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Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido

Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido

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Causa espanto a disposição do art. 1.790, inciso III do Código Civil, que, ao estabelecer a concorrência sucessória entre os parentes colaterais do falecido e o companheiro sobrevivente, foi de encontro à Constituição, que não explicitou qualquer distinção entre os tipos de família.

RESUMO

No presente estudo, aborda-se a questão da inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido. Tomando por base o processo de constitucionalização do Direito Civil e, por conseguinte, do Direito de Família e das Sucessões, é traçado um panorama histórico da legislação pertinente ao concubinato e à união estável, perpassando a evolução dos valores sociais e constitucionais que culminaram na promulgação da Constituição de 1988 e na edição das Leis nº. 8.971/94 e 9.278/96. Em seguida, é analisado o regime sucessório do companheiro no Código Civil de 2002, bem como suas impropriedades terminológicas, equívocos e retrocessos, por fim, discute-se a inconstitucionalidade do inciso III, do seu art. 1.790, bem como os Projetos de Lei que objetivam sua alteração.

Palavras-chave: União Estável. Concorrência Sucessória. Inconstitucionalidade.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A FAMÍLIA ENQUANTO CONSTRUÇÃO SOCIAL. 2.1. Evolução das entidades familiares no Direito brasileiro. 2.1.1. O Código Civil de 1.916. 2.1.2. A evolução do concubinato na legislação brasileira. 2.2. A constitucionalização do Direito de Família e das Sucessões. 3. A SUCESSÃO DOS COMPANHEIROS NAS LEIS 8.971/94 E 9.278/96. 4. A UNIÃO ESTÁVEL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 4.1. A sucessão legítima pelos companheiros. 5. A CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA ENTRE O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE    E OS PARENTES COLATERAIS DO FALECIDO. 5.1. Controvérsia sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, inciso III, CC. 5.2. A reforma do Código Civil: os Projetos Fiúza e Biscaia/IBDFAM. 6. CONCLUSÃO. 7. REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS. 


1. INTRODUÇÃO.

Durante muito tempo a única entidade familiar regulamentada e protegida pela legislação pátria era aquela constituída através do casamento, sendo as relações extraconjugais estranhas ao Direito.

Assim, os direitos atribuídos às pessoas casadas não se estendiam àqueles que viviam um relacionamento estável e duradouro, destituído dos vínculos formais do casamento.

A indissolubilidade do casamento promovia a multiplicação das uniões informais, sendo que o descompasso entre a realidade e a norma implicou na atuação do Judiciário para a solução de flagrantes injustiças. O número cada vez maior de litígios envolvendo uniões livres repercutiu também no Poder Legislativo, ensejando a indispensável regulamentação da matéria.

Observa-se uma maior evolução doutrinária, jurisprudencial e legislativa a partir da segunda metade do século XX, quando, enfim, foram atribuídos direitos aos que viviam sob o regime do concubinato, mesmo que no âmbito do Direito das Obrigações, fora, portanto do Direito de Família e das Sucessões.

Avanço significativo ocorreu com a promulgação da Carta Política de 1988, que instituiu uma nova tábua axiológica, promovendo o reconhecimento da união estável como entidade familiar, a constitucionalização do Direito Civil e a repersonalização do Direito de Família e das Sucessões.

As Leis nº. 8.971/94 e 9.278/96 regulamentaram a união estável, atribuindo aos companheiros regime sucessório muito semelhante ao dos cônjuges. Contudo, os avanços alcançados pela legislação infraconstitucional da década de 90 foram completamente ignorados pelo Código Civil de 2002, alvo de inúmeras críticas da doutrina e da jurisprudência em virtude da não equalização entre os direitos conferidos aos cônjuges e aos companheiros, em especial na seara sucessória.

A polêmica sobre a existência de hierarquia entre as formas de constituição da família, elencadas no art. 226 da Carta Magna, reflete no posicionamento da doutrina e da jurisprudência.

Para aqueles que negam tal hierarquia é inconstitucional o tratamento sucessório conferido pelo Código Civil ao companheiro. Já para os que conferem ao casamento maior relevância frente à união estável e à família monoparental, o tratamento diferenciado entre companheiros e cônjuges é plenamente constitucional.

O art. 1.790 do Código Civil, inserido nas Disposições Gerais do Direito das Sucessões, normatizou a sucessão dos companheiros de forma, no mínimo, atécnica e são muitos os problemas apontados pela doutrina.

É nesse contexto que se insere o presente estudo, cujo escopo é abordar a controvérsia acerca da inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido.

O marco teórico que serve de referencial para o desenvolvimento deste trabalho consiste na leitura e interpretação do Código Civil à luz dos princípios constitucionais que informam uma concepção plural e funcionalizada da família.

Pautada na nova axiologia constitucional, parte da doutrina e da jurisprudência vem afirmando a inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790 do Código Civil, por trazer em seu bojo norma discriminatória do companheiro, que afronta os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da solidariedade e da vedação do retrocesso.

