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Um contributo ao estudo da génese do interesse processual no Direito português

Um contributo ao estudo da génese do interesse processual no Direito português

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Desde as Ordenações Filipinas, já existia no Direito Português um pré-entendimento, embora dissociado do contexto do interesse processual, apologista da ideia de que os tribunais só devem conhecer as acções que se reputem necessárias.

1. Introdução

A autonomização da figura do interesse processual no ordenamento jurídico português pode ser acusada de algo “tardio” em face de alguns sistemas jurídicos europeus que de forma pioneira abraçaram o conceito.

Num período em que o instituto era já reconhecido no seio de diversos ordenamentos jurídicos como o francês, o italiano ou o alemão, não era, todavia, outorgada ao interesse processual qualquer autonomia técnica no direito pátrio, onde era reconduzido à legitimidade processual.

Ora, assistiu-se em Portugal, nos anos 40 e 50, ao fenómeno da autonomização do interesse processual.

Contudo, esse fenómeno não foi instantâneo, sendo antes resultado de uma evolução paulatina ([1]). Não se esqueça, pois, que o direito se encontra em evolução permanente, quer em função das modificações sociais ([2]), quer em função da respectiva dinâmica do direito ([3]).

Propomo-nos doravante a centrar o nosso estudo nos acontecimentos, factores e circunstâncias que estiveram na base do seu surgimento – ou se se quiser: “transporte” – para o direito português ([4]).

Posto que nos encontramos em sede de história do direito, com particular enfoque na figura interesse processual, procuraremos, sinteticamente, neste capítulo, colocar em relevo os precedentes daquele instituto no nosso direito, intentando compreender, dessa forma, algumas das posições doutrinais que – descabidamente, diga-se (!) – ainda hoje aí fazem carreira ([5]).

Conscientes da velha desconfiança em torno da autenticidade da história – acusada, outrora, de mera ficção por HAYDEN WHITE ([6]) – reputamos pertinente e valioso o estudo dos precedentes históricos do interesse em agir no direito português.

Fá-lo-emos em homenagem a essencialmente dois tipos distintos de razões.

1) A razão histórica. Do levantamento histórico da génese do interesse processual no direito português resulta indubitavelmente o enriquecimento da própria história do direito no que particularmente concerne àquela figura jurídica. Esta ideia adensa-se quando nos confrontamos com o escasso ou mesmo nulo trabalho historiográfico realizado nesta matéria. Por outra perspectiva, sempre se dirá que a índole intricada que o interesse processual revela, inclusive no direito interno, sairá pelo menos amenizada com a clarificação dos seus horizontes históricos no direito pátrio.

2) A razão dogmática. O estudo do surgimento do interesse processual no processo civil português facultará, por referência ao passado, a compreensão de entendimentos actualmente existentes na doutrina nacional. À história do direito reconhece-se, pois, a tarefa de legitimar ([7]) ou justificar o direito actual. Ora, com base nesse pressuposto, crê-se que a invocação dos pergaminhos do interesse processual no direito português poderá constituir importante instrumento de compreensão de algumas concepções que ainda “sobrevivem” entre os Autores da doutrina nacional.


2. A procura de evitar demandas temerárias pelas desde 1603 a 1876 – a tutela parcial da ratio do interesse processual pelas Ordenações Filipinas e proximidade com o interesse-necessidade

Não obstante ser o interesse processual uma construção doutrinal da autoria dos franceses, cronologicamente assinalada no século XVIII, parte dos seus fundamentos, designadamente aqueles que contendem com a protecção dos interesses do réu, eram já alvo de tutela jurídica pelo Direito Romano, na medida em que punia as demandas temerárias ([8]).

Ao Direito Português, em virtude da influência Romana, não passou despercebida igualmente a problemática das acções temerárias.

Todavia, enquanto o Direito Romano conferia tutela sancionatória às referidas acções, a nossa ordem jurídica não cominava qualquer sanção para os seus autores, tutelando os interesses do réu mediante uma declaração da lei, que apelava à razoabilidade e à ponderação antes de se intentar uma acção. Deste modo, no que toca ao ajuizamento da demanda, as Ordenações Filipinas (Livro III, 3.20.3) ([9]) recomendavam que os litigantes se aconselhassem com o seu advogado a os orientar “a não mover acção temerária” ([10]).

Apesar de as Ordenações Filipinas não consagrarem a figura do interesse processual, conferiam tutela jurídica a um dos seus fundamentos, designadamente a protecção dos interesses do réu, assente na preocupação de evitar que alguém sendo demandado sem razão alguma, que não a de ser molestado pelos estigmas co-naturais à posição de demandado.

No entanto, não tinha o Direito Português, como se referiu acima, o vigor punitivo do Direito Romano, prescrevendo uma tutela muito mais macia e de carácter meramente pedagógico.

É certo que o valor da segurança jurídica, relacionado com a preocupação do legislador do século XVII em os particulares não serem prejudicados ou incomodados ([11]) por acções contra si movidas estritamente com fins perversos, não pode ser contextualizado em sede do interesse processual, que apenas seria reconhecido no Direito Português cerca de mais de trezentos anos depois.

Contudo, o contemplar da questão das acções temerárias por um diploma normativo que vigorou em Portugal por 273 anos, não deixa de representar uma evidente pré-valorização legislativa de um problema que mais tarde viria a ser alvo das aspirações da figura do interesse processual, vindo a preocupação em evitar prejuízos e incómodos para os particulares em resultado de acções injustificadas a ser elevada de forma pioneira, por MANUEL DE ANDRADE ([12]), com apoio no italiano INVREA, à qualidade de fundamento daquele pressuposto processual. Para o Professor de Coimbra, «Parece indiscutível e é geralmente reconhecida pela doutrina processualista estrangeira. Seria injusto que o titular dum direito subjectivo material (no sentido latíssimo de posição jurídica material favorável; isto por causa das acções de simples apreciação negativa) pudesse, sem mais nem menos, solicitar para ele uma qualquer das formas de tutela judiciária legalmente autorizadas, impondo assim à contraparte a perturbação e o gravame que se traduz principalmente em ter ela de deduzir a respectiva defesa, sob pena de a ver precludida» ([13]) (itálico nosso).

