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Eficácia das normas de reprodução obrigatória no controle de constitucionalidade estadual

Eficácia das normas de reprodução obrigatória no controle de constitucionalidade estadual

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O STF, conquanto já tenha entendido que normas de reprodução obrigatória seriam eminentemente federais e não poderiam ser utilizadas como base para o controle de constitucionalidade estadual, usurpando sua competência exclusiva, alterou o posicionamento, passando a considerá-las como normas estaduais.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO . 2 ESTADOS FEDERADOS. 2. 1 ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA. 3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL . 3. 1 PANORAMA ATUAL. 3.2 PRECEDENTES HISTÓRICOS. 4 COEXISTÊNCIA DOS CONTROLES DE CONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL E FEDERAL. 4.1 SUBMISSÃO DAS NORMAS ESTADUAIS A AMBOS OS CONTROLES. 4.2 CONCORRÊNCIA DE PARÂMETROS DE CONTROLE. 5 CONSTITUIÇÃO ESTADUAL . 5.1 DIFERENÇAS ENTRE NORMAS DE IMITAÇÃO E NORMAS DE REPRODUÇÃO. 6 NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. 6.1 POSICIONAMENTO INICIAL DO STF – RCL 370-1/MT. 6.2 POSICIONAMENTO ATUAL DO STF – RCL. 383/SP. 6.3.1Cabimento de Recurso Extraordinário. 7. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRENTE ÀS NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. 7.1 EFICÁCIA DAS NORMAS DE REPRODUÇÃO X SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. 8. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

 Referir-se ao controle de constitucionalidade é, indubitavelmente, ressaltar a supremacia da Constituição como o instrumento normativo de maior valor no ordenamento jurídico, a quem todas as demais normas do sistema deverão guardar o mais estrito respeito. Por outro lado, é abraçar a Teoria Pura do Direito, traçada por Hans Kelsen, segundo a qual a Constituição está no topo de uma ordem escalonada de normas, conferindo-lhes validade, de acordo com a concordância destas com os preceitos constitucionais superiores.

 Dentro do sistema federativo brasileiro, esse princípio da supremacia da Constituição serve, outrossim, de suporte à estruturação da ordem normativa dos Estados-membros, situando-se a Constituição Estadual, dentro do ordenamento jurídico local, no nível mais elevado em relação às demais regras que dela retiram seu fundamento de validade. Por imposição da Lei Fundamental, mediante seu artigo 125, §2º, os Estados componentes da Federação também criam mecanismos de controle de constitucionalidade em face de normas que venham a violar algum preceito contido na ordem constitucional estadual.

 Essa autorização dada pelo constituinte originário aos Estados-membros para criarem um “subsistema” de controle de constitucionalidade dentro do sistema federal, objetivando a defesa das Constituições destes entes federados, implica um grande salto dentro das inovações trazidas pelo novo Diploma Maior. Em outras palavras, essa regra estabelecida nada mais é do que a afirmação do princípio da autonomia constitucional e política dos Estados Federados.

 Entretanto, como ocorre com toda inovação, pairam diversas problemáticas em torno dessa recente jurisdição constitucional dos Estados-membros, mormente quanto a sua coexistência com a jurisdição constitucional federal, em que se envolve certa complexidade. Tal coexistência de jurisdições deságua, ainda, em uma celeuma jurídica de maior profundidade, ao se tratar das normas contidas na Constituição Estadual que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória.

 Com isso, o objetivo do presente trabalho consiste em analisar a amplitude, assim como os limites da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Justiça dos Estados-membros, no que se refere à chamada inconstitucionalidade reflexa, na qual a norma impugnada é simultaneamente incompatível com a Constituição Estadual e a Federal, em dispositivos que são idênticos nos dois textos, gerando a dupla e idêntica ofensa constitucional.

 Para tanto, num primeiro momento, será apresentada, em linhas gerais, a forma de organização político-administrativa dos Estados-membros dentro da Federação, a fim de que, em seguida, se possa adentrar na essência do controle de constitucionalidade estadual e, principalmente, na delicada questão acerca da eficácia das normas constitucionais estaduais cuja reprodução é expressamente exigida ou determinada pelo constituinte federal.

 Embora o ordenamento atual tenha conferido o status de ente autônomo aos Estados Federados, estes possuem limitações de ordem positiva e negativa no âmbito de seu sistema interno, exigidas pela Lei Fundamental. Em razão disso, todas estas limitações constitucionais serão detalhadas na primeira parte do trabalho, haja vista serem, indubitavelmente, a causa de existência das chamadas normas de reprodução obrigatória.

 Logo depois, por ser uma inovação constitucional, demonstrar-se-á a evolução ou até mesmo o retrocesso dos textos constitucionais pátrios acerca do controle de constitucionalidade estadual, cuja previsão completa só ocorreu mesmo na atual Constituição Federal de 1988. Ainda, o estudo diferenciará as espécies de normas contidas nas Constituições produzidas pelos Estados-membros, para, dessa forma, cuidar especificamente das normas de reprodução obrigatória. Nesta parte específica do trabalho, após já apresentados os panoramas gerais do controle de constitucionalidade estadual, é que serão transcritos os diversos posicionamentos adotados pela Suprema Corte quanto à eficácia daquelas normas, bem assim seus principais embasamentos jurídicos. Já traçado esse paralelo entre os antagônicos entendimentos, chegar-se-á, finalmente, ao estudo técnico daquele que de forma verdadeira se coaduna com o atual sistema constitucional vigente.

 A discussão do tema torna-se mais sedutora, especialmente pelo pequeno índice de estudiosos que nele se aprofundam, muito embora sua importância seja enorme dentro do nosso sistema constitucional, já que a adoção de um ou outro entendimento acerca do assunto gera antagônicas consequências para o mundo jurídico. Por tal razão, é de grande valia a exposição desse trabalho para o nosso sistema atual, já que a questão, longe de ser meramente acadêmica, assume enorme importância prática, mesmo já transcorridos mais de vinte anos de vigência da Constituição da República.


2. ESTADOS FEDERADOS

2. 1 ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

Aos Estados Federados, no atual ordenamento constitucional, foi atribuída autonomia, como ponto comum a toda Federação, manifestando-se por sua capacidade de auto-organização, autogoverno, auto-administração, bem assim autolegislação.

Essa auto-organização, ou seja, possibilidade de criação do ordenamento jurídico estadual pelos próprios Estados-membros, é assegurada pela Constituição Federal em seu artigo 25, nos seguintes termos: “Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. Tal organização é exercida mediante o seu poder constituinte derivado decorrente, consubstanciando-se na edição das respectivas Constituições Estaduais. Mas referido dispositivo constitucional foi categórico ao definir que, conquanto os Estados tenham capacidade de se auto-organizarem, não podem deixar de observar as regras que foram estabelecidas pelo poder constituinte originário. Fica demonstrado, claramente, o caráter de derivação e vinculação do poder decorrente em relação ao originário.

Embora categórica, a Carta Federal não indicou explicitamente quais seriam esses princípios de observância pelos entes estaduais. Com facilidade, desde logo, descobre-se um grupo deles enunciado no seu artigo 34, inciso VII, que são os chamados princípios sensíveis. O termo “sensíveis” está aí no sentido daquilo que é facilmente percebido pelos sentidos, daquilo que se faz perceber claramente, evidente, visível, manifesto. Dessa forma, princípios sensíveis são aqueles clara e inequivocamente mostrados pela Constituição Federal, os apontados, enumerados. São sensíveis também em outro sentido, como algo dotado de sensibilidade, que, em sendo contrariado, provoca reação, e esta, no caso, é a intervenção da União na autonomia política estadual, exatamente para assegurar sua observância.

