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Unificação das polícias. Usurpação de função pública.

Ausência de integração entre as polícias judiciárias e de um sistema único de informações policiais eficiente. Um atraso para a segurança pública no Brasil.

Unificação das polícias. Usurpação de função pública. Ausência de integração entre as polícias judiciárias e de um sistema único de informações policiais eficiente. Um atraso para a segurança pública no Brasil.

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Se se implementar equivocadamente a unificação das polícias nos Estados, é melhor que toda a investigação criminal seja entregue ao Ministério Público, que, embora não esteja devidamente vocacionado para isso, é o único órgão independente, capaz de enfrentar interesses obscuros de poderosos.

1. Introdução.

O objeto deste estudo é demonstrar a premente necessidade de se conferir às Polícias Judiciárias, encarregadas de promover as investigações das infrações penais no Brasil, autonomia financeira e garantias como as da inamovibilidade e independência funcional, e que, por conseguinte, a unificação das polícias representará um retrocesso para a Segurança Pública e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.


2. Da Unificação das Polícias como obstáculo ao avanço da Polícia Judiciária. Retrocesso para a persecução penal no Brasil.

Recentemente foi apresentada no Senado Federal pelo Senador da República Blairo Maggi do PR-MT a Proposta de Emenda Constitucional n. 102/2011[1] que visa alterar dispositivos da Constituição Federal para permitir à União e aos Estados a criação de polícia única. Por esta proposta, os oficiais da Polícia Militar passariam à condição de Delegados de Polícia, cargo de conteúdo ocupacional absolutamente distinto.

Eis a redação de alguns dos dispositivos legais da PEC 102/2011 apresentada no Senado Federal:

Art. 4º [...]

§ 3º. Nos concursos públicos para provimento dos cargos das carreiras de delegado de polícia e de perito de polícia, será permitida a ascensão funcional em percentual das vagas, a ser fixado em lei aos integrantes das carreiras de analista de polícia, que preencherem os requisitos legais. (grifos do autor)

[...]

Art. 6º. Na unificação das polícias, os oficiais oriundos da polícia militar e os delegados de polícia dos Estados e do Distrito Federal ficam transpostos para membro da carreira de delegado de polícia, na forma da Lei.

Inicialmente cumpre advertir para uma possível inconstitucionalidade do referido projeto de emenda que prevê a investidura em cargo público sem a necessária realização de concurso público, em total afronta ao quanto estabelecido pelo art. 37, inciso II da CRFB/88 que assim dispõe:

Art. 37 [...]

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

Discorrendo acerca do provimento em cargo, emprego ou função pública, a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2] nos ensina que:

[...] Provimento derivado é o que depende de um vínculo anterior do servidor com a administração; a legislação anterior à atual Constituição compreendia (com pequenas variações de um Estatuto funcional para outro) a promoção (ou acesso), a transposição, a reintegração, a readmissão, o aproveitamento, a reversão e a transferência.

Com a nova Constituição, esse rol ficou bem reduzido, em decorrência do artigo 37, II, que exige a aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos para a investidura em cargo ou emprego público, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.

O dispositivo trouxe algumas inovações quando comparado com o artigo 97, §1º, da Constituição de 1967:

1. [...]

2. enquanto o dispositivo anterior fazia a exigência para a primeira investidura, o atual fala apenas em investidura, o que inclui tanto os provimentos originários como os derivados, somente sendo admissíveis as exceções previstas na própria Constituição, a saber, a reintegração, o aproveitamento, a recondução e o acesso ou promoção, além da reversão ex officio, que não tem base constitucional, mas ainda prevalece pela razão adiante exposta.

[...]

A transposição (ou ascensão, na esfera federal) era o ato pelo qual o funcionário ou servidor passava de um cargo a outro de conteúdo ocupacional diverso. [...]

[...]

Portanto, deixaram de existir, com a nova Constituição, os institutos da readmissão, da transposição e da reversão [...]

E continua a doutrinadora:

A respeito da ascensão, a Consultoria Geral da República adotou o entendimento de que “com a promulgação da Constituição de 1988, foi banida do ordenamento jurídico brasileiro, como forma de investidura em cargo público, a ascensão funcional”. No corpo do parecer, da lavra do Consultor José Marcio Monsão Mollo, está dito que “estão abolidas as formas de investidura que representam ingresso em carreira diferente daquela para a qual o servidor ingressou por concurso e que não são, por si mesmo, inerentes ao sistema de provimento em carreira, ao contrário do que acontece com a promoção, sem a qual não há carreira, mas, sim, sucessão de cargos ascendentes” (Parecer nº CS-56, de 16-9-92, aprovado pelo Consultor Geral da República, conforme publicado no DOU de 24-9-92, p. 13.386-89). (grifos do autor)

No mesmo sentido foi a decisão do STF, ao declarar a inconstitucionalidade do §1º do artigo 185 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro (ADIN-245, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 13-8-92, p. 12.157).

Pelo mesmo fundamento, o STF considerou inconstitucional o instituto da transferência previsto nos artigos 8º, IV, e 23 da Lei nº 8.112, de 11-12-90, ambos suspensos pela Resolução nº 46, de 23-5-97, do Senado Federal.

Ultrapassada essa questão de índole constitucional, a unificação das polícias vai de encontro aos avanços da investigação criminal no país e, consecutivamente, aos anseios da sociedade que urge por instrumentos eficientes de combate à corrupção que se faz endêmica no Brasil.

Na última década os Delegados de Polícia Civil de todo o Brasil vêm buscando de forma vigorosa alcançar as mesmas garantias e subsídios dos membros da Magistratura e do Ministério Público, como forma legítima de aperfeiçoar a atividade de Polícia Judiciária, contribuindo, assim, para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Com efeito, recentemente a Polícia Civil do Estado de São Paulo experimentou um precioso avanço nesse campo com a aprovação unânime pela Assembléia Legislativa da Proposta de Emenda à Constituição n. 19/2011 de iniciativa do Governador Geraldo Alckmin, que conferiu profundas mudanças na carreira dos Delegados de Polícia, ao reinseri-la no âmbito das carreiras jurídicas de Estado, de onde, aliás, nunca deveria ter saído, e, principalmente, garantir independência funcional aos Delegados.

