusivamente para resolver problemas de casais heterossexuais, pressionando qualquer mortal que não seja Hércules a ser desfavorável ao pedido da vítima, provavelmente abandonando o exemplo da sentença anterior do Rio Grande do Sul com receio de que proferir uma sentença textualmente incoerente e "ilegal".

De outro modo, se o juiz fosse adotar a sua intuição pessoal, ele poderia realmente superar o legalismo da linguagem e incluir uma decisão inusitada no caso, privilegiando a sua moral individualmente em detrimento quase absoluto do texto legal e das experiências institucionais do Poder Judiciário no passado.

Conforme explicam as autoras Silva e Oliveira, no convencionalismo os seus adeptos conferem maior importância à forma, podendo assim os juízes decidirem de qualquer modo, desde que respeitem o aspecto formal, ficando excessivamente presos às decisões tomadas pelas instituições jurídicas no passado. Essa conduta, de acordo com o que sugeriu Ronald Dworkin, não é do agrado de certo tipo de juiz que deseja imprimir a sua marca presente e existencialista naquilo que vai julgar. O jusfilósofo idealizado por Dworkin não aceita igualmente o pragmatismo, que, na ausência ou incompletude da lei, recomenda que o juiz preencha as lacunas com princípios morais próprios, desvinculando-se do texto da lei.

No princípio da integridade, diferentemente, a complexidade da aplicação e da interpretação do direito se resolve por meio de um processo integrativo, considerando o devido processo legal, a equidade e a justiça. Aqui, o direito não é composto apenas por regras, mas também por princípios, que são standards a serem observados por exigências da moral política e da justiça. Em outras palavras, a integridade representa a síntese do texto com o contexto e a moralidade pessoal do juiz. Ou então, a síntese do coletivismo com o individualismo jurídico. Para isso acontecer efetivamente são aplicados critérios específicos (coerência, adequação, abrangência, justificação, integridade e criatividade do juiz) que fazem parte daquilo que Dworkin chamou de interpretação construtiva.

De acordo com as autoras Silva e Oliveira, interpretar uma prática social (no caso, a lei) é propor um valor por meio da descrição de seus objetivos. Especificamente no modelo de Ronald Dworkin, a interpretação construtiva é feita desenvolvendo três etapas: pré-interpretativa, interpretativa e pós-interpretativa.

Primeiramente, são consideradas as regras e os padrões que fornecem o conteúdo experimental da prática. No estudo em análise, em que a Lei Maria da Penha é aplicada a um casal homoafetivo composto por homens, o juiz recorreu ao ordenamento jurídico no sentido de observar as regras que melhor se aplicariam a este caso. Declarou o juiz Alcides da Fonseca Neto nesse sentido: "importa finalmente salientar que a presente medida, de natureza cautelar, é concedida com fundamento na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), muito embora esta lei seja direcionada para as hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher".

Na etapa seguinte da interpretação criativa, o intérprete busca formular uma justificativa geral para os principais elementos observados na etapa anterior, argumentando se deve ou não buscar uma prática com essa forma geral. Aqui, o juiz considerou insuficientes as determinações do direito penal convencional e recorreu à lei 11.340/06 para atender às especificidades do caso concreto.

Por fim, na etapa pós-interpretativa, o aplicador da lei busca o ajuste ou adequação entre a sua ideia e aquilo que o caso requer completando a justificativa formulada na etapa anterior. No caso concreto, o magistrado ampliou a abrangência da Lei Maria da Penha, considerando o princípio constitucional, hierarquicamente superior, da isonomia. De acordo com o que afirmou o juiz "[...] a especial proteção destinada à mulher pode e dever ser estendida ao homem naqueles casos em que ele também é vítima de violência doméstica e familiar, eis que no caso em exame a relação homo-afetiva entre o réu e o ofendido, isto é, entre dois homens, também requer a imposição de medidas protetivas de urgência, até mesmo para que seja respeitado o Princípio Constitucional da Isonomia" (ibid.).

As autoras consideraram ainda que no contexto integrativo o juiz diante de um caso concreto deve analisar casos anteriores parecidos com o atual, tendo em vista que a prática de interpretação do direito precisa considerar tanto o passado sob o olhar interessado do presente, como o futuro. Isso acontece porque o exercício da atividade jurídica e judiciária está em processo contínuo de desenvolvimento, entretanto, é importante ressaltar, o princípio da adequação jamais poderá quebrar a harmonia do sistema jurídico nesse processo.

No desenvolvimento do conceito de integridade, as autoras da pesquisa consideraram particularmente a decisão proferida pelo juiz Alcides da Fonseca Neto - no Rio de Janeiro - e a do juiz Osmar de Aguiar Pacheco - no Rio Grande do Sul - como capítulos do mesmo direito, sendo essa continuidade o cerne da ideia do direito como romance em cadeia.

Explicaram as autoras que o romance em cadeia é uma metáfora que compara o texto literário ao direito. Assim, cada romancista recebe os capítulos anteriores para interpretar e, a partir daí, escrever o seu próprio capítulo. Essa produção interpretativa deve preservar a unidade e harmonia da obra como um todo, como se ela fosse elaborada por um único autor. Nesse sentido, o juiz é considerado autor e também crítico do direito. Os juízes introduzem acréscimos na tradição que interpretam. Se o juiz for um bom crítico, seu modo de lidar com essas questões será complicado e multifacetado, pois o valor de um bom romance não pode ser apreendido a partir de uma única perspectiva.

Nesse contexto, a aplicação de uma lei destinada especificamente à mulher e agora para um homem produz uma decisão inovadora, embora não configure uma transgressão ao ordenamento jurídico, pois é o caso concreto que aponta o conteúdo de justiça para determinada sociedade em determinado contexto.

É importante destacar, segundo as autoras, que o exercício interpretativo é sempre criativo, mas deve existir uma vinculação ao texto, o que reflete um compromisso com o enredo do romance em cadeia como um todo. Assim, a atividade criadora do juiz é distinta da criação do legislador, pois o direito como integridade pressupõe que eles - juiz e legislador - estão em pólos diferentes, já que as decisões judiciais são práticas interpretativas e não práticas de produção normativa.

O direito como integridade pressupõe que o juiz consciente de sua função deve apreciar vários critérios, dentre eles as circunstâncias do caso concreto, a moral política da comunidade e a opinião das instituições que estão ou devem estar coerentes com o grupo social e a constituição. Portanto, o bom aplicador judiciário acrescenta valores da comunidade no direito que interpreta, ou seja, faz a adequação entre a norma e a moral política da comunidade como algo importante para preservar a própria segurança jurídica.

Considerando então que o juiz do caso em análise fez uma interpretação integrativa, pois partiu da lei posta, Maria da Penha, restrita textualmente à violência doméstica contra a mulher, e, tomando as circunstâncias do caso concreto, o juiz priorizou a justiça com a equidade. Ou seja, ele redimensionou o alcance da lei sob o prisma do princípio constitucional da igualdade, evitando a interpretação legal da forma "tudo ou nada" que engessa a aplicação jurídica em uma sociedade dinâmica.

Embora Dworkin defenda o direito posto como pressuposto de toda atividade judicial, apresentando, aparentemente, uma tendência ao positivismo jurídico, esta mesma atividade orienta-se pela busca da justiça e da equidade, o que só é possível segundo uma perspectiva principiológica do direito. Dessa forma, as autoras Silva e Oliveira (2011) consideram a necessidade de se atualizar as normas com a moral política e os valores compartilhados pela comunidade, pois isso abre espaço para a interpretação condizente com a complexidade e a pluralidade social.

Reavaliando o que foi dito até o momento, podemos afirmar que homens e mulheres sofrem igualmente os efeitos da violência doméstica e familiar. Por isso, na falta de um arcabouço jurídico especializado para resolver problemas de casais homoafetivos masculinos a lei Maria da Penha pode ser ampliada e servir como fundamento jurídico para alguma decisão judicial voltada para o princípio constitucional da igualdade.