Por outro lado, a descoberta dos demais princípios depende de pesquisa no seu texto constitucional. O artigo 125 reafirma essa indeterminação explícita, porém oferece um indicativo, no momento em que menciona que os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. Portanto, por ora, já podem ser considerados os princípios em dois grupos: princípios constitucionais sensíveis e princípios constitucionais estabelecidos. Estes últimos compõem-se de determinadas normas que limitam a autonomia organizatória do Estado. Segundo Uadi Lammêgo Bulos, “são aqueles que limitam, vedam, ou proíbem a ação indiscriminada do Poder Constituinte Decorrente. Por isso mesmo, funcionam como balizas reguladoras da capacidade de auto-organização dos Estados. Podem ser extraídos da interpretação do conjunto de normas centrais, dispersas no Texto Supremo de 1988, que tratam, por exemplo, da repartição de competência, do sistema tributário nacional, da organização dos Poderes, dos direitos políticos, da nacionalidade, dos direitos e garantias individuais, dos direitos sociais, da ordem econômica, da educação, da saúde, do desporto, da família, da cultura etc.”. [1] O autor divide-os, ainda, naqueles que geram limitações expressas, que geram limitações implícitas e, por último, que geram limitações decorrentes do sistema constitucional adotado, cujo detalhamento, todavia, não se justifica no momento.

Por fim, ao lado dos princípios sensíveis e estabelecidos, há os chamados princípios constitucionais extensíveis, que são aqueles que integram a estrutura da Federação brasileira, sendo normas centrais comuns à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Relacionam-se, por exemplo, com o processo legislativo, com os preceitos da Administração Pública, bem como com a forma de investidura em cargos eletivos.

No entanto, paralelamente a essa limitação negativa imposta ao poder decorrente – de não contrariar tais princípios - há, outrossim, a imposição de uma limitação positiva. Melhor dizendo, as Constituições Estaduais, além de serem obrigadas a não contrariar os citados princípios constitucionais, devem, ainda, concretizar os preceitos, o espírito e os fins almejados pela própria Constituição Federal, o que não deixa dúvidas de ser o poder constituinte decorrente, por sua natureza, um poder limitado.

Afere-se, de tudo isso, que, embora a Constituição de 1988 tenha ampliado as bases do federalismo, com mais descentralização e autonomia às entidades federadas, ainda assim os seus contornos ficaram razoavelmente dependentes de preceitos e princípios limitadores nela estabelecidos.

E, exatamente por tal razão, é que surgem diversos dispositivos constantes das Cartas Estaduais considerados normas de reprodução obrigatória daqueles inseridos na Constituição Federal, demonstrando, neste diapasão, a importância de ser explorada a sua eficácia no tocante ao controle de constitucionalidade estadual.


3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL

3. 1 PANORAMA ATUAL

O reconhecimento da autonomia para os Estados se auto-organizarem deve ser tratado ao lado do reconhecimento da supremacia, dentro da esfera desse ordenamento específico, da Carta Estadual sobre os demais atos normativos. No entanto, tal supremacia não é absoluta, conforme já ressaltado, uma vez que as Constituições Estaduais se submetem ao que dispõe a Constituição Federal, esta sim norma suprema de todo o sistema jurídico pátrio.

Ocorre, porém, que a autonomia concedida aos Estados-membros para organizarem seus próprios sistemas regionais não se concretizaria por completo sem a possibilidade, ainda, da criação de mecanismos de controle de constitucionalidade em face de normas, porventura, violadoras desse ordenamento jurídico estadual.

Neste diapasão, a Constituição Federal de 1988 autoriza aos Estados-membros, outrossim, criarem mecanismos próprios de proteção de suas Constituições, contra leis inferiores que lhes sejam contrárias. Permite-se, pelo que dispõe o artigo 125, §2º, da Carta Fundamental[2], uma verdadeira jurisdição constitucional estadual, em que estarão submetidos os atos normativos emanados tanto do Estado-membro como de seus Municípios.

Aliás, segundo bem observado por Regina Maria Macedo Nery, o controle da constitucionalidade das leis estaduais e municipais frente à Constituição Estadual representa o modo mais característico de asseguramento da autonomia estadual. Sendo a criação de uma Constituição forma de exercício dessa autonomia, o mecanismo de controle do respeito a sua Lei Fundamental é, também, afirmação desta.[3]

3. 2 PRECEDENTES HISTÓRICOS

Embora a Constituição Federal autorize o cabimento da instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em face da Constituição Estadual, por cada Estado-membro da Federação, referido controle de constitucionalidade estadual, da maneira como se encontra desenhado atualmente, não existia no ordenamento jurídico brasileiro. É realmente uma inovação oriunda do constituinte originário de 1988.

O controle de leis estaduais pelos Estados-membros só foi introduzido expressamente pelo texto da Constituição de 1988. De outra parte, o controle estadual de leis municipais, embora tenha sido previsto pela Emenda Constitucional de 1965, teve duração extremamente exígua, absolutamente insuficiente para a fixação de balizas e princípios sobre o respectivo assunto.

A primeira elaboração legislativa referente a tal controle constava do artigo 19 da Emenda Constitucional nº. 16/65, em que era assegurada aos Estados a criação de mecanismos de controle de constitucionalidade estadual, embora restrito às leis de âmbito municipal. Consoante ditava esta norma, que alterou o artigo 124 da Constituição de 1946, uma lei poderia estabelecer processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a Constituição do Estado.

Já na vigência da Carta Magna de 1967 e, com a redação recebida pela Emenda Constitucional nº. 01, de 1969, nada havia no texto da Constituição que autorizasse expressamente os Estados a estabelecer o controle de constitucionalidade, nem de leis municipais, nem de leis estaduais, em face das Constituições Estaduais. Dessa forma, a competência introduzida sob a égide da Constituição de 1946 foi suprimida em 1967, podendo-se perceber a efêmera duração de pouco mais de um ano da norma constitucional permissiva.

No entanto, essa Emenda Constitucional nº. 1/69, em seu artigo 15, §3º, alínea "d", contemplou a representação interventiva de lei municipal, para assegurar a observância dos princípios elencados nas Cartas Estaduais, bem como a execução de lei, ordem ou decisão judicial.

Face àquele silêncio da Carta Magna de 1967 e, admitindo a existência de um campo deixado em branco pela referida Constituição, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo consagrou a modalidade genérica de controle abstrato de constitucionalidade, cuja iniciativa ficou a cargo do Procurador-Geral do Estado, nos termos do que dispunha o artigo 51, parágrafo único, de sua Constituição Estadual.

Conforme elucida atualmente o ministro Gilmar Mendes[4], este instituto de controle de constitucionalidade genérico, admitido pela Constituição Paulista, somente veio a ter efetiva aplicação em 1977, com a propositura das Representações nº. 261.928 e nº. 261.929, cujo objeto era a arguição de inconstitucionalidade, em face da Constituição Estadual, de leis dos municípios de São Paulo e de Campinas.