Este progresso terá reflexos positivos para a sociedade paulista com o passar dos tempos, quando se verificar a diminuição das maléficas ingerências políticas que ocorrem na condução de investigações policiais.

Atualmente sete estados já inseriram os Delegados de Polícia Civil nos quadros de suas carreiras jurídicas, são eles: Paraná, Goiás, Minas Gerais, Maranhão, Amapá, Pará e São Paulo. Com esta ação, que para os leigos pode parecer uma simples alteração legislativa, estes estados começam a fortalecer uma Instituição Pública de fundamental importância para uma persecução penal eficiente.

Sem dúvidas há outras garantias que devem ser perseguidas e alcançadas pela Polícia Judiciária, a exemplo da inamovibilidade. Sem essa prerrogativa, os Delegados de Polícia de todo o Brasil continuarão a sofrer interferências políticas no combate à criminalidade, notadamente àquela que envolva autoridades do Executivo, Legislativo e, em menor proporção, do Judiciário.

Somente a garantia da inamovibilidade permitirá que o Delegado de Polícia atue com absoluta isenção em suas investigações sem qualquer temor de, uma vez contrariando interesses de poderosos, sofrer perseguições ou punições, ainda que dissimuladas sob o manto da lotação em outra Delegacia em município distante.

A inamovibilidade é uma garantia reservada a proteger agentes políticos, assegurando-lhes o livre e independente exercício de sua função. Com isso, salvaguarda-se a própria coletividade, garantindo uma atuação pautada exclusivamente na lei. Independência funcional e inamovibilidade são garantias que devem caminhar lado a lado com determinadas carreiras de Estado.

A independência funcional, por exemplo, poderá assegurar que o superior hierárquico do Delegado de Polícia não avoque para si a presidência de um Inquérito Policial em curso, em atendimento a interesses obscuros, simplesmente para preservar seu cargo comissionado, limitando, assim, seu poder de administração.

Para se construir uma polícia investigativa realmente eficiente, fundamental para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, faz-se imprescindível, ainda, torná-la independente financeira, administrativa e funcionalmente, como é hoje o Ministério Público e, mais recentemente, a Defensoria Pública, conferindo aos Delegados de Policia, garantias semelhantes às dos magistrados.

Com autonomia financeira, possibilitar-se-ia uma melhor reestruturação das Polícias Civis, que se encontram sucateadas em praticamente todo o país por conta do descaso dos Governos Estaduais que já provaram que não sabem ou não têm interesse algum em investir na Polícia Judiciária.

A maior parte dos investimentos realizados pelos Estados na seara da Segurança Pública se dá no âmbito das Polícias Militares. Talvez porque traga maior visibilidade política. Ressalte-se, entretanto, que não se está aqui a criticar os investimentos Estatais na polícia ostensiva que são, sem dúvidas, investimentos absolutamente necessários. A advertência é para falta de uma política clara de aplicação de recursos para o aparelhamento e aperfeiçoamento da Polícia Civil.

As Polícias Civis dos Estados necessitam urgentemente de planejamento estratégico e recursos orçamentários para aparelhamento, qualificação e reciclagem de seus integrantes e, também, para a operacionalização de sua atividade-fim que é a investigação de infrações penais. Tais atividades encontram-se extremamente prejudicadas por escassez de recursos estruturais e logísticos para montar uma operação, que envolve desde o deslocamento de equipes policiais até o pagamento de diárias, sem falar de aquisição de viaturas e aparelhos tecnológicos de ponta.

O Presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, José Paulo Pires, entrevistado sobre a crise instalada na Polícia Civil, assim se manifestou:

[...]

5 – Os projetos governamentais na área de segurança pública são consistentes?

R. Quais são os projetos? Cidade da Polícia? DEDIC? Quais são os outros projetos? As polícias civis de todos os entes federados só conseguirão dar um grande salto de qualidade quando os governos federal e estaduais decidirem descentralizar a gestão financeira. De resto, projetos faraônicos não resolverão o grande problema da polícia civil nos dias atuais. A polícia civil poderia oferecer muito mais resultados em suas investigações. Isto porque não administra corretamente os seus recursos. Além disso, sua atual estrutura ou falta de estrutura impede ou dificulta a execução da sua atividade fim. Vejam o que ocorreu com a Defensoria Pública, com o Ministério Público e outras instituições que conquistaram suas autonomias financeiras. O administrador da delegacia, o Delegado Titular, não tem recursos para consertar uma fechadura. Ninguém vai tirar do bolso para consertar carro, ar-condicionado, fechadura, comprar papel ou outro material. A PCERJ tem que ter autonomia financeira.

[...]

8. O que o senhor espera da Polícia Civil?

R. A polícia civil deve atuar como uma empresa privada, respeitando os princípios da administração pública. Produção, bom atendimento, qualificação, remuneração adequada e tecnologia são itens essenciais para se realizar um adequado planejamento estratégico, tático e operacional. Acredito também que a polícia civil deva focar seus esforços na busca da excelência na sua atividade-fim, ou seja, na investigação. Deve fortalecer o processo de controle interno, inviabilizando ou combatendo transgressões disciplinares. Finalmente, deve se lançar como órgão de controle contra desvios em qualquer instituição onde se mostrem presentes.[3]

[...]

O discurso da desmilitarização das polícias ostensivas dos Estados não passa por uma indesejável unificação com a polícia judiciária. Essa é uma temática que merece estudo e discussão dissociada. Isto porque para melhor controlar a polícia encarregada da prevenção da criminalidade, que conta com um contingente que muitas vezes ultrapassa a casa dos 30 mil servidores, como nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia, faz-se recomendável sua subordinação ao Chefe do Poder Executivo estadual.

Esta é a inteligência que se extrai da interpretação sistêmica dos arts. 42, caput e 144, §6º da CRFB/88 que estabeleceram, acertadamente, que a organização das instituições militares fundamenta-se na hierarquia, disciplina e subordinação aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal.