Nesse sentido, Zeno Veloso (2003) e Rolf Madaleno (2008) sustentam que o tratamento sucessório dispensado ao companheiro sobrevivente pelo novo Código Civil, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, é ofensivo ao texto constitucional.

Num primeiro momento, será analisado o caráter da família enquanto construção social, sua evolução conceitual, histórica e legislativa, até a mudança axiológica promovida pela Carta Magna de 1988. Dedicaremos especial atenção ao instituto do concubinato, pois precede à união estável.

Ao depois, sob enfoque hermenêutico de cunho sistemático e teleológico, serão esmiuçados os avanços da legislação anterior ao Código Civil de 2002, bem como as disposições da nova codificação acerca do regime sucessório dos companheiros sobreviventes, suas impropriedades, equívocos e retrocessos.

Em seguida, analisaremos o objeto de pesquisa propriamente dito, qual seja a controvérsia sobre a inconstitucionalidade da participação dos parentes colaterais na herança em concorrência com o convivente supérstite. Serão destacados os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a esse respeito, bem como os Projetos legislativos de alteração do art. 1.790, inciso III do Código Civil.

Por fim, a conclusão buscará demonstrar a importância da interpretação do dispositivo em comento sob o prisma dos princípios constitucionais com vistas à obtenção da justiça, enquanto a imprescindível intervenção legislativa não equaliza os direitos sucessórios dos cônjuges e companheiros.


2. A FAMÍLIA ENQUANTO CONSTRUÇÃO SOCIAL.

Por séculos, a família foi encarada como meio de administração da propriedade privada. Como esclarece Remi Lenoir (2005), o complexo sistema de regras de parentesco criado pela Igreja Católica, ainda no século IV, foi incorporado pelo Estado moderno, que adaptando-o a seus propósitos, consolidou o papel da instituição familiar como instrumento da ordem social.

A família, enquanto construção social, serve à redistribuição do patrimônio e à transferência de valores sócio-culturais, fato que influenciou diretamente o Direito de Família e, por conseguinte, o Direito das Sucessões.

Neste sentido, são esclarecedoras as considerações de Washington de Barros Monteiro:

Todo homem, ao nascer, torna-se membro integrante de uma entidade natural, o organismo familiar. (...) O entrelaçamento das múltiplas relações, estabelecidas entre os componentes da referida entidade, origina um complexo de disposições, pessoais e patrimoniais, que formam o objeto do direito de família. (MONTEIRO, 2001, p.1).

Assim, a reflexão sobre a evolução da família no ordenamento jurídico brasileiro impõe-se como condição para o estudo dos direitos sucessórios do companheiro sobrevivente.

2.1. A evolução das entidades familiares no Direito brasileiro.

As transformações sociais decorrentes das revoluções científico-tecnológicas, dos movimentos políticos e sociais do século XX, da crescente urbanização e globalização, afetaram profunda e gradualmente as entidades familiares, que caminharam no sentido da valorização dos laços de afeto entre os seus integrantes, abandonando, lentamente, a concepção de família patriarcal e patrimonializada.

Essa alteração gradativa da concepção de família exigiu a adaptação dos sistemas legais aos anseios da sociedade, importando em profundas inovações no Direito de Família e, sobretudo, na seara sucessória.

Uma análise sucinta da legislação brasileira anterior à mudança de paradigmas ocasionada pela Carta Política de 1988 fornecerá subsídios para a compreensão da importância histórica do tratamento conferido aos companheiros pela legislação infraconstitucional da década de 90, frente ao retrocesso decorrente do Código Civil de 2002.

As primeiras fontes do Direito de Família brasileiro foram o Direito Canônico e o Direito Português, fato determinante para que o casamento fosse considerado, por um longo tempo, o único meio legítimo de constituição da família.

A concepção do casamento como um contrato sui generis de Direito de Família tem origem no Direito Canônico. Contudo, no Brasil, desde a cisão entre a Igreja Católica e o Estado, ocorrida em 1891, o casamento religioso distingue-se do casamento civil, em seus efeitos jurídicos. Apesar da importância religiosa e da repercussão social, a união selada apenas por ato religioso constituía uma relação concubinária, exceto nas hipóteses previstas em lei. (WELTER, 2003).

Embora a Constituição Republicana de 1891 não tenha dedicado capítulo específico à família, reconheceu os efeitos do casamento civil e proscreveu a dissolução do vínculo conjugal, como um resquício da influência religiosa.

Com a promulgação da Carta de 1934, foi dedicado capítulo especial ao instituto, sendo o casamento civil indissolúvel elencado como único meio legítimo de constituição da família, orientação que perdurou nos textos constitucionais de 1937 (art. 124); 1946 (art. 163); 1967 (art. 167) e 1969 (art. 175).

