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Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores

Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores

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A exigência do pagamento das multas como requisito para o licenciamento de veículos atenta contra o princípio da razoabilidade e da ampla defesa, contra os limites para a concessão da auto-executoriedade aos atos passíveis de afetação econômica dos administrados e contra o próprio Código de Trânsito.

1. Da apresentação do tema

Desde a edição da Lei Federal nº 9.503/97 [01] (Código de Trânsito Brasileiro, doravante "CTB") tem-se discutido diuturnamente os problemas relacionados com o tráfego viário em nosso País. Na verdade, temas que sempre foram relevantes, mas que passavam como que desapercebidos, de uma hora para outra, viram-se noticiados a todo o momento pela imprensa. Primeiro, foi a questão da obrigatoriedade do uso de cintos de segurança; logo em seguida, deu-se a ampla divulgação do uso e do respeito à "faixa de pedestres"; posteriormente – e ainda muito constantemente –, dão-se debates sobre o uso de aparelhos de telefonia móvel, enquanto se está na condução de um veículo; ultimamente, debate-se sobre os eventuais abusos do poder punitivo dos agentes de trânsito. E são tantos os assuntos do CTB, que não nos cabem maiores comentários e informações, sob pena de, na tentativa exaurirmos esta lista, acabarmos passando por omissos.

Com esta massiva informação através da imprensa, principalmente, ocorreu com o CTB o fenômeno à brasileira denominado "lei que pega". Por certo, todos nós já ouvimos as expressões populares: "esta lei pegou" e "esta lei não pegou", significando, sucessivamente, uma lei que teve ampla aceitação social (ou pelo menos, ampla respeitabilidade social, por conta de seu potencial coativo) e, no segundo caso, uma norma jurídica que não encontra qualquer respaldo social (seja desde seu nascimento, seja por ter caído em desuso). O importante é reconhecer que, bem ou mal, com suas virtudes – que são inúmeras –, e com seus desacertos – que igualmente somam alguns bocados –, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) encontrou respeitabilidade social, e está sendo aplicado. O CTB é "uma lei que pegou"!

Nada obstante, alguns temas conflituosos, decorrentes do Código, poderão, com o passar do tempo, fazer com que a respeitabilidade da norma jurídica ceda lugar à execração pública. No afã de buscar uma lei rígida, o legislador pode, em certos momentos, ter resvalado em excessos; ou, pior, o aplicador da norma, na busca de efetividade, pode acabar cometendo abusos.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra! Faz-se imperioso avaliarmos certos problemas do CTB (seja no ato legislativo, seja na sua execução, mediante atos administrativos), para que resguardemos a norma jurídica, tanto quanto possível; para que tenhamos eficiência na execução dos programas e metas previstos na lei; mas, aliado a isto, mantenhamos resguardados princípios constitucionais e outras normas jurídicas, que, a pretexto da fiel execução do CTB, não podem ser vilipendiados.

Particularmente neste artigo avaliaremos a questão da exigência do pagamento de multas, como requisito para o licenciamento de veículos, na forma decorrente do art. 131, § 2º, do CTB, verbis:

"Art. 131 - O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.

[...]

§ 2º - O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas."

A norma jurídica em referência estabelece como requisito para o licenciamento o recolhimento de multas de trânsito vinculadas ao veículo. Antecipando nossas conclusões, desde já entendemos o citado dispositivo como violador da legalidade e da constitucionalidade, pois:

a) o art. 131, § 2º, do CTB é inconstitucional, pois viola o Direito à Ampla Defesa e ao Contraditório;

b) o art. 131, § 2º, do CTB é inconstitucional, pois viola os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade;

c) o art. 131, § 2º, do CTB é inconstitucional, pois afronta o art. 164 do CTN, sendo este último Lei Complementar em sentido material, enquanto o Código de Trânsito é Lei Ordinária; e finalmente

d) o art. 131, § 2º, do CTB é ilegítimo, pois concede autoexecutoriedade para a cobrança de supostos créditos ainda não inscritos em dívida ativa (portanto, ainda não liquidados, incertos e inexigíveis).

Assim estando expostas nossas premissas, vamos aos argumentos que acumulamos para a defesa de nossas conclusões.


2. Antes de tudo, o que se pode entender como licenciamento?

A despeito do que estiver (ou não) contido na lei, temos de identificar o conteúdo jurídico do licenciamento, até mesmo para sabermos quais os seus limites. O tema é óbvio. Licenciamento é espécie de licença. Melhor dizendo, o licenciamento é o procedimento necessário à obtenção de uma licença.

Mas, o que é uma licença? Vejamos, inicialmente, o que é uma licença, na lição de Meirelles [02]:

"[...] licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio."

Zanella Di Pietro [03] conceitua a licença como sendo "o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade".

Como visto, a doutrina indica que as licenças, dentre as quais as licenças para conduzir veículos e a própria licença para o veículo estar em circulação – que nos interessa particularmente – somente podem ser expedidas se observados os requisitos legais. Daí decorrem duas conclusões:

a) a primeira: sem o preenchimento dos requisitos, a licença não pode ser expedida; e

b) a segunda (tão óbvia quanto primeira): quando preenchidos os requisitos, a administração não dispõe de discricionariedade, sendo direito subjetivo do requerente obter a licença pleiteada.

Nada obstante, ainda subjaz nesse discurso uma dúvida recôndita; uma dúvida subliminar; mas, uma dúvida que merece e deve ser esclarecida: o que pode ser escolhido pelo legislador como requisito para a expedição de uma licença? Seria o legislador livre para escolher os requisitos? Haveria a liberdade amplíssima, típica das decisões políticas? Ou, deveríamos encontrar um termo razoável para a fixação dos requisitos legais para a obtenção de uma determinada licença?