Na lei Maria da Penha, é importante ressalvar, segundo escreveram as autoras, que o artigo 5º da referida lei em seu parágrafo único, declara que as relações pessoais enunciadas no citado artigo independem de orientação sexual; ideia esta acentuada pelos incisos II e III ao se definir a família como comunidade formada por indivíduos e unidade doméstica como espaço de convívio permanente de pessoas unidas por quaisquer relações íntimas de afeto, respectivamente.

Dessa forma, o próprio legislador ampliou o conceito de família, dando abertura para uma interpretação conforme os moldes atuais. Entretanto, no caput do mesmo artigo, bem como na ementa da lei e no artigo 1°, o legislador explicita a violência contra a mulher. Por esse motivo, as decisões até então destinavam-se apenas a casos de casais heterossexuais e, no máximo, a casais homoafetivos compostos por mulheres.

Diante dessas informações, o juiz do Rio de Janeiro admitiu a existência de princípios práticos ou operacionais, sobretudo associados com o processo legal e o espaço institucional de aplicação dessa lei. Seu desafio específico foi juntar o princípio transcendente da igualdade com o devido processo legal. Para fazer essa ligação prático-transcendente, o juiz precisou ser metódico, reflexivo, criterioso, criativo e constitucionalista. Por isso mesmo, não se deixou levar pela teoria da intencionalidade do legislador, nem pelas decisões convencionais, muito menos se entregou ao domínio do aguilhão semântico das leis.

O caso judicial foi difícil ou obscuro não especificamente porque faltavam e faltam leis sobre essa matéria, mas principalmente porque existe um contexto social - através da mídia e dos movimentos sociais - que reivindica os direitos humanos na esfera doméstica e familiar independentemente de qualquer modalidade de relacionamento afetivo e matrimonial.

Para fazer a ligação da igualdade com as leis e o devido processo legal, o juiz do Rio de Janeiro desenvolveu inconscientemente ou não uma série de critérios ligadores. Primeiramente (fundamentação), conforme descrevem originalmente Silva e Oliveira, o juiz buscou a fundamentação jurídica, investigando o que havia disponível sobre o assunto bem como as sentenças ou interpretações já realizadas envolvendo casais homoafetivos masculinos. Agindo desse modo, o juiz recorreu ao ordenamento jurídico brasileiro a fim de reconhecer objetivamente as regras que melhor se aplicariam ao caso.

Em segundo lugar (justificação), o juiz faz uma justificativa de convicção, realizando um diagnóstico da situação, tornando público nesse sentido que o direito penal convencional é insuficiente e incompleto para enfrentar a questão dos casais homoafetivos masculinos, o que, segundo ele, justificaria maximizar ou radicalizar alguma lei, oportunamente Maria da Penha, de maneira mais abrangente possível.

Em terceiro lugar (adequação), o desafio foi adequar moralmente a justificativa da convicção do juiz às regras e fatos processuais. Nessa etapa pós-interpretativa, o magistrado estendeu a abrangência da lei Maria da Penha, considerando o princípio constitucional, hierarquicamente superior, da isonomia, concluindo que o fato exigia a imposição de medidas protetivas de urgência, até mesmo para que fosse respeitado o princípio constitucional da isonomia, conforme afirmou textualmente o juiz Alcides da Fonseca Neto.

Em quarto lugar (criação), o juiz inventou ou produziu uma decisão judicial inovadora, olhando para o caso concreto. Aqui é importante ressaltar que o exercício interpretativo é sempre criativo, mas deve haver uma vinculação ao texto, o que reflete um compromisso com o enredo do romance em cadeia. Assim, a atividade criadora do juiz é distinta da criação do legislador, pois o direito como integridade pressupõe que ambos estão em pólos diferentes, já que as decisões judiciais são práticas interpretativas, e não produções normativas.

Em quinto lugar (integridade) o juiz consciente de sua função apreciou vários critérios, dentre eles as circunstâncias do caso concreto, a moral política da comunidade e a opinião das instituições em coerência com a constitucionalidade. Assim, o bom aplicador acrescentou valores da comunidade no direito que interpretou e fez a adequação constitucional entre a norma e a moral política da comunidade.

Em sexto lugar (coerência entre princípios transcendentes e práticos), o juiz respeitou e valorizou a norma já posta que é um pressuposto de toda atividade judicial, priorizando a justiça e a equidade. Levando adiante essa prioridade, o juiz fez uma releitura da lei Maria da Penha - pautada no princípio constitucional da isonomia - refletindo a complexidade e a pluralidade da sociedade contemporânea.

Em sétimo lugar (abrangência), o magistrado rompeu com o paradigma dominante na busca da justiça e da equidade para o caso concreto e considerou a individualidade do caso sem oprimi-la diante da universalidade da lei abstrata. Ou seja, considerou a peculiaridade do caso não fazendo uma relativização do direito, mas a própria concretização da segurança jurídica em maior proporção na sociedade através da lei que autorizou essa liberdade criativa. Além disso, segundo informam as autoras da pesquisa, a necessidade de se fazer justiça para o caso concreto pressupôs uma hermenêutica sociológica, que abriu espaço para uma interpretação teleológico-axiológica. Neste caso, a Lei Maria da Penha prevê em seu artigo 4º que os fins sociais aos quais se destina deverão ser considerados no processo interpretativo.

Observando todos esses critérios, o processo chegou à seguinte conclusão: em abril de 2011, o juiz da 11º vara criminal do Rio de Janeiro, Alcides da Fonseca Neto, inspirado na lógica da lei Maria da Penha, decretou que o réu Renã Fernandes Silva deve manter uma distância de 250 metros do seu companheiro, Adriano Cruz de Oliveira.


7 O que não aconteceu no Poder Judiciário

Outro brilhante estudo sobre o conceito de integridade foi publicado por Amanda Pinto Neves (2011), intitulado "Caso Richarlyson: análise da atuação do juiz na decisão judicial segundo a perspectiva da teoria do direito de Ronald Dworkin". Nesse estudo a autora descreveu a ausência empírica do conceito de integridade e os motivos alegados pelo juiz para resolver o episódio que envolveu a denúncia contra o dirigente do time Palmeiras (José Cyrillo Junior) de que ele teria cometido crime de injúria contra a honra do jogador Richarlyson que, por sua vez, sentiu-se ofendido publicamente com as insinuações feitas pelo "cartola" contra a sua pessoa, no sentido de que seria supostamente um jogador homossexual. O caso foi parar na 9ª Vara Criminal de São Paulo, no ano de 2007.

De acordo com a análise da autora Amanda Neves, o juiz diante desse caso tomou uma "atitude paupérrima e transbordante de preconceito", fundamentando sua sentença em argumentos moralistas, acompanhados de provérbios populares, ironias, estereótipos e outros recursos ilustrativos extraídos do senso comum que mostram que não houve objetividade jurídica. Na avaliação dessa mesma autora, a sentença carregou, "um inconfundível caráter pragmático, já que não se prende a qualquer argumento baseado em decisões anteriores ou normas legalmente estabelecidas, mas nas concepções pessoais do magistrado, que se limita a afirmar que a queixa-crime não reúne condições para ser deferida, iniciando uma série de argumentos claramente homofóbicos". Na decisão proferida para o caso em análise, o juiz evidenciou a sua concepção pragmática apresentando, por exemplo, os seguintes comentários:

- Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.

- Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.

- Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:

A - Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final.

B - Se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados... Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num "TÈTE-À TÈTE". Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro. Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade, interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo... e para se aquilatar se o querelante é, ou não...

Nesse ponto, observou a autora Amanda Neves que o magistrado eximiu-se de qualquer análise sobre a existência ou não de crime por parte do réu, assim como não se ateve a qualquer estudo ou interpretação jurídica do caso, preferindo expor opiniões pessoais sobre o assunto. Ficou nítido, segundo Amanda Neves, que o juiz não respeitou a objetividade jurídica. Nesse sentido, a autora ressaltou oportunamente que é de suma importância esclarecer que não cabe ao juiz avaliar a suposta significância do caso em relação a elementos como o "futebol brasileiro", sobretudo se neste âmbito esportivo o magistrado considere existir um espaço moral à parte, que não deve - nem pode - admitir a presença de pessoa de orientação diferente a de uma "suposta" inegável maioria. Amanda Neves observou também "que o magistrado utilizou vários e infundados artifícios, como a afirmação, através da letra de um hino de futebol, da virilidade e masculinidade - e não homossexualidade - do futebol".