2.1.1. O Código Civil de 1916.

O Código Civil de 1916, inspirado no Direito Napoleônico, concebia a família como entidade hierarquizada e matrimonializada, assentada na procriação, na formação de mão-de-obra, na obtenção e transmissão do patrimônio, bem como de valores morais e sociais.

Como nos ensina Orlando Gomes (2002), no Código Civil de 1916, como reflexo de uma sociedade capitalista, a família era entendida como instituição essencialmente privada, individualista e patriarcal. À época, as relações patrimoniais tinham maior relevância e a organização familiar era alicerçada no poder patriarcal exercido pelo chefe de família – o marido – sobre todos os seus dependentes e descendentes, sendo a esposa completamente subjugada, a ponto de ser considerada relativamente incapaz para os atos da vida civil após o casamento.

Como destaca o Mestre Gustavo Tepedino:

A atribuição ao marido do poder de sujeição sobre a mulher, e consequente inferiorização feminina, a ponto de tornar juridicamente incapaz a esposa que até o minuto anterior às núpcias era plenamente capaz e perfeitamente inserida no mercado de trabalho, explica-se no contexto acima delineado; a unidade formal da família, em sendo um valor em si, justificava o sacrifício individual da mulher, em favor da paz doméstica e da coesão formal da entidade familiar. (TEPEDINO, 2004, p. 400).

Décadas depois da edição do Código Civil, o Estatuto da Mulher Casada, consubstanciado na Lei nº. 4.121/62, proporcionou a emancipação da mulher no seio da sociedade conjugal, devolvendo-lhe o status de absolutamente capaz e reconhecendo-a como colaboradora do marido.

Diante da realidade que se estruturava, onde o casamento, frente à valorização do afeto, só se justificava, enquanto baseado na noção de comunhão plena, não só de vida, mas também de sentimentos, surge a Lei do Divórcio (Lei nº. 6.515/77), traçando as normas referentes à dissolução da sociedade conjugal. Esta Lei reflete o rompimento com os valores religiosos antes embutidos neste instituto, possibilitando, inclusive, que os divorciados celebrem novo matrimônio.

Em consonância com os interesses sociais, nasce a Carta Magna de 1988. Segundo Maria Berenice Dias (2006, p. 36), “raras vezes uma constituição consegue produzir tão significantes transformações na sociedade e na própria vida das pessoas”. Esta capacidade de transformação liga-se à necessidade de se atender ao clamor social e evidencia a vinculação entre a norma e a realidade.

A Dignidade da Pessoa Humana, como alicerce fundamental do Estado Democrático de Direito, tutela os direitos de todos os cidadãos, vedando qualquer espécie de discriminação.

A ampliação das relações interpessoais e a reconfiguração das relações familiares romperam com a idéia de família-fim, baseada no casamento. As diversas formas de constituição familiar foram reconhecidas como meios aptos à promoção do indivíduo e, por isso, receberam especial proteção do Estado, insculpida no seio da Lei Fundamental de 1988.

2.1.2. A evolução do concubinato na legislação brasileira.

Concubinato significa comunhão de leito, vem do latim concubinatus, termo formado por duas palavras cum (com) + cubare (dormir), que significa “dormir com”. Essa expressão carrega duplo sentido. O primeiro, genérico, análogo à união livre, que se refere à união de homem e mulher fora do casamento. Enquanto o segundo, mais específico, diz respeito a um semimatrimônio, ou seja, uma comunhão de fato, que se reflete no convívio duradouro entre duas pessoas, como se casadas fossem. (PEREIRA, 2004).

Desde a Carta de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro passou a designar as relações afetivas compreendidas nesta última acepção do termo concubinato como uniões estáveis.

Neste diapasão, são as lições de Rolf Madaleno:

A Constituição Federal de 1988 foi o marco de elevação do precedente concubinato à condição de união estável, (...) Portanto com o aval constitucional a união estável adquiria o status de entidade familiar, (...) posta ao lado do casamento e da família monoparental, causando verdadeira reviravolta jurídica e social (...) ao retirar o concubinato do seu histórico espaço marginal e passar a identificá-lo não mais como uma relação de concubinato, mas doravante como uma entidade familiar denominada como união estável, assemelhada ao casamento, com identidade quase absoluta de pressupostos, (...) (MADALENO, 2008, p. 762-763).

Diante de tais premissas, cumpre buscar na lição de Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 28-29) o conceito de união estável como sendo a “relação afetivo-amorosa entre um homem e uma mulher, não adulterina e não incestuosa, com estabilidade e durabilidade, vivendo sob o mesmo teto ou não, constituindo família sem vinculo do casamento civil”.

Contudo, um longo e sinuoso caminho foi trilhado até a legitimação da união estável como entidade familiar capaz de produzir efeitos jurídicos, já que o Direito brasileiro sempre proscreveu as relações extraconjugais, consideradas imorais.