2.1 Os requisitos para obtenção de licenças: vinculação com o valor jurídico tutelado

Defendemos, desde há muito tempo, e o reforçamos aqui neste artigo, que o legislador, ao fixar os critérios para a obtenção de uma licença, deverá fazê-lo com peias e limites. Não estamos, obviamente, adentrando no campo político de opção do legislador; tão-somente, estamos advertindo que, logicamente, o legislador não poderá ser arbitrário e, muito menos, o produto legislado poderá ter um conteúdo de arbitrariedade.

Não há nada melhor, para a defesa de certos pontos de vista, que a redução ao absurdo. Suponhamos que o cidadão A, pretendendo construir uma casa, ingresse com o requerimento de sua licença. É estreme de dúvidas que a administração pública poderá fixar requisitos para a concessão da licença de construir. Nada obstante, estes requisitos devem portar uma referência lógica com os valores jurídicos tutelados no ato de licenciar. No ato de licenciamento de uma construção, os valores jurídicos tutelados são facilmente identificáveis: salubridade das instalações, proteção ambiental, adequação urbanística, segurança da obra a ser construída e situações congêneres. O licenciamento não tem um viés meramente arrecadatório. Ele se presta à execução do poder de polícia. Visa, portanto, a adequação da pretensão privada de construir, com um dos interesses públicos previstos no nosso ordenamento jurídico, e que estejam vinculados (e de certa forma ameaçados) por uma suposta potencialidade de exercício desenfreado do interesse privado. Diante destas observações, seria lícita a fixação de requisitos legais para a concessão da licença de construção, tais como projeto sanitário, projeto hidráulico, adequação ao Plano Diretor Urbano, verificação de que a obra não agride ao meio ambiente.

Porém, haveria licitude em se exigir do responsável pela obra que, para a obtenção da licença de construção, este arque com os IPTUs em atraso do terreno? Em casos que tais, o Poder Judiciário tem-se posicionado firmemente, como bem demonstra o seguinte Acórdão:

"Tributária/Proc. Civil - Apelação cível - Sentença concessiva de segurança - Negativa da municipalidade em fornecer alvará/licença para construção sob o argumento de que os requerentes estão em débito com a municipalidade no que se refere ao IPTU - Impossibilidade de negativa quanto à expedição de alvará pelo simples fato da existência de débitos - Reiterada jurisprudência nesse sentido - Identificação com as matérias constantes dos enunciados das Súmulas nºs 70, 547 e 323 do STF -Argüição de inconstitucionalidade da norma municipal impertinente para a solução do caso concreto - Recurso conhecido e desprovido - 1. Não é facultado ao município indeferir expedição de alvarás/licenças sob o pretexto de que o requerente possui dívida perante o Fisco Municipal. 2. Há reiterada jurisprudência formulada no sentido de o ente público não pode condicionar a expedição de alvarás à quitação de débitos preexistentes, ressalvada à Fazenda Pública a possibilidade de fazer constar, na certidão ou alvará, o débito tributário. 3. O Supremo Tribunal Federal, através das Súmulas nºs 70, 547 e 323 uniformizou solução semelhante (não poder condicionar) para situações quase idênticas à ‘negativa de expedição de alvará por existência de débitos’. 4. A inconstitucionalidade da Legislação Municipal que ensejou o débito fiscal, que sequer deve ser analisada por não ser condicionante ao acolhimento do pedido mandamental, cujo objeto é apenas a ilegalidade do vinculação da expedição de alvarás, licenças e autorizações a não-existência de dívida fiscal. 5. Recurso conhecido e desprovido." [04]

Bem se refere o desembargador Álvaro Bourguignon, do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, no voto acima referido, que, em situações assemelhadas o Supremo Tribunal Federal editou as Súmulas nºs 70, 547 e 323:

Súmula nº 70 – "É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. (D. Trib.)."

Súmula nº 323 – "É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos."

Súmula nº 547 – "Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais."

Mutatis mutandi, não seria lícito, no caso da construção de uma residência, que a Administração Pública utilizasse o ato de licenciamento como coerção para a quitação de tributos e multas. Mesmo que a lei assim o previsse, pois, tal critério legalmente eleito, seria atentatório à Constituição.

Voltemos ao caso específico do presente artigo, qual seja, o que tange à eleição de critérios legais para o licenciamento de veículos.

O art. 130 do CTB esclarece o que vem a ser o ato de licenciamento:

Do licenciamento

"Art. 130 - Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, para transitar na via, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo. [...]"

O veículo, portanto, deve ser licenciado para a verificação de suas condições para transitar na via. E isto é confirmado pelo art. 131, § 3º, do CTB:

"Art. 131 - [...]

[...]

§ 3º - Ao licenciar o veículo, o proprietário deverá comprovar sua aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído, conforme disposto no art. 104."

Isto fica ainda mais patente com a leitura do art. 22, III, do CTB:

"Art. 22 - [...]

[...]

III - vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente;"

Como visto, o licenciamento veicular resguarda os seguintes interesses públicos: a segurança das vias públicas, o sossego público (ruídos) e a proteção ambiental (emissão de gases). Portanto, a interposição de um requisito financeiro, como o caso do art. 131, § 2º, já citado, que exige o recolhimento de multas como elemento essencial ao ato de licenciamento, parece-nos um atentado à razoabilidade, posto que a razão deflagradora do ato de licenciar não é de índole arrecadatória mas, isto sim, de natureza assecuratória, como típica do poder de polícia do Estado.

Vale ainda ressaltar, a verve arrecadatória não tem qualquer vinculação com os valores jurídicos tutelados pelo ato de licenciamento (segurança das vias e das pessoas, proteção ambiental e resguardo do sossego público).