Ao contrário, a subordinação da Polícia Judiciária ao Governo dos Estados, como previsto constitucionalmente, é extremamente prejudicial para o desempenho de suas atividades. Como exemplo desta relação perniciosa vale relembrar alguns dos mais recentes episódios em que o Poder Executivo afastou ou tentou afastar Delegados de Polícia da condução de Inquéritos Policiais em razão de investigações conduzidas pelos mesmos:

a) O governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, oficializou nesta quinta-feira, 3, a exoneração de toda a cúpula da Polícia Civil. Ao todo, 43 delegados-chefes, sete diretores de departamento e a diretora-geral, Mailine Alvarenga, foram afastados. A mudança, segundo delegados, é uma reação à divulgação de escutas telefônicas que captaram conversas de Agnelo com o policial militar e lutador de Kung Fu João Dias Ferreira, delator dos desvios de verbas no Ministério do Esporte[4];

b) O novo Diretor Geral da Polícia Federal, Leandro Daiello Coimbra, convocou para a sua sala na Superintendência da PF em São Paulo uma reunião de mais de 10 delegados. Esta reunião foi gravada. Ela ocorreu na véspera da Operação Satiagraha. Na reunião, Daiello teve destacado papel na pressão sobre o ínclito delegado Protógenes Queiroz para saber contra quem eram os mandados de prisão expedidos pelo corajoso juiz Fausto De Sanctis. Protógenes valeu-se de prerrogativa legal e recusou-se a dar o nome de quem ia prender. Só daria com a autorização por escrito do corajoso juiz Fausto De Sanctis. Participavam dessa reunião, entre outros, os delegados Troncon e Saadi.O novo DG da PF chegou a ameaçar não ceder a Protógenes o efetivo necessário para prender Naji Nahas, Celso Pitta e o passador de bola apanhado no ato de passar bola Daniel Dantas.Na gravação, fica clara a tentativa de obstrução da Operação Satiagraha.Corre hoje no MPF/SP um inquérito para avaliar exatamente essa tentativa de obstrução. Zé Cardozo, o novo ministro da Justiça, começou bem.[5];

c) A operação Monte Carlo mostrou que as ligações de cachoeira com autoridades do governo de Goiás, hoje dirigido pelo tucano Marconi Perillo, continuam fortes. Em setembro do ano passado, um delegado da Polícia Civil de Goiás, Alexandre Lourenço, concluiu um relatório de quase 500 páginas com endereços e nomes de integrantes da quadrilha que explorava jogos ilegais em Goiás. Lourenço entregou seu relatório ao então diretor-geral da polícia, delegado Edemundo Dias. O próximo passo seria solicitar à Justiça a quebra de sigilos telefônicos para chegar aos principais integrantes. Cachoeira seria, obviamente, o primeiro atingido pela investigação. Mas isso não ocorreu – Lourenço foi afastado do caso pelo delegado Dias, que também é tesoureiro do PSDB goiano, e a investigação foi interrompida.[6]

Nesse sentido, a PEC 102/2011 em tramitação no Senado Federal, contraria a perspectiva de avanço na qualidade dos serviços prestados pela Polícia Judiciária na medida em que prevê sua subordinação aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal. Isso é o que estabelece a redação do artigo 4º da referida proposta de emenda constitucional:

Art. 4º. A polícia de que trata o artigo anterior, instituição de natureza civil, instituída por lei como órgão permanente e único em cada ente federativo, essencial à Justiça, subordinada diretamente ao respectivo Governador, de atividade integrada de prevenção e repressão à infração penal, dirigida por membro da própria instituição, organizada com base na hierarquia e disciplina e estruturada em carreiras, ressalvada a competência da polícia federal, destina-se:

É preciso compreender que garantias como as da inamovibilidade e independência funcional proporcionarão condições imprescindíveis para a livre convicção motivada nos atos de polícia judiciária aos Delegados de Polícia, permitindo, deste modo, que a atividade investigativa seja desenvolvida sem interferências externas e, por conseguinte, que a persecução penal seja séria, confiável e qualificada.

Ademais, a coexistência de polícias distintas é fundamental, dentre outras razões, para se evitar efeitos deletérios do corporativismo. O controle direto que na prática a Polícia Judiciária exerce sobre a Polícia Ostensiva, ao apurar alguns ilícitos penais cometidos por seus integrantes, restará profundamente prejudicado com uma eventual unificação.

Aliás, quando o Poder Constituinte Derivado Reformador percebeu que um crime de elevada gravidade como o homicídio praticado por Policial Militar contra civil, deveria ser investigado pela Polícia Civil e julgado pela Justiça Comum e não pela Militar, a fim, justamente, de evitar a super-proteção inerente ao corporativismo e garantir a imparcialidade da decisão, alterou o texto constitucional do §4º do art. 125 da CRFB/88 através da EC n. 45/2004, que passou a ter a seguinte redação:

§ 4º. Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (grifos do autor)

De igual modo, outros crimes como o de Abuso de Autoridade, Tortura e Formação de Quadrilha quando praticados por Policiais Militares, são julgados pela Justiça Comum e não pela Justiça Militar.

Por vezes se tem ouvido falar em adotar no Brasil, o mesmo modelo de polícia de outros países, como, por exemplo, dos EUA, porém o que não se diz é que estes paradigmas também não foram capazes de alcançar a tão sonhada perfeição. E mais, bom que se diga que os EUA, em verdade, também possuem várias instituições policiais, umas distintas das outras e diferentes em cada Estado que coexistem de forma harmônica.

Fala-se em adotar estes modelos, mas não se prova sua eficiência. Não existe no Brasil nenhum estudo científico que tenha demonstrado qualquer vantagem em copiar modelos americanos ou europeus.

O Ciclo Completo de Polícia, outro tema bastante ventilado por aqueles que defendem a unificação das polícias, é um erro. Permitir que a Polícia Militar registre as ocorrências policiais nos locais onde não há Polícia Civil é razoável, porém fazê-lo onde há uma Delegacia de Polícia é prejudicial para o desenvolvimento do policiamento ostensivo e preventivo, pois mantém aquartelados diversos policiais que deveriam estar nas ruas oferecendo segurança aos cidadãos.