De outra perspectiva pode adiantar-se que da exigência imposta pelas Ordenações Filipinas para os interessados, antes de intentarem uma acção judicial, se aconselharem com o seu advogado a fim de não lançarem mão de uma acção temerária, esboça já a ideia de que ao Estado-legislador interessava que não fossem encaminhadas aos tribunais acções que não se justificassem, isto é, que não fossem necessárias.

Neste diapasão, pode-se afirmar com propriedade que existia já no Direito Português um pré-entendimento, embora dissociado do contexto do interesse processual, apologista da ideia de que os tribunais só devem conhecer as acções que se reputem necessárias, traço que vimos já ser característico da corrente do interesse-necessidade.

Esta linha de pensamento viria a ser denunciada pelo legislador com mais expressividade, mais tarde no Domínio do Código de Seabra e adoptada por grande parte da doutrina no século XX, quando a figura do interesse processual era reconhecida entre nós.


3. “Antecedentes” da figura do interesse no Direito Civil Português

Existem fortes evidências que testemunham que a criação da figura do interesse processual na época moderna pela ciência jurídica francesa é produto de uma construção doutrinal que se inspira na doutrina romana do interesse na prestação.

Embora o direito português somente venha a conhecer o interesse processual no século XX, o interesse enquanto substrato jurídico era já detentor de antiga tradição no direito civil português, relacionando-se com o interesse na prestação.

No domínio das Ordenações Filipinas, o interesse constava da noção da acção de pedir o que se prometteu dar em certo lugar, ou de eo quod certo loco. Segundo a Lição de CORRÊA TELLES ([14]), «Esta acção competia áquelle, a quem por contracto stricti juris era devida uma cousa, contra o devedor, que a devia entregar em certo lugar, para que fosse obrigado a pagá-la, ou a prestar o interesse, ainda que não fosse achado no lugar da obrigação» (itálico nosso).

O interesse mantinha aí particular relação com o inadimplemento ([15]), consistindo na utilidade da prestação obrigacional, aferindo-se pelo prejuízo ([16]) ou lucro cessante que credor teve em consequência do incumprimento do devedor, em homenagem à regra damna et interesse in eo consistunt, quantum mihi abest, quantumque lucrare potui ([17]).

Ainda no contexto doutrinal do inadimplemento, e com um conteúdo focado na noção de prejuízo, o “interesse” tinha aplicação por meio da figura das “perdas e interesses”. As perdas e interesses eram – servindo-nos das palavras de COELHO DA ROCHA ([18]) - «a estimação dos prejuízos, que ao credor resultaram de o devedor não cumprir a sua obrigação: ou elles provenham da effectiva diminuição do património do credor (damnum emergens); ou de se não terem realizado os lucros, que do cumprimento lhe deviam resultar (lucrum cessans)».


4. Concepção implícita e “inconsciente” do interesse processual pelo Código de Seabra – reflexo da influência da corrente do interesse-necessidade (rechtsschutzbedürfnis)

Em finais do século XIX, altura em que alguns códigos estrangeiros consagravam já o interesse processual, o legislador português, no Código de Processo Civil de 1876, reduzia o «interesse», juntamente com a capacidade e a exigibilidade do direito, entre outros elementos, ao estatuto de mero requisito da legitimidade ([19]).

Com o surgimento do Código de Processo Civil de 1961, embora requisitos como a capacidade e a exigibilidade do direito se tenham autonomizado das malhas do conceito da legitimidade processual, o requisito do interesse – neste período já apelidado pela doutrina nacional de “interesse em agir”, por inspiração na terminologia italiana – permaneceu aí aprisionado, como seu elemento concretizador. Deste modo, o interesse em agir era identificado com a legitimidade, não adquirindo qualquer autonomia em face desta.

Não obstante a errónea assimilação entre o interesse processual e a legitimidade, é possível identificar, já no Código de Seabra, uma assimilação inconsciente por parte do legislador, de alguns elementos que eram tidos, à época, como fattispecies individualizadoras do interesse processual à luz da corrente doutrinal então dominante entre os sistemas defensores do instituto – a corrente do interesse-necessidade.

Segundo aquela corrente dogmática, haveria interesse processual na acção se o autor tivesse necessidade de recorrer aos tribunais para tutela do seu direito, preenchendo-se essa necessidade com a existência efectiva de um direito violado ou ameaçado. Ora, no Código de ANTÓNIO LUÍS DE SEABRA, o legislador apenas facultava as acções quando elas fossem absolutamente necessárias para a defesa do direito e tal necessidade só existia quando esse direito fosse ameaçado ou violado ([20]). Esta exigência civilista do legislador de 1867, embora dissociada do conceito de interesse processual, além se reputar absorvente do conteúdo que genericamente era atribuído ao conceito à época, comungava já da dose privatista dos fundamentos que hoje justificam a valência do instituto no nosso direito processual civil que, como vimos, prende-se com a ideia de evitar que alguém seja colocado na posição de réu, sem razão objectiva, sujeitando-se a todos os inconvenientes que esse estatuto acarreta. Neste contexto, é expressivo o comentário de BELEZA DOS SANTOS ([21]), à exigência da violação ou ameaça do direito pelo Código de Seabra para a concessão das acções, para quem «O legislador tinha de atender aos dois interesses opostos: o de assegurar e defender o direito contra os factos que o perturbam, ameaçam ou violam e o de garantir a tranquilidade dos cidadãos contra litígios, que não fossem absolutamente necessários» (itálico nosso).