Em síntese, a eleição do critério legal afeiçoa-se como violação da Constituição e da Legalidade. Postos esses elementos iniciais, vejamos outras razões que nos conduzem a entender a exigência de multas, no ato de licenciamento, como requisito totalmente descabido.


3. Da inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, do CTB: violação à ampla defesa e ao contraditório

O ato de licenciamento do veículo, através do pagamento da obrigação principal (IPVA), e pelo recolhimento de obrigações acessórias (Seguro DPVAT e Taxa de Licenciamento), consubstancia-se em obrigação relacionada a determinado bem, para seu regular uso e gozo. Frise-se, neste ato de licenciamento, incide o pagamento de obrigações tributáriasa saber:

a) o IPVA, imposto que tem como hipótese de incidência a propriedade de veículo automotor; e

b) a Taxa de licenciamento, que verifica as condições do veículo, para saber se ele apresenta possibilidade de tráfego com segurança.

Conforme transcrito anteriormente, prescreve o art. 22, III, do Código de Trânsito que no ato de licenciamento compete à respectiva autoridade pública "vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular". Logo, o licenciamento é fato gerador de taxa pela vistoria (Poder de Polícia), sendo ainda o meio arrecadador do imposto (IPVA, pela propriedade do veículo automotor). Tanto a taxa quanto o imposto envolvidos no ato de licenciar o automóvel não possuem qualquer conteúdo de penalidade; até mesmo por que, se fossem penalidades, fugiriam à definição de tributo, insculpida no art. 3º do Código Tributário Nacional, literis:

"Art. 3º - Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada." [05]

Quanto às multas e penalidades, por seu turno, em nada se referem ao bem. Ora, bens não delinqüem; esta atividade ilícita é reservada às pessoas físicas e, em casos de exceções expressas e explícitas, às pessoas jurídicas (caso, v. g., das infrações ambientais). Neste sentido, é totalmente irregular exigir-se do contribuinte, para o pagamento do licenciamento, que o recolha multas pendentes.

Vale mesmo salientar, o Código de Trânsito deixa claro que as multas devem ter seus respectivos procedimentos de cobrança:

"Art. 22 - Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição:

[...]

VI - aplicar as penalidades por infrações previstas neste Código, com exceção daquelas relacionadas nos incisos VII e VIII do art. 24, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar;

[...]

XIV - fornecer, aos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários municipais, os dados cadastrais dos veículos registrados e dos condutores habilitados, para fins de imposição e notificação de penalidades e de arrecadação de multas nas áreas de suas competências;"

É de se sopesar, que a exigência das multas como pré-requisito para o licenciamento do veículo, afronta ao Princípio da Ampla Defesa, pois, caso o sujeito ativo para a cobrança das multas desejasse, poderia ingressar com a devida execução, onde seria aberta a via de embargos aos proprietários de veículos. Também por este argumento, atesta-se a ilegitimidade da cobrança de multas como requisito para o licenciamento.

Aceitar-se a situação, seria violar o art. 5º, LV, da CF/88, verbis:

"Art. 5º - [...]

[...]

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"

3.1 Exegese canhestra do art. 131, § 2º, do CTB: nova inconstitucionalidade

Os DETRANs têm-se negado a licenciar os veículos que tenham pendência de multas. Não bastasse a emissão dos boletos de cobrança do IPVA e da taxa de licenciamento juntamente com as multas, temos ainda uma forma transversa de coerção ao pagamento das multas, qual seja, em alguns locais não se expedem guias de recolhimento do seguro DPVAT, sem a quitação das multas. O resultado final será o mesmo, pois sem o pagamento do seguro, o veículo não está licenciado.

Portanto, de uma forma ou de outra, seja por coação direta ou por meios indiretos de coerção, está-se exigindo o recolhimento de multas como requisito essencial para o licenciamento de veículos.

Não bastasse a alegação de inconstitucionalidade já veiculada anteriormente, devemos ainda notar que a vinculação do pagamento de multas de um condutor para se licenciar o veículo nos conduz ao seguinte absurdo:

a) duas pessoas adquirem, em sociedade, um veículo;

b) as duas pessoas usam o veículo para trabalho;

c) se uma delas for multada, o veículo não pode ser licenciado, enquanto a multa não for quitada;

d) portanto, as duas pessoas são proibidas de dirigir?

A exegese absolutista que se está emprestando ao art. 131, § 2º, do CTB acaba concedendo à administração pública um poder de auto-executoriedade velado para certos atos administrativos (multas de trânsito), quando é pacífico que tais atos, quando influenciam em valores pecuniários, dependem da intervenção do Poder Judiciário, mediante execução fiscal.

Neste sentido segue pacífica a melhor doutrina no que citamos o professor José dos Santos Carvalho Filho [06]:

"Impõem-se, ainda, duas observações [nota nossa: sobre a auto-executoriedade]. A primeira consiste no fato de que há atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, como é o caso das multas, cuja cobrança só é efetivamente concretizada pela ação própria na via judicial [...]"

Vejamos, sobre o tema, o que diz a própria Legislação Federal sobre executivos fiscais (Lei nº 6830/80):

"Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

Art. 2º - Constitui dívida ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal."

A remissão à Lei nº 4320/64 é de clareza ainda maior:

"Art. 39 - Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária,serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.

[...]

§ 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e dívida ativa não tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes deempréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, aluguéis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de sub-rogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais."