- Quem se recorda da "COPA DO MUNDO DE 1970", quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual.

De acordo com avaliação de Amanda Neves, o magistrado ainda tentou sustentar seus argumentos opinando que, tendo em vista a existência de atletas de grande destaque no futebol, seria "impossível que qualquer torcedor pudesse ter como ídolo um homossexual", sendo por isso "mais aconselhável" aos jogadores que possuem tal orientação sexual afastar-se deste esporte, evitando desconforto aos colegas e aos torcedores.

O juiz ainda tentou amenizar a colocação afirmando que não seria de todo aos dirigentes impossível que um homossexual jogasse futebol, desde que o fizesse apenas em times inteiramente compostos por colegas "em sua mesma condição", e somente enfrentasse times que concordassem em fazê-lo.

Nesse ponto, Amanda Neves avaliou em seu estudo que o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho afastou-se ainda mais da concepção de direito como integridade na medida em que desconsiderou os princípios morais presentes na comunidade e no próprio direito positivado, princípios esses que se reportariam, especialmente, à igualdade e à inclusão que não podem ser limitadas por quaisquer critérios de cor de pele, gênero, orientação sexual, credo, dentre outros aspectos.

Se adotássemos aqui a integridade, escreveu Amanda Neves, o corpo da sentença exigiria coerência com os princípios, o que obviamente não pode ser praticado numa decisão que busca excluir e desigualar os direitos das pessoas.

Além de não se ater aos princípios e desconsiderar a objetividade como um dos elementos centrais da decisão judicial, o magistrado cometeu ainda uma falta bastante grave, segundo Amanda Neves, pois ele desconsiderou o pressuposto do direito como completeza de Ronald Dworkin: a concepção da decisão como parte de um romance em cadeia.

Conforme definiu Dworkin, os juízes são autores e críticos de um romance composto por todas as decisões proferidas anteriormente, e suas decisões servem também de parâmetro para o futuro. Desse modo, quando o juiz decide, além de levar em consideração o devido processo legal, ou seja, o procedimento legalmente previsto, a equidade, e a justiça, ele também precisa analisar o precedente, ainda que afaste-se dele.

Todavia, além de distanciar-se do direito como integridade e adotar uma atuação visivelmente parcial (não objetiva) e pragmática, fundamentando a decisão em hinos de futebol e ditos populares como "cada um na sua área, cada macaco em seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho", o magistrado também cometeu outro sério erro, o abuso do direito, conforme salientou textualmente Amanda Neves. O magistrado, que deixou de lado a real questão, isto é, a existência de injúria por parte do diretor do Palmeiras, preferiu tratar de uma suposta exigência de masculinidade e virilidade no futebol, fundamentando-a com argumentos duvidosos como ditos populares, hinos de clubes de futebol, além de afirmar textualmente: "é assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de magistrado, digo!" num evidente descaso à objetividade como elemento central da decisão, substituindo-a pela vontade do aplicador.

Amanda Neves concluiu seu estudo lembrando que o pragmatismo nega que as pessoas tenham quaisquer direitos concretos pré-fabricados; o pragmatismo adota o ponto de vista de que as pessoas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque uma legislação assim o estabeleceu ou porque uma longa fileira de juízes decidiu que outras pessoas tinham tal direito (DWORKIN, 2010, p. 186).

Questionou nesse sentido Ronald Dworkin que se os direitos e deveres indubitavelmente fazem parte da realidade jurídica na qual vivemos, o pragmatismo poderia ser usado como interpretação possível?

O autor esclareceu que, na prática, essa corrente não é tão radical, pois os pragmáticos defendem que os juízes devem agir como se as pessoas tivessem direitos, isto é, para o bem da civilização admitem que a legislação - e só ela - pode estabelecer normas. E os magistrados, para evitar o próprio fracasso do modelo pragmático, não podem descartar as leis apenas pelo fato de que não as aprovam.

Ao caracterizar as concepções de direito apontadas por Dworkin (convencionalismo, pragmatismo e direito como integridade), Amanda Neves concluiu sua brilhante publicação avaliando que o magistrado da sua pesquisa proferiu uma decisão tipicamente pragmática, sem levar em consideração nem o precedente, nem os princípios da comunidade política, tampouco aqueles expressos no texto constitucional, especialmente igualdade e não-exclusão de qualquer indivíduo em razão de qualquer critério.

A primeira vantagem da visão pragmática refere-se ao fato de que o pragmatismo não deseja buscar uma suposta intenção original do legislador ou do juiz que proferiu uma decisão anterior. Além disso, o juiz pragmático não se sente obrigado a considerar e a reproduzir sempre o precedente quando este representa uma decisão obscura ou então quando existe um espaço para divergência entre as semelhanças e diferenças entre decisões passadas e o caso em questão.


8 Discussão

Inerentes a qualquer prática científica, tradicionalmente são encontrados conceitos, teorias e hipóteses que auxiliam o pesquisador a conhecer a realidade social. Historicamente, portanto, é inegável a importância de todos esses recursos na ciência, utilizados para guiar e adaptar as ideias do pesquisador quando ele investiga o seu objeto de estudo.

Da mesma forma notamos que o tipo ideal proposto por Max Weber é uma abstração, uma hipótese da realidade. Diferentemente, porém, de outras hipóteses de trabalho das ciências naturais, o tipo ideal weberiano não se presta ao teste da refutação porque é uma hipótese exagerada, uma utopia criada não para ser testada, mas para inspirar, guiar e facilitar a compreensão do pesquisador sobre algum fenômeno empírico dentro da complexidade social.

O tipo ideal weberiano não é uma meta epistemológica, mas um meio cuja finalidade heurística é proporcionar uma direção prática ao pesquisador para que ele não fique perdido na complexidade dos fenômenos e dos processos exteriores. Obviamente, o tipo ideal nunca será atingido plenamente pelo ser humano, pois caso contrário deixaria de ser um elemento ideal.

Especificamente de acordo com a metodologia de Weber, a construção do tipo ideal representa uma necessidade metodológica do pesquisador, que pretende conhecer a convergência de certos processos e fenômenos num determinado tempo e espaço de forma aleatória ou concentrada, e por isso mesmo precisam ser arranjados ou nivelados estrategicamente numa mesma estrutura ou escala de sensação estabelecida, neste caso, por decisão unilateral do pesquisador.

Por mais complexo que possa parecer, o tipo ideal será sempre uma simplificação da realidade ou dos fenômenos reais porque é uma simulação inventada pelo pesquisador que pode ser, todavia, reutilizada ou não, progressivamente, por outros pesquisadores.

Não é tarefa do tipo ideal weberiano, por exemplo, estabelecer uma relação causal entre elementos ou fenômenos dentro ou fora do modelo concebido, mas sim fixar uma relação de interdependência entre eles que só ganha significado e validade científica a partir da ação social dos indivíduos concretos.

Por se tratar de uma utopia criada pela intuição do pesquisador que pressente a existência deste e daquele fenômeno no cotidiano, o tipo ideal precisa pisar no terreno da ciência empírica; caso contrário, o pesquisador fica preso a um credo pessoal ou imaginativo, não servindo nada em favor do progresso do conhecimento científico.

No livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, encontramos todas essas características aplicadas na pesquisa histórica. Logo no começo, Weber declarou que não tem meios objetivos de medir exatamente ou aproximadamente até onde foi a relação entre a ética protestante e o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Por isso mesmo, ele optou pela expressão influência que representa algum grau intuitivo de relação de convergência entre vários aspectos favoráveis ao capitalismo, além da religião, como a expansão do monetarismo, o desenvolvimento tecnológico, a racionalidade cultural, as grandes navegações, etc.