Como assevera Inacio de Carvalho Neto (2007, p. 161), o “Código de 1916 não tratou do concubinato”, sendo que “as mínimas referências que fez a ele foram para proscrevê-lo”, à exceção do art. 363, que falava do concubinato como causa para a investigação da paternidade. “Cuidou, é verdade, da posse do estado de casados (...), que é meio indireto de provar o casamento pela simples convivência”, o que não tem ligação próxima com o concubinato, apesar de guardar alguma similitude com o mesmo.

Foi a partir dos anos 50 que a doutrina passou a distinguir o concubinato puro – aquele não contemporâneo ao casamento e constituído na ausência de impedimentos matrimoniais, hoje reconhecido como união estável – do concubinato impuro, subdividido em adulterino e incestuoso, com o objetivo de conferir, no primeiro caso, alguma proteção ao concubino, todavia, no âmbito do Direito Obrigacional, tomando por base a noção de sociedade de fato.

A primeira norma favorável à concubina foi o Decreto nº. 2.681/1912, que responsabilizava as empresas ferroviárias por acidentes fatais com passageiros, determinando o pagamento de indenizações aos descendentes do falecido e à sua companheira.

Já o Decreto nº. 3.724/1919, que regulamentava os acidentes de trabalho, equiparou a companheira à esposa, desde que comprovada a sua dependência em relação ao homem.

Num primeiro momento, os Tribunais não reconheciam qualquer direito à concubina quando da dissolução da sociedade conjugal, ao argumento de que vantagens protegidas pelo Direito não poderiam decorrer de relações imorais.

Nesse sentido, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

A concubina não tem direito à indenização por serviços de caseira, porque são próprios de concubinato e, pois, irremuneráveis, por ilícitos... (TJMG, 1ª Câmara Cível, Apelação Cível nº. 5.582, Rel. Des. Eduardo de Menezes Filho, julgado em 20/09/1949, RT 188/409, apud CARVALHO NETO, 2007, p.162).

Aos poucos a condenação moral do concubinato foi abandonada, sendo que a união entre duas pessoas desquitadas deixou de ser vista como adulterina, ao passo que o desquite rompia com o dever de fidelidade decorrente do casamento.

A Súmula 35 do Supremo Tribunal Federal conferiu à concubina o direito de indenização pela morte do amásio, em caso de acidente de trabalho ou de transporte, na inexistência de impedimentos matrimoniais, conferindo maior alcance aos supracitados Decretos nº. 2.681/1912 e 3.724/1919.

Posteriormente, com o objetivo de impedir o enriquecimento ilícito do convivente varão, foi atribuído à concubina o direito de receber salário por serviços domésticos prestados, quando não exercesse atividade remunerada, ou de participar do patrimônio amealhado por esforço comum, quando comprovada sua contribuição na formação do mesmo.

O Supremo Tribunal Federal consolidou tal entendimento através da Súmula 380, segundo a qual uma vez “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. (CARVALHO NETO, 2007, p. 162-164).

Ainda assim, a tutela dos direitos patrimoniais dos concubinos não era satisfatória, posto que a união em questão era tratada como sociedade de fato, cujas controvérsias eram resolvidas perante o Juízo Cível, submetidas ao rito ordinário e ao ônus probatório, dando azo, inclusive, à partilha diferenciada, de acordo com a prova da efetiva contribuição do concubino para o aumento do patrimônio do casal.

No âmbito previdenciário, o Decreto-lei nº. 7.036/1944, em seu art. 21, parágrafo único, permitiu que fosse a companheira declarada beneficiária do acidentado. A Lei nº. 5.890/1973, ao alterar a redação do art. 11 da Lei nº. 3.807/1960, foi a primeira a incluir a companheira como dependente dos segurados. Já a Lei nº. 6.858/1980 beneficiou indiretamente a companheira, que, uma vez habilitada como dependente do segurado, poderia sacar valores do FGTS, do PIS-Pasep, de restituições do Imposto de Renda e outros tributos, com preferência sobre os sucessores. A legislação especial também autorizou os servidores públicos a destinarem pensão à concubina e a abater do Imposto de Renda as despesas com a família concubinária. E em 1980, o Decreto nº. 86.450, que regulamentou o Imposto de Renda, autorizou o contribuinte a incluir a concubina entre seus dependentes. (CARVALHO NETO, 2007, p. 168-170).

Disposição significativa foi aquela inserida na Lei de Registros Públicos, que em seu art. 57, §§ 2º e 4º, autorizou a mulher solteira, desquitada ou viúva, companheira de homem em idêntica condição, a requerer a averbação do nome do companheiro em seu registro de nascimento.

Assim, as entidades familiares informais tornaram-se cada vez mais presentes na sociedade brasileira. Contudo, a jurisprudência foi durante muito tempo reticente, fato que gerou inúmeras injustiças.