Ciente deste aspecto, a Jurisprudência não faz ouvidos moucos, e reconhece incidenter tantum a inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, da Lei de Trânsito Nacional, senão vejamos:

"Mandado de Segurança - Reexame necessário de sentença - Multas de trânsito - Controle eletrônico de velocidade - Legalidade - Notificação ao infrator - Observância do art. 281, inciso II, parágrafo único, do CTB - Renovação de licenciamento de veículo condicionado ao pagamento de multas - Aplicação do § 2º do art. 131 do CTB - Inconstitucionalidade via controle difuso - Infringência ao devido processo legal - Inteligência do art. 5º, LIV, da CF - Ratificação da sentença - A Lei nº 5.108/66 e o atual Código Nacional de Trânsito outorgaram ao Contran competência normativa para disciplinar o trânsito no território nacional, o que significa dizer que ‘as normas assim editadas valem como Leis em sentido material tendo a mesma normatividade da Lei’ (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 17. ed, p. 161). Afigura-se manifestamente inconstitucional, via controle difuso, a exigência feita pelo detran no sentido de condicionar o licenciamento do veículo ao pagamento de multas anteriores, em atenção ao § 2º do art. 131 do Código de Trânsito Brasileiro, tendo em vista infringência ao Princípio do Devido Processo Legal, ex vi do art. 5º, LIV, da Constituição Federal.Havendo notificação de conformidade com o art. 281, inciso II, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro, constitui-se em ato legal as multas aplicadas pelas lombadas eletrônicas." [07]

Em idêntico sentido posiciona-se o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Espírito Santo, senão vejamos:

"Remessa ex officio com apelação voluntária - Mandado de Segurança - Recolhimento de IPVA e licenciamento de veículo - Multa - Exigência do pagamento da infração - Impossibilidade – Preliminar rejeitada - No mérito, sentença mantida - Remessa improvida – [...] 2. Inobservado o devido processo legal, é inadmissível condicionar o recolhimento do IPVA e a renovação da licença do veículo ao pagamento de multa, como ocorre in casu." [08]

Nestes termos, é de se reconhecer a inconstitucionalidade da exigência de multas como pré-requisito para o licenciamento de veículos.

3.1.1 Ainda sobre a violação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade: a simples "multa" ainda não foi inscrita em dívida ativa, portanto inexigível.

Vejamos ainda mais, como a exigência das multas para o licenciamento do veículo é uma afronta à razoabilidade e à proporcionalidade.

Todos os créditos públicos, como condição de exigibilidade, devem ser inscritos em dívida ativa. Com o próprio crédito tributário é assim.

Como já informado, não só os tributos, mas também as multas de qualquer natureza (art. 39, § 2º, da Lei nº 4.320/64) são tidos como dívida ativa pública. Como tal, existe uma condição de validade prévia para a exigibilidade, que é a inscrição em Dívida Ativa de acordo com a Lei nº 6.830/80: [09]

"Art. 2º - [...]

[...]

§ 3º - A inscrição, que se constitui no ato de controle administrativo da legalidade, será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito e suspenderá a prescrição, para todos os efeitos de direito, por 180 (cento e oitenta) dias ou até a distribuição da execução fiscal, se esta ocorrer antes de findo aquele prazo."

Não podemos esquecer: somente a dívida regularmente inscrita poderá gozar de liquidez, certeza e exigibilidade, nos termos da Lei nº 6.830/80:

"Art. 3º - A Dívida Ativa regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez."

Sobre o tema, posiciona-se a doutrina, conforme o seguinte artigo do professor José Donizeti Franco [10]:

"Assim é que os tribunais não têm admitido, por isso mesmo, que as autoridades de trânsito condicionem o licenciamento de veículos ao pagamento de multas administrativas por ventura existentes em relação a determinado veículo. Isto porque, o Estado Administração, neste aspecto igualado ao particular, dispõe de instrumentos legais e processuais, para cobrar seus créditos, não lhe sendo permitido, salvo as exceções expressas e finalisticamente previstas em lei, se utilizar de verdadeiras coações administrativas ou condicionamentos, como se dá nesses casos de exigência de pagamento das multas, pela autoridade administrativa, para que se renove o licenciamento do veículo.

Deverá ele – Estado Administração – se socorrer do expediente do processo administrativo, inscrevendo, regularmente, o débito em dívida ativa, e o cobrando por via do Processo de Execução Fiscal, nos termos da Lei nº 6.830, de 22.09.1980."

Ora, se as multas, para terem exigibilidade, dependem da inscrição em Dívida Ativa, como podem os DETRANs, antes mesmo deste ato formal de inscrição em Dívida Ativa, conferir auto-executoriedade aos autos de infração de trânsito, e exigir o recolhimento dos seus valores pecuniários, como requisito para o licenciamento de veículos?

O tema não passou desapercebido dos Tribunais, que têm decidido costumeiramente que compete à Administração ajuizar os executivos fiscais, como forma legítima de cobrança das multas:

"Recurso em Mandado de Segurança. Licenciamento anual de veículo automotor - Matéria regulada pelas disposições contidas nos arts. 124, VIII, 128, 131, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro - Denegação da ordem - Apelação não comprovada - Pela autoridade autuante ter habilmente exercido a notificação ao infrator de regra legal mandada observar pela Lei assiste ao cidadão em obter o licenciamento junto ao órgão competente não obstante se verifique militar em favor da administração os princípios da legalidade e legitimidade que entretanto cedem espaço diante da notória desorganização administrativa dos serviços específicos. Provimento do apelo para a reforma da sentença negatória da ordem. Direito ao mero licenciamento sem prejuízo da regular exigência das multas aplicadas ao proprietário do veículo cujos valores absorvem a devida correção e cobrança pela dívida ativa." [11]

"Mandado de Segurança - Vistoria de veículo - Multas de trânsito - É vedado ao poder público condicionar o licenciamento ao pagamento, impedindo o motorista de exercer a sua profissão. Confirmada a infração em procedimento administrativo, previsto no Código de Trânsito Brasileiro, cumpre à autoridade inscrever o valor das multas na dívida ativa e promover a execução fiscal na via judicial. A execução extrajudicial não se insere no poder de polícia da administração pública. Sentença correta. Apelo improvido. (IRP) Vencido o Des. Caetano E. da Fonseca Costa. Obs.: Embargos de Declaração acolhidos para esclarecer omissão." [12]

Diante do exposto, mesmo que admitíssemos, ad argumentandum, a possibilidade do condicionamento do pagamento das multas para o licenciamento, tal situação somente seria exigível após a inscrição em dívida ativa. Neste diapasão, é forçoso admitir a inconstitucionalidade ou ilegalidade do art. 131, § 2º, do CTB, por violação da razoabilidade e da proporcionalidade, pela criação de poderes de auto-executoriedade flagrantemente excessivos, principalmente por estarmos diante de multas que poderiam ser inscritas e executadas na forma da legislação.