Em outras palavras, Weber não considerou que a religião determinou o surgimento do capitalismo, mas na verdade influenciou a sua ocorrência o que acabou sendo observado melhor na história através do tipo ideal da época - o empreendedor cristão - sintetizando teoricamente uma série de atributos e práticas ideais favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo em determinado setor do cotidiano.

O tipo ideal de empreendedor capitalista condenava a ostentação dos gastos desnecessários, o misticismo e a arrogância social. Além disso, motivou os capitalistas a fazerem investimentos na comunidade acreditando que desta forma estariam servindo melhor à vontade de Deus, contribuindo para a salvação dos homens através da valorização do trabalho em contraposição à prática tradicional do ócio contemplativo dos monastérios que serviam como exemplo de virtude espiritual "fora do mundo".

Na metodologia de Weber, o tipo ideal serve como ferramenta de autocontrole do pesquisador a fim de obter uma referência extrema sobre algum fenômeno, comportamento, processo ou objeto que circula aqui, acolá, no cotidiano, facilitando a localização de algum fenômeno estranho ou volátil na realidade social.

Considera-se, dessa forma, que os fenômenos não são necessariamente fatos puros e isolados na sociedade, mas uma combinação de impressões e de múltiplas relações que não existem prontos na realidade, visto que são construídos diretamente pela percepção e vivência das pessoas e principalmente do pesquisador social.

Por exemplo, o tipo ideal de empreendedor cristão da Reforma protestante não existiu, fisicamente, em lugar nenhum, todavia, motivou os protestantes a agirem nessa direção. Ao mesmo tempo, a realização desse tipo ideal cristão exigiu a convergência de uma série de relações e elementos, por exemplo, mobilizando o interior da família, o púlpito das igrejas, o trabalho na comunidade, a espiritualidade pessoal e assim por diante.

É justamente no processo empírico que o tipo ideal proporciona a sua contribuição científica, comprovando a sua presença ou ausência na prática social por meio de gradações e variações diversas, outras vezes, longe ou perto demais da utopia desenhada pela intuição do pesquisador.

Desse modo, o tipo ideal funciona como espécie de termômetro, que é uma tecnologia adequada para medir a temperatura dos corpos, neste caso, especificamente, dos corpos sociais que podem manifestar grau zero, mínimo, ou máximo de ocorrência do tipo ideal na realidade como já sugeriu, semelhantemente, o esquema da gradação de Kant em sua obra Crítica da razão pura.

Outra característica importante do tipo ideal é que ele funciona como meio ou instrumento de comparação e de medição dos fenômenos. Desse modo, possibilita duas tarefas nobres das ciências sociais: a previsão e o diagnóstico dos fatos.

Ao indicar o que poderia acontecer se um grupo de fenômenos ou variáveis alcançassem o grau extremo, o tipo ideal realiza prognósticos inéditos que dificilmente poderiam ser obtidos na experiência social do senso comum, tendo em vista a real pulverização dos fatos bem como a dificuldade de se manipular o comportamento humano na tentativa de se conhecer o futuro com clareza e probabilidade.

De maneira complementar, o tipo ideal permite fazer o diagnóstico coerente sobre determinado setor da realidade, uma vez que ele organiza e atribui sentido ao que está sendo observado no trabalho de campo indo contra ou a favor do extremo ideal do modelo escolhido pelo pesquisador.

8.1 O juiz ideal da obra O império do direito

Hércules é um tipo ideal de juiz. É metódico, criterioso, reflexivo, paciente e bem informado a respeito do sistema jurídico. Em outras palavras, é declaradamente um jusfilósofo, juspolítico e jusmoralista predeterminado a produzir a melhor metodologia de releitura constitucional da lei dentro do Poder Judiciário usando uma lista de critérios previamente agendados por Ronald Dworkin.

8.1.1 Isolando o fenômeno kantiano

Aqui, acolá, progressivamente os juízes olham para si próprios e para o mundo, descobrindo subjetivamente que possuem ou deveriam ter uma consciência moral sobre aquilo que proferem como sentença no Poder Judiciário. Ao olharem para si mesmos, certos juízes descobrem que existe uma tendência kantiana mínima escondida nas profundezas de sua personalidade moral. Eles redescobrem, por exemplo, que possuem liberdade e que podem usá-la por Lei; redescobrem que têm responsabilidade, e que podem e devem exercê-la de acordo com a constituição federal; redescobrem, além disso, que são seres autônomos e não autômatos ou máquinas jurídicas; reconhecem também que podem se autogovernar e dirigir a ordem pública do Estado com maior grau de responsabilidade, dignidade e autonomia política, compartilhando essa tarefa com o Executivo e o Legislativo.

Em outras palavras, cada vez mais, aqui, acolá, os juízes tomam consciência de suas potencialidades como sujeitos morais produzindo máximas de vontade ou de ação, estranhamente dentro dos processos judiciais e do direito como um todo.

No campo da moralidade, Kant ( no livro Crítica da razão prática, Livro primeiro, 2004, p. 39) considerou sabiamente que:

É da lei moral que temos consciência imediata (tão logo formulamos por nós mesmos máximas de vontade); é ela que se oferece primeiramente a nós e nos conduz precisamente ao conceito de liberdade, enquanto a razão a representa como um princípio de determinação que nenhuma condição sensível pode sobrepujar, e que é inteiramente independente dessas condições.

O desafio do agente moral, segundo o que afirmou Kant, consiste em saber discernir o bem do mal; a veracidade da falsidade; a justiça da violência. Compete ao dever estabelecer e cultivar o sentimento moral, constituindo um sentimento individual de satisfação consigo mesmo. De acordo ainda com Kant (Crítica da razão prática, 2004, p. 47):

Ordenar, porém, a moralidade sob o nome de dever é inteiramente racional, porque nem todos obedecem de bom grado aos seus preceitos, se neles vêem oposição às suas inclinações; e no que concerne às medidas que devem ser tomadas acerca do modo de poder fazer obedecer-se a esta lei, não deverão aqui ser ensinadas, pois a esse respeito, cada qual pode o que quer.

Completando esse raciocínio, Kant afirmou que na idéia da razão prática da moralidade existe a possibilidade de transgressão da lei moral, consequentemente, existe a possibilidade do castigo, a sua punibilidade. Em todo castigo, entretanto, deve haver justiça, que é o essencial neste caso. Porém, a consciência de cada um exerce no modelo kantiano - que é ahistórico e universalista - esse papel regulador e fiscalizador entre os homens. Por exemplo, a regra da faculdade de julgar sob as leis da razão pura prática diz o seguinte: - Pergunta a ti mesmo se, quanto à ação que pretendes poderias considerá-la possível, mediante a tua vontade, supondo-se que ela deveria ocorrer segundo uma lei da natureza da qual tu próprio fazes parte (KANT, Crítica da razão prática, 2004, p. 79).

Um dever importante no trabalho crítico da consciência é o respeito em relação aos outros. O homem deve ter como santa e inviolável a humanidade, e não tratar o outro como meio, mas como fim. Segundo Kant (Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 61):

Esse princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral como fim em si mesma [...] não é extraído da experiência – primeiro pela sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em geral, sobre o que nenhuma experiência tem alcance para determinar seja o que for; segundo, porque nele a humanidade se representa não como fim dos homens (subjetivo), isto é, como objeto de que fazemos por nós mesmos efetivamente um fim, mas como fim objetivo, quais forem os fins que tenhamos em vista, constitui como lei a condição suprema que restringe todos os fins subjetivos, e que por isso mesmo, só pode derivar da razão pura.

No modelo kantiano, a lei moral não é propriamente a doutrina que nos ensina como nos tornarmos felizes, mas como devemos nos tornar dignos da felicidade. Apesar de cada um se auto-identificar como sujeito livre, a moralidade estabelece suas normas de obediência através do dever dentro de uma comunidade universal de princípios.