Do exposto pode retirar-se que, pese embora não se reconhecesse legal, doutrinal e jurisprudencialmente a autonomia do interesse processual, a verdade é que a sua fisionomia tradicional ([22]) – a exigência de uma violação ou ameaça a um direito para a admissibilidade da acção – estava já cravada na lei, estando subjacente a essa imposição normativa a protecção de um interesse privado que coincide parcialmente com a ratio que modernamente fundamenta o instituto ([23]).

Ousamos, por isso, dizer que ainda no período de vigência do Código Civil de 1867 existia nesse diploma normativo uma pré-concepção implícita e inconsciente do interesse processual.

E diz-se pré-concepção porque não se cura de um verdadeiro conceito, oficializado pela doutrina, posto que não existia no seio da mesma qualquer reconhecimento de um conceito de interesse processual. Trata-se isso sim de um conjunto de elementos técnico-jurídicos que precedem o surgimento “oficial” do interesse processual no direito português.

O predicado “implícita” deve-se ao facto de os referidos elementos não serem expressamente reconduzidos pelo legislador ao conceito de interesse processual, por ele sequer consagrado.

Finalmente, em consequência da inexistência daquela recondução, qualquer individualização que hoje se faça do requisito civilista da violação e ameaça do direito subsequente inserção nas malhas do conceito de interesse processual, a chamar-se de “pré-concepção” do interesse processual terá que se dizer inconsciente, na medida que não inexistia qualquer nexo volitivo por parte da ciência jurídica nacional na associação entre aquele conteúdo e o conceito em causa.


5. A “tentativa” de autonomização do interesse processual por FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS (1904) – razões da sua frustração

As mutações sofridas pelo conteúdo das construções jurídicas são normalmente produto de uma complexa e paulatina evolução ao longo dos tempos.

 Não se exceptua a este princípio o surgimento da figura do interesse processual no Direito Português. Com efeito, o processo de autonomização do interesse processual no nosso direito não ocorreu de forma instantânea, sendo antes resultado de um conjunto de transformações ocorridas ao longo de um lapso temporal considerável.

Dos registos históricos do interesse processual no ordenamento jurídico português resulta, como infra analisaremos, que o fenómeno da sua autonomização enquanto pressuposto processual distinto da legitimidade se deve a dois juristas em particular – o Professor e Advogado ADELINO DA PALMA CARLOS e o Professor MANUEL DE ANDRADE.

O recurso a uma investigação mais apurada permite concluir, no entanto, que outro jurista nacional estivera bem próximo de operar, entre nós, a autonomização do interesse processual nos primórdios do século passado.

Já em 1904, FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS ([24]) conferia relativa autonomia ao interesse (em agir) ([25]) em relação ao pressuposto da legitimidade. O então juiz do Tribunal da Relação de Lisboa ([26]), reconhecendo à data as dificuldades advindas da inexistência de um texto que apresentasse um critério seguro de determinação das partes legítimas em determinada acção, refutou a tese, sustentada à data por alguns Autores, e inclusive mais tarde por ALBERTO DOS REIS ([27]), segundo a qual «a legitimidade das partes promana do interesse que elas têm no pleito» (itálico nosso) ([28]). Ao pôr em causa aquela que era no Direito Português uma das grandes orientações sobre o conteúdo do pressuposto da legitimidade das partes – e que se pode considerar pioneira no que à “tentativa” de autonomizar a legitimidade do interesse em agir – o magistrado Português assumia não só uma atitude claramente vanguardista ([29]).

Escreve, há mais de um século, FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS ([30]), em jeito de censura à tese supra referida, - «nem sempre os litigantes que teem interesse nesse [pleito], são partes legítimas» (itálico nosso). A pretensão de autonomia do interesse em agir, que se colhe da doutrina empreendida pelo Autor, tem a sua esfera de relevância reservada à verosimilhança do silogismo, hoje indubitavelmente reconhecido na doutrina, nos termos do qual a legitimidade não se confunde com o interesse em agir, logo ter interesse em agir não significa ter legitimidade ([31]).

Acontece que a perspectiva do Autor, embora assente na separação expressa entre legitimidade e interesse, acaba por outorgar àquela um incompreensível e repugnante poder aglutinador em face deste último. Neste contexto, existindo legitimidade, seria seguro concluir-se que existiria interesse em agir. Ora, é aqui que impera o grande erro que irá obstar à autonomização do interesse relativamente à legitimidade.


6. Autonomização do interesse processual no Direito Português por PALMA CARLOS (1940) e MANUEL DE ANDRADE (1956)

Com o surgimento do actual Código de Processo Civil em 1961, o interesse processual manteve-se à semelhança do que acontecia no anterior Código de 1876 alheio a qualquer consagração legislativa expressa.

O silêncio legislativo não persuadiu, todavia, em absoluto os nossos doutrinadores. É, no entanto, minimamente sintomático de que a nobre missão de autonomizar o interesse em agir, no direito português, só poderia estar reservada à doutrina processualista.

O feito já foi imputado ([32]) a dois doutrinadores em especial – PALMA CARLOS ([33]) e MANUEL DE ANDRADE ([34]), autores que, embora se tenham pronunciado favoravelmente à propriedade do interesse processual em períodos temporais cronologicamente afastados (1940 e 1956, respectivamente), são considerados os “padrinhos” do instituto no direito processual civil português, pois foram aqueles que pioreiramente lhe reconheceram autonomia técnica.

A atribuição da autonomização do interesse processual no nosso ordenamento jurídico àqueles doutrinadores, assenta fundamentalmente em dois pressupostos. Vejamos.

I) O pressuposto histórico. Está, pois, aqui em causa um critério de índole cronológica, baseado na convicção científica de que os anos de 1940 (com Palma Carlos) e (como Manuel de Andrade) e 1956 foram as datas exactas que assinalam os dois momentos em que se tratou dogmaticamente pela primeira vez o interesse em agir como um pressuposto autónomo da legitimidade.