4. Exigência de multas como requisito para pagamento de tributos do licenciamento: afronta ao CTN (lei complementar)

Por derradeiro, a exigência do pagamento de multas de trânsito, ainda que fosse a título legal, para que se recebessem os tributos inerentes ao licenciamento de veículo, afrontaria a Legislação Complementar Federal, em especial ao art. 164, I, do Código Tributário Nacional:

"Art. 164 - A importância do crédito tributário pode ser consignada judicialmente pelo sujeito passivo, nos casos:

I - de recusa de recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória;"

Ora, se a previsão de consignação é explícita, temos por inferência lógica, que a exigência de penalidade – que é o caso de multas – para o recebimento do crédito tributário é indevida, violadora de direito líquido e certo do contribuinte. Vale dizer, na maioria dos casos os contribuintes ficam até mesmo impossibilitados de realizar a consignação, pois para saberem o valor devido de taxas e impostos dependem da expedição dos boletos de cobrança por parte dos DETRANs. E estes órgãos, por vezes, apenas expedem as cobranças do DPVAT e taxas, após o recolhimento das multas!

Em síntese: dispondo-se o contribuinte ao recolhimento dos valores devidos, é nosso entendimento que se deve impetrar mandado de segurança para que o Poder Judiciário ordene ao órgão de trânsito competente que expeça todos os documentos de cobrança, exceto as multas, para o devido pagamento.


5. O caso não é solve et repete

Muito se tem afirmado que a exigência do recolhimento das multas de trânsito é legítimo, por tratar-se de uma cláusula solve et repete. Porém, ousaremos divergir deste entendimento, por duas razões básicas, que a seguir esmiuçaremos: a primeira, por não verificarmos, na hipótese, uma verdadeira cláusula solve et repete; e, ao final, por termos esta modalidade de coação como acintosamente inconstitucional.

Quanto ao nosso primeiro argumento, devemos salientar o conceito básico do solve et repete, mais comumente encontrado na doutrina tributária:

"Locução latina que denomina um princípio de direito tributário, pelo qual o contribuinte, para discutir judicialmente a devolução daquilo que teria pago indevidamente, fica obrigado a depositar importância correspondente à que pleiteia." [13]

No mesmo sentido, Sttefani [14] acrescenta:

"A ideologia do solve et repete faz parte da cultura arcaica, na qual os Monarcas exerciam sua soberania sobre a classe proletária, exigindo-lhes o pagamento sem conceder-lhes qualquer tipo de defesa, sendo que o valor pago ilegalmente somente poderia ser restituído a posteriori, mediante toda a sorte de dificuldades, o que sacrificava soberbamente o contribuinte."

Por fim, Carrazza [15] arremata:

"De acordo com a regra solve et repete, o contribuinte só pode contestar a legitimidade de um tributo após havê-lo pago. É uma regra medieval, que só se justificava quando se entendia que o Fisco, na relação jurídica tributária, ocupava uma posição de preeminência em face do contribuinte.

Hoje, pelo contrário, é pacífico, inclusive no Brasil, que, na relação jurídica tributária, Fisco e contribuinte estão em pé de igualdade, pela idêntica subordinação de ambos à lei.

Assim, esta regra anacrônica – que Berliri comparava à tortura e Micheli sempre vergastou –, que põe uma arma temível nas mãos do Fisco (na realidade, mais forte do que o contribuinte), está praticamente banida dos ordenamentos jurídico-tributários do mundo ocidental."

Portanto, a cláusula solve et repete, classicamente reconhecida, demanda o pagamento de um valor para, ao depois, podermos questioná-lo.

Assim, fica-nos evidente que o art. 131, § 2º, não é sequer uma cláusula solve et repete. É uma verdadeira coação grosseira, baseada na necessidade do proprietário do veículo em licenciá-lo, para poder com ele circular. Para ser uma cláusula solve et repete, deveria estar em jogo como pretensão do cidadão questionar o valor exigido em si. Porém, não se pretende – ainda – realizar o questionamento das multas. Pretende-se, tão-somente, realizar o pagamento dos tributos devidos e questionar-se tão-somente a legalidade da exigência das multas naquele instante. O que se questiona não são as multas, mas as sua exigibilidade.

Seria solve et repete, aí admitiríamos em tese, se o proprietário do veículo, necessitando de uma certidão negativa referente às multas, quisesse discutir as próprias multas. Neste caso se a lei exigisse o recolhimento do valor questionado, teríamos uma cláusula solve et repete.

Mas, o art. 131, § 2º, do CTB não determina um pagamento para posterior discussão. Determina apenas o pagamento para o licenciamento. O móvel que impele o proprietário do veículo ao recolhimento das multas não é a vontade de extinguir aquela dita obrigação (multas), mas, tão-somente, suprimir um obstáculo ao exercício de um outro direito (licenciamento do veículo).