Como critério de avaliação da consciência moral de cada um isoladamente [visto que não se inclui aqui nem a história nem a sociologia das ideias], Kant apresentou as seguintes máximas universais que funcionariam como parâmetros abstratos de conduta (encontradas no livro Fundamentação da metafísica dos costumes...):

- Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal.

- O homem não é uma coisa, um objeto passível de ser usado como simples meio.

- Não posso dispor do homem para mutilar, degradar ou matá-lo.

- Não é justo desejar aos outros aquilo que detestamos ou repudiamos.

- Não basta apenas evitar o confronto com a humanidade, é preciso que nossas ações concordem com esse princípio universal.

- O ser racional deve se considerar por todas as máximas de sua vontade, o legislador universal para julgar a si mesmo e às suas ações desse ponto de vista, conduz a outro conceito bastante fecundo que se lhe relaciona e que é o de reino dos fins., ou seja, no reino dos fins tudo tem um preço e uma dignidade.

- A moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade.

- A própria legislação que determina todo o valor, por isso mesmo, deve ter uma dignidade, ou seja, um valor incondicional, incomparável, para o qual só a palavra respeito confere a expressão conveniente da estima que um ser racional deve lhe tributar.

- A autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional.

- O dever é uma obrigação prática.

- Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço não admite qualquer equivalência, compreende aqui uma dignidade.

8.1.2 Isolando o fenômeno existencialista

Aqui, acolá, progressivamente,inúmeros juízes tentam marcar a sua presença no sistema considerando que o futuro é uma projeção do presente; e o passado igualmente uma lembrança do presente.

Reassumindo a sua condição política de sujeito e não mais admitindo ser objeto massificado e despersonalizado do sistema conforme estipulam o convencionalismo e o positivismo jurídico, uma série de juízes questiona, cada vez mais, a massificação administrativa do direito e avalia criticamente que este fenômeno é um perigo social da Modernidade que a qualquer momento pode transformar o servidor público em objeto puro do poder.

Cada vez mais, aqui, acolá, certos juízes aproximam-se da filosofia existencialista e buscam promover a "abertura" do direito e do Poder Judiciário para o mundo, num processo nitidamente semelhante ao que pensou Heidegger, na obra Ser e tempo.

Os juízes buscam a autonomização de suas atividades judiciais estimulando a realização de um debate com o outro diferente a respeito do direito e da política. Para esses juízes, o essencial do ser é exatamente "estar no mundo", marcando a sua presença conscientemente engajada na realização moral da justiça.

A partir do que analisou Hannah Arendt, por exemplo, a respeito da situação do nazista Eichmann no Tribunal de Jerusalém, na década de 1960, os juízes agora conhecem os efeitos perniciosos causados pela massificação administrativa; e sabem que este fenômeno pode ressurgir em qualquer momento do século XXI, inclusive no Mercado que em nome da modernidade e da eficiência é capaz de marginalizar e de excluir pessoas incompetentes e ineficientes, e por extensão, de cometer novos tipos de atrocidades contra a dignidade da pessoa humana.

Conforme ressaltou o analista Celso Lafer (2003, p. 111), nas sociedades burocráticas modernas continuam a persistir soluções sociais, políticas e econômicas que mesmo depois dos regimes totalitários terem ficado para trás, ainda ameaçam a vida humana a se tornar uma coisa descartável. Entre outras tendências da atualidade, destacam-se a ubiquidade da pobreza e da miséria, a ameaça do holocausto nuclear, a violência, os surtos terroristas, a limpeza étnica e os fundamentalismos intolerantes. A palavra de ordem é agora aumentar a consciência pessoal a respeito da responsabilidade de cada um no mundo. Essa responsabilidade implica, por sua vez, uma atitude crítica em relação ao tempo (ver BOENO, 2009).

Segundo Heidegger, a história e a utopia são construções do presente. Por isso mesmo, Heidegger considerou que não se pode mais conceber que o indivíduo continue levando uma vida "inautêntica", escondendo a sua essência pessoal em ficções do passado e também nas utopias do futuro, ou ainda expressando a sua identidade de modo impessoal (a gente, nós, os outros, a maioria, todo mundo, a natureza, o destino, etc.).

Contra o risco da massificação administrativa, onde o funcionário perde sua capacidade crítica e apenas obedece às ordens superiores tendo em vista que assim manda a lei, Hannah Arendt propôs alguns remédios institucionais (BOENO e MONTARROYOS, 2009).

Primeiramente, em lugar de submeter os indivíduos a uma camisa-de-força, mediante padrões uniformes dogmáticos, o direito deve abrir espaço para as preferências e personalizar os métodos jurídicos. Semelhantemente, o modelo de Ronald Dworkin também pede a abertura do direito. Nesse sentido, de acordo inclusive como que afirmou Paulo Nader (2005, p. 235), esse amoldamento do fenômeno jurídico às condições individuais constitui propriamente a equidade do existencialismo jurídico, uma adaptação da norma ao figurino do caso concreto; a justiça do fato real.

O segundo remédio apresentado por Hannah Arendt contra a massificação é garantir a expressão dos direitos individuais e coletivos respeitando-se a livre associação e o direito de resistência contra os abusos e opressão do Estado praticados contra a dignidade da pessoa humana (BOENO e MONTARROYOS, 2009). Nesse aspecto, deve ser garantido o direito da informação, motivando as pessoas a realmente fazerem críticas públicas contra as fraudes, mentiras e trapaças dos políticos. Segundo Hannah Arendt, as mentiras e os segredos corrompem o espaço público. A transparência do público, completa Celso Lafer (2003, p. 120), é uma condição básica para o juízo e para a ação humana existirem numa "autêntica" comunidade política (BOENO, 2009).

Outro remédio apontado por Hannah Arendt é nitidamente kantiano (BOENO e MONTARROYOS, 2009). Devemos recuperar a máxima jurídica desse filósofo quando ele afirmou que: "o direito é o conjunto de condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos demais, de harmonia com uma lei universal de liberdade" (ver BOENO 2009; BOENO e MONTARROYOS, 2009). Essa recomendação existe igualmente na obra O império do direito, quando seu autor defende o direito como espaço de debates aberto necessariamente à multivocalidade da opinião pública e das autoridades.

8.1.3 Isolando o fenômeno hermenêutico

Aqui, acolá, cada vez mais aparecem juízes virtuosos querendo refletir, imaginar, argumentar e opinar mais sobre o que deveria ser feito de melhor para o cidadão e os chamados grupos vulneráveis viverem com dignidade, igualdade, fraternidade, liberdade e responsabilidade no espaço público e democrático.

Diante desse fenômeno histórico, ético e sociológico, certos juízes super-utilizam os princípios que são estruturas pensantes favoráveis à prática da comunicação social aberta e imaginativa; diferentemente das regras ou "réguas" sociais como diria Aristóteles (ver Ética a Nicômaco) que se caracterizam como estruturas válidas determinantes do que deve ou não ser obedecido e também dos critérios, que são estruturas praticantes e utilitaristas relacionadas com a efetividade do direito.

Através dos princípios constitucionais, especificamente, a prática argumentativa de certos juízes virtuosos vai constituindo, aqui, acolá, silenciosamente, uma comunidade principiológica entrelaçando os princípios fundamentais da constituição federal, compondo assim uma grande rede prático-transcendente ou comunidade de princípios.

Aumentando a necessidade histórica do juiz virtuoso de ser criativo através da arte de argumentação, reinterpretando os princípios constitucionais básicos (liberdade, igualdade, fraternidade, responsabilidade, legitimidade e dignidade), a hermenêutica jurídica ganha popularidade dentro e fora do Poder Judiciário como instrumento de comunicação social.