O Secretário de Estado da Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, em entrevista concedida ao RIO COMO VAMOS, explicitou sua intenção de desaquartelar a Polícia Militar. O lugar desses policiais é nas ruas. Em questionamento feito pela RCV, assim se manifestou o Secretário:

“[...] E entendo que sem dúvida nenhuma faltam policiais nas ruas. Se pegar a relação de policiais por habitantes, o Rio de Janeiro em comparação a outros estados não está mal. Só que essa análise tem que levar em consideração uma série de outras coisas. Você não tem aqui no Rio de Janeiro, muitas vezes nessas áreas mais conflagradas, condição de patrulhar. Patrulhar aqui no Centro é uma coisa, você pega um carro lá na Candelária e vai parar longe. Agora, em lugares que não tem acesso, onde só vai moto ou bicicleta... O Dona Marta mesmo tem uma entrada e uma saída. Como é que vai patrulhar lá dentro? Só a pé. No momento em que perde a dinâmica, que tem que capilarizar, isso exige muito policial. O Rio de Janeiro é muito denso, tudo muito apertado. Em outros lugares, até mesmo em São Paulo, você pega um carro com dois policiais e consegue cobrir uma área imensa. Então, eu acho que faltam, sim, policiais, e falta também nós melhorarmos ainda muito na questão de recursos humanos. Eu acho que o policial ainda procura muitas vezes ficar aquartelado, e mudar isso é uma luta. O Mário Sérgio (Duarte, comandante da Polícia Militar) conseguiu reduzir isso significativamente, mas nós precisamos desaquartelar cada vez mais os policiais. A polícia não precisa estar dentro dos quarteis. A polícia é prestadora de serviço.”[7] (grifos do autor)

No modelo de Segurança Pública adotado em alguns Estados da Federação, por exemplo, quando uma guarnição da Polícia Militar efetua uma prisão em flagrante, primeiro se dirige ao Quartel ou Batalhão da Polícia Militar, onde faz o registro da ocorrência durante longas e longas horas, chegando às vezes a permanecer entre 6 e 10 horas AQUARTELADA, onde fotografa o cidadão que foi preso e os materiais apreendidos para posteriormente encaminhar para sítios de notícias policiais espalhados pelo País, sem nem mesmo saber se a única Autoridade Policial competente para decidir sobre a prisão, o Delegado de Polícia, a manterá.

Muito tempo se perde tempo de forma desnecessária com esta ação e alguns Policiais Militares ainda se queixam da demora na lavratura do Auto de Prisão em Flagrante nas Delegacias, instrumentalização esta imprescindível para que o Delegado de Polícia possa formar sua convicção acerca das circunstâncias da prisão e decidir pelo encarceramento ou não do conduzido, diminuindo o risco de cometer injustiças.

Quais os prejuízos que o procedimento em referência pode trazer para a segurança pública? Primeiro, são dois ou mais policiais a menos para patrulhar as ruas e, em algumas cidades, convenhamos, esse é o único efetivo da escala. Segundo, de forma equivocada, a jurisprudência majoritária entende que o início da contagem do prazo para o encaminhamento de cópia do flagrante ao Juiz e à Defensoria Pública, se dá com a efetiva captura do conduzido e não com o encerramento do flagrante que somente ocorre com o encarceramento determinado pelo Delegado de Polícia. E isto faz, muitas vezes, com que o Delegado tenha que se apressar indevidamente para comunicar a prisão, sob pena de ser declarada ilegal e relaxada pelo Juiz.

Um dos argumentos levantados por aqueles que defendem o ciclo completo de polícia é o de justamente evitar a perda de tempo dos Policiais Militares nas Delegacias.

Ocorre que para solucionar este problema, no ano de 2005, o Código de Processo Penal foi alterado pela Lei nº 11.113/2005 que fracionou o Auto de Prisão em Flagrante em dois momentos bem distintos, passando o art. 304 do referido Diploma Legal a ter a seguinte redação:

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.[8] (grifos do autor)

Portanto, após a oitiva do condutor, primeiro procedimento a ser adotado na lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, estará o Policial Militar liberado para retornar ao seu trabalho de prevenção da criminalidade.

Ademais a questão não pode ser vista apenas sob o ponto de vista do tempo que se espera para a formalização de um flagrante, mas sim, também, e principalmente, sob o ângulo da segurança jurídica, afinal estamos falando de medida extrema e excepcional de privação da liberdade de locomoção. Não é por outro motivo que o legislador pátrio entendeu por submeter toda e qualquer prisão ao crivo do Juiz e hoje, com mais rigor, com a participação do Promotor de Justiça e do Advogado ou do Defensor Público. Assim dispõe o art. 306 do Código de Processo Penal com a nova redação dada pela Lei nº 12.403/2011:

Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao ministério público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. § 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a defensoria pública.[9]

E mais, na Delegacia ou em qualquer outro recinto, esta mesma guarnição da Polícia Militar que efetuou a captura do suspeito pelo cometimento de um ilícito penal, terá que sobrestar sua atuação ostensiva por certo tempo, para que seja formalizado um procedimento legal a fim de submetê-lo ao crivo da Autoridade Judiciária.

Enfim, uma eventual unificação das polícias inviabilizaria por completo a independência almejada pela Polícia Judiciária.


3. Da usurpação de função pública. Procedimento nocivo para os policiamentos ostensivo e repressivo.

Inicialmente é de crucial relevância ter bem claro que Oficial da Policiai Militar não é Delegado de Polícia, assim como este não é Promotor de Justiça, nem mesmo o Membro do Ministério Público é Juiz. Cada ator desse teatro de operações precisa entender e desempenhar bem seu importante papel, sem querer um adentrar na esfera de competência do outro. Se qualquer agente ou servidor público esta descontente com a função que exerce, lhe é facultado submeter-se a concurso público para concorrer de forma legal e democrática a uma vaga para o cargo de Delegado de Polícia, Promotor de Justiça, Juiz ou outro qualquer onde possa se realizar profissionalmente.

O que se percebe no Brasil hodiernamente é uma completa inversão de valores e um acintoso descumprimento das leis. Rasga-se com absurda facilidade a Constituição Federal em cada esquina do País. São Guardas Municipais que querem andar armados e fazer o papel que incumbi unicamente aos Policiais Militares e estes, por sua vez, que querem desempenhar as funções de Polícia Judiciária, são agentes carcerários que querem ser chamados de Polícia Penal e investigar os crimes ocorridos no interior dos estabelecimentos prisionais, além de ter a atribuição de recapturar fugitivos, são Policiais Militares e Policiais Rodoviários Federais cedidos para integrar grupos de investigação comandados pelo Ministério Público e, pasmem, Agentes de Polícia que desejam desempenhar as funções de Delegados de Polícia.

Se nada for feito para frear estas distorções, chegará o dia em que o Delegado de Polícia ofertará denúncia crime, o Promotor de Justiça proferirá sentença e o Juiz editará leis.

