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Populações tradicionais e territórios no Brasil

Populações tradicionais e territórios no Brasil

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O Sistema Nacional de Unidades de Conservação não prioriza a compatibilização entre a necessidade de aumentar as áreas de proteção ambiental e a presença de populações tradicionais na maioria das áreas de preservação.

As comunidades extrativistas buscam realizar uma integração entre o tradicional e o moderno por meio de uma articulação da luta pelos seus conhecimentos e sistemas de manejo com formas legais de permanência nos territórios. Essas populações indígenas e não-indígenas reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza (Diegues, 2001: 27, 121). Como afirma Rinaldo Arruda, são essas populações que

“apresentam um modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltado principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado em uso intensivo de mão de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas de conhecimentos patrimoniais e, habitualmente, de base sustentável. Essas populações – caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e outras variantes – em  geral ocupam a região há muito tempo, não têm registro legal de propriedade privada individual da terra, definindo apenas o local de moradia como parcela individual, sendo o restante do território encarado como área de uso comunitário, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente” (Arruda, 2000: 274).

Um exemplo de interação entre essas populações e a natureza pode ser obtido das pesquisas mais recentes realizadas na Amazônia. Nos últimos anos a mudança mais relevante na área da ecologia diz respeito à ênfase crescente na correlação entre a diversidade ambiental na Amazônia e a atividade humana. Estudos têm comprovado que várias zonas de floresta foram objeto de ocupação pré-histórica, como atestam os sítios encontrados, e que representam, na Amazônia brasileira, no mínimo 12% de toda a terra firme (Viveiros de Castro, 2002: 325). Esses solos são favorecidos pelas populações atuais, caracterizam-se por alta fertilidade e são de extrema importância para a economia indígena. Desta forma, as pesquisas levaram à conclusão de que boa porção da cobertura vegetal da Amazônia é o resultado de milênios de manipulação humana.

Constatar que áreas de maior biodiversidade na floresta amazônica foram frutos da atividade humana leva a questionar modelos que pretendem conservar a floresta intocada, mediante remoção de suas populações locais. Muitas das vezes, a criação de áreas de proteção ambiental impede que as populações nelas se mantenham, ocasionando sua migração para as cidades. De uma maneira geral, as populações locais são pouco ouvidas na formulação de políticas ambientais.

 


A legislação brasileira

As unidades de conservação integrantes do Sistema Nacional de Unidades de Conservação dividem-se em dois grupos, e podem ser unidades de proteção integral ou unidades de uso sustentável. Nas unidades de proteção integral, admite-se apenas o uso indireto dos recursos naturais, enquanto nas unidades de uso sustentável é permitido o uso sustentável dos recursos naturais.

As unidades de proteção integral são as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais, e os Refúgios de Vida Silvestre. As unidades de uso sustentável são as Áreas de Proteção Ambiental, as Áreas de Relevante Interesse Ecológico, as Florestas Nacionais, as Reservas Extrativistas, as Reservas de Fauna, as Reserva de Desenvolvimento Sustentável, e as Reservas Particulares do Patrimônio Natural.

As Áreas de Proteção Ambiental são constituídas por terras públicas ou privadas, e administradas por um Conselho com participação da população residente. As Áreas de Relevante Interesse Ecológico podem ser terras públicas ou privadas. As Florestas Nacionais, Estaduais ou Municipais são de domínio público, sendo admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, dotadas de um Conselho Consultivo, do qual podem participar as populações tradicionais residentes.

As Reservas Extrativistas são

“áreas utilizadas por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e têm como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade”.

São de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais, geridas por um Conselho Deliberativo, com a participação das populações tradicionais residentes na área. É permitida a exploração comercial de recursos madeireiros em bases sustentáveis. As Reservas de Fauna são de domínio público.

As Reservas de Desenvolvimento Sustentável são

“áreas naturais que abrigam populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica”.

São de domínio público, geridas por um Conselho Deliberativo, com participação das populações tradicionais residentes na área, sendo admitida a exploração de componentes dos ecossistemas naturais em regime de manejo sustentável e a substituição da cobertura vegetal por espécies cultiváveis. As Reservas Particulares do Patrimônio Natural são áreas privadas.