Diante da necessidade de um posicionamento jurisprudencial acerca do tema, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 382, dispensando a vida em comum, more uxório, para a caracterização do concubinato, e a Súmula 447, reputando válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino do testador com sua concubina.

2.2. A constitucionalização do Direito de Família e das Sucessões.

A Constituição Federal de 1988, fruto de um processo de redemocratização, instituiu uma nova tábua axiológica que provocou uma verdadeira releitura de toda a legislação infraconstitucional. Os novos princípios e valores constitucionais passaram a nortear a vida privada, dando ensejo ao que a doutrina e a jurisprudência chamaram de constitucionalização do Direito Civil.

Nesse sentido, leciona Maria Celina Bodin de Moraes:

Sob essa ótica, as normas de direito civil necessitam ser interpretadas como reflexo das normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada (porque regulamentação da vida cotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana. Em consequência, transforma-se o direito civil: de regulamentação da atividade econômica individual, entre homens livres e iguais, para regulamentação da vida social, na família, nas associações, nos grupos comunitários, onde quer que a personalidade humana melhor se desenvolva e sua dignidade seja mais amplamente tutelada. (MORAES, 1991, p. 09).

No Direito de Família e no correlato Direito das Sucessões ocorreu um processo de despatrimonialização, em virtude do qual a tutela dos interesses econômicos perdeu espaço para a realização dos direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, elencada como fundamento da República (art. 1º, inciso III, CF/88).

Paulo Luiz Neto Lôbo, citado por Rolf Madaleno, informa que existe:

(...) uma tendência à repersonalização das relações de família, tendo como meta ou suporte fático a valorização da pessoa, e não de seu patrimônio. Isso fica absolutamente claro na medida em que o Estado deixa de proteger as relações de produção da família comunitária e se preocupa com as condições morais, materiais e legais, capazes de dar condições de a pessoa humana se realizar afetivamente em seu círculo familiar. (LÔBO, 1989, p. 74, apud MADALENO, 2008, p. 15).

A Carta Política de 1988, em seu art. 226, revolucionou as relações familiares, ao reconhecer como forma legítima de constituição de família não só o casamento, mas, também, a união estável e a família monoparental, formada por qualquer um dos genitores e seus descendentes.

Como destaca Heloísa Helena Barboza (2005), o reconhecimento constitucional de entidades familiares não oriundas do casamento vem suscitando importantes debates. A discussão relativa à existência de hierarquia entre os modelos familiares tem grande relevância no estudo dos direitos sucessórios do companheiro.

A origem da discussão está no § 3º, do art. 226, da Constituição, que ao reconhecer a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, determina que a sua conversão em casamento seja facilitada pela lei.

Esse dispositivo deu azo à interpretação de que o casamento é o modelo familiar priorizado pelo constituinte, ensejando uma espécie de hierarquia entre as famílias. As relações familiares não oriundas do casamento teriam proteção e direitos diferenciados ou limitados. (DINIZ, 2002).

Registrado o devido respeito a seus defensores, tal entendimento, contudo, não se harmoniza com a nova ordem constitucional, que elencou a tutela da dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, definindo como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer espécie. Tal entendimento afronta, mais diretamente, a garantia de liberdade e igualdade insculpida no art. 5º, inciso I, da Constituição Federal.

Portanto, se o Estado deve zelar pela construção de uma sociedade livre e justa, deve promover a igualdade social, vedada qualquer forma de discriminação, não pode privilegiar uma forma de constituição de família em detrimento de outra, sob pena de cercear a liberdade individual, afrontando os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Se não há hierarquia entre as famílias, nada legitima o tratamento diferenciado de seus integrantes em razão da forma de sua constituição. Assim, mostra-se imperiosa a equalização das situações jurídicas outorgadas aos cônjuges e aos companheiros, eis que a todas as entidades familiares foi garantida especial proteção do Estado.

Alguns autores e juízes chegaram a defender a auto-aplicabilidade do art. 226, §3º, da Constituição, estendendo aos companheiros os direitos atribuídos aos cônjuges, como se vê do seguinte Julgado:

(...) o reconhecimento da ocorrência deste fenômeno, por si só evidencia independer de qualquer regramento infraconstitucional a imediata eficácia da norma constitucional. O exaustivo material legislativo que disciplina os direitos e deveres das relações decorrentes do casamento, sua dissolução, as obrigações alimentares, bem como as consequências no âmbito sucessório, autoriza a imediata aplicação destes institutos com referência às denominadas uniões estáveis, proclamadas pela Carta Magna como entidades familiares, dentro das disposições que tratam da família, à qual outorga especial proteção. (TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº. 590.069.308, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 29/06/2998, apud SANTOS, F., 2006).