II) O pressuposto de influência doutrinal. Este aspecto relaciona-se com um entendimento segundo o qual aqueles Autores terão dado o “exemplo” aos que posição idêntica posteriormente adoptaram na doutrina portuguesa. Neste sentido, a contribuição doutrinal pelos mesmos Autores oferecida teria sido o factor de popularização que o conceito teria nas décadas seguintes, quer nos manuais, quer na jurisprudência. Apresenta naturalmente uma certa correlação causal com o pressuposto histórico, porquanto, a ideia de que Palma Carlos e Manuel de Andrade terão influenciado decisivamente a doutrina com a sua visão de ruptura no que tange ao interesse processual não é alheia à convicção de que foram estes pioneiros a assumir tal posição entre nós.

Os dois Autores supra referidos são considerados, por outra perspectiva, os representantes paradigmáticos da superação da associação errónea que durante muito tempo na doutrina portuguesa se estabeleceu entre legitimidade e interesse processual ([35]).

Em 1940, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1876, PALMA CARLOS era então o primeiro jurista português a abrir a porta ao interesse processual no nosso direito processual civil. Teve, pois, o mérito de, à revelia da restante doutrina portuguesa, reconhecer autonomia a uma figura jurídica que era já reconhecida pelos mais evoluídos sistemas jurídicos europeus.

Porém, a postura conservadora da doutrina nacional não permitiria que nos anos próximos alguém viesse corroborar aquela posição. Ter-se-ia mesmo que esperar dezasseis anos para que surgisse na literatura portuguesa uma posição favorável à autonomia do interesse processual. Com efeito, só em 1956 – ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1939 – é que o impulso inovador empreendido por PALMA CARLOS viria a surtir algum efeito no pensamento da doutrina, persuadindo o pensamento de MANUEL DE ANDRADE ([36]). Em face da postura teimosamente silente do legislador relativamente à admissibilidade e reconhecimento autónomo do interesse processual, coube ao Prof. de Coimbra o papel de catalisador do fenómeno de “popularização” que o conceito teria daí em diante na nossa literatura ([37]).


7. Consagração do interesse processual no Anteprojecto de MANUEL DE ANDRADE ao Código Civil de 1967

Depois da proximidade alcançada pelo Código de SEABRA relativamente conteúdo do interesse em agir nos moldes da corrente alemã do interesse-necessidade, da “tentativa” frustrada da sua autonomização por FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS, da sua autonomização por PALMA CARLOS e MANUEL DE ANDRADE e da sua consagração no Anteprojecto e Projecto do Código de Processo Civil de 1961, da Comissão VARELA, viria ainda a Ciência Jurídica Portuguesa a testemunhar a sua consagração no Anteprojecto do Código Civil de 1967 de MANUEL DE ANDRADE ([38]).

Para além das experiências relativas aos trabalhos preparatórios do Código de Processo Civil de 1961, de que a figura do interesse em agir foi objecto, por iniciativa da Comissão liderada por ANTUNES VARELA, também o Anteprojecto que esteve na base do Código Civil de 1967 ([39]), da autoria de MANUEL DE ANDRADE, lhe fez referência expressa no § 1.º ([40]).

Apesar do tratamento legislativo da figura do interesse processual, atenta a sua índole adjectiva, constituir uma tarefa privativa dos processualistas e, cuja consagração e regime jurídico estão reservados aos códigos processuais, a versão primitiva do nosso Código Civil tomou, por iniciativa de MANUEL DE ANDRADE, a ousadia de se subrogar nessa competência.

Aquela ingerência civilista não era, todavia, singular em face do direito estrangeiro.Com efeito, Código Civil Brasileiro de 1919 exigia a presença de interesse processual ao dispor no seu art. 76.º, que «Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico ou moral» ([41]).

Ora, o Anteprojecto do Código Civil vigente, na esteira do Código de Seabra ([42]), viria a colocar sobre a alçada da tutela civil as situações quer de ofensa aos direitos subjectivos, quer de mero receio de que a mesma se concretize, pondo em relevo a exigência de que aquele fosse suficientemente sério ([43]) para justificar o interesse em agir. Como dá nos dá conta PAULO MOTA PINTO ([44]), «Em Portugal, o Anteprojecto de Manuel de Andrade referia já, no § 1.º, que a protecção da lei abrangia as ofensas meramente receadas, se o receio for bastante sério para legitimar a necessidade de tutela jurídica» (itálico nosso).

Adoptando uma concepção claramente influenciada pela corrente germânica do interesse-necessidade, assente na construção do interesse processual enquanto necessidade de tutela jurídica (rechtsschutzbedürfnis), o Anteprojecto de MANUEL DE ANDRADE reflectia, assim, a leitura que o Autor retirava do conteúdo do instituto ([45]) e que iria durante muito tempo [e ainda continua (!) a] nortear diversos outros Autores ([46]) nacionais e magistrados ([47]) dos nossos tribunais.


8. A consagração no Anteprojecto e no Projecto do Código de Processo Civil de 1967 da Comissão VARELA

Vencidos os preconceitos dogmáticos decorrentes da confusão que há muito se vinha estabelecendo no Direito Português, entre o interesse em agir e a legitimidade, pela primeira vez aquele instituto ganhava entre nós, pelas vozes de PALMA CARLOS e MANUEL DE ANDRADE um relevo próprio, sem qualquer paralelo no passado ([48]).

Embora se tratasse, à época, de uma nova figura jurídica, sem tradição no nosso processo civil, emanada pelo foro doutrinal e sem um apoio seguro na lei ([49]), o próprio legislador não se mostrou indiferente àquele panorama.