Ao analisar as referidas representações, o respectivo Procurador-Geral de Justiça sustentou que o ordenamento jurídico-constitucional positivo, no plano federal, não concedia aos Tribunais Superiores dos Estados-membros a jurisdição censória de leis, mesmo municipais, abstratamente conflitantes com as regras que o compunham.

Entretanto, a corrente doutrinária que defendeu a compatibilidade do controle abstrato, no âmbito estadual, com a ordem constitucional federal, enfatizava que tal jurisdição era um direito autônomo dos Estados-membros de uma Federação, com base na sua capacidade de auto-organização. Para ela, não se poderia tolher a possibilidade dos Estados para estruturar os meios, inclusive processuais, perante os órgãos de seu Poder Judiciário, com vistas à defesa de sua Constituição, já que esse direito decorria do princípio maior do Federalismo. Tal entendimento era defendido com base em estudos e pareceres de juristas como Ada Pellegrini Grinover, Celso Ribeiro Bastos, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, José Afonso da Silva, dentre outros.

Assim, verifica-se que toda a problemática residia, fundamentalmente, no princípio da autonomia dos entes federados, estando a questão subordinada à capacidade de auto-organização do Estado.

É de se concluir, dessa maneira, que a Constituição Federal de 1967 não cuidava de declaração de inconstitucionalidade de leis estaduais frente à Constituição Estadual, bem como previa a declaração de inconstitucionalidade de leis municipais tão-somente para o fim de intervenção.

Consoante essa sucinta análise do escorço histórico do controle de constitucionalidade face à Constituição Estadual, pode-se observar que a competência deferida nos dias atuais pela Constituição de 1988 aos Tribunais de Justiça, para apreciarem a constitucionalidade das leis estaduais e municipais, em controle concentrado, não encontrou terreno preparado, pairando, ao revés, um grau de incerteza sobre as formas de proceder tal controle.

Contudo, como forma de afirmação da ampla receptividade encontrada no ordenamento atual para a criação desse tipo de controle, todas as Constituições Estaduais atualmente em vigor disciplinaram o instituto da ação direta de inconstitucionalidade em face de suas disposições.

Conforme bem ressaltado por Celso Ribeiro Bastos, "passamos a ter um sistema maior onde o Supremo Tribunal Federal cuida do controle da constitucionalidade das normas e atos federais e estaduais em face da Constituição Federal. E, na alçada estadual, um outro sistema concentrado que controla a constitucionalidade das normas e atos municipais e estaduais perante a Constituição dos Estados, portanto, um microssistema de controle da constitucionalidade”. [5]


4 COEXISTÊNCIA DOS CONTROLES DE CONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL E FEDERAL

4. 1 SUBMISSÃO DAS NORMAS ESTADUAIS A AMBOS OS CONTROLES

Exatamente em decorrência da ampla autonomia de que gozam os Estados-membros no atual modelo federativo, surge uma concorrência de controles de constitucionalidade no ordenamento jurídico, melhor dizendo, desponta a coexistência de jurisdições constitucionais diversas: tanto federal quanto estadual. Enseja-se, portanto, uma dúplice proteção judicial, de um lado concretizada pelo Supremo Tribunal Federal contra as leis federais e estaduais violadoras da Lei Fundamental, e de outro pelo Tribunal de Justiça respectivo, em face das leis estaduais e municipais que transgridam a Constituição Estadual.

Nota-se, de plano, que as normas estaduais estão submetidas tanto à jurisdição constitucional estadual quanto à federal, o que afigura a plena possibilidade de submissão de uma mesma questão às duas jurisdições, de forma simultânea.

Já no que se refere ao controle de constitucionalidade de atos normativos municipais, não há que se falar em qualquer óbice pela coexistência de tais jurisdições, porquanto a fiscalização abstrata concretizada pelo Supremo Tribunal Federal não abrange leis municipais que violem dispositivo da Constituição Federal. O silêncio do constituinte federal a esse respeito há de ser entendido como expressa vontade de restringir o controle de constitucionalidade abstrato ao modelo explicitamente definido no Texto Fundamental, configurando, dessa forma, o chamado “silêncio eloquente”. Assim, mencionados atos normativos são controlados pela via de ação tão-somente no âmbito do ordenamento estadual.

4.2 CONCORRÊNCIA DE PARÂMETROS DE CONTROLE

Tendo em vista a submissão das normas estaduais a ambas as jurisdições constitucionais existentes no atual ordenamento, torna-se necessário o estabelecimento de parâmetros de controle diferenciados a cada um deles, a fim de que se manifestem sobre uma mesma norma impugnada com a devida autonomia.

Com isso, restou estabelecido que o parâmetro para o exercício do controle de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal haverá de ser tão-somente a Constituição Federal, assim como o controle abstrato de normas perante o Tribunal de Justiça Estadual será apenas a Constituição do Estado. Tratando-se do Distrito Federal, o paradigma de confronto, presente o modelo positivado no artigo 125, §2º, da Constituição da República, há de ser aquele consubstanciado em sua Lei Orgânica, que se qualifica, juridicamente, como o estatuto fundamental dessa pessoa jurídica de direito público, essencialmente equiparável às Constituições promulgadas pelos Estados-membros.

Diante dessa concorrência de parâmetros pré-estabelecidos, afere-se que uma mesma norma estadual impugnada pode, simultaneamente, ser compatível com a Lei Maior e, por outro lado, incompatível com a Carta Estadual. As decisões de constitucionalidade da lei proferidas pelo Supremo Tribunal Federal não afetarão o processo nos Tribunais Estaduais. Paralelamente, as decisões de constitucionalidade dos Tribunais de Justiça não repercutirão em nada na jurisdição federal. O pressuposto, aqui, é o de que uma Corte não se encontra atrelada ao entendimento da outra, já que a lei objeto de análise estará, em cada uma das jurisdições, sendo julgada com base em diferentes parâmetros. Portanto, nada impede que seja a lei considerada constitucional perante uma jurisdição e o processo siga sua marcha perante a outra, para apurar a subsistência de eventual inconstitucionalidade quanto à outra Constituição-parâmetro.

Entretanto, tais afirmações não logram afastar toda a problemática que envolve o tema. Há de se reconhecer que, declarada a inconstitucionalidade de lei estadual por uma das jurisdições, torna-se insubsistente ou sem objeto qualquer processo eventualmente ajuizado perante a outra e que se refira à mesma disposição. Explica-se.

Os processos de controle abstrato de normas devem ser concebidos como processos objetivos. Como tal, são processos excepcionais, sendo característica fundamental a eficácia erga omnes da sentença neles proferida. Se não têm por escopo, como os processos comuns, a solução de uma lide entre partes concretamente interessadas e diretamente envolvidas, só teriam algum significado se os provimentos decisivos fossem sempre dotados de eficácia contra todos. Assim, em razão da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade (por quaisquer das jurisdições constitucionais) gerar efeito erga omnes e vinculante, a norma declarada inconstitucional é expurgada do sistema jurídico, o que impede, obviamente, seguir sendo objeto de outra ação, ainda que perante jurisdição diferente.

Com tais ponderações, pode-se verificar que, conquanto autônomas as jurisdições estaduais, bem assim a jurisdição federal, não há como se cogitar de uma separação absoluta entre elas.