Após seis anos de um eloquente silêncio legislativo, em atenção à nova ordem constitucional, foram editadas leis especiais sobre a união estável, que trouxeram disposições sobre sua conceituação, direitos e deveres dos companheiros, bem como atribuindo a estes assistência material por meio de alimentos, meação nos bens e participação na herança.

A Lei nº. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, dispôs que para ser considerada estável a união deveria durar cerca de cinco anos, salvo se dela resultasse prole. Garantiu ao companheiro necessitado direito a alimentos, desde que fosse solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo. Estipulou a sua participação na herança, mediante usufruto parcial em concorrência com os descendentes ou ascendentes, e recebimento de todos os bens na falta daqueles herdeiros.

Tratou, ainda, do direito à meação post mortem, segundo Euclides de Oliveira (2005, p. 150) “em redação canhestra que parecia esquecer a possibilidade de divisão dos bens por dissolução da união estável em vida, já admitida de forma pacífica pela jurisprudência (Súmula 380 do STF)”.

Já a Lei nº. 9.278, de 10 de maio de 1996, reformulou o conceito de união estável ao dispensar o requisito temporal e não mencionar a questão do estado civil. (CARVALHO NETO, 2007).

De forma explicita, assegurou o direito de meação em virtude do condomínio decorrente da presunção de colaboração na aquisição onerosa de bens durante o tempo da união. No âmbito sucessório, estendeu ao companheiro o direito real de habitação.

Como vimos, antes da Constituição de 1988, o concubinato era inserido no direito de sociedade, sendo suas lides dirimidas perante o Juízo Cível. Com a elevação da união estável ao status de entidade familiar, o art. 9º, da Lei nº. 9.278/96, firmou a competência das Varas de Família para conhecer e julgar as causas relativas à união estável.


3. A SUCESSÃO DOS COMPANHEIROS NAS LEIS Nº. 8.971/94 E 9.278/96.

Antes da regulamentação legal da união estável não era atribuído direito de herança aos companheiros, até então chamados de concubinos.

Segundo lição de Euclides de Oliveira:

Na ordem de vocação hereditária, conforme o art. 1.603 do Código Civil de 1916, aparecia apenas o cônjuge sobrevivente, para haver a herança depois dos descendentes e dos ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam os colaterais, sem lugar, portanto, para chamamento de companheiro supérstite. (OLIVEIRA, 2005, p. 150)

Conforme entendimento consolidado na Súmula 380 do STF, a jurisprudência atribuía aos concubinos apenas o direito de partilha dos bens adquiridos por esforço comum, em sociedade de fato orientada pelo direito obrigacional. O direito de herança não era assegurado ao companheiro, que recebia apenas a participação no patrimônio em percentual variável, de acordo com sua efetiva contribuição.

A atribuição de herança aos companheiros só era possível através de disposição testamentária, vedada a outorga por homem casado à sua concubina, nos termos dos arts. 1.177 e 1.719, inciso III do Código Civil de 1916. (CAHALI; CARDOSO, 2008).

Em virtude do art. 226, §3º, da Carta Política de 1988, regulamentado pelas leis da união estável, a sucessão mortis causa entre companheiros foi, enfim, admitida, de forma análoga ao direito consagrado ao cônjuge sobrevivente pelo Código Civil de 1916, em seus arts. 1.603, III e 1.611, “com implícita alteração da ordem de vocação hereditária, uma vez que, existindo companheiro com direito à herança, afastava-se o chamamento dos colaterais sucessíveis”. (OLIVIERA, 2005, p. 151). 

Assim, nos termos do art. 2º, da Lei nº. 8.971/94, o companheiro participava da sucessão do falecido em condições muito semelhantes às do cônjuge:

1.                  enquanto não constituísse nova união, o convivente teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido, se houvessem filhos deste ou comuns; ou ao usufruto da metade dos bens, se não houvessem filhos, embora sobrevivessem ascendentes; e

2.                  na falta de descendentes e de ascendentes, o convivente teria direito à totalidade da herança.

Tais direitos não foram mencionados na Lei nº. 9.278/96, mas também não foram revogados expressa ou tacitamente. A nova lei da união estável limitou-se, em seu art. 7º, parágrafo único, a atribuir mais um direito sucessório ao companheiro supérstite, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, qual seja o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família.

Segundo Rainer Czajkowski (1999), para o reconhecimento do direito real de habitação não se exigia a coabitação, uma vez que esta não era elencada entre os deveres dos conviventes previstos no art. 2º, da Lei nº. 9.278/96.

Outrossim, o convivente supérstite poderia cumular os direitos de usufruto e de habitação, o que não acontecia com os cônjuges, que teriam direito a apenas um dos benefícios, dependendo do regime de bens adotado no casamento. E à semelhança do cônjuge, o companheiro não foi reconhecido como herdeiro necessário. (CARVALHO NETO, 2007).