Assim, o interesse processual viria a ser consagrado expressamente no Anteprojecto do Código de Processo Civil de 1961 ([50]), elaborado pela Comissão de Revisão liderada peço Professor ANTUNES VARELA, da qual fizeram parte, entre outros, os juízes conselheiros LOPES CARDOSO, JOSÉ OSÓRIO, EDUARDO COIMBRA, DIAS FREIRE e o advogado e professor universitário PALMA CARLOS ([51]) [cfr. arts. 17.º, alínea e), 99.º, 100.º, n.º 3 e 537.º, n.º 2] e posteriormente aperfeiçoado ([52]) no Projecto da autoria da mesma Comissão [cfr. arts. 19.º, alínea e), 100.º, n.º 3 e 518.º, n.º 2] ([53])

Dispunha o artigo 99.º do Anteprojecto do CPC – “Há interesse processual na acção sempre que a situação de carência da parte justifica o recurso às vias judiciais”. Esta noção era, como ressalta claramente à vista, influenciada pelas premissas de uma das grandes correntes dogmáticas existentes sobre o interesse processual – a corrente alemã do interesse-necessidade.

De outro ângulo, embora a pretensão de consagração do interesse processual, enquanto necessidade de tutela jurídica no Código Civil não tenha logrado efeito na redacção definitiva do diploma em 1967, o substrato do pressuposto assente na necessidade de recurso ao processo e aferido pela situação de carência de tutela jurídica, nos moldes já anteriormente traçados no MANUEL DE ANDRADE ([54]), foi aproveitado pela Comissão de Redacção ao Código de Processo Civil de 1961 ([55]).

Todavia, pese embora a incompletude de que, na nossa óptica, padece a letra do art. 99.º do Anteprojecto, este preceito não permaneceu, à semelhança de todos os outros que lhe diziam respeito, na redacção final do actual CPC.

Apesar disso, julgámos ter o processo civil português colhido alguns louros da mera previsão do interesse processual nos pergaminhos do CPC. À parte o facto de o texto do art. 99.º ter constituído a base de outros diplomas normativos, quer nacionais ([56]), quer estrangeiros ([57]), a consagração legal do interesse processual terá certamente contribuído para sensibilizar a ciência jurídica portuguesa no que tange à admissibilidade do instituto no nosso processo civil.


9. Autonomização legislativa do interesse processual em 1998, 1999 e 2002

A não consagração do interesse processual pelo legislador processual civil no actual Código de Processo Civil não impediu a sua consagração noutros sectores da legislação portuguesa.

Com efeito, as dúvidas que contendiam com a questão da autonomia entre a legitimidade e o interesse em agir e que terão perturbado a consagração deste último pelo legislador processual civil em 1961, desfizeram-se cerca de 40 anos, para o legislador processual penal e para o legislador processual administrativo.

Em 1998, o Código de Processo Penal era o primeiro diploma normativo português a fazer referência expressa ao interesse em agir. Dispõe, sob epígrafe «Legitimidade e interesse em agir», o n.º 2 do art. 401.º, por força da alteração fomentada pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto de 1998 ([58]), que «Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir» (itálico nosso).

O CPP abre, deste modo, portas ao interesse em agir no Direito Processual Penal Português, no que respeito aos recursos, e já não no que diz respeito à promoção do processo, matéria onde a sua aplicação é deveras controvertida ([59]). No entanto, àquela alteração legislativa não pode deixar de ser reconhecido um importante papel de censura legislativa a relativo sector da jurisprudência que ainda identificava o interesse em agir com a legitimidade ([60]).

O reiterar legislativo da autonomia do interesse processual teria continuidade pela mão ao legislador processual desportivo consagrando em 1999 o interesse processual no Regimento do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol Profissional ([61]). Segundo o art. 24.ª daquele diploma, «Há interesse processual na acção sempre que a situação de carência da parte justifique o recurso às vias judiciais». Trata-se, como é evidente, da noção avançada pelo art. 99.º anteprojecto do CPC elaborado pela Comissão Varela e a que fora adoptada pelo Código de Processo Civil de Macau ([62]).

Semelhante papel viria a ter o legislador processual administrativo em 2002, consagrando o interesse processual para as acções de simples apreciação, no CPTA. Reza o art. 39.º daquele diploma, sob a epígrafe «Interesse processual em acções de simples apreciação» aprovado pela Lei 15/2002 de 22 de Fevereiro de 2002, que «Os pedidos de simples apreciação podem ser deduzidos por quem invoque utilidade ou vantagem imediata, para si, na declaração judicial pretendida, designadamente por existir uma situação de incerteza, de ilegítima afirmação por parte da Administração, da existência de determinada situação jurídica, ou o fundado receio de que a Administração possa vir a adoptar uma conduta lesiva, fundada numa avaliação incorrecta da situação jurídica existente».

Todavia, uma interrogação subsiste – por que razão o legislador processual civil ainda não consagrou o interesse processual? Esta é uma questão para a qual não temos resposta…


Notas

([1]) No sentido de uma «lenta elaboração» do direito, vide CAMPOS LIMA, O Estado e a Evolução do Direito, Livraria Ailland e Bertrand, Lisboa, 1914, p. 6.

([2]) Cfr. JÜRGEN SCHMIDT, Privatrecht und Gesellschaftsordnung, RTh 6, 1975, p. 33; MENEZES CORDEIRO, «Evolução Juscientífica dos Direitos Reais», in R.O.A, 1985, p. 71.

([3]) Cfr. MENEZES CORDEIRO, «Evolução…», p. 71.