Reprisando: o que se vê no art. 131, § 2º, do CTB é a grotesca imposição do pagamento das multas, tendo o Legislador simplesmente levado em consideração o desespero do proprietário do veículo que, sem o licenciamento, não poderá trafegar com o automotor.

Não bastasse isso, temos que a própria instituição da cláusula solve et repete afrontaria a garantia constitucional de proteção perante o judiciário. Nenhuma lesão a direito, ou ameaça a lesão, poderão ser afastadas do controle jurisdicional. Logo, a exigência do recolhimento das multas é plenamente controlável por ato do Poder Judiciário.

5.1 Antes que venham os contra-argumentos: o STF e os depósitos recursais

Os leitores poderão objetar às ponderações anteriores o fato de o Supremo Tribunal Federal ter validado a figura dos depósitos recursais como requisito para admissão de recursos administrativos ou ações judiciais. Apesar de numa primeira visão parecer que o STF acatou o solve et repete, em realidade não tivemos a ressurreição do famigerado problema.

Para não alongarmos nossas considerações, seremos extremamente breves nesta nossa afirmação:

a) a cláusula solve et repete demanda o pagamento de um determinado valor, para somente após, o interessado poder contestá-lo;

b) pagamento e depósito recursal, com a devida vênia, são figuras jurídicas totalmente distintas;

c) pagamento é forma de extinção de obrigações;

d) depósito recursal, por seu turno, é mera forma de postergação de exigibilidade das obrigações;

e) portanto, nos depósitos recursais não se está diante da cláusula solve et repete, pois não se obriga ao pagamento da obrigação.

Doravante devemos estabelecer alguns conceitos que serão deveras úteis para que cheguemos às nossas conclusões, em especial delimitando o que se pode juridicamente entender por:

a) pagamento; e

b) depósitos recursais.

O próprio conceito legal de pagamento assim se apresentava no revogado Código Civil de 1916:

"Art. 930 - Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor."

O atual Código Civil manteve o conceito em seu art. 304:

"Art. 304 - Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor."

Ou seja, o próprio conceito legal de pagamento indica sua natureza de interesse na extinção de uma dívida. Neste caso, falando de pagamento, podemos ler o que a Lei Federal nº 4.320/64 prescreve sobre as receitas públicas:

"Art. 11 - A receita classificar-se-à nas seguintes categorias econômicas: Receitas Correntes e Receitas de Capital.

§ 1º - São Receitas Correntes as receitas tributária, de contribuições, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços e outras e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas classificáveis em Despesas Correntes.

§ 2º - São Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos de constituição de dívidas; da conversão, em espécie, de bens e direitos; os recursos recebidos de outras pessoas de direito público e privado, destinados a atender despesas classificáveis em Despesas de Capital e, ainda, o superavit do Orçamento Corrente.

[...]

Art. 39 - Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.

§ 1º - Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro próprio, após apurada a sua liquidez e certeza e a respectiva receita será escriturada a esse título."

Pelo exposto, somente poderemos falar de pagamento quando a legislação determinar aquela entrega de recursos como forma de extinção da obrigação, e não como pressuposto de admissibilidade de recursos ou como requisito para postergação da exigibilidade da obrigação no tempo. Muito menos, aquelas formas de mera coação, como no caso presente, posto que despe o pagamento de seu conteúdo volitivo. [16]

Portanto, quem paga tem o caráter volitivo de quitar uma obrigação, o que não é o caso de um mero depósito recursal. Sem medo de errar, seguimos a posição de Carlos Augusto Junqueira Henrique [17], que conceitua o ato de mero depósito recursal:

"O depósito recursal, por seu turno, tem por escopo garantir a efetividade (mesmo que parcial) do provimento jurisdicional, situando-se no plano de suposto de admissibilidade de eventual recurso. Sua atuação se dá no plano do tempo do e no processo. Permitido o aviamento de recursos e então a projeção do encerramento do processo para um termo mais distante, a condição imposta – o depósito recursal – age no sentido de reduzir essa projeção visto que confirmada a sentença e retornando os autos ao juízo da execução poderá ser levantado de imediato pelo credor."

Ora, quem recolhe um valor em mero depósito não está interessado na extinção da dívida (o que é inerente ao pagamento), e sim, no atendimento de um pressuposto de admissibilidade de recursos (campo típico de depósitos). Estamos diante de mera garantia.

Vimos anteriormente que a Lei Federal nº 4.320/64 prescreve sobre as receitas públicas, dentre as quais não se acha qualquer menção aos meros depósitos acautelatórios ou suspensivos de exigibilidade de certo crédito. Portanto, sequer temos como enquadrar os meros depósitos como categoria de receita.

Posto isso, concluímos que não se pode utilizar o argumento da sobrevivência do solve et repete, com base na exigência de depósitos recursais. Afinal, se estamos falando de meros depósitos, não há campo típico para a cláusula solve et repete (que pressupõe pagamento).


6. Da Súmula nº 127 STJ

O tema referente às multas para licenciamento de veículos é recorrente na jurisprudência. Diariamente centenas de mandados de segurança são impetrados contra tal exigência. Inclusive, isto nos conduziu à edição da Súmula nº 127 do STJ, verbis:

"127 - É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado."

Como visto, o STJ parece entender que somente não é possível condicionar o licenciamento do veículo, quando o infrator não foi devidamente notificado de forma prévia, quanto à própria autuação da infração.

Porém, neste artigo, pugnamos pela completa impropriedade da exigência das multas como requisito do licenciamento, pelos argumentos já elencados.

Nada obstante, é forçoso salientar, a súmula em referência foi editada com base na legislação de trânsito revogada, uma legislação que veio a lume em época de influxos não muito democráticos. Os três precedentes informados pelo Superior Tribunal de Justiça como responsáveis pela edição da Súmula nº 127 são anteriores ao Novo Código de Trânsito (REsp 6228/PR 1990/0011960-0 [18], REsp 37537/SP 1993/0021822-0 [19], e REsp 34567/SP 1993/0011671-1 [20]).