A mais disso, a interdependência dessas duas jurisdições abstratas acentuou-se, nítida e principalmente, no caso de o dispositivo da Constituição Estadual, utilizado como parâmetro para declarar a inconstitucionalidade de uma norma, possuir conteúdo idêntico ao texto estabelecido na Constituição Federal. São as chamadas normas de reprodução obrigatória, que criaram um campo de intersecção entre os parâmetros de controle.

Dessa forma, insta diferenciar as espécies de normas inseridas na Constituição Estadual, para que, posteriormente, seja analisada minuciosamente a controvérsia relacionada às normas constitucionais estaduais, cuja reprodução é expressamente exigida ou determinada pelo constituinte federal, e cuja aferição da eficácia corresponde ao tema proposto no presente trabalho.


5 CONSTITUIÇÃO ESTADUAL

5. 1 DIFERENÇAS ENTRE NORMAS DE IMITAÇÃO E NORMAS DE REPRODUÇÃO

  A estruturação de uma Constituição Estadual, em razão da essência do sistema federativo, é modelada pelas normas constitucionais federais. Por consequência, o constituinte estadual não poderá desvirtuar o tratamento dispensado pela Lei Fundamental, infringindo os princípios por ela esculpidos, seja expressa ou implicitamente, sob pena de violação da supremacia da Constituição Federal.

 Tal regra se aplica a todas as espécies de normas que compõem a Carta Estadual, ou seja, deve ser observada tanto pelas chamadas normas de imitação, quanto pelas denominadas normas de reprodução.

 Segundo Raul Machado Horta[6], estudioso de maior referência no assunto, as normas de reprodução diferenciam-se substancialmente das normas de imitação. As primeiras são aquelas que compulsoriamente se inserem no texto constitucional estadual, como consequência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros. A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do Estado, por um processo de transplantação. Assim, as normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior. Diferentemente, as normas de imitação traduzem a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional, ou seja, pertencem à autonomia legislativa do Estado-membro. Estas exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior.

 Em suma, as normas de imitação são efetivamente normas estaduais, já que a Constituição Federal as coloca sob a esfera de competência legislativa do Estado-membro. Sua reprodução em idênticos termos no âmbito estadual não lhe desnatura. Sendo norma estadual, o parâmetro de controle é estadual e a jurisdição a respeito da constitucionalidade em relação a essas normas só pode ser exercida pelo Tribunal de Justiça, não cabendo nem mesmo a interposição de recurso extraordinário à jurisdição constitucional federal, como acontece com as normas de reprodução, conforme será analisado a seguir, valendo a decisão do referido tribunal como definitiva na matéria.

 Com base na respectiva distinção entre normas de imitação e normas de reprodução, percebe-se que a questão tormentosa acerca do assunto reside nestas últimas, já que surge o problema acerca de sua verdadeira natureza e eficácia no âmbito da jurisdição constitucional estadual. Melhor dizendo, nasce a dúvida se tal classe de normas, por ser mera reprodução obrigatória de dispositivos constitucionais federais, pode ser utilizada como parâmetro de controle pelo Tribunal Estadual ou, ao revés, só o Supremo Tribunal Federal tem competência para analisá-las.

 Diante disto, e já com a breve estruturação delimitada da atual jurisdição constitucional estadual, está-se preparado para enfrentar o aprofundamento quanto à verdadeira eficácia dessas normas de reprodução obrigatória no controle de constitucionalidade estadual.


6 NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA

6. 1 POSICIONAMENTO INICIAL DO STF – RCL. 370-1/MT

 A primeira definição dada pela Suprema Corte, ao se defrontar com a questão do controle de constitucionalidade estadual frente às normas de reprodução obrigatória, ocorreu com o julgamento da Reclamação nº. 370-MT, ajuizada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Nesta ação, era sustentado pela reclamante que o processamento de uma ADI perante o Tribunal de Justiça daquele Estado-membro implicaria usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, dado que a norma utilizada como parâmetro na Constituição Estadual limitava-se a reproduzir normas da Constituição Federal.

 Acatando os fundamentos de tal reclamação, o Supremo afirmou que realmente faleceria aos Tribunais de Justiça estaduais competência para conhecer de representação de inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal em face de parâmetro (formalmente) estadual, mas substancialmente integrante da ordem constitucional federal. Em outras palavras, considerou que tais normas de reprodução eram eminentemente federais, de modo que a lei questionada estaria, na verdade, ofendendo a própria Constituição Federal, e não a Estadual. O Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, explanou que "as normas de reprodução só aparentemente são normas estaduais; a reprodução na Constituição Estadual de normas constitucionais obrigatórias, em termos estritamente jurídicos, é ‘ociosa’. Não obstante a forma de proposição normativa do seu enunciado, vale por simples explicitação da absorção compulsória do preceito federal, essa, a norma verdadeira, que extrai força de sua recepção pelo ordenamento local, exclusivamente, da supremacia hierárquica absoluta da Constituição Federal”. [7]

 Portanto, afere-se que a Suprema Corte, através de seu posicionamento inicial, considerou as normas de reprodução obrigatória simples explicitação da absorção compulsória do preceito federal. Somente caberia a ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça na hipótese da lei questionada relacionar-se aos dispositivos autônomos da Carta Estadual (normas de imitação).

 Ocorre, porém, que, em posterior julgamento, o Supremo Tribunal modificou diametralmente seu entendimento acerca do assunto, afirmando a possibilidade de ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual, mesmo se tratando de normas de observância obrigatória.

6. 2 POSICIONAMENTO ATUAL DO STF – RCL. 383/SP

O precedente consubstanciou-se com a Reclamação nº. 383, julgada em 10.06.1992, cujo acórdão da lavra do Ministro Moreira Alves foi assim ementado: “Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente”. [8]

Dessa forma, foi fixado o entendimento a respeito da matéria, reconhecendo a competência dos Tribunais de Justiça para julgar casos de inconstitucionalidade reflexa, sem por isso abdicar de sua própria competência nesses mesmos casos. Assim, através do novo entendimento, quando houver uma suposta ofensa a normas que seriam consideradas “de reprodução”, em que o parâmetro de controle é evidentemente a Constituição Federal, que apenas se repete na Estadual, cabe ao Tribunal de Justiça do Estado exercer sua jurisdição e manifestar-se a respeito da inconstitucionalidade alegada.

Passou-se a entender neste sentido, haja vista serem os Estados-membros entidades autônomas, bem assim terem recebido essa competência para controlar as leis que afrontem suas Constituições locais do texto da própria Constituição Federal, sem qualquer exceção.

 Atualmente, esse ainda é o posicionamento preconizado perante o Supremo Tribunal Federal, conforme se pode denotar através de um recentíssimo julgamento proferido na Reclamação nº. 4432/TO, publicada no DJU de 10/10/2006. [9]

6.2.1 Cabimento de recurso extraordinário

De acordo com o texto da ementa acima transcrito (Rcl. 383/SP), afere-se que, além do Pretório Excelso ter admitido a competência dos Tribunais Estaduais para julgarem uma ação direta com base em normas de reprodução – nos termos já delineados -, permitiu-se, outrossim, a possibilidade de interposição de recurso extraordinário, caso a interpretação adotada pelo Tribunal de Justiça de tais dispositivos contrarie o sentido ou o alcance da Constituição Federal. Este cabimento é embasado no artigo 102, inciso III, alíneas a ou c, conforme o caso.