([4]) Considerando que as origens doutrinárias do interesse processual na doutrina portuguesa tiveram forte eco no direito brasileiro, embora sem especificar essa relevância, cfr. ANTONIO CARLOS FONTES CINTRA, Interesse Processual em Chiovenda: antes e hoje, Provas Complementares de Doutoramento em Ciências Jurídicas (Processo Civil) Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, p. 6. Este é um dado que nos parece desprovido de qualquer veracidade, porquanto além de não ser visível em que é que a construção do interesse processual pela doutrina portuguesa terá influenciado a doutrina brasileira, a sua autonomização no direito brasileiro ocorreu primeiramente do que no direito português. Com efeito, o rigor científico do dado avançado pelo Autor supra citado surge abalado quando nos confrontamos com abordagens doutrinais do interesse em agir na doutrina brasileira ainda no final do século XIX, o que na doutrina portuguesa não sucedia. Embora só com o CPC de 1939 (art. 2.º) o interesse em agir tenha logrado consagração expressa, a sua admissibilidade no Direito Brasileiro remontava já a um período anterior mediante construção doutrinária a partir dos escolhos justinianeus. Cfr. JOÃO MONTEIRO, Programma do Curso de Processo Civil ou Apontamentos para as Lições da 3.ª Cadeira do 4.º anno da Faculdade de Direito de S. Paulo, vol. II, Companhia Industrial de S. Paulo, S. Paulo, 1900, pp. 23 ss; Theoria do Processo Civil e Commercial, Duprat e C., São Paulo, 1912, pp. 103 ss.; TEIXEIRA DE FREITAS, Consolidação das Leis Civis, vol. I, Senado Federal, Brasília, 2003, p. XCI.

([5]) Perfilhamos nesta tarefa, quer no que diz respeito à metodologia de abordagem histórica do direito (investigação dos precedentes das instituições e princípios jurídicos no passado), quer no que concerne à sua finalidade (descoberta das razões que justifiquem a juridicidade vigente), ALMEIDA COSTA, História do Direito Português, 3ª ed. (reimp.), Almedina, Coimbra, 2005, p. 28.

([6]) Cfr. Metahistory – The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1975, passim.

([7]) Referindo-se a uma função legitimadora da história do direito, vide ANTÓNIO M. HESPANHA, Poder e Instituições no Antigo Regime, Cosmos, Lisboa, 1992, p. 12.

([8]) Cfr. BERRIAT-SAINT-PRIX, Cours de Procedure Civile, 1821, p. 195.

([9]) As Ordenações Filipinas estiveram em vigor desde 1603, sendo posteriormente confirmadas por D. João IV.

([10]) Cfr. FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, p. 34.

([11]) A individualização do fundamento do interesse processual que contende com a protecção dos interesses do réu por referência ao objectivo de evitar prejuízos e incómodos é feita actualmente entre nós por MONTALVÃO MACHADO/PAULO PIMENTA, O Novo Processo Civil, p. 81.

([12]) Cfr. Noções…, p. 82.

([13]) Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções…, cit. p. 82.

([14]) Cfr. Doutrina das Acções Acommodada ao Foro de Portugal, 2.ª ed., Na Impressão Régia, Lisboa, 1824, p. 105.

([15]) À semelhança do que acontecia no Direito Romano com a doutrina do interesse na prestação e que iria ser reiterado na construção do interesse (enquanto) processual pelos juristas alemães no âmbito da corrente do interesse-necessidade (rechtsschutzbedürfnis).

([16]) O arbitramento do interesse do credor pelo prejuízo – além de apresentar relativa similitude com a doutrina que viria a caracterizar o interesse em agir por referência à efectiva violação do direito, ao incumprimento e ao dano – refecte-se analogicamente na doutrina expendida pelo n.º 2 do art. 26.º, do CPC, que dispõe que «O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha» (itálico nosso).

([17]) Cfr. CORRÊA TELLES, Doutrina das Acções…, p. 105, nota 2.

([18]) Cfr. Instituções de Direito Civil Portuguez, Tomo I, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1867, cit. pp. 83-84.

([19]) Cfr. DIAS FERREIRA, Código de Processo Civil Annotado, I, Lisboa, 1887, comentário ao art. 281.º; Sobre o requisito do interesse no CPC de 1876, cfr. ALBERTO DOS REIS, Processo Ordinário e Sumário, I, Coimbra, 1928, p. 250 ss..

([20]) Cfr. BELEZA DOS SANTOS, José, A Simulação no Direito Civil, Coimbra 1955, p. 11.

([21]) Cfr. A Simulação…, cit. p. 12.

([22]) Em sentido próximo qualificando de tradicional o fundamento ou ratio do interesse processual quando fundado na afirmação de um estado de facto lesivo do direito do autor, cfr. DIOGO PEREIRA, Interesse Processual na Acção Declarativa, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 37; CARPI/TARUFFO, Commentario Breve al Codice di Procedura Civile, Padova, Cedam, 2002, p. 294.

([23]) Cfr. ponto 2. Apesar de não estar individualizado no Direito Português, não se pode ignorar o legislador do século XlX manifestava já subtilmente preocupações que contendem com a economia processual, ao condicionar a proposição de uma acção judicial à sujeição prévia das partes à conciliação, salvas os casos previstos na lei. Cfr. DUARTE NAZARETH, Elementos de Processo Civil, Coimbra, 1863. Igual disposição pretendeu consagrar Alexandre de Seabra no seu projecto do Código Civil. Cfr. ANTÓNIO LUIZ DE SEABRA, Código Civil Portuguez – Projecto redigido por António Luiz de Seabra, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1858, p. 638, ao dispor que: «Nenhuma acção pode ser proposta em Juizo contencioso sem que seu objecto tenha sido previamente submettido a conciliação, salvas as excepções declaradas no Código de Processo». Contra a exigência da conciliação prévia naquele período histórico, vide Lopo Vaz de SAMPAIO E MELLO, Estudos sobre Organização Judiciária – Refutação do Juizo Conciliatório, vol. I, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1868, p. 7 ss..

([24]) Cfr. Sentenças (Direito e Processo Civil), Lisboa, 1905, p. 222. No texto reportamo-nos cronologicamente ao ano de 1904, no entanto citamos a obra de 1905, uma segunda edição da das famosas Sentenças, motivada pelo sucesso da primeira no ano anterior.

([25]) O Autor não fala expressamente em “interesse em agir”, utilizando tão-somente a expressão “interesse”, à semelhança aliás de alguma doutrina francesa que apenas se reportava ao intérêt.