Portanto, salvo melhor juízo, prestando-se o STJ à interpretação da lei federal, deverá fazê-lo com base na lei então vigente. Logo, inaplicável, como regra, a Súmula nº 127, pela razão referida. Para confirmação de nossas afirmações, basta consultar o sítio do STJ para avaliarmos os Recursos Especiais que deram origem à súmula: todos são referentes a litígios envolvendo as leis de trânsito revogadas!


7. Da ADI nº 2.998

Deixando patente a inconstitucionalidade da exigência, devemos referir que a ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.998, em trâmite no STF. Até o presente momento, a ação se encontra aguardando o julgamento de mérito, e, quanto à manifestação sobre o pedido de liminar assim se pronunciou o ministro Marco Aurélio, relator no feito:

"1. Nesta ADI, são atacados os arts. 124, inciso VIII, 128, 131, § 2º, 161, cabeça e parágrafo único, e 288, § 2º, todos da Lei nº 9.503/97, o Código de Trânsito Brasileiro. A simples passagem do tempo direciona à conclusão de não concorrer, na espécie, a urgência a ditar medida acauteladora. Presente o princípio da economia e celeridade processuais – o máximo de eficácia da lei com o mínimo de atividade judicante –, deve ser evitado o duplo julgamento, muito embora o primeiro tenha natureza precária e efêmera. Há de se levar em consideração o art. 12 da Lei nº 9.868/99. A razão de ser do preceito é, justamente, evitar o que nos últimos anos vinha ocorrendo, ou seja, a duplicidade de apreciação, com sobrecarga do plenário. 2. Aciono o disposto no artigo acima transcrito. Solicitem-se informações, no prazo de dez dias, e, após, colham-se as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, observando-se, tanto quanto possível, o prazo assinado em lei. 3. Publique-se.

Brasília, 1º de outubro de 2003.

Ministro Marco Aurélio Relator."

Na ADI em apreço, o Exmo. Senhor Procurador-Geral da República Dr. Cláudio Fontelles, manifestou-se através do Parecer nº 1425/CF. Especificamente sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, do CTB, assim se manifesta o Doutor Procurador:

"12. Ora, a exigência de quitação de débitos fiscais e de multas para a emissão do certificado de registro e da concessão de licenciamento anual, não configura afronta ao direito de propriedade, visto que não reduz o âmbito do direito de propriedade, mas, apenas limita o exercício desse direito ao impor uma condição, ou seja, o pagamento desse débito.

13. Improcede, por igual, a alegação de que a limitação do uso do veículo configuraria afronta, também, à garantia do devido processo legal. Todavia, a previsão na Lei de Trânsito de um processo administrativo no qual se procede a prévia notificação pessoal do condutor infrator ou do proprietário do veículo, possibilitando a ampla defesa e o contraditório, com certeza preserva a garantia constitucional do devido processo legal inscrito no art. 5º, inciso LIV, do texto constitucional federal.

[...]

[...]

[...]

O Supremo Tribunal Federal tem firmado sua posição no sentido de ser constitucional a exigência de depósito prévio para possibilitar a interposição de recurso administrativo. A exemplo, a decisão proferida no RE nº 356.287-8/SP, cujo acórdão está assim ementado (rel. Min. Moreira Alves, DJ 07.02.2003, transcrição parcial):

‘Depósito para recorrer administrativamente.

- Em casos análogos ao presente, relativos à exigência do depósito da multa como condição de admissibilidade do recurso administrativo, esta Corte, por seu Plenário, ao julgar a ADI 1.049 e o RE 210.246, decidiu que é constitucional exigência desse depósito, não ocorrendo ofensa ao dispostos nos incisos LIV e LV do art. 5º da Carta Magna, porquanto não há, em nosso ordenamento jurídico, a garantia do duplo grau de jurisdição.’

Da ADI nº 1.049-2/DF, referida no acórdão acima, vale ser destacado do voto do eminente Ministro Sepúlveda Pertence seu entendimento no sentido de que não contraria o princípio da garantia do devido processo legal a exigência do depósito para condição de admissibilidade de recurso administrativo, in verbis (Ementário nº 1797-2, fls. 221):

‘Ora, como o devido processo legal não impõe sequer o direito à existência do recurso administrativo, não vejo de que maneira o condicionamento do seu exercício ao depósito poderia afetar a garantia do devido processo legal.’

19. [...]."

Como visto, o Parecer transcrito acaba utilizando para a exigência de pagamento o raciocínio apropriado para casos de mero depósito recursal. Confundem-se as categorias extinção de obrigação de obrigação (pagamento) com mera suspensão de exigibilidade (característica dos depósitos). Contudo, esta é a atual realidade da ADI nº 2.998.

Esperamos que, em Plenário, dê-se uma correção de rumo, e a subseqüente decretação da ilegitimidade constitucional da mal sinada exigência do pagamento de multas para que se possam licenciar veículos automotores. Se assim não ocorrer, restará tênue a linha que mantém em vigor as Súmulas nºs 70, 323 e 547, todas do STF, que têm, como pano de fundo, a discussão das liberdades pessoais (o exato tema que sustenta a discussão da inconstitucionalidade, também no caso dos dispositivos do CTB).


8. Conclusões

Postas essas considerações, concluímos nos seguintes termos:

1 - A exigência do pagamento das multas como requisito para o licenciamento de veículos atenta contra o princípio da razoabilidade, posto que a fixação deste requisito em lei viola a necessária pertinência entre o ato de licenciamento e os interesses públicos protegidos com a licença. O licenciamento não tem função arrecadatória e sim assecuratória, como é típico do poder de polícia.

