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O Direito e sua necessária visão principiológica

O Direito e sua necessária visão principiológica

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A ideia de que os direitos fundamentais valem apenas na medida em que protegidos por leis é vinculada a uma visão que, sob a égide da Constituição de 1988, está francamente ultrapassada, fruto de uma época em que a lei ainda era tomada como fonte principal – senão exclusiva – do Direito e as Constituições sequer gozavam de um mínimo de força normativa.

Certa feita, no âmbito da atividade judicante, deparei-me com interessante caso concreto. Tratava-se de cidadão que estava se submetendo a concorrido concurso público onde almejava o cargo de farmacêutico. O autor, em sua petição inicial, relatou que, à época, encontrava-se na derradeira fase do certame, ligada à apresentação de títulos, etapa decisiva, porquanto serviria para realizar o desempate então vigente entre diversos candidatos, incluindo o próprio demandante.

A questão era que, dentre os títulos válidos elencados no edital, havia a comprovação de tempo de serviço na área específica do cargo para o qual estava o acionante concorrendo, cuja documentação, segundo o próprio edital, deveria conter “declaração do empregador com firma reconhecida da pessoa que a assina, na qual conste o período (início e fim, se for o caso), a espécie do serviço realizado e as atividades desenvolvidas, se na iniciativa privada”.

Em sua petição inicial, o reclamante pontuou ter encontrado injustificável resistência, por parte da reclamada, quanto à emissão de declaração nos exatos moldes exigidos pelo edital, malgrado fosse mesmo incontestável ter realizado aquela específica prestação de serviço.

De fato, no ensejo da ação trabalhista, o autor instruiu sua peça de ingresso com cópia de mensagem eletrônica, emitida por um funcionário da empresa reclamada, com expressa recusa quanto ao fornecimento de declaração com aqueles precisos detalhes almejados pelo postulante e exigidos no certame público.

A fundamentação usada para a negativa foi simples: não havia qualquer lei que obrigasse a empresa a emitir tal declaração. Diante desses fatos e à vista da urgência do caso, pediu a antecipação dos efeitos da tutela.

Como solucionar esse imbróglio?

É cediço que a República Federativa do Brasil está fundada na dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, inciso III), tendo como ousada meta a construção uma sociedade efetivamente solidária, com a promoção do bem de todos (CF, artigo 3º, incisos I e IV).

Na seara infraconstitucional, também resta expressamente assentado que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (CC, artigo 113), sendo que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (CC, artigo 422), valendo lembrar que a boa-fé objetiva, aqui aplicada, é um instrumento ético que viabiliza focar as relações jurídicas obrigacionais não mais debaixo de uma lente puramente legal ou individual, mas, sim, sob o influxo das finalidades social e ética da obrigação.

Naquele caso, ressoava de modo incontestável que o demandante havia prestado serviços de farmacêutico a favor da empresa reclamada, sua ex-empregadora, restando bem claro no caderno processual que o edital do concurso público não exigia uma simples declaração de boa conduta, com mera menção à função exercida, mas, pelo contrário, o Estado buscava informações mais detalhadas, no que certamente, creio eu, estava amparado no princípio da eficiência (CF, artigo 37, caput).

Quanto à pretensão autoral em si, minha conclusão seguiu na linha de que inexistia qualquer razão plausível, minimamente convincente, para se crer que a reclamada não estivesse obrigada a fornecer a dita declaração, exatamente com o conteúdo almejado pelo autor.

Argumentar que não há lei obrigando a isso é pensar muito pequeno, pois, no plano jurídico, urge admitir que força normativa não constitui privilégio exclusivo da lei, mas atributo que alcança também os princípios. Aliás, muita mais que isso, forçoso mesmo é, hodiernamente, “reconhecer não só o valor normativo dos princípios e das normas constitucionais, mas também a supremacia deles”[1].

Isso quer dizer que, na atual quadra científica, raciocinar no âmbito da legalidade estrita é palmilhar por vetusto modelo, ainda se portando a enxergar a tutela jurídica debaixo de uma ótica meramente individual, em formato de rígidos direitos subjetivos, hermeticamente alocados em gélidos artigos de lei. De fato, a ideia de que os direitos fundamentais valem apenas na medida em que protegidos por leis é vinculada a uma visão que, sob a égide da Constituição de 1988, está francamente ultrapassada, fruto de uma época em que a lei ainda era tomada como fonte principal – senão exclusiva – do Direito e as Constituições sequer gozavam de um mínimo de força normativa[2].

Decididamente, tenho me recusado a trilhar por esse caminho. Já é tempo de se efetivar uma visão principiológica do fenômeno jurídico, efetivamente comprometida com a elevada pauta axiológica verificada na Constituição Federal, partindo-se do exato pressuposto de que “a personalidade humana não se realiza somente através de direito subjetivos, mas sim através de uma complexidade de situações que podem se apresentar das mais diversas maneiras: como poder jurídico, como direito potestativo, como interesse legítimo, como faculdade, como ônus, como estado, enfim, como qualquer circunstância juridicamente relevante[3] (grifei).