Habermas afirma nesse sentido que é no discurso que ficam postos, de maneira virtual, todos os interesses e motivos característicos da interação normal dos cidadãos. A afirmação é considerada verdadeira ou falsa quando o discurso teórico conduz a um consenso quanto à sua verdade ou falsidade; por outro lado, a norma é considerada legítima (ou ilegítima) quando o discurso prático desemboca num consenso quanto a tal legitimidade ou ilegitimidade (FREITAG e ROUANET, 1980, p. 19). Entretanto, o desafio para Habermas neste ponto é distinguir o falso do então verdadeiro consenso. O autor sabe que, na prática, os participantes do discurso podem julgar que o consenso obtido foi válido, e não obstante tal convicção pode revelar-se ilusória.

Na tentativa de visualizar, portanto, a ocorrência de discursos considerados automaticamente verdadeiros, Habermas propôs um modelo de "situação lingüística ideal", onde a comunicação não é perturbada nem por efeitos externos contingentes, nem por coações resultantes da própria estrutura da comunicação (ibid., p. 19).

A situação linguística ideal, segundo Habermas, exclui deformações sistemáticas da comunicação. Pressupõe ainda que cada interessado participa do discurso e que todos eles têm oportunidades idênticas de argumentar, dentro de sistemas conceituais existentes ou transcendendo-os, e chances simétricas de fazer e de refutar afirmações, interpretações e recomendações. Nesse mesmo modelo, são eliminadas todas as formas de coação externa e interna, permitindo uma "ação comunicativa pura" (ibid., p. 19).

Em síntese, no modelo proposto por Habermas, os homens não podem nem interagir, nem comunicar-se discursivamente senão na perspectiva de uma ordem social não-repressiva (caracterizada pela comunicação e pela situação linguística ideal), a qual, precisamente, não existe na realidade; porém, as antecipações do modelo nos autorizam a definir esse fato como algo possível (ibid., p. 19).

Para Habermas, a teoria consensual da verdade se distancia da epistemologia positivista, que postula uma relação não-problemática com o real.

Verdadeiro não é uma afirmação que corresponde a um objeto ou a uma relação real, mas uma afirmação considerada válida num processo de argumentação discursiva (ibid., p. 19).

A verdade não tem a ver exclusivamente com os conteúdos, e sim com os procedimentos que permitem estabelecer um consenso fundado (ibid., p. 19). A verdade, num certo sentido, confunde-se com as condições formais para alcançá-lo (ibid., p. 20).

Para Habermas, a estrutura da comunicação implica a possibilidade da justificação discursiva de normas (e das instituições que lhes correspondem). Desse modo, podemos dizer, então, que a característica de todas as sociedades que efetivamente se constituíram na história é a de ter obstruído esse processo, seja pela violência física, seja pelas legitimações ideológicas.

A função da ideologia é a de impedir a abertura de discursos práticos: as normas e instituições são objeto de pseudolegitimações (visões de mundo religiosas ou metafísicas) que cumprem a dupla função de impedir que tais normas e instituições sejam tematizadas discursivamente e de se protegerem, elas próprias, contra essa tematização (ibid., p. 20).

O processo de comunicação, cujo desfecho normal deveria ser a problematização discursiva, pára a meio caminho (ibid., p. 21). Nesse caso, a comunicação se obstrui. Todas as sociedades se caracterizam por essa deformação sistemática do processo de comunicação, que Habermas descreveu como um processo análogo ao da neurose.

As ideologias alcançam seu objetivo de impedir a tematização discursiva, excluindo certos temas e motivos inconvenientes da comunicação pública para o sistema de poder, e que poderiam de outro modo levar os indivíduos a promoverem a abertura de discursos problematizadores (ibid., p. 21).

Esses temas censurados são retirados da linguagem, pública e literalmente são excomungados e transferidos para o inconsciente sob a forma de conteúdos alinguísticos ou expressos numa linguagem privatizada, incompreensível para o próprio sujeito.

É assim que Habermas concebeu a terapia como a tentativa de re-simbolizar esses conteúdos banidos, reintegrando-os na linguagem pública. A teoria crítica de Habermas propôs, nesse quadro, interpretações que levem os sujeitos, imersos na falsa consciência, a reconhecer-se em tais construções por processos autônomos de autorreflexão.

A crítica sobre a ideologia é uma espécie de discurso terapêutico (ibid., p. 21). Desse modo, a luta política deve neutralizar a ideologia tecnocrática, lançando luz sobre as vulnerabilidades do capitalismo patrocinando ou ressaltando crises, seja da racionalidade quando o Estado não consegue realizar as tarefas técnicas que a ele se atribui; seja das motivações, que surge nas contraculturas que contestam os valores funcionais para a sobrevivência do capitalismo; seja finalmente das legitimações, quando se vê neste momento a incapacidade da ideologia da ciência e da técnica em sustentar a autoridade do Estado (ibid., p. 23).

Para Habermas, o consenso universal pressupõe um contexto livre de violência e de coação em que todos os integrantes de um discurso possam participar em pé de igualdade. O consenso perfeito, em seu modelo, só pode ser alcançado quando as instituições que canalizam e asseguram comunicação já estiverem liberadas de seus momentos repressivos (ibid., p. 24).

Nas sociedades modernas, pelo contrário, as instituições impedem a formação de um consenso livre: constituem barreiras externas à comunicação desinibida, comparáveis às barreiras internas das estruturas patológicas individuais, segundo o modelo freudiano (ibid., p. 24).

A ideologia tecnocrática, particularmente, tenta impedir a problematização do poder existente. Ela visa não exatamente à legitimação das normas; mas à sua supressão, ou seja, o poder não é legítimo por obedecer a normas legítimas e sim por obedecer a regras técnicas, das quais não se exige que sejam justas e sim que sejam eficazes (ibid., p. 16).

Se os fundamentos do poder não precisam ser tematizados, não é porque repousam sobre uma normatividade legítima, e sim porque não existe a rigor o que legitimar: a lógica das coisas sendo o que é, não pode ser alterada por decisões políticas.

A ideologia tecnocrática é muito mais indevassável que as do passado, porque ela está negando, na verdade, a própria estrutura da ação comunicativa, assimilando-a à ação instrumental (ibid., p. 16). Enquanto a ação comunicativa se baseia numa intersubjetividade fundada em normas, que precisam ser justificadas (mesmo que tal justificação se baseie em falsas legitimações), a ação instrumental se baseia em regras, que não exigem qualquer justificação (ibid., p. 16). Nesse contexto, as decisões práticas que afetam a coletividade são transformadas em problemas técnicos, resolvidos por uma minoria de experts que têm o know-how necessário. Impõe-se, aqui, perversamente, uma despolitização das massas. Essa despolitização passa a ser consequência e requisito da nova forma de dominação legitimada pelo poder de coação da racionalidade técnica (ibid., p. 16).

Para Habermas, a redução das decisões políticas a uma minoria (a nova elite dos tecnocratas) significa, ao mesmo tempo, um esvaziamento da atividade prática em todas as instâncias da sociedade (política, social, e mesmo econômica) incluindo agora a entrada do Estado (instância política), nas duas outras instâncias (social e econômica), que ficam submetidas a uma crescente administração intervencionista (FREITAG e ROUANET, 1980, p. 16).

8.1.4 Isolando o fenômeno democrático

As abordagens que representam a hermenêutica jurídica contemporânea devem muito à contribuição dos trabalhos de Heidegger e Gadamer que propuseram, cada uma seu modo, um conteúdo manifestamente antirrelativista de interpretação do sistema social no sentido de enfrentar o pragmatismo, o utilitarismo, o ceticismo e o positivismo jurídico (ABEL, 2010).

De maneira geral, a hermenêutica jurídica postula que o direito, enquanto ciência prática, não está "blindado" das revoluções pelas quais a filosofia e a linguística passaram no último século XX (ibid.). O principal fundamento da abordagem hermenêutica contra o positivismo, nesse contexto, decorre da "viragem linguística" protagonizada no século XX por Heidegger e Gadamer, respectivamente, nas obras O ser e o tempo e Verdade e método (ibid.). Entretanto, chama a atenção o autor Abel que:

Para aqueles que se imaginam "positivistas" por acreditarem que o Direito deve ser essencialmente restrito aos textos legais (uma concepção tão equivocada e ingênua quanto popular entre os operadores do Direito), a hermenêutica é por vezes tida como uma leitura "liberal", que permitiria um maior protagonismo por parte dos juízes em detrimento dos textos legais (o que é exatamente o que a abordagem hermenêutica combate). Para outros, essa abordagem é eventualmente acusada de "conservadora", pois - ao criticar a discricionariedade judicial - estaria pretendendo que os juízes fossem "impedidos" de interpretar. Em grande parte, essas leituras equivocadas sobre as implicações do approach hermenêutico decorrem de uma má compreensão prévia a respeito do que vem a ser o positivismo jurídico.