Analisando a regulamentação legal da união estável, Euclides de Oliveira (2005, p.151-152) conclui “que houve um grande avanço em favor dos direitos do companheiro, por sua prática equiparação aos direitos do cônjuge no plano sucessório”. No entanto, o autor ressalta que não faltaram críticas ao posicionamento do legislador.

Como veremos, estes avanços foram ignorados pelo legislador quando da edição do Código Civil de 2002, que regulamentou a sucessão dos companheiros em seu art. 1.790, de forma, no mínimo, atécnica. 


4. A UNIÃO ESTÁVEL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002.

O Código Civil de 2002 não inovou ao conceituar a união estável, que foi disciplinada nos arts. 1.723 a 1.726. O legislador praticamente repetiu no art. 1.723 a definição inserta na Lei nº. 9.278/96: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituição de família”.

Como se vê, não foi feita nenhuma referência às uniões homoafetivas, já que é exigida a diversidade de sexos, em conformidade com o disposto no art. 226, § 3º, da Carta de 1988.

Assim como a Lei nº. 9.278/96, o novo Código também dispensou a exigência de tempo mínimo de duração da convivência, requerendo, tão somente, que a união seja duradoura, o que deverá ser examinado no caso concreto.

Como destaca Euclides de Oliveira (2005, p. 153), uma inovação importante diz respeito aos impedimentos matrimoniais previstos no art. 1.521 do Código Civil, que, por força do § 1º, do art. 1.723, do mesmo diploma legal, se aplicam à união estável. Desta forma, “a convivência entre parentes em linha reta, colaterais até o terceiro grau, afins em linha reta e o envolvimento com pessoas casadas desfiguram a união estável, podendo enquadrar-se como simples concubinato (art. 1.727 do mesmo Código)”. Frise-se que o Código Civil excepcionou o inciso VI, do art. 1.521, reconhecendo como entidade familiar a união estável constituída por pessoa casada, mas separada judicialmente ou de fato.

O art. 1.726 do Código Civil trata da possibilidade de conversão da união estável em casamento, “mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”.

Dentre os deveres dos companheiros previstos no art. 1.724 do Código Civil, destaca-se o dever de assistência mútua, do qual decorre a obrigação de prestar alimentos, que será mensurada de acordo com a necessidade do reclamante e a capacidade financeira da pessoa obrigada, nos termos do art. 1.694 do Código Civil.

No âmbito patrimonial, a união estável assemelha-se ao casamento em muitos aspectos, pois sujeita-se, no que couber, ao regime da comunhão parcial de bens, conforme o disposto no art. 1.725, do Código Civil. Por conseguinte, os bens adquiridos onerosamente durante a convivência são de propriedade comum, exceto os adquiridos com o produto da venda de bens particulares. Além disso, as partes podem estipular a incomunicabilidade dos bens através de contato escrito.

Em caso de falecimento de um dos companheiros, o sobrevivente terá direito à meação, de acordo com o regime de bens, e à participação nos bens adquiridos onerosamente na constância da união, em concorrência com os descendentes, ascendentes e colaterais do falecido. O convivente supérstite apenas receberá a totalidade da herança na ausência de parentes sucessíveis.

Observe-se que o tratamento sucessório dos companheiros é bem diverso e, em muitos aspectos, inferior ao conferido ao cônjuge viúvo. Nesse sentido, vale anotar que ao cônjuge é assegurado o direito real de habitação sobre o imóvel residencial deixado pelo de cujus, direito não estendido ao companheiro, num manifesto retrocesso em face da previsão do art. 7º, parágrafo único da Lei nº. 9.278/96.

Entretanto, autores como Sílvio Venosa, Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Aldemiro Rezende Dantas Júnior e Eduardo de Oliveira Leite defendem a manutenção do direito real de habitação em favor do companheiro, argumentando que não houve revogação expressa da Lei nº. 9.278/96. Já Maria Helena Diniz entende que o dispositivo do art. 7º, parágrafo único, da referida Lei é norma especial, prevalecendo sobre as normas gerais insertas no Código de 2002.  (CARVALHO NETO, 2007).

De outra banda, Inacio de Carvalho Neto (2007) afirma a revogação tácita da Lei nº. 9.278/96, baseado no art. 2º, § 1º, da LICC, argumentando que o novo Código regulou por completo a sucessão do companheiro, sem conceder-lhe o direito real de habitação.

Sobre o tema, note-se que no julgamento do Recurso Especial nº. 175.862-ES, o Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar considerou que o art. 7º da Lei nº. 9.278/96 não foi revogado, tendo, portanto, o companheiro sobrevivente direito real de habitação sobre imóvel destinado à moradia da família. (ARAÚJO, 2005).

Nesse sentido, dispõe o Enunciado nº. 117, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002:

ENUNCIADO 117 – Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88.

Por outro lado, ao cônjuge foi atribuído status de herdeiro necessário, enquanto inexiste disposição semelhante em favor do companheiro, que poderá ser afastado da sucessão por testamento, sem necessidade de qualquer justificação, assim como ocorre com os colaterais.