Não é o fato de se ter formação acadêmica no curso superior de Direito que confere ao bacharel, a prerrogativa de exercer a função que melhor lhe convier, mas sim, a investidura no cargo público que se dá por meio, unicamente do concurso público.

Atento a esta problemática, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo, através do GECAP – Grupo Executivo de Controle Externo da Atividade Policial, emitiu a RECOMENDAÇÃO 003/2011[10], dirigida ao Corregedor Geral da Polícia Militar, Comandantes de Batalhões, Comandantes de Companhias Independentes, Diretor de Inteligência da Polícia Militar, a fim de que estes, fizessem os Oficiais e Praças observarem as seguintes balizas legais de procedimentos:

“[...] 1. Que se abstenham de requerer, em juízo comum e em sede de apuração de fato típico comum, quaisquer cautelares previstas na legislação processual penal e especial, A SABER: busca e apreensão; prisões, interceptação de dados e conversas telefônicas, correspondência, informações bancárias e fiscais, cuja postulação judicial é exclusiva de Delegados da Polícia Civil; 2. Que, em caso de constatação de ocorrência de crimes comuns, não sendo possível a prisão em flagrante delito, proceda, mediante a observância dos protocolos de segurança e compartimentação de informações, a comunicação dos fatos a Polícia Judiciária, adequando, o direcionamento, às Delegacias de Polícia Especializadas e, quando necessário, ao GETI – Grupo Executivo de Trabalho Investigativo do Ministério Público; 3. Que, em caso de constatação de existência de bando, quadrilha, organização criminosa e não possível à prisão em flagrante delito, sejam os fatos sejam relatados, em especial, ao NUROC – Núcleo de Repressão as Organizações Criminosas, integrado ao Gabinete do Excelentíssimo Senhor Secretário de Estado de Segurança Pública e Ordem Social e, obrigatoriamente, ao GETI – Grupo Executivo de Trabalho Investigativo do Ministério Público; 4. Que observem, em caso de constatação de envolvimento de servidor policial civil, na prática de conduta delituosa, a comunicação dos fatos, ao Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Polícia Civil, bem como ao GETI – Grupo Executivo de Trabalho Investigativo do Ministério Público; 5. Constituem abuso de autoridade e usurpação de função: a condução de pessoa civil atuada em flagrante delito, bem como sua retenção e interrogatório, em qualquer unidade militar, Batalhão, Companhia e Posto de Vigilância ou Patrulha, não sendo justificável qualquer ponderação em contrário; 6. Deve proceder a autoridade policial militar responsável pela ocorrência, o imediato encaminhamento do autuado, após a prisão, ao Departamento de Polícia Judiciária ou Delegacia de Plantão para lavratura do auto de prisão em flagrante quando, obrigatoriamente, sob pena de omissão penalmente relevante, em caso de suspeita de prática de lesões, deverá o Delegado de Polícia encaminhar o autuado a exame de lesões corporais ou informar, no ato do recebimento da ocorrência, a inexistência daquelas; 7. No caso de ocorrência ou constatação de crimes praticados em detrimento de pessoas, bens, serviços da União, especificados na legislação, deverá a autoridade policial militar responsável pela ocorrência ou relato dos fatos, não sendo possível a prisão em flagrante delito, relatar os fatos a Superintendência da Polícia Federal; 8. As recomendações aqui expedidas não se confundem com o cumprimento de ordem judicial expedida pela autoridade competente, para cumprimento de mandado de prisão ou busca e apreensão, expressamente dirigidos à autoridade policial militar (art. 289-A, § 1º do Código de Processo Penal); 9. Sempre que necessário e ao critério do Comandante da Unidade Militar, os fatos delituosos contatados em rotina operacional, bem como os relatados pela Polícia Reservada, deverão ser comunicados ao Promotor de Justiça com atribuições para conhecimento, para adoção de providências que julgar cabíveis, bem como ao GETI – Grupo Executivo de Trabalho Investigativo”.

Nessa mesma linha de entendimento, recentemente, o Governo do Estado do Mato Grosso do Sul através de sua Secretaria de Justiça e Segurança Pública – SEJUSP, expediu a RESOLUÇÃO SEJUSP MS Nº 543 – DE 21 DE FEVEREIRO DE 2011[11], a qual dispõe sobre a normatização de atuação de setores de inteligência das instituições no âmbito da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, disciplinando diretamente os serviços de inteligência da PMMS, quando em seu Art. 2° diz:

“A Segunda Seção do Estado Maior do Comando-Geral da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso do Sul- PM2/PMMS, tem por atribuição legal, proceder em âmbito criminal, investigações exclusivamente em sede de inquérito policial militar, instaurado para apurar infrações penais militares”.

E em seu Parágrafo Único estabelece:

“É vedada a PM2/PMMS proceder a investigações criminais comuns através de ações de campo ou de emprego de tecnologia ou equipamento de qualquer natureza para apurar infrações penais praticadas por civis”.

O Poder Judiciário também já se manifestou em diversas ocasiões no sentido de afastar a pretensão da Polícia Militar de usurpar as funções da Polícia Civil:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DECRETO N. 1.557/2003 DO ESTADO DO PARANÁ, QUE ATRIBUI A SUBTENENTES OU SARGENTOS COMBATENTES O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA, NOS MUNICÍPIOS QUE NÃO DISPÕEM DE SERVIDOR DE CARREIRA PARA O DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DE DELEGADO DE POLÍCIA. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AO ART. 144, CAPUT, INC. IV E V E §§ 4º E 5º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. (ADI/3614-PR. Rel. MIN. GILMAR MENDES. Partes: REQTE.(S) - CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. ADV.(A/S). INTDO.(A/S) - GOVERNADOR DO ESTADO DO PARANÁ. INTDO.(A/S) - ASSOCIAÇÃO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA DO ESTADO DO PARANÁ – ADEPOL. ADV.(A/S) - WLADIMIR SÉRGIO REALE. Matéria: SEGURANÇA PÚBLICA | POLÍCIA MILITAR. Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente a ação direta, vencido parcialmente o Ministro Relator, que a julgava procedente em parte. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Plenário, 20.09.2007. (grifos do autor)