Portanto, a não ser no caso das Áreas de Proteção Ambiental e das Reservas Particulares de Patrimônio Natural, todas as outras somente são propriedade estatal. No caso das Áreas de Proteção Ambiental, das Florestas Nacionais, Estaduais ou Municipais, das Reservas Extrativistas e das Reservas de Desenvolvimento Sustentável, é admitida a permanência das populações tradicionais.

Para Diegues, o equívoco no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) está em conceber as unidades como “ilhas” interligadas entre si para constituir um sistema. Assinala que a noção de “ilhas de conservação” vem sendo criticada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) desde 1986. “O SNUC é um ‘sistema fechado’, isolado da realidade do espaço total brasileiro que tem sido amplamente degradado e ‘mal desenvolvido’ há décadas” (Diegues, 2000: 118).

O SNUC não prioriza a compatibilização entre a necessidade de aumentar as áreas de proteção ambiental e a presença de populações tradicionais na maioria das áreas de preservação. Entre os objetivos do SNUC, não existe nenhum relacionado à proteção da diversidade cultural das populações que vivem dentro das unidades de conservação ou em seus arredores. Não há uma referência para a correlação entre a necessidade de proteção da diversidade cultural e a proteção da natureza enquanto fatores interdependentes.

Foram desprezadas outras categorias adotadas pela UICN, como as “reservas antropológicas” e as “reservas da biosfera”, que foram criadas especificamente para resolver conflitos entre populações locais e os objetivos de preservação, e restringiu a ocupação pelas populações às reservas extrativistas. Estas últimas, conforme a hierarquia adotada pelo SNUC, parecem ter um papel secundário no sistema de proteção da natureza.

A emergência no cenário nacional das reservas extrativistas foi resultado de anos de lutas dos seringueiros no Acre, liderados por Chico Mendes. A proposta de reserva extrativista se consolidou entre os trabalhadores da floresta no Encontro Nacional de Seringueiros de 1985. Surgiu, primeiro, em contraposição ao modelo tradicional de colonização adotado na Amazônia pelo INCRA que, por ser orientado para a produção agrícola, implicava na divisão da terra em lotes individuais para serem explorados por unidades familiares. Os seringueiros não aceitavam essa modalidade de reforma agrária, mas não tinham elaborado uma proposta para substituí-la. Passaram, assim, muitos anos recusando a solução do INCRA e negando aquele modelo, sob o argumento principal de que não queriam se transformar em colonos. Em muitos casos, enquanto alguns aceitavam os lotes e depois eram obrigados a vendê-los e ir morar na periferia das cidades, outros permaneciam em suas colocações sem qualquer garantia de que teriam suas posses reconhecidas (Allegretti, 2002).

Por outro lado, viam a base de sua subsistência, a floresta, sendo ameaçada pelos desmatamentos sem conseguir encontrar um meio eficaz de evitá-lo a não ser realizando ações defensivas como os empates, único meio de resistir à implantação das fazendas. Assim, a Reserva Extrativista sintetizou as duas principais aspirações dos seringueiros em uma única proposta: a da regularização fundiária com a da proteção da floresta.

Em 1992, foi criado pela Portaria do IBAMA N° 22, de 10/02/92, o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT, que tem a finalidade de apoiar as populações tradicionais promovendo o desenvolvimento econômico visando a melhoria da sua qualidade de vida baseada na sustentabilidade, na cultura e nos conhecimentos por elas acumulados. A criação do CNPT foi uma inovação na trajetória do IBAMA. Sofreu rejeição de diversos setores, encontrado dificuldades devido à cultura institucional que não dava importância à preocupação com questões sociais.

Uma mudança importante no âmbito institucional ocorreu com a criação pela Lei nº 11.516/2007 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), uma autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), com a missão de administrar as unidades de conservação federais. Sua criação contou com forte pressão contrária dos servidores do IBAMA, que viam no novo órgão uma proposta autoritária e sem diálogo com a sociedade e seria responsável pela fragmentação da política ambiental.  O CNPT tornou-se um centro especializado do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Atualmente, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sócio-biodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais (CNPT) é um dos 11 centros nacionais de pesquisa e conservação do Instituto Chico Mendes, que tem como objetivos promover pesquisa científica em manejo e conservação de ambientes e territórios utilizados por povos e comunidades tradicionais, seus conhecimentos, modos de organização social, e formas de gestão dos recursos naturais, em apoio ao manejo das Unidades de Conservação federais. 