Para muitos autores o companheiro não pode ser alçado à condição de herdeiro necessário em respeito à sistemática do Código, razão pela qual Maria Berenice Dias (apud HIRONAKA; PEREIRA, 2004, p. 440) assevera que a “inclusão do cônjuge, mas não do companheiro, como herdeiro necessário tem levado ao questionamento sobre a constitucionalidade da diferenciação, que não constava da legislação pretérita nem é desejada por ninguém. Trata-se de um retrocesso odioso”.

Verifica-se, portanto, que o regime sucessório do companheiro é flagrantemente discriminatório se comparado ao do cônjuge. Corroborando tal assertiva, Euclides de Oliveira (2005, p. 154) conclui que “nada justifica essa diversidade de tratamento legislativo quando todo o sistema jurídico à luz da Constituição recomenda proteção jurídica à união estável como forma alternativa de entidade familiar, ao lado do casamento. Foi apenas na sucessão hereditária que isso se deu”.

Zeno Veloso (2003, p. 236-237), comentando esse injustificável tratamento discriminatório, sustenta que “a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais”.

Também nesse sentido é a lição de Rolf Madaleno (2008, p. 141), enfático ao dizer que “o art. 1.790 é ofensivo ao texto constitucional, porque agride a igualdade de proteção que a lei deve deferir a todas as espécies de família, uma vez que não aceitamos a alegada superioridade de qualquer das espécies familiares sobre as demais”. O autor salienta que a referida inconstitucionalidade também está presente nos casos em que a lei beneficia o companheiro em detrimento do cônjuge.

Outros efeitos jurídicos da união estável subsistem em leis especiais e em dispositivos avulsos do Código Civil, especialmente no que respeita à afinidade que se estabelece entre o companheiro e os parentes do outro, no direito ao bem de família e na possibilidade de adoção por companheiros.

4.1. Sucessão legítima pelos companheiros.

A sucessão do companheiro sofreu profundas mudanças no novo Código, muitas negativas, verdadeiros retrocessos diante do tratamento dispensado à matéria na legislação pretérita, que havia equalizado os direitos conferidos aos cônjuges e aos companheiros na seara sucessória.

Num primeiro momento, insta salientar que o Anteprojeto de Código Civil datado de 1972, bem como o Projeto apresentado para discussão em 1975 e aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984, por óbvio, não mencionavam a união estável, que veio a ser definida como entidade familiar somente em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã. 

Foi o Senador Nélson Carneiro, considerado um dos grandes nomes da luta pela modernização das relações familiares, quem apresentou emenda no sentido de garantir direitos sucessórios aos companheiros.

Segundo Euclides de Oliveira (2005, p. 158), isso pode explicar a ”má alocação do tema no Código Civil e seu tratamento diferenciado em relação aos dispositivos que cuidam do direito sucessório do cônjuge”.

O art. 1.790, que prevê a sucessão dos companheiros, foi inserido no capítulo que versa sobre as disposições gerais da sucessão, fora, portanto, do capítulo que disciplina a ordem de vocação hereditária, um equívoco muito criticado por autores renomados, dentre os quais estão Rolf Madaleno (2004, p. 113) e Zeno Veloso (2006, p. 1.484).

O legislador poderia ter evitado esta impropriedade, que consubstancia uma discriminação injustificável frente à nova axiologia constitucional, mencionando o companheiro, juntamente com o cônjuge, nos arts. 1.829 a 1.832, 1.836 a 1.839 do Código Civil.

Além de ser um evidente erro de técnica legislativa, a inserção do art. 1.790 entre as disposições gerais do direito das sucessões “também significa um manifesto desleixo no trato do direito sucessório de quem participa de uma entidade familiar, ainda que sem o pálio do casamento, e nessa qualidade estaria a merecer adequada proteção jurídica assegurada em plano constitucional, sem distinções quanto ao modo de formação da família assim originada”. (OLIVEIRA, 2005, p. 159).

Feitas tais observações, verifica-se que, uma vez caracterizada a união estável, o chamamento dos conviventes para suceder ocorrerá nos seguintes termos:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Fora as críticas feitas à terminologia utilizada no supracitado artigo, para grande parte da doutrina e jurisprudência, as suas disposições são retrógradas e discriminatórias, dando ensejo a lamentáveis injustiças. (SANTOS, L., 2003)

O artigo em comento, já no caput, revela seu cunho discriminatório, ao restringir a participação dos companheiros aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, vedando o acesso aos demais bens, ainda que faltem herdeiros sucessíveis.

Na ausência de contrato escrito sobre o regime de bens, prevalece o regime da comunhão parcial (art. 1.725, CC). Assim, vejamos o absurdo da norma inserta no art. 1.790 do Código Civil:

1.quanto aos bens adquiridos onerosamente no curso