BUSCA E APREENSÃO - AUSÊNCIA DE PROVA IDÔNEA - RELATÓRIO DA PMMG - ENCAMINHAMENTO À POLÍCIA CIVIL PARA INVESTIGAÇÃO. - A investigação das infrações penais incumbe à Polícia Civil, por isto, havendo indícios de prática delitiva, deverá o relatório da Polícia Militar ser encaminhado à primeira, para, após apuração dos fatos, e em se verificando a existência de prova idônea, requerer a medida cautelar de busca e apreensão. - Apelação não provida. (TJMG – Ap.Crim.: 1.0702.09.585753-9/001(1). Numeração Única: 5857539-79.2009.8.13.0702. – 1ª C.Crim. – Rel. Des. EDIWAL JOSE DE MORAIS. DJ: 16/07/2010) (grifos do autor)

É preciso que os Governos dos Estados e do Distrito Federal, assim como o fez corretamente o Governo do Estado do Mato Grosso do Sul, imponham ordem e sepultem de uma vez por todas as constantes invasões de competências que vêm sendo cometidas por algumas instituições e não permaneçam inertes fomentando, assim, a não integração entre as polícias.


4. Da prejudicial ausência de integração entre as polícias judiciárias da União, Estados e Distrito Federal.

A integração que se busca entre as Polícias Civis e Militares deveria, de igual modo, ser perseguida também com o Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública e outras instituições oficiais como o Conselho de Atividades Financeiras (Coaf), a Receita Federal, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e até as CPIs. Ressalte-se que integração é algo que deve existir naturalmente entre todos os órgãos e instituições públicas e não somente entre Polícia Civil e Militar. O que se deve perseguir como Política de Estado é uma cooperação entre todos estes órgãos.

Adequado ressaltar, também, que pouco se fala em integração entre as Polícias Civis dos Estados, do Distrito Federal e a Polícia Federal. As Polícias Judiciárias da União, dos Estados e do Distrito Federal precisam se espelhar nas iniciativas profícuas do CNJ que desde a sua criação vem buscando de forma louvável a integração e uniformização do judiciário no Brasil.

As Polícias Judiciárias da União, dos Estados e do Distrito Federal, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, que exercem atividade essencial à persecução penal, necessitam de recursos prioritários e de atuação integrada, principalmente com o compartilhamento de cadastros e informações policiais, nos mesmos moldes do estabelecido para as administrações tributárias conforme preceitua o art. 37, inc. XXII da CRFB/88:

Art. 37. (...)

XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio. (Grifos nossos)

Enquanto as Polícias Judiciárias não dialogarem de forma consistente, os agentes do crime, não só os integrantes de organizações criminosas, mas principalmente estes, triunfarão sobre a justiça, pois para os mesmos, diferentemente das polícias, as fronteiras entre os Estados são meramente imaginárias.

A Polícia Judiciária Federal, devido à grande reestruturação pela qual passou nos últimos anos, conta com diversos bancos de dados, aos quais as Polícias Judiciárias dos Estados não têm acesso, assim como se encontra melhor aparelhada para enfrentar o crime organizado e de colarinho branco.

O resultado dos investimentos feitos na Polícia Federal pela União, que perpassaram necessariamente pelo pagamento de subsídios dignos a seus integrantes, refletiu nas inúmeras operações deflagradas pela instituição que culminaram na prisão, dentre outros, de Deputados Federais e Estaduais, Prefeitos, Vereadores, Secretários, Desembargadores de Tribunais e Juízes, na queda de Senadores e Ministros de Estado e, mais do que isso, na recuperação de recursos pecuniários desviados dos cofres públicos para ONGs de fachada e empresas fantasma.

Esta nova Polícia Federal pode seguramente ser considerada como um divisor de águas entre uma Polícia Judiciária apática e ineficiente e uma verdadeira polícia investigativa, que sem dúvidas alcançaria a excelência na prestação dos seus serviços, servindo de paradigma em todo o mundo, se fosse independente financeira, administrativa e funcionalmente.

Prova disso são os dados estatístico das investigações da Polícia Federal disponíveis na internet no sítio da Associação Nacional de Delegados da Polícia Federal que indicam que entre os anos de 2005 e 2011 foram realizadas cerca de 1.481 (um mil, quatrocentos e oitenta e uma) operações policiais.

Infelizmente as Polícias Civis no Brasil, à exceção da Polícia Civil do Distrito Federal, que também possui bons investimentos e onde os Delegados de Polícia percebem subsídios muito próximos dos que são pagos aos Delegados da Polícia Federal – em razão de sua organização e manutenção ser de competência da União (art. 21, inc. XIV da CRFB/88), não realizam grandes operações para desbaratar verdadeiras organizações criminosas que se encontram instaladas na Administração Pública, de onde se desviam recursos públicos que deveriam ser aplicados em áreas estratégicas para o desenvolvimento de um Estado como na saúde, educação, saneamento, infraestrutura e na própria segurança pública, causando enorme prejuízo aos cofres públicos e, por conseguinte, a toda sociedade.


5. Da ausência de um sistema único de dados policiais.

A única unificação pela qual se deveria lutar, e que, aliás, já deveria ter ocorrido há muito tempo, é a unificação de dados de informações policiais. É inconcebível que em pleno século XXI, na era da internet, ainda hoje, alguém que foi preso em uma região do país, não seja inscrito em um banco de dados capaz de ser acessado em qualquer Delegacia de Polícia do território Nacional. O acesso às informações contidas em bancos de dados é um dos requisitos básicos de uma boa investigação.

De forma lamentável, cada Estado da Federação ainda insiste em manter seu próprio sistema de informações policiais, como que numa guerra de vaidades, sem alimentar de forma obrigatória e corretamente a Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização – REDE INFOSEG, instituída oficialmente pelo Decreto nº 6.138/2007, criada para integrar efetivamente os bancos de dados de diversos órgãos estaduais e federais.

O problema é que devido ao fato de cada Estado da Federação possuir um Sistema de Informações Policiais com plataformas diferentes e com arquiteturas individualizadas, a implementação da Rede INFOSEG torna-se por demais complexa, dificultando, assim, a integração. Por qual razão então não se adota um sistema único, capaz de tornar tais dados disponíveis para consultas pelos Órgãos de Segurança Pública?