É importante acentuar, com SARMENTO, nesse rico contexto, que:

“a construção de uma sociedade solidária, tal qual projetada pelo constituinte, pressupõe o abandono do egocentrismo, do individualismo possessivo, e a assunção, por cada um, de responsabilidades sociais em relação à comunidade, e em especial em relação àqueles que se encontrarem numa situação de maior vulnerabilidade. (...) Construir esta sociedade justa e igualitária é um dever do Estado, que impõe tarefas promocionais aos três Poderes, mas é também uma obrigação que pesa sobre toda a sociedade e sobre cada um dos seus integrantes, na medida das respectivas possibilidades”[4].

Penso da mesma forma. Afinal, nunca haverá respeito à dignidade humana em um ambiente permeado de egoísmo, de individualismo, de escancarada má vontade e de incontáveis desculpas vazias. Eis o porquê de a solidariedade social avultar como elemento imprescindível para a afirmação da dignidade humana, esta compreendida como “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”[5].

Tive convicção da legitimidade da pretensão do autor. Era decorrente de sua luta pela afirmação própria, por meios legais e éticos, procurando dar destino e desenvolvimento à sua própria existência, enquanto pessoa humana e cidadão brasileiro. Em concreto, aprovado em concurso público, apenas tencionava ter em mãos uma simples declaração cujo conteúdo, além de afinado com a realidade material dos fatos, igualmente fosse adequado aos ditames formais do edital. Interesse pós-contratual assaz legítimo e razoável.

Logo, tive convicção da ilegitimidade da recusa da reclamada. Uma sociedade que pretende ser vista como solidária precisa exercitar a nobre reflexão de se colocar no lugar do outro, enxergando na felicidade do próximo a sua própria felicidade, na vitória do outro a sua própria vitória.

Que fique bem claro que agir de boa-fé, em sua citada acepção objetiva, não significa forçar alguém a nutrir, em seu interior, intenções benevolentes e sentimentos fraternais, o que é medida de todo inexequível.

O que o Direito pretende mesmo, ao falar em “boa-fé” e “solidariedade”, é fomentar atitudes maduras, posturas serenas, de modo que, dentro do possível, não só o Estado, mas todos e cada um, imersos nessa complexa sociedade pós-moderna vigente, possamos nos portar bem naquelas valiosas oportunidades em que se pode fazer alguém feliz ou, no mínimo, pode-se não impedir que alguém o seja, medida que se materializa, muitas vezes, através da simples posição de não se colocar obstáculos desnecessários no caminho de quem só quer prosseguir sonhando seus sonhos, como um genuíno e respeitável desdobramento da necessária afirmação de sua própria dignidade.

Ao fim, a medida de urgência foi concedida, o autor logrou êxito em seu intento existencial e o processo alcançou suas finalidades técnica, social e pedagógica.


Notas

[1] PERLINGIERI, Pietro. A Doutrina do Direito Civil na Legalidade Constitucional. In Direito Civil Contemporâneo: Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. TEPEDINO, Gustavo (organizador). São Paulo : Atlas, 2008, p. 1.

[2] Segundo Daniel Sarmento, esse paradigma é característico do pensamento jurídico vigorante até a Segunda Guerra Mundial, cuja cultura jurídica era essencialmente “legicêntrica”. Fonte: SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. In Leituras Complementares de Direito Constitucional: Teoria da Constituição. Salvador : JusPODIVM, 2009, p. 34.

[3] MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro : Renovar, 2003, p. 118.

[4] SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição, Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2006, p. 297. Deveras, como leciona Maria Celina Bodin de Moraes, “enquanto se acreditou que a maneira mais adequada de tutelar os seres humanos era aquela ligada à proteção de sua “essência” individual, a expressão do jurista era de melancólica e desconsolada solidão: o direito de ser homem contém o direito que ninguém me impeça de ser homem, mas não o direito a que alguém me ajude a conservar a minha humanidade. O princípio da solidariedade, ao contrário, é a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana. No contexto atual, a Lei Maior determina – ou melhor, exige – que nos ajudemos, mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Solidariedade. In Os Princípios da Constituição de 1988. PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabela Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (organizadores). Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2001, p. 179 – grifo no original). Não à toa essa notável jurista desdobra o princípio da dignidade da pessoa humana em quatro postulados essenciais: direito à igualdade, tutela da integridade psicofísica, direito à liberdade e princípio da solidariedade social (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro : Renovar, 2003, p. 81-116).

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6ª Edição, Porto Alegre : Livraria do Advogado Ed., 2008, p. 63.


Autor

  • Ney Maranhão

    Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: [email protected]

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MARANHÃO, Ney. O Direito e sua necessária visão principiológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3162, 27 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21171. Acesso em: 28 mar. 2024.