 Diferentemente do que ocorre com o controle de constitucionalidade estadual frente às normas de imitação, em que a competência para apreciar a ADI é exclusiva do Tribunal de Justiça, o controle baseado nas normas de reprodução obrigatória dá ensejo ao reexame da questão de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, verifica-se que a jurisdição constitucional para esta classe de normas não se esgota com o pronunciamento do Tribunal local.

 Não poderia ser outro o posicionamento adotado, uma vez que, se existem princípios de reprodução obrigatória a serem observados pelo Estado-membro, não só a sua positivação no âmbito do ordenamento jurídico estadual, como também a sua aplicação por parte do Judiciário local pode-se revelar inadequada, desajustada ou incompatível com a ordem constitucional federal. Desta feita, não há como deixar de reconhecer a possibilidade de que se submeta a controvérsia constitucional estadual ao Supremo, mediante recurso extraordinário.

 Não há dúvida, pois, de que será cabível o recurso extraordinário contra a decisão do Tribunal de Justiça que, sob pretexto de aplicar o direito constitucional estadual, deixa de aplicar devidamente a norma de reprodução obrigatória por parte do Estado-membro.

 É interessante notar, a mais disso, que a decisão proferida em sede de recurso extraordinário no Supremo Tribunal, a qual implica o reconhecimento da procedência ou da improcedência da ação direta proposta no âmbito estadual, será igualmente dotada de eficácia erga omnes, na medida em que os efeitos produzidos por um recurso interposto devem ter a mesma abrangência que se é alcançada com a decisão recorrida. Assim já decidiu a Suprema Corte:

 “A decisão em recurso extraordinário tem eficácia ‘erga omnes’, por se tratar de controle concentrado ainda que a via do recurso extraordinário seja própria do controle difuso, eficácia essa que se estende a todo o território nacional” (RE 187.142 – RJ, rel. Min. Ilmar Galvão, 13.08.1998).

 Diante disto, é visível esta clara peculiaridade na situação de inevitável convivência entre os sistemas difuso e concentrado de controle de constitucionalidade no direito brasileiro.

 Por outro lado, há de se analisar a hipótese de ausência de interposição de recurso extraordinário pelo interessado (recurso voluntário) que, aliás, é uma das grandes preocupações de alguns doutrinadores quando se reflete acerca do controle de constitucionalidade estadual frente às normas de reprodução.

 Tendo em vista a não interposição daquele, duas vertentes se abrem: a primeira, que não oferece quaisquer discussões, aparece com a improcedência da ação direta estadual, em que, consequentemente, declara-se a constitucionalidade da norma impugnada; já a segunda, ao revés, surge com a procedência da ação direta, cuja decisão reconhece a inconstitucionalidade da lei estadual ou municipal atacada.

 Na primeira suposição, ou seja, quando a decisão do Tribunal de Justiça for pela improcedência da ação - o que vale dizer que a lei municipal ou estadual foi tida como constitucional -, conquanto tenha aquela também eficácia “erga omnes”, essa eficácia se restringe ao âmbito da Constituição Estadual, ou seja, a lei então impugnada não poderá mais ter sua constitucionalidade discutida em face da Constituição Estadual, o que não implicará que não possa ter sua inconstitucionalidade declarada, em face da Constituição Federal, inclusive com base nos mesmos princípios que serviram para a reprodução. Isso se explica, tendo em vista que o parâmetro de controle utilizado por cada Tribunal para arguição de inconstitucionalidade é diverso, conforme já elucidado em capítulo anterior (Cap. 2.2).

 Em contrapartida, na segunda suposição, a ausência de interposição de recurso extraordinário pelo interessado implica o trânsito em julgado de uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de natureza desconstitutiva. Em outras palavras, acarreta a retirada da norma impugnada do ordenamento jurídico. Neste diapasão, o Supremo Tribunal Federal, haja vista não existir mais eventual norma viciada para servir de objeto em uma futura ação direta, estará impossibilitado de analisar a constitucionalidade ou não de tal norma, por óbvio, com base tão-somente no seu parâmetro de controle, que é a Constituição Federal. Com certeza, seria ilógico aferir-se a inconstitucionalidade de lei inexistente.

 E é justamente nesse ponto que muitos estudiosos do assunto criticam a possibilidade dos Tribunais de Justiça julgar representação de inconstitucionalidade baseados em dispositivos estaduais que são mera reprodução de dispositivos da Constituição Federal. Fundamenta-se, primordialmente, a usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, que foi incumbido pela própria Carta Federal de ser seu exclusivo guardião. Como se percebe, estes críticos ao novo posicionamento adotado pela Suprema Corte após a reclamação 383/SP são adeptos ao posicionamento inicialmente adotado por este tribunal, nos termos da reclamação 370/MT.

Em suma, verifica-se que os adeptos à primeira corrente encontram-se preocupados em assegurar o princípio basilar da supremacia da Constituição Federal, bem assim o papel exclusivo do Supremo Tribunal Federal de guardião da Lei Fundamental. E, por outro lado, os adeptos ao segundo entendimento, também almejando não arranhar tais regras fundamentais, preocupam-se em garantir, ainda, a autonomia pertencente aos Estados Federados, que foi determinada pela própria Carta Fundamental.


7. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRENTE ÀS NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA

7.1 EFICÁCIA DAS NORMAS DE REPRODUÇÃO X SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE

 Na presente altura da exposição do tema, em que já foi exibida, em um primeiro momento, breve explanação geral do controle de constitucionalidade estadual e, em seguida, apresentados os antagônicos posicionamentos reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da eficácia das normas de reprodução obrigatória, é quase que automático o surgimento da seguinte questão: qual dessas posições se coaduna melhor com o atual ordenamento jurídico? Ou seja, qual que realmente está em consonância ao sistema constitucional vigente, preservando o princípio da supremacia da Constituição Federal? Será aquela que considera esses dispositivos de reprodução como normas eminentemente federais e, portanto, tratadas como ociosas, ou aquela posição que defende a autonomia dos Estados-membros para julgarem uma ação direta inclusive com base nessas normas de reprodução, que são também estaduais?

 Atualmente, quase a totalidade das normas inseridas nas Cartas Estaduais é de absorção compulsória, tendo em vista o modelo analítico da Constituição adotado entre nós. Sendo assim, já se vislumbra que, com base na orientação esposada inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal, ficaria o direito constitucional estadual – substancial – reduzido, talvez, ao preâmbulo e às cláusulas derrogatórias, o que denota maior relevância para solucionar o presente impasse. De maneira ilustrativa, pode-se destacar o sistema constitucional tributário, uma vez que, além dos princípios gerais, aplicáveis à União, aos Estados e Municípios (artigos 145-149), das limitações ao poder de tributar (artigos 150-152), contempla o texto constitucional federal, em seções autônomas os impostos dos Estados e do Distrito Federal (Seção IV - artigo 155) e os impostos municipais (Seção V - artigo 156). Como se vê, é por demais estreito o espaço efetivamente vago deixado ao alvedrio do constituinte estadual.

 A análise de cada um desses posicionamentos é de suma importância, porquanto a adoção de um ou de outro leva a consequências totalmente diversas. E, embora a questão, nos últimos anos, aparente encontrar-se pacificada dentro do próprio Supremo, ainda se denotam discussões doutrinárias quanto à verdadeira eficácia das normas de reprodução obrigatória, constantes das Constituições Estaduais.