Saindo à frente na correção de falhas injustificáveis como a presente, o Poder Judiciário está em vias de implantação de um Banco Nacional de Mandados de Prisão, em atendimento à Lei nº 12.403/2011 que alterou o Código do Processo Penal para incluir o art. 289-A que estabelece:

Art. 289-A. O juiz competente providenciará o imediato registro do mandado de prisão em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça para essa finalidade.

Atento ao comando legal e ciente da premente necessidade de implementação de tal medida, o CNJ em 13 de julho de 2011 publicou a Resolução 137/2011 regulamentando a matéria. Mais recentemente, em 13.04.2012, o CNJ lançou a Central Nacional de Informações Processuais e Extraprocessuais (CNIPE), que segundo o presidente do órgão, ministro Cezar Peluso[12], “[...] a partir da desburocratização do acesso público aos dados dos tribunais e cartórios, trará impactos positivos para o processo de desenvolvimento do País”.


6. Conclusão

Além de tudo o que já foi dito, alguns Projetos de Emenda à Constituição e Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional dispondo de matérias que visam, principalmente, otimizar os trabalhos de Polícia Judiciária, podem ficar prejudicados por conta desta desastrosa tentativa de unificação das polícias, pondo a perder todo um trabalho legislativo de anos e anos de dedicação e empenho. Somente a título de exemplificação podemos citar as seguintes propostas:

1) PEC-549/2006 que acrescenta preceito às Disposições Constitucionais Gerais, dispondo sobre o regime constitucional peculiar das Carreiras Policiais que indica e fixa o valor do Subsídio do Delegado de Polícia; 2) PEC-184/2007 que dispõe sobre as Polícias Judiciárias da União e dos Estados e dá outras providências; 3) PEC-293/2008 que altera o Art. 144 da Constituição Federal, atribuindo independência funcional aos Delegados de Polícia, trata da Carreira Jurídica e outras garantias; 4) PEC-487/2010 que denomina de polícia judiciária dos Estados a polícia civil, que será dirigida por delegados de carreira, bacharéis em Direito aprovados em concurso público com a participação da OAB em todas a fases; 5) PEC-102/2011 (Câmara dos Deputados) que altera a Constituição Federal para incluir as Carreiras dos Defensores Públicos e dos Delegados de Polícia no Quinto Constitucional; 6) PL 1949/2007 que institui a Lei Geral da Polícia Civil e dá outras providências; 7) PL-7193/2010 que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia; 8) PL-1028/2011 que altera a redação dos artigos 60, 69, 73 e 74, da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispões sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, possibilitando a composição preliminar dos danos oriundos de conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo pelos delegados de polícia; 9) PL-1843/2011 que acrescenta § 4º ao art. 304, do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, prevendo que o Delegado de Polícia apreciara a existência de causas excludentes de antijuridicidade, por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante, para, fundamentadamente, conceder ao investigado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório ao juízo competente, sob pena de revogação.

Sem adentrar no mérito da discussão sobre a necessidade ou não de aprovação da PEC 37/2011 que altera a Constituição Federal para tornar privativa a investigação criminal pelas Polícias Civil e Federal, que, tudo indica, já ganhou inclusive o apoio da Advocacia-Geral da União e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, consoante matéria publicada no sítio do Consultor Jurídico[13], forçoso é reconhecer que com a unificação das polícias nos Estados, torna-se recomendável, para não dizer imperioso, que toda a investigação criminal seja entregue ao Ministério Público, que embora não esteja devidamente aparelhado e vocacionado para isso, é o único Órgão Público verdadeiramente independente, capaz de enfrentar os interesses obscuros de poderosos.

Vale aqui fazer a importante advertência de que a PEC 102/2011 do Senado também traz a previsão de alteração da Constituição Federal para tornar privativa a investigação criminal pela polícia que cria, ressalte-se, conforme já dito, totalmente subordinada aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal. Vejamos a redação do inciso III do art. 4º da referida proposta:

Art. 4º. A polícia de que trata o artigo anterior, instituição de natureza civil, instituída por lei como órgão permanente e único em cada ente federativo, essencial à Justiça, subordinada diretamente ao respectivo Governador, de atividade integrada de prevenção e repressão à infração penal, dirigida por membro da própria instituição, organizada com base na hierarquia e disciplina e estruturada em carreiras, ressalvada a competência da polícia federal, destina-se:

[...]

III – ao exercício privativo da investigação criminal e da atividade de polícia judiciária. (grifos do autor)

Assim sendo, a unificação, consoante demonstrado, vai de encontro à justa e necessária independência almejada pela Polícia Judiciária, imprescindível para o fortalecimento da investigação criminal e, por conseguinte, do Estado Democrático de Direito.

Pede-se licença para transcrever, em parte, artigo intitulado A NECESSÁRIA GARANTIA DA INAMOVIBILIDADE PARA OS DELEGADOS DE POLÍCIA, escrito no ano de 2000 pelo Juiz de Direito e professor de Direito da Universidade Católica de Goiás e da Escola Superior da Magistratura, Ari Ferreira:

[...] Por quê o defensor público tem direito à inamovibilidade e o delegado não? Quem trabalhou em pequenas cidades do interior, onde grupos tradicionais dominam e representam o próprio poder, já deve ter visto, ou pelo menos tomado conhecimento, de agentes policiais, incluindo delegados, que foram transferidos bruscamente para qualquer outro lugar simplesmente porque o prefeito municipal ou seu vice, o deputado estadual da região, o simples vereador, ou qualquer outro líder político, não gostou de seu modo de atuação.

Permitindo-me não declinar nomes para não ferir as pessoas envolvidas, vez que o passar do tempo vai apagando da memória, lembro-me de que certa feita em comarca onde atuei como juiz de direito, num final de semana policiais civis apreenderam um veículo com o qual um adolescente fazia manobras perigosas (racha, derrapagens etc.) e, diante da reação do motorista, apreenderam-no também. Este foi o "erro" dos agentes, afinal de contas o adolescente era filho do vice-prefeito da cidade. Ao tomar conhecimento da apreensão do filho, o vice-prefeito ameaçou os agentes policiais dizendo que iria transferi-los da cidade. Não se passaram dois dias e, realmente, um dos agentes fora transferido sem maiores explicações, de nada adiantando nem mesmo meus apelos pela relevação da sanção, pois a cidade só tinha aqueles dois agentes e ficaria desguarnecida. E ficou. O agente remanescente e seu delegado disseram que nunca mais se envolveriam com filhos de autoridades, mesmo que os encontrassem na qualidade de malfeitores. Assim foi feito e o vice-prefeito mostrou, efetivamente, quem manda.