De acordo ainda com a análise proposta pelo comentarista e advogado Abel, não é raro no direito pátrio encontrarmos situações de "protagonismo judicial" em que o julgador, valendo-se de uma postura "discricionária e solipsista", ultrapassa as barreiras dos textos legais, imaginando estar encarnando a perfeita antítese do positivismo jurídico - "quando, na verdade, só está confirmando o paradigma contra o qual crê estar lutando" (ibid.).

Além disso, é largamente disseminada a ideia equivocada no ambiente jurídico de que o "grande problema" do positivismo jurídico é que ele comandaria os juízes a ficarem limitados à "letra da lei", quando, de fato, o verdadeiro problema do positivismo jurídico (e essencialmente o alvo preferencial de todos os seus críticos mais qualificados) seria a sua "legitimação da discricionariedade judicial" nos chamados "casos difíceis" (ibid.).

A crítica que se faz ao positivismo jurídico, portanto, não se dirige ao seu suposto "apelo à legalidade", mas sim - pelo contrário - "à autorização que ele dá aos juízes de, em certos casos, estarem desobrigados e desvinculados das leis" (ibid.). Ou seja, se um juiz "x" afirmasse que um caso concreto "y" era um "hard case", o juiz "x" estaria autorizado a dar uma resposta ao caso "y" não com base na lei, mas sim na sua "discricionariedade" (entenda-se: no conjunto de seus "pré-juízos", "pré-conceitos" e opiniões pessoais, retroativamente "fundamentadas" com um mínimo de retórica jurídica que se fizer necessário para tanto).

Contextualmente, de acordo com a análise do advogado Abel, a hermenêutica jurídica, enquanto nova forma de pensar o direito, "decorre da própria transformação que as instituições jurídicas sofreram no curso do século XX, em especial no período do pós-Segunda Guerra" (ibid.).

O Estado de direito, dentro do "neoconstitucionalismo" então emergente, deve abandonar o seu antigo papel de "dado pronto e acabado" da ordem social, limitando-se eventualmente a garantir a segurança dos cidadãos e lidar com seus conflitos particulares (Estado liberal) ou então simplesmente promover reformas pontuais para mitigar as contradições do modo de produção capitalista (Estado social).

A nova encarnação do ente estatal - o "Estado democrático de direito" - apresenta-se agora como "agente transformador", fundado em estruturas jurídicas conscientes de que estão em movimento dentro do caminhar contínuo do processo histórico (ibid.).

A partir da segunda guerra mundial a filosofia política e jurídica assimilou o papel da linguagem e da comunicação, proporcionando uma revolução no modo de compreender o mundo. Essa transformação histórico-filosófica continua ainda hoje pretendendo superar o pensamento metafísico. Se no paradigma da metafísica clássica, de acordo com o autor Abel, os sentidos estão nas "coisas" e na metafísica moderna "na mente" (consciência de si do pensamento pensante), agora nessa verdadeira guinada pós-metafísica "os sentidos passam a se dar na e pela linguagem" (ibid.).

A ampla repercussão de obras críticas ao positivismo jurídico, nas últimas décadas, criou o ambiente usualmente denominado de "pós-positivismo", o que tem contribuído para fomentar a ideia equivocada de que para se combater o positivismo jurídico, nesta altura da história, estaríamos "chutando um cavalo morto", observou o comentarista Abel. Entretanto, completou o autor observando que não é o que a realidade de prática judiciária brasileira demonstra. Em suas diferentes manifestações - "e o que é pior, muitas vezes ocultas sob o manto de posturas progressistas pós-positivistas" - as problemáticas oriundas do positivismo jurídico continuam manifestando-se tanto na prática judicial quanto no "senso comum teórico" dos juristas (ibid.).

Dentro do contexto de um Estado democrático de direito contemporâneo, combater o positivismo significa, essencialmente, combater a discricionariedade judicial, arremata o autor. O que uma postura crítica (e comprometida com a democracia) deve fazer é, precisamente, que sejam "cumpridas as leis", e não o contrário. Imaginar que a lei é uma amarra opressora que deve ser cortada pelas mãos de um juiz libertário (ibid.):

É raciocinar nos termos de um Estado liberal embrionário de três séculos atrás, calcado na tensão entre os indivíduos livres e o Estado opressor (que sempre deveria estar sob pesada vigilância). A lei, no contexto do Estado democrático de direito, é precisamente o Direito construído de forma democrática, nos espaços democráticos adequados para tanto.

Considerando-se, portando que o "grande mal" do positivismo jurídico é a sua legitimação da discricionariedade judicial, torna-se fácil compreender agora que a superação deste problema não pode se dar, ao extremo, pelo protagonismo judicial desenfreado. Pergunta-se nesse sentido: como pode haver contraposição entre a lei e a vontade do povo numa democracia representativa? E entre legalidade e justiça, se os representantes escolhidos pelo povo, na forma do processo democrático, não estão aptos para decidir que leis são justas, a quem deveria, portanto, caber tal decisão?

O autor Abel considerou que aparentemente, entre boa parte dos juristas, há uma notável tendência no sentido de simpatizar-se com a ideia de que o Poder Judiciário deveria atuar como uma verdadeira "ferramenta de otimização" da democracia, "fazendo-se vista grossa para protagonismos judiciais, decisionismos questionáveis e políticas judiciárias pautadas pelo mais puro pragmatismo, em detrimento da legitimidade do Legislativo devidamente eleito pelo povo (de quem o poder emana, vale lembrar)" (ibid.). Entretanto, substituir o juiz "antigo" (que, no contexto anterior ao chamado neoconstitucionalismo não enxergava nada além da "letra fria da lei") por um juiz dito "novo" (que imagina ser pós-positivista ao valer-se de princípios ad hoc para decidir casos concretos com base nas suas noções de justiça e em postulados de conveniência política e/ou econômica) não significa nada além de "trocar seis por meia dúzia", ressalta integralmente o analista diante dessa opção extrema.

Desenvolvendo-se as práticas sociais extremas, Abel considerou que não se estará realizando qualquer avanço real no combate às "heranças malditas" do positivismo jurídico. Ou seja, na opinião desse autor: "apegar-se à letra da lei pode ser uma atitude positivista ou pode não ser. Do mesmo modo, não apegar-se (sic) à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista" (ibid.).

Concluindo, o autor Abel afirmou que pragmatismos, utilitarismos e discricionariedades (assim como o ceticismo generalizado em relação ao direito enquanto saber prático autônomo) podem ser convenientes e práticos, mas "só fazem aumentar o histórico déficit democrático pátrio, além de enfraquecer os fundamentos e alicerces da (ainda jovem) democracia brasileira, que certamente não se encontrará em posição de estabilidade e segurança enquanto continuar sendo enxergada, ela própria, como um mero formalismo relativizável, ideal abstrato ou simples argumento de ocasião" (ABEL, 2010).

8.1.6 A ontologia sintética do juiz ideal Hércules

Admitimos em nossa hipótese de trabalho a possibilidade de que as quatro correntes filosóficas listadas anteriormente podem convergir na mesma prática institucional de um único juiz dentro do Poder Judiciário. Entretanto, para fundamentar essa possibilidade filosófica temos necessariamente de imaginar um superjuiz e inventar uma representação conceitual para esse tipo de fenômeno extremo que pode aparecer no Poder Judiciário. Com essa preocupação filosófica, o juiz ideal Hércules apresentará uma personalidade sintética com traços moralistas, existencialistas, hermenêuticos e democráticos, preocupado com a efetividade dos princípios constitucionais, de forma diferente do convencionalismo e do pragmatismo jurídicos.