([26]) Francisco José de Medeiros chegou inclusive a ser Presidente quer do Tribunal da Relação do Porto, quer do Supremo Tribunal de Justiça.

([27]) Cfr. Processo Ordinário e Sumário, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1928, pp. 250 ss..

([28]) Cfr. FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS, Sentenças…, cit. p. 222.

([29]) A obra doutrinal de Francisco José Medeiros, da qual consta as famosas “Sentenças”, pautou-se aliás pelo vanguardismo no que concerne a outras matérias jurídicas, designadamente a admissibilidade da fiscalização da inconstitucionalidade orgânica pelos tribunais. O juiz viria a ser, a par com Afonso Costa, Alberto dos Reis e Marnoco e Souza, um dos primeiros seguidores da corrente favorável a essa mesma fiscalização. Cfr. ANTÓNIO ARAÚJO, «A Construção da Justiça Constitucional Portuguesa: o nascimento do Tribunal Constitucional», in Análise Social, vol. XXX, (134), 1995 (5.º), pp. 884-885.

([30]) Cfr. FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS, Sentenças…, cit. p. 222.

([31]) O referido silogismo tem, todavia uma utilidade restrita ao plano de entendimento da distinção teórica bem como da relação que ainda existe entre o interesse processual e a legitimidade. Na prática, a aferição do interesse processual é póstuma à da legitimidade, só existindo se esta se fizer presente no caso sub judice. Deste modo, e conquanto que para que se chegue a um juízo positivo de interesse processual em determinada acção é preciso que esteja verificado o pressuposto da legitimidade, ter interesse em agir (no plano da funcionalidade prática do instituto) acaba por significar que existe ab initio legitimidade. Assim, no plano empírico, dir-se-á que a legitimidade não se confunde com o interesse em agir, mas a sua aferição pressupõe a existência de legitimidade.

Colocando em relevo a verosimilhança da ideia veiculada pelo silogimo em análise, oitenta anos mais tarde, cfr. ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual…, p. 181, nota 2.

([32]) Nomeadamente pela Comissão de Revisão ao Código de Processo Penal de 1998. Cfr. RUI PEREIRA, Actas da Comissão de Revisão ao Código de Processo Penal imposta pela Reforma instaurada por via da Lei 59/98 de 25/08, p. 239. Também alguma jurisprudência tem reconhecido aos dois Autores citados o mérito de autonomizar o interesse processual. Cfr., a título de exemplos o Ac. RL de 10 de Setembro de 2007 (proc. n.º 7923/2007-5, relator Vieira Lamim), disponível em www.dgsi.pt; Ac TC (proc. n.º 3/92, relator Sousa e Brito), disponível em www.pgrl.pt.

([33]) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Procural, Lisboa, 1940, p. 132.

([34]) Cfr. Noções…, pp. 79-80.

([35]) Não se trata, porém, de uma superação absoluta, mas tão só em termos maioritários, porquanto ainda se verificou num período posterior quem identificasse a legitimidade com o interesse processual, como foi o caso de TEIXEIRA DE SOUSA («Legitimidade Singular…», pp. 75 ss..) e é actualmente o caso de ANA PRATA (Dicionário Jurídico…, p. 787).

([36]) Até então o ilustre Professor, à semelhança de Alberto dos Reis, perspectivava o interesse inserido na legitimidade das partes, chegando mesmo a utilizar, em determinadas passagens a expressão “legitimidade-interesse”. Cfr. MANUEL DE ANDRADE, «Algumas Notas sobre a Legitimidade das Partes nas Acções Anulatórias de Partilhas» – Acórdão de 15 de Maio de 1928,in Boletim da Faculdade de Direito, ano X, Coimbra Editora, Coimbra, 1926-1928, pp. 607, 608, nota 8, e 609.

([37]) Seguir-lhe-iam o rasto no que toca a autonomização do interesse processual, CASTRO MENDES em 1978 (Apontamentos das Lições, 1978/79, A.A.F.D.U.L., vol. II, págs. 187 e ss,) ANSELMO DE CASTRO, em 1982, ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA em 1985, entre outros.

([38]) Para uma leitura do Anteprojecto, vide MANUEL DE ANDRADE, «Esboço de um Anteprojecto de Código das pessoas e da família» in BMJ 102, 1961. Embora a data de realização do Anteprojecto ao Código Civil de Manuel de Andrade esteja subtraída aos registos históricos, é sabido pelos que foi antes de 1958, data do seu falecimento. Como nos relata MENEZES CORDEIRO («Os Direitos de Personalidade na Civilística Portuguesa», in R.O.A., p. 1242, nota 55) o Anteprojecto não está datado, tendo sido publicado no BMJ, ao que tudo indica, contra a vontade do próprio Autor.

([39]) Sobre as origens do Código, vide LUIS CORREIA DE MENDONÇA, As Origens do Código Civil de 1966: esboço para uma contribuição, in Análise Social, Vol. XVIII, (72-73-74), 1982, 3.º, 4.º, 5.º, p. 829-867.

([40]) Cfr. PAULO MOTA PINTO, «Direitos de personalidade no Código Civil português e no Novo Código Civil brasileiro», in Revista da Ajuris, Vol. 32, n.º 96, dez. 2004, p. 436.

([41]) No sentido da consagração do interesse processual pelo preceito, cfr. JOSÉ DE AGUIAR DIAS, Da Responsabilidade Civil, vol. II, Forense, 1979, p. 446; ORLANDO DE ASSIS CORRÊA, Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, Aide Editora e Comércio de Livros, 1983, p. 28.

([42]) Veja-se as considerações expendidas, a respeito da exigência da violação ou ameaça do direito como condição da concessão das acções no Código de Seabra, por BELEZA DOS SANTOS, A Simulação …, p. 12.