Este é um relato simples, mas que certamente se repete por nosso gigantesco país. Ora, se o defensor público, que não acusa, nem investiga ninguém, goze da garantia da inamovibilidade, o mais lógico é que o delegado de polícia, que exerce função de risco, mexe com interesses superiores, investiga filhos de autoridades e políticos, expõe sua vida e de sua família, também a tenha.

Em minha visão externa, assim considerado o fato de não pertencer aos quadros da polícia, penso que os delegados formam uma categoria, paradoxalmente, deveras importante e ao mesmo tempo desprestigiada. Importante, são os responsáveis pelas investigações criminais, atuando como um apêndice do Poder Judiciário; desprestigiada, porque não têm nem as mesmas garantias que se asseguram aos defensores públicos.

Se é lamentável ver um delegado de polícia tendo que recorrer a políticos para conseguir uma promoção ou remoção, é deprimente vê-lo tendo que recorrer a estes mesmos políticos para não ser removido ou transferido contra sua vontade, especialmente quando, no exercício de suas funções, contrariou interesses de quem manda. Nem é preciso dizer o quanto isso influencia, negativamente, na liberdade de ação policial, elemento indispensável para a segurança pública, ultimamente muito arranhada pelos altos índices de criminalidade que assustam até o mais despreocupado dos homens.

Seria, pois, de bom alvitre que as autoridades competentes provocassem o Poder Legislativo por meio de projeto de lei que estendesse aos delegados de polícia pelo menos a garantia da inamovibilidade. Esta garantia não representa diminuição de poder do Chefe de Polícia, Secretário de Segurança ou de quem quer seja o superior, mas apenas evita arbitrariedades e diminui a dependência da autoridade policial de intempéries políticas. A exemplo do que se passa com a magistratura, e bem assim com os membros do Ministério Público, a garantia da inamovibilidade não impedirá que o delegado seja transferido contra a sua vontade, desde que conveniente para o interesse público. O que não é admissível é confundir o interesse do governador ou outra autoridade superior como sendo, necessariamente, um interesse público. O interesse público está acima das pessoas e autoridades e não admite solução por amor ou ódio, paixão ou emoção, proteção ou perseguição.[14] (grifos do autor)

Escândalos como o do “mensalão” e, mais recentemente, o que envolve o bicheiro Carlinhos Cachoeira, o Senador da República Demóstenes Torres e a Construtora Delta, que revelam relações obscuras entre o Poder Público e o Setor Privado, demonstram claramente a necessidade de aperfeiçoamento das instituições e instrumentos que possam barrar a promiscuidade entre os Governos e as Empresas.

A unificação das polícias será prejudicial para a investigação criminal, assim como para o povo brasileiro. A Polícia Judiciária é primordial para a efetivação dos direitos, na medida em que contribui de forma decisiva para a persecução criminal, garantindo, assim, o respeito à lei e à ordem. Portanto, a unificação das polícias é absolutamente contrária aos interesses da sociedade.

Nesse passo, dever-se-ia, também, observar o princípio da proibição do retrocesso social, pois a unificação das polícias pretendida pela PEC 102/2011, desconstruirá por completo o avanço criado pelo próprio legislador constitucional no campo das investigações criminais que se concretizaram sob a responsabilidade das Polícias Judiciárias a ponto de vir em uma crescente de aperfeiçoamento constante.

O legislador não pode retroceder nesta matéria, sob pena de prejudicar por completo as investigações criminais.

POLÍCIA JUDICIÁRIA INDEPENDENTE. BRASIL FORTALECIDO NO COMBATE À CORRUPÇÃO.


Notas

[1] PEC 102/2011 – Senado Federal – Altera dispositivos da Constituição Federal para permitir à União e aos Estados a criação de polícia única e dá outras providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em 01 de maio de 2012.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 476-477.

[3] Entrevista com José Paulo Pires: PRESIDENTE DO SINDELPOL-RJ FALA SOBRE A CRISE INSTALADA NA POLÍCIA CIVIL. Disponível em <http://www.sindelpol.com.br>. Acesso em 03 de maio de 2012.

[4] O Estado de S.Paulo. BRASÍLIA. Disponível em: <http://www.estadao.com.br>. Acesso em 01 de maio de 2012.

[5] AMORIM, Paulo Henrique. Novo diretor da PF tentou impedir a Satiagraha. Conversa Afiada. 31 de dezembro de 2010. Política. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br>. Acesso em 01 de maio de 2012.

[6] ROCHA, Marcelo. O bicheiro que assusta os políticos. Revista Época. São Paulo. n. 722. p. 34, mar. 2012.

[7] Entrevista com José Mariano Beltrame: os desafios da Segurança Pública no Rio de Janeiro. Disponível em <http://amaivos.uol.com.br>. Acesso em 01 de maio de 2012.

[8] BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em 01 de maio de 2012.

[9] BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em 01 de maio de 2012.

[10] MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. GECAP- GRUPO EXECUTIVO DE CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL. RECOMENDAÇÃO 001/2011. Disponível em <http://mpes.gov.br>. Acesso em 10 de maio de 2012.

[11] RESOLUÇÃO SEJUSP MS Nº 543 – DE 21 DE FEVEREIRO DE 2011. Disponível em <http://sejusp.ms.gov.br>. Acesso em 10 de maio de 2012.

[12] Portal CNJ. Ministro Cezar Peluso diz que Cnipe contribui para desenvolvimento do país. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/18937>. Acesso em 10 de maio de 2012.

[13] AGU É CONTRA MINISTÉRIO PÚBLICO PODER INVESTIGAR. Disponível em <http:// www.conjur.com.br >. Acesso em 10 de maio de 2012.

[14] QUEIROZ, Ari Ferreira de. A necessária garantia da inamovibilidade para os delegados de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1131>. Acesso em: 14 abr. 2012.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Helder Carvalhal de. Unificação das polícias. Usurpação de função pública. Ausência de integração entre as polícias judiciárias e de um sistema único de informações policiais eficiente. Um atraso para a segurança pública no Brasil.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3258, 2 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21910. Acesso em: 28 mar. 2024.