Do ponto de vista político, Hércules nunca será um ativista, pois não vai limitar seu julgamento ao aspecto político-circunstancial das estratégias, mas sim aos princípios constitucionais intrínsecos que são evocados ou não nas políticas públicas. Hércules não se deixa limitar pelo interesse coletivo de erradicar a pobreza ou pelo correto modelo de equilíbrio entre natureza e economia, etc. Antes disso, ele observa o tratamento que estão recebendo os princípios constitucionais básicos de liberdade, igualdade, responsabilidade, fraternidade e dignidade.

Hércules também não é um "passivista", pois ele rejeita a idéia rígida de que os juízes devem subordinar-se às autoridades eleitas. Vai considerar nesse sentido que o objetivo de algumas disposições é - ou inclui - a proteção da democracia, e irá interpretar tais disposições, em vez de subordinar-se às convicções daqueles cuja legitimidade elas poderiam inclusive desafiar. Hércules decidirá, provavelmente, sobre qual objetivo de outras disposições é ou inclui a proteção de indivíduos e de minorias contra a vontade da maioria, e ao decidir sobre as exigências de tais disposições, não irá ceder àquilo que os representantes da maioria consideram como correto (DWORKIN, 2007, p. 476).

Hércules não é um tirano usurpador que tenta enganar o povo, privando-o de seu poder democrático. Quando intervém no processo público para declarar inconstitucional alguma lei ou ato de governo, ele age a serviço do seu julgamento crítico sobre o que é de fato a democracia e sobre aquilo que a constituição, mãe guardiã da democracia, realmente quer dizer (ibid., p. 476).

Do ponto de vista moral Hércules é um juiz criterioso e metódico. Ele deve formar a sua própria opinião sempre (ibid., p. 288). Ele deve interpretar e se puder encontrar alguma teoria coerente sobre os direitos. Hércules não acha que a constituição é apenas o que de melhor produziria a teoria da justiça e da equidade abstratas à guisa de teoria ideal. É guiado, em vez disso, por um senso de integridade constitucional; acredita consequentemente que a constituição consiste na melhor interpretação possível da prática e dos textos constitucionais como um todo, e seu julgamento sobre qual é a melhor interpretação é sensível à grande complexidade das virtudes políticas subjacentes a qualquer questão (ibid., p. 474).

Do ponto de vista hermenêutico, Hércules aceita que as pessoas sejam governadas por princípios comuns (ibid., 254) e não apenas por regras criadas por um acordo político. O direito é uma arena de debates sobre quais princípios comuns a comunidade deverá adotar como sistema e sobre qual concepção se deverá ter de justiça, equidade e justo processo legal. (ibid., 254).

Do ponto de vista existencialista, o juiz Hércules pensa no presente. Admite que as estratégias que parecem óbvias para uma geração, podem não ser para outras seguintes (p. 192) e serão modificadas no âmbito do processo judicial e não fora dele. O juiz aqui deixa de lado as especulações, vacuidade e legalismo ou a massificação administrativa como sugere Hannah Arendt em outro contexto.

Hércules não busca as intenções do legislador mortos há muito tempo, "intenções que de qualquer modo devem ser obscuras, polêmicas e inacessíveis ao grande público". Ele não se preocupa apenas em buscar a verdade das decisões passadas, pois redescobriu, ontologicamente, que possui as suas próprias convicções constitucionais ou principiológicas vinculadas ao tempo presente.


Conclusão

A estrutura epistemológica do programa de pesquisa da integridade possui definições ontológicas, metodológicas, axiológicas, teóricas, pragmáticas e contextuais, que representam implicitamente a convergência das filosofias moral, existencialista, democrática e hermenêutica concentradas no comportamento institucional de um juiz vinculado ao Poder Judiciário que, por sua vez, está inserido no Estado democrático de direito.

A ontologia considera fundamentalmente que o direito é um conceito argumentativo. A metodologia determina a aplicação do método interpretativo construtivo. A axiologia rejeita o convencionalismo e o pragmatismo jurídicos. A teoria define a integridade como virtude política e instrumento de ligação prático-transcendente. A práxis declara, por sua vez, que o programa de pesquisa tem capacidade para fazer diagnóstico e prognóstico da realidade legal-constitucional. O contexto identifica, por último, o tempo e o espaço onde o princípio da integridade pode se expandir normalmente.

O programa de pesquisa da integridade é uma tecnologia observacional da realidade fabricada conceitualmente por Ronald Dworkin para descrever, avaliar, especular e intervir na ordem legal-constitucional.

Funciona como aplicativo crítico modificando o raciocínio e a releitura constitucional dominante enfrentando o convencionalismo, que supervaloriza a função das regras do direito, e o pragmatismo jurídico, que supervaloriza, de outro modo, os critérios e as estratégias intuitivas da pessoa do juiz.

O programa de pesquisa da integridade tem capacidade para desenvolver uma releitura principiológica sobre determinado material ou estudo de caso definido pelo pesquisador, apresentando no final de sua aplicação uma nova paisagem crítica sobre as informações sociais, jurídicas e judiciárias disponíveis.

Ao fazer a releitura principiológica do direito, o pesquisador conhece os fatores que dificultam a emergência do conceito de integridade e pode especular, ao mesmo tempo, sobre o que poderia ser feito constitucionalmente de melhor na prática de um juiz inserido na estrutura de raciocínio definida pelo autor Ronald Dworkin.

O programa de pesquisa da integridade descreve o perfil das práticas judiciárias observando se existe ou não a convergência do moralismo com o existencialismo, a democracia e a hermenêutica. Investiga se acontece ou não a síntese do direito com a política e a moral por força da interpretação do juiz quando este mobiliza a aplicação de uma lista de critérios autocomplementares, especificamente: adequação aos fatos e às regras; coerência entre princípios; abrangência constitucional; fundamentação das convicções; integridade e criatividade do juiz.

O programa de pesquisa da integridade desenvolve projeções acerca do que poderia acontecer de melhor constitucionalmente se incluíssemos na estrutura principiológica da integridade oportunamente a participação do juiz filósofo Hércules como hipótese de trabalho.

Essa estrutura principiológica da integridade é formada, especificamente, por um conjunto de princípios práticos e transcendentes. Os práticos são representados pelo princípio legislativo, jurisdicional e processual. Os transcendentes, por sua vez, são representados pela igualdade, liberdade, responsabilidade, dignidade, fraternidade e legitimidade. No meio desses princípios, Hércules intervém, hipoteticamente, com sua força argumentativa extraordinária, dinamizando toda essa estrutura e manipulando os critérios anteriormente definidos.

A fórmula de pensamento do programa de pesquisa da integridade pode ser esquematizada então da seguinte maneira:

Princípios transcendentes ou reflexivos (1-liberdade; 2-igualdade; 3-responsabilidade; 4-fraternidade; 5-dignidade; 6-e legitimidade) ? princípios práticos ou técnicos (1-legislativo; 2-jurisdicional; e 3-processual) ? possibilidade do princípio sintetizador da integridade (o juiz utiliza critérios ligadores: 1-coerência de princípios; 2-adequação moral aos fatos e regras; 3- justificativa de convicção; 4-abrangência constitucional; 5-integridade e 6-criatividade do juiz) ? diagnóstico (o programa de pesquisa observa empiricamente se há ou não uma correlação construtiva entre o juiz e a estrutura principiológica definida por Ronald Dworkin) ? prognóstico (Hércules vai conhecer, virtualmente, as possibilidades hermenêuticas do sistema constitucional) ? contribuição sociológica: o estudo de caso descreve uma prática judicial vinculada a uma possível comunidade ou cultura jurídica de princípios emergente nas instituições públicas, confirmando a tese de Ronald Dworkin.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. O observatório judiciário de Ronald Dworkin. O império do Direito e o conceito de integridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20850. Acesso em: 28 mar. 2024.