 Entretanto, socorrendo-se com o exame do sistema constitucional vigente, não é ardiloso concluir que as normas de reprodução obrigatória são verdadeiramente normas estaduais e devem servir de parâmetro de controle de constitucionalidade pelo próprio Tribunal de Justiça. O fato de ser obrigatória a sua observância não as tornam, por isso, ineficazes. Senão, veja-se.

 O ministro Sepúlveda Pertence realçou, em seu voto articulado na Reclamação nº. 370-1/MT, não ser possível aos Tribunais de Justiça levar adiante tal espécie de controle sem graves prejuízos à autoridade da jurisdição constitucional do Supremo, haja vista que essas normas “estadualizadas”, constantes das Cartas Estaduais, são mera transplantação das normas federais – essas sim com total eficácia jurídica -, não passando aquelas de normas “ociosas”. Ressaltou que, aceitando tal hipótese como viável, poderia ocorrer de um acórdão de algum Tribunal de Justiça, proferido num desses processos, vir a transitar em julgado sem que a questão fosse levada ao STF, de tal modo que, à vista da eficácia erga omnes do controle concentrado, ficaria o Supremo vinculado à decisão local, numa surpreendente e inexplicável inversão da ordem hierárquica da Federação.

 Em outras palavras, caso não se interpusesse recurso extraordinário para o enfrentamento da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal, acabaria sendo atribuída a um dos poderes do Estado-membro a função política de guardião da Constituição Federal. Naturalmente, o controle de constitucionalidade estadual, criado pelo constituinte federal, nunca poderia estar subtraído à palavra derradeira do Supremo Tribunal Federal, como penhor da indiscutível supremacia desta Corte no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.

 Superficialmente, os fundamentos apresentados pela opinião contrária à viabilidade do controle de constitucionalidade frente às normas de absorção compulsória pelos tribunais locais parecem ser bem sedutores, convincentes, todavia, induzem o intérprete a erro. Basta uma análise mais aprofundada da questão, levando-se em consideração o sistema constitucional como um todo, para aferir que tais normas inseridas compulsoriamente nas Cartas Estaduais não podem ser vislumbradas como “ociosas”. Na verdade, nenhuma norma dentro do ordenamento jurídico pode ser considerada como tal, na medida em que seria um absurdo se falar na criação de normas ociosas.

 A inconsistência desta opção inicial adotada pelo Supremo Tribunal Federal é nítida. Por óbvio, caso essas normas de reprodução fossem realmente inócuas, não haveria necessidade da realização de tal transplantação, já que não seriam sequer jurídicas. São elas sim eficazes no ordenamento jurídico estadual, permitindo que aí atuem como normas eminentemente estaduais, nos limites da competência dos Estados de aplicá-las e fazê-las respeitar.

 A própria Constituição Federal, em seu artigo 125, §2º, deu aos tribunais locais competência para julgar ações diretas genéricas de inconstitucionalidade tendo como parâmetro a Constituição Estadual e como normas impugnáveis as leis estaduais ou municipais, sem qualquer restrição − a não ser a que impede as Constituições Estaduais de instituírem um só órgão como legitimado para a ativação da fiscalização abstrata. Dessa forma, não seria lícito ao Supremo ver distinções onde o constituinte não o fez. Seria inaceitável que a aplicação de uma norma constitucional tivesse o condão de transformar outra, de igual nível, em letra morta. Portanto, compreender diversamente, implicaria reduzir a nada a literalidade do referido dispositivo constitucional.

 Por outro lado, caso as normas de reprodução fossem realmente inócuas, ter-se-ia de reconhecer o aniquilamento da ação interventiva estadual nos municípios, consagrada no inciso IV do artigo 35 da Constituição Federal. Assim, quando o Tribunal de Justiça desse provimento à representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, seria inviável, à luz do entendimento segundo o qual as normas de reprodução obrigatória, ao serem incorporadas pelo Estado-membro à sua Constituição, não deixam de ser norma constitucional federal, pois não se pode excluir o fato de que a maioria dos "princípios indicados na Constituição Estadual" seriam, na verdade, os princípios também indicados na Constituição Federal como motivadores de intervenção da União nos Estados. Em outras palavras, criar-se-ia um paradoxo: o Estado-membro não poderia intervir no município, por exemplo, para assegurar os direitos humanos (CF, art. 34, VII, "b"), quando a entidade comunal editasse uma lei contrária a esses direitos, porquanto isso dependeria de uma ação direta interventiva, de competência do Tribunal de Justiça, na qual se argumentaria com a inconstitucionalidade da lei municipal em face da Carta Estadual, no ponto em que essa repetia, compulsoriamente, uma norma da Constituição Federal, de sorte que o controle de constitucionalidade, em última análise, seria da lei municipal em face da Constituição Federal, e o que era para ser uma intervenção do Estado no Município provavelmente sempre culminaria numa intervenção da União sobre o Estado, por omissão em rejeitar a violação dos direitos humanos pela entidade municipal.

 A mais disso, pretender que a reprodução dessas normas federais no texto constitucional estadual implique sua descaracterização como parâmetro de controle estadual revela-se assaz perigoso para a própria segurança jurídica. Até porque haveria imensa dificuldade de se identificar, com precisão, uma norma ontologicamente estadual. Se as normas de reprodução obrigatória fossem mesmo normas federais meramente transplantadas, seria imprescindível, em toda representação de inconstitucionalidade estadual − inclusive a interventiva − que a Suprema Corte, previamente, falasse sobre a viabilidade do processamento da ação. Nas palavras do Ministro Moreira Alves, através da RCL 383-SP, “(...) de outra parte, ter-se-ia de admitir que qualquer ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição Estadual daria margem a um julgamento preliminar do Supremo Tribunal Federal, por via de reclamação, para verificar-se a natureza das normas da Constituição Estadual − se normas estritamente estaduais, ainda que de imitação, ou se normas de reprodução de preceitos constitucionais federais − passíveis de ser confrontadas com o ato normativo impugnado, a fim de se decidir se a ação cabível seria contra a Constituição Estadual, ou se verdadeiramente contra a Constituição Federal.” (RTJ 147/444).

 Verifica-se, desta feita, a impossibilidade de juízo de delibação do Supremo sobre a competência dos tribunais locais em todas as representações de inconstitucionalidade perante eles ajuizadas.

 Como contundente demonstração, ainda, de que as normas de reprodução possuem eficácia plena no âmbito estadual, há de se ater que a repetição de um conteúdo normativo não faz, tão-só por isso, com que a norma reproduzida estenda a sua eficácia além de seus limites naturais. Para provar a incongruência da tese de que a reprodução de algumas regras constitucionais federais, por ser obrigatória, afastaria a eficácia das normas locais, bastaria pensar no fato de que também é comum que leis federais reproduzam dispositivos da Constituição Federal, sendo que nem por isso se nega que caiba recurso especial por violação a leis que repetem dispositivos da CF. Ou seja, mesmo repetidas, as normas devem ser consideradas de eficácia plena no seu âmbito de atuação, até para permitir a utilização dos meios processuais de tutela desse âmbito (recurso especial, ação direta de inconstitucionalidade estadual).