2 - A exigência viola ainda o Direito à Ampla Defesa, posto que o Estado tem ao seu dispor a execução fiscal para a cobrança das multas.

3 - Viola-se ainda os limites para a concessão da auto-executoriedade aos atos administrativos passíveis de afetação econômica dos administrados. Pior ainda, quando se concede auto-executoriedade às multas que sequer estão inscritas em dívida ativa (logo, estão despidas do requisito de exigibilidade).

4 - A exigência das multas afronta o CTN. Devemos observar que o CTN é recepcionado como Lei Complementar, enquanto o CTB é mera Lei Ordinária.

5 - A exigência não se sustenta sequer sob a alegação do solve et repete. A uma, pois não é caso de solve et repete, mas de grosseira indução ao pagamento de um valor ainda não objeto de impugnação. De igual forma, não podemos assumir a analogia com a decisão do STF sobre os depósitos recursais: pagamento e depósito recursal são categorias jurídicas distintas (a primeira é cláusula extintiva da obrigação, enquanto a segunda é cláusula suspensiva de sua exigibilidade).

6 - Por fim, é patente a inconstitucionalidade das cláusulas solve et repete, notadamente em situação impostas pelo Poder Público.


Notas

  1. BRASIL. Poder Legislativo. Lei nº 9.503, de 24 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 24 set. 1997 (ret. em 25 set. 1997).
  2. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros. 1995. p. 170.
  3. DI PIETRO, Maria Sílvia Zanella. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
  4. ESPÍRITO SANTO (ESTADO). Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Apelação Cível em Mandado de Segurança nº 024990175143. 2ª C. Cív. Rel. Des. Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon - j. 28.10.2003.
  5. BRASIL. Poder Legislativo. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o sistema tributário nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 27 out. 1966 (ret. em 31 out. 1966).
  6. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro : Lumen Juris, p. 71
  7. MATO GROSSO (ESTADO). Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso. RNS 9.445-Cuiabá. 2ª C. Cív.. Rel. Des. Odiles Freitas Souza - j. 14.08.2001.
  8. ESPÍRITO SANTO (ESTADO). Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Apelação Cível em Mandado de Segurança nº 011010555917. 3ª C. Cív. – Rel. Des. Jorge Góes Coutinho - j. 08.10.2002.
  9. BRASIL. Poder Legislativo. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública e dá outras providências. Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília (DF), 24 set. 1980.
  10. FRANCO, José Dozineti.Dos casos de responsabilidade individual do agente, nas infrações de trânsito – a solidariedade não se presume, decorrendo da lei ou da vontade da parte - O estado de direito e o princípio do due process of law. Jornal Síntese,Porto Alegre, jan. 2000, n. 35, p. 10.
  11. RIO DE JANEIRO (ESTADO). Poder Judiciário do Rio de Janeiro. Apelação cível nº 4827/2001. 9ª C.Cív. Rel. Des. Marcus Tullius Alves - j. 25.09.2001.
  12. RIO DE JANEIRO (ESTADO). Poder Judiciário do Rio de Janeiro. Apelação cível nº 9218/2001 (2001.001.09218). 7ª C.Cív. Rel. Des. Carlos C. Lavigne de Lemos - j. 06.11.2001.
  13. Disponível em: <http://www.dji.com.br/latim/solve_et_repete.htm>. Acesso em: 23 set. 2004, 22:15.
  14. STEFANI, Fábio. Da suspensão da exigibilidade do tributo sujeito ao regime de lançamento por homologação através de medida liminar. Revista de Estudos Tributários, Porto Alegre,n. 25, p. 153, maio/jun. 2002.
  15. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 168.
  16. Só será pagamento, o ato de um interessado na extinção da dívida. Logo, se despido de seu conteúdo de vontade, poderá ser qualquer outro instituto: exceto pagamento.
  17. HENRIQUE, Carlos Augusto Junqueira. Depósito recursal no processo de execução. Revistra Síntese Trabalhista, Porto Alegre, p. 19, set. 2000.
  18. "Ementa: Administrativo. Infração de trânsito. Licenciamento de veículos. Falta de notificação do infrator impedindo o devido processo legal. Constituição Federal, art. 5º, LV, cf. Lei nº 5.108/68. Decretos nºs 62.127/68 e 98.933/90. 1. A legalidade das sanções administrativas por infração de trânsito assenta-se no pressuposto de regular notificação do infrator para que possa defender-se resguardado pelo devido processo legal. 2. iterativos precedentes da jurisprudência do STF e STJ. 3. Recurso improvido."
  19. "Ementa: Administrativo. Trânsito. Licenciamento de veículos. Infração. Multa. Notificação ao suposto infrator. Omissão da autoridade administrativa. Inobservado o devido processo legal, é inadmissível condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa da qual o motorista não teve ciência, ou se interpôs recurso ainda não apreciado."
  20. "Ementa: Administrativo. Mandado de Segurança. Renovação de licença de veículo. Pagamento de multa. Notificação do infrator. Direito de defesa. Irregularidade da constituição do débito. Recurso Especial provido. I - Não se pode renovar licenciamento de veículo em débito de multas. para que seja resguardado o direito de defesa do suposto infrator, legalmente assegurado, e necessário que ele (infrator) seja devidamente notificado, conforme determinam os arts. 194 e 210 do Decreto nº 62127, de 1968, alterado pelo Decreto nº 98.933/90. II - Consoante jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal e desta Corte, se não houve prévia notificação do infrator, a fim de que exercite seu direito de defesa, e ilegal a exigência do pagamento de multas de trânsito, para a renovação de licenciamento do veículo. III- Recurso provido, sem discrepância."

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21034. Acesso em: 5 maio 2024.