O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, conceituou povos e comunidades tradicionais, territórios tradicionais, bem como desenvolvimento sustentável. Segundo o Decreto, entende-se por “povos e comunidades tradicionais” aqueles grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Por “territórios tradicionais” compreendem-se os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.

O Decreto define “desenvolvimento sustentável” como aquele em que existe o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras. Outro Decreto, de 13 de julho de 2006, já estabelecia a competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. Mesmo sem nomear os povos e comunidades tradicionais, pela composição da referida Comissão pode-se inferir que são reconhecidos como tais os seringueiros, quilombolas, pescadores artesanais, ciganos, índios, quebradeiras de coco babaçu e caiçaras.

Outras comunidades e povos também poderão ser considerados tradicionais, uma vez que, seguindo a lógica da Convenção nº 169 da OIT, promulgada pelo Decreto nº 5.051/2004, o autorreconhecimento é um fator fundamental. Conforme a Convenção, a consciência da identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais é aplicada. Seguindo este critério, o Decreto nº 6.040/2007 afirma que é objetivo da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável, dentre outros, reconhecer, com celeridade, a autodefinição dos povos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos.

Em junho de 2003, o Partido da Frente Liberal, atual Democratas, impetrou no Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) ao Decreto nº 4887/2003, que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.

A Constituição Federal de 1988, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, previu o seguinte: “aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Na ação, é questionado o instrumento legal para a regulamentação, que segundo o DEM não poderia ser um decreto, e sim uma lei; que o Estado não poderia fazer desapropriações para transferir terras aos quilombos, mas apenas emitir títulos para as áreas ocupadas; que na autoatribuição das comunidades seria necessário comprovar a remanescência e não a descendência para a emissão dos títulos, para que se evite reconhecer direitos a mais pessoas do que aquelas beneficiadas pela Constituição Federal; e que os territórios em que a propriedade dos quilombolas deve ser reconhecida é aquela em que houve comprovação de formação dos quilombos durante o período colonial, e não aqueles em que ocorre o desempenho de suas atividades econômicas.

Durante os oito anos de vigência do decreto, já foram identificadas 1.886 comunidades de quilombos, e há outras 290 em análise. No dia 18 de abril de 2012, o Supremo apreciou a ADI 3239. O ministro Cezar Peluso, relator do processo, foi o único a manifestar seu posicionamento, considerando procedente a ação. “A desapropriação referida no decreto é de interesse social. Essa desapropriação insere-se em um dos 16 casos de utilidade pública e não de interesse social”, disse o ministro, ao apontar que o decreto apresenta uma série de inconstitucionalidades. Mesmo declarando voto pela procedência da ação, Peluso manteve a validade dos títulos emitidos às comunidades desde a entrada em vigor do decreto. Isto é, o voto do ministro não indica retroatividade. O pedido de vista feito pela ministra Rosa Weber, que pediu mais tempo para elaborar seu voto, adiou o julgamento no STF.

 


Referências bibliográficas:

ALLEGRETTI, Mary Helena (2002). A Construção Social de Políticas Ambientais – Chico Mendes e o Movimento dos Seringueiros. Tese de Doutorado. UnB-CDS.

ARRUDA, Rinaldo S. V. (2000). “Populações tradicionais” e a proteção dos recursos naturais em unidades de conservação. In: DIEGUES, Antônio Carlos (org.). Etnoconservação: Novos Rumos para a Proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: NUPAUB, Hucitec.

DIEGUES, Antônio Carlos (2001). Repensando e recriando as formas de apropriação comum dos espaços e recursos naturais. In: DIEGUES, Antônio Carlos; MOREIRA, André de Castro (org.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB, USP.

DIEGUES, Antônio Carlos (org.) (2000a). Etnoconservação: Novos Rumos para a Proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo: NUPAUB, Hucitec.

VIVEIROS de Castro, Eduardo (2002). A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac & Naify.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINHO, Marcos dos Santos. Populações tradicionais e territórios no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3235, 10 maio 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21735. Acesso em: 28 mar. 2024.