 Nestes termos, enfatiza-se que normas de conteúdo igual, ainda que emanadas de fontes diversas, por não serem incompatíveis, não devem se excluir reciprocamente. Na verdade, a norma repetida enseja a "dúplice garantia" jurisdicional: da União e dos Estados. Como é cediço, o direito federal só prevalece sobre o direito local, segundo a regra do art. 24, §4º, da Constituição Federal ("a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário"), interpretada a contrario sensu, quando for incompatível com ele, não quando tiver o mesmo conteúdo.

 Essas observações todas, repita-se, servem para mostrar a inadmissibilidade das consequências da tese que se examina, que não é exato pretender-se que as normas constitucionais estaduais que reproduzem as normas centrais da Constituição Federal sejam inócuas e, por isso, não possam ser consideradas normas jurídicas. Essas normas são normas jurídicas, e têm eficácia no seu âmbito de atuação, até para permitir a utilização dos meios processuais de tutela desse âmbito. Elas não são normas secundárias que correm necessariamente à sorte das normas primárias, como sucede, por exemplo, com o regulamento, que caduca quando a lei regulamentada é revogada. Em se tratando de norma ordinária de reprodução ou de norma constitucional estadual da mesma natureza, por terem eficácia no seu âmbito de atuação, se a norma constitucional federal reproduzida for revogada, elas persistem como normas jurídicas que nunca deixaram de ser. Os princípios reproduzidos, que, enquanto vigentes, se impunham obrigatoriamente por força apenas da Constituição Federal, quando revogados, permanecem, no âmbito de aplicação das leis ordinárias federais ou constitucionais estaduais, graças à eficácia delas resultante.

 Portanto, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 383 veio restabelecer a melhor doutrina, assentando que, posta a questão da constitucionalidade da lei estadual ou municipal em face da Constituição do Estado, tem-se uma questão constitucional estadual.

 Contudo, realmente, há de se admitir que, numa análise sucinta, não é isenta de dificuldades a adoção desse entendimento até aqui defendido, segundo o qual a autonomia dos Estados-membros em matéria de exercício da jurisdição constitucional abstrata não pode ser restringida, ainda quando esteja em jogo norma paradigma local de conteúdo idêntico a texto da Constituição Federal.

 À vista da ausência de regras de colisão entre as jurisdições constitucionais federal e estadual, o principal risco dessa nova postura, diga-se, liberal, do Supremo Tribunal, é que os Tribunais de Justiça venham a julgar válida uma lei local (estadual ou municipal) em face da Constituição Estadual, no ponto em que esta reproduz, cogentemente, regra da Constituição Federal, e, por obra de inércia dos legitimados, não haja recurso algum no processo e, por consequência, o assunto não chegue ao Supremo Tribunal Federal, ficando este, mercê da eficácia erga omnes do controle abstrato, privado, ainda que parcialmente, de sua especial condição de guardião máximo da Constituição Federal.

 A objeção é séria, realçada inclusive pelo Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto na Reclamação 370-1, conforme exposto, como também no julgamento do RE 92.169-SP (RTJ 103/1085), em que o próprio Ministro Moreira Alves rejeitou a possibilidade de que a jurisdição constitucional ficasse ao arbítrio da parte, que poderia recorrer ou não no processo de controle objetivo de constitucionalidade que se quis instituir no Estado de São Paulo, sem previsão na Constituição Federal.

 Esta objeção, porém, não escapou à análise deste ministro na referida RCL 383-SP, nem pareceu a ele ser motivo suficiente para o acanhamento da jurisdição constitucional dos Estados-membros proposto na RCL 370-1-MT. Isso porque, a se acolher o entendimento − limitador da autonomia estadual − de que o controle de constitucionalidade abstrato nos Estados-membros ficaria restrito aos casos em que o paradigma invocado não fosse norma de reprodução obrigatória, nada garantiria que os tribunais locais não iriam avançar, contra o entendimento do Supremo, sobre matérias que lhes seriam vedadas, e, mesmo nesses casos, seria bem possível que não fosse apresentada reclamação à Corte Suprema, e, por consequência, que o acórdão local, com eficácia erga omnes, transitasse em julgado, paralisando a jurisdição constitucional do Supremo, de modo que aquilo que se quis evitar com o pesado ônus do retraimento quase absoluto da jurisdição constitucional estadual, ainda assim não estaria garantido. "Assim, − escreveu o Ministro Moreira Alves − se o único inconveniente de uma tese é também inconveniente da outra, que, além dele apresenta vários outros, pelas consequências inadmissíveis que provoca, parece insustentável restringir a autonomia constitucional dos Estados que a Constituição não restringe, e, com base no inconveniente comum, sustentar que correta é a orientação que, além dele − que é o único da outra −, apresenta diversos outros" (RTJ 147/451).

 Respeitando o entendimento do eminente ministro, a verdade é que não existe nem esse inconveniente comum. Mesmo na hipótese de não-interposição de recurso algum pela parte, que seria este chamado grave inconveniente da posição mais liberal, o Supremo não fica privado de sua competência. Realmente, quando o tribunal local declara a norma estadual ou municipal incompatível com a Constituição do Estado, se não houver recurso, a questão fica definitivamente preclusa e a decisão do Tribunal de Justiça será soberana. Mas o motivo é bem outro, diferente da paralisação da jurisdição constitucional do STF: é que as normas locais, por sua posição duplamente subordinada dentro do sistema normativo, para serem válidas, precisam estar em sintonia tanto com o ordenamento estadual quanto com o federal. A ausência de qualquer um desses fundamentos torna insubsistente essas normas. Assim, parece claro que se um desses fundamentos foi declarado inexistente e a decisão transitou em julgado, a discussão sobre se o outro fundamento persiste ou não é irrelevante, na medida em que, do ponto de vista prático, não trará consequência alguma, sabido como o outro pressuposto de validade − também indispensável − declaradamente já não existe.

 Ainda hoje, conquanto pareça estar pacificada essa acepção acerca da eficácia estadual das normas de reprodução, há quem sustente ser o posicionamento inicial do STF o mais coerente, acreditando que a jurisdição estadual, ao realizar o controle frente a essas normas, viola a supremacia da Constituição Federal, e o papel do Supremo de seu guardião exclusivo. Dentre tais defensores encontram-se José Tarcízio de Almeida Melo e Clèmerson Clève. [10]

 É de relevante importância ressaltar o nome deste último respeitado doutrinador em tal fase do estudo, na medida em que ele apresenta uma solução, em tese, e de lege ferenda, a ser adotada em nosso sistema para dirimir o referido impasse. Para ele, seria de grande valia a adoção de um “reexame necessário”, dirigido ao Supremo Tribunal Federal, de todas as decisões proferidas pelos Tribunais Estaduais nestas hipóteses de normas de reprodução obrigatória como parâmetro de controle. Destaca, inicialmente, que aquele impasse provém da vinculação do STF à discricionariedade da parte em interpor o recurso extraordinário e, mais que isso, à observância, por esta, de todos os pressupostos constitucionais necessários para o conhecimento de tal recurso, como por exemplo, tempestividade, prequestionamento etc. Por outro lado, acredita que, com o implemento de um reexame necessário, manifestar-se-ia com maior conveniência uma das características principais do controle concentrado de constitucionalidade, que é a não disponibilidade do processo pela parte. Em outras palavras, a ação direta almeja à defesa da ordem jurídica, não perseguindo interesse próprio, nem tampouco buscando a defesa de uma posição jurídica individual.