([43]) A seriedade do receio veiculada pelo preceito parece referir-se à objectividade da incerteza, enquanto substrato do interesse em agir nas acções de simples apreciação, não obstante ter o Autor do Anteprojecto nos seus escritos aposto a qualidade de “sério” ao prejuízo potencialmente resultante da existência de uma dada incerteza. Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções…, p. 81.

([44]) Cfr. «Direitos de personalidade…», cit. 436.

([45]) Cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções…, p. 79, de onde decorre a caracterização clássica do interesse processual como estrita necessidade de recorrer ao processo.

([46]) Como é o caso, designadamente, e salvo algumas nuances, de LEBRE DE FREITAS, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, Coimbra, 1984, p. 193, nota 55; Introdução ao Processo Civil – Conceitos e Princípios Gerais, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 28, nota 17; ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual…, p. 179; LUSO SOARES, Processo Civil de Declaração, Coimbra, 1985, p. 443; PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, Almedina, Coimbra, 2007, p. 113; REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa…; LEBRE DE FREITAS/MONTALVÃO MACHADO/RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, n.º 3 da anotação ao art. 449.º, n.º 4.

([47]) Cfr., a título de exemplo, o Ac. da RC, de 05.11.2009, proc. n.º 215/09.6TTTMR.C1, Rel. Serra Leitão, in www.dgsi.pt.

([48]) Até então contributo de FRANCISCO JOSÉ DE MEDEIROS (Sentenças…, p. 222) fora possivelmente aquele que mais próximo esteve de conferir autonomia ao interesse processual.

([49]) Apesar dos esforços de MANUEL DE ANDRADE (Noções…, p. 82), um dos mentores do interesse processual no nosso direito, em, por um lado, demonstrar a sua decorrência implícita da doutrina preconizada por alguns artigos do CPC (662, n.º 3, 449.º, n.º 2) e de ter, e, por outro pelo menos indagado sobre essa decorrência de alguns outros preceitos do mesmo diploma (arts. 26.º e 322.º), não era evidente que daí se pudesse retirar uma recepção clara àquele pressuposto no Direito Português.

([50]) Cuja versão final viria a ser aprovada pelo DL n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961.

([51]) Cfr. MONTALVÃO MACHADO/PAULO PIMENTA, O Novo Processo Civil, p. 22.

([52]) Como refere DIOGO PEREIRA, Interesse Processual…, p. 28, nota 30.

([53]) Cfr., a propósito, ANTUNES VARELA, «Linhas Fundamentais do Anteprojecto no Novo Código de Processo Civil», in RLJ, ano 120 (pp. 195, 296, 359 ss.), e ano 121 (pp. 11, 40, 70, 129, 161 e 198 ss.); «Do Anteprojecto ao Projecto do CPC», in RLJ, ano 122 (pp. 97, 129, 161, 193, 229, 258, 294, 323, 357 ss.) e ano 123 (pp. 5, 33, 74 e 97 ss.); RIBEIRO MENDES/LEBRE DE FREITAS, «Parecer da Comissão de Legislação da Ordem dos Advogados sobre o Anteprojecto do Código de Processo Civil», in R.O.A., ano 49, vol. II, 1989, p. 623.

([54]) Para o Autor (Noções…, cit. p. 79) o interesse processual «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judiciária».

([55]) O próprio Antunes Varela, presidente da Comissão, deixou na sua obra patente o entendimento do interesse processual como necessidade de recorrer aos tribunais, denotando inclusive especial simpatia pela denominação germânica necessidade de tutela judiciária, como se pode ver em ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/ SAMPAIO E NORA, Manual…, p. 179; ANTUNES VARELA/MARIA DOS PRAZERES BELEZA, «Cláusula de Exclusão de Sócios em Estatutos de Sociedades», in CJ, 12, 1, 1987, p. 10. Uma diferença clara ressalta, no entanto, do objecto por referência ao qual se afere a carência de tutela. Se para MANUEL DE ANDRADE (Noções…, p. 79), a referida carência se referia ao direito do autor, para a Comissão Varela a mesma reporta-se à situação jurídica do autor. Em local apropriado teceremos considerações sobre a propriedade deste último entendimento em relação ao primeiro. [remissão texto]

([56]) Referimo-nos à consagração do interesse processual no art. 24.º do Regimento do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol.

([57]) Tem-se aqui em vista a consagração do interesse processual no art. 72.º do CPC de Macau.

([58]) Para uma breve análise sobre algumas das alterações levadas a cabo por aquele diploma, vide JOAQUIM PIRES DE LIMA, «Alguns comentários à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que alterou o Código de Processo Penal», in R.O.A., ano 58.º, vol. I, Janeiro de 1998, pp. 589 ss..

([59]) Considerando, na doutrina brasileira, que o interesse processual não encontra aplicação no processo penal, cfr. NUNES DA SILVEIRA, O Interesse de agir e a sua (In)adequação ao Direito Processual Penal, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Panamá, Curitiba, 2008, pp. 177 ss.. A questão já havia sido colocada por Aldo ATTARDI (L’interesse ad agire, Cedam, Padova, 1958, p. 276), que manifestou igual opinião.

([60]) No sentido de que o legislador autonomizou o interesse em agir no n.º1 do art. 401.º, do CPP, cfr. o Assento n.º 88/99, do STJ, in Diário da República, I Série-A, n.º 185 de 10.08. 1999, p. 5194.

([61]) Aprovado na Sessão de 28 de Agosto de 1999, da Assembleia Geral Extraordinária de 31 de Julho 1999.

([62]) Para um estudo do regime jurídico do interesse processual no direito processual civil Macaense, vide TEIXEIRA DE SOUSA, «O Interesse Processual no Código de Processo Civil de Macau, in Boletim da Faculdade de Direito, 2000, pp. 89 ss..


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Sérgio. Um contributo ao estudo da génese do interesse processual no Direito português. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3165, 1 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21190. Acesso em: 29 mar. 2024.