 Ocorre que, na mesma linha de reflexão até então adotada, convém concluir que a adoção desse reexame necessário não se coadunaria com o sistema constitucional vigente, já que supriria totalmente a autonomia dos Estados Federados, levando à falência o próprio controle de constitucionalidade estadual criado pelo constituinte federal originário. Com isso, ao invés de se estar preservando o princípio da supremacia da Constituição Federal, estar-se-á, de forma contrária, violando-o flagrantemente, pois se acabará com o controle estadual que a própria Constituição cria em seu artigo 125, §2º.

 Além disso, entender imprescindível o reexame necessário faria, via de consequência, que fosse aplicado também no caso das leis federais que reproduzem normas da Constituição Federal, o que, por óbvio, é totalmente incabível.

 Por outro lado, a interposição de recurso extraordinário pela parte não esvazia o controle de constitucionalidade estadual, mantendo, outrossim, a exclusividade do Supremo Tribunal Federal para julgar se a decisão fere a Constituição da República. Melhor dizendo, não há uma aniquilação da jurisdição estadual, porém ela também não terá a última palavra se interposto o recurso extraordinário, uma vez que, conforme já assinalado, não se pode falar de uma separação total das jurisdições estaduais e federal.

 Em suma, a adoção do posicionamento sugerido por Clèmerson Clève claramente redundaria no aniquilamento prático do controle concentrado perante os Tribunais de Justiça, uma vez que a quantidade de normas de reprodução obrigatória é tamanha que, rigorosamente, seria difícil encontrar uma situação em que, direta ou indiretamente, o tribunal local não se visse na contingência de interpretar uma norma da Carta Estadual que, substancialmente, fosse também federal. Por derradeiro, considerar as normas de reprodução como ociosas, seria o mesmo que entender que o controle estadual como um todo é ocioso.

 E neste diapasão sim é que se pode argumentar pela flagrante violação do princípio da supremacia da Constituição Federal, já que desobedecido um comando seu, que espelha mais uma forma de autonomia dos Estados-membros, ao contrário da suposta usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras, o aniquilamento da jurisdição estadual, consagrada no artigo 125, §2º, da Constituição Federal, significa a verdadeira ofensa ao princípio da supremacia da Constituição. Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal modificou a tempo seu entendimento.


CONCLUSÃO

 A Constituição Federal atribuiu autonomia aos Estados-membros da Federação, através de seu artigo 25, possibilitando-os a criação de seus próprios ordenamentos jurídicos locais. Entretanto, impôs a eles, outrossim, limitações tanto negativas quanto positivas, o que gerou a existência de normas inseridas nas respectivas Constituições Estaduais que são de mera reprodução obrigatória daquelas constantes da Carta Federal.

 Coerentemente, ao permitir a auto-organização dos entes estaduais, a Lei Fundamental também reconheceu a possibilidade de eles próprios criarem mecanismos de proteção de suas Constituições, conforme artigo 125, §2º, surgindo, em paralelo à jurisdição federal, diversas jurisdições constitucionais estaduais.

 Para tanto, estabeleceu-se a concorrência de parâmetros de controle, sendo adotada tão-somente a Constituição Federal como parâmetro para o controle de constitucionalidade realizado perante o Supremo Tribunal Federal, bem assim unicamente a Constituição Estadual no controle exercido pelos Tribunais de Justiça locais.

 A Constituição Estadual é significativamente composta por normas de reprodução obrigatória e, por consequência, são amplamente utilizadas como parâmetros para se declarar a inconstitucionalidade de uma lei estadual ou municipal que a contrarie.

 A Suprema Corte, conquanto já tenha entendido que tais normas seriam eminentemente federais e, portanto, não poderiam ser utilizadas como base para o controle de constitucionalidade estadual, sob pena de usurpação de sua exclusiva competência, felizmente alterou o seu posicionamento, passando a considerá-las verdadeiras normas estaduais. Afinal, considerar as normas de reprodução como ociosas, seria o mesmo que entender que o controle estadual como um todo é ocioso.

 Foi permitida, com isso, a interposição de recurso extraordinário, caso a interpretação adotada pelo Tribunal de Justiça de tais dispositivos contrariasse o sentido ou o alcance da Constituição Federal.

 Tal mudança de entendimento deveu-se ao fato de os Estados-membros serem entidades autônomas, bem assim terem recebido essa competência para controlar as leis que afrontem suas Constituições locais do texto da própria Constituição Federal, sem qualquer exceção. Dessa forma, não seria lícito ao Supremo ver distinções onde o constituinte não o fez.

 Além disso, entender diversamente seria aniquilar a ação interventiva estadual nos municípios, já que os princípios motivadores de intervenção dos Estados naqueles seriam, em sua maioria, os mesmos indicados na Constituição da República para a intervenção federal.

 Por outro lado, se as normas de reprodução obrigatória fossem mesmo normas federais meramente transplantadas, seria imprescindível, em toda representação de inconstitucionalidade estadual − inclusive a interventiva − que a Suprema Corte, previamente, falasse sobre a viabilidade do processamento da ação, o que é indiscutivelmente inviável.

 Ademais, contra as leis federais que reproduzem dispositivos da Constituição Federal, é inquestionável o cabimento de recurso especial, não se cogitando de ociosidade. Isso porque as normas de conteúdo igual não devem se excluir reciprocamente, mas sim ensejar a dúplice garantia jurisdicional: da União e dos Estados.

 E, por fim, as normas de reprodução obrigatória não são normas secundárias que correm necessariamente à sorte das normas primárias. Por tudo isso, não se há de falar em violação ao princípio da supremacia da Constituição Federal. Na verdade, haveria afronta a tal princípio caso se aniquilasse um sistema de controle estadual estabelecido por ela própria.

Dessa forma, reconhecer que as normas de reprodução obrigatória possuem eficácia de verdadeiras normas estaduais significa obedecer aos princípios basilares de nosso ordenamento jurídico atual, ou seja, significa atender ao princípio da autonomia dos Estados Federados e ao papel do Supremo Tribunal de guardião exclusivo da Lei Fundamental, ao lado do tão aclamado princípio da Supremacia da Constituição Federal.


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Notas

[1] Uadi Lammêgo Bulos. Constituição Federal Anotada. 5ª ed.rev. e atual., p. 572/573.

[2] Artigo 125, §2º: “Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão”.

[3] Regina Maria Macedo Nery. Controle da Constitucionalidade das leis municipais. 2. ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 73-74.

[4] Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed., p.331.

[5] Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. 19 ed., p.413.

[6] Raul Machado Horta. Estudos de Direito Constitucional. Del Rey, 1995, p. 78.

[7] RCL. 370-1, Rel. Min. Octavio Gallotti (acórdão não publicado).

[8] STF – Pleno – Reclamação nº. 383/SP – Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21/05/1993.

[9] STF – Reclamação 4432/TO, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 10.10.2006, cuja transcrição do inteiro teor da decisão pode ser encontrada no Informativo nº. 444/STF, de 18.10.2006.

[10] José Tarcízio de Almeida Melo. Reformas – Administrativa – Previdenciária – do Judiciário, p.445; Clèmerson Merlin Clève. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito Brasileiro. p. 159-160.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINHO, Claudia Gaspar Pompeo. Eficácia das normas de reprodução obrigatória no controle de constitucionalidade estadual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3278, 22 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22088. Acesso em: 19 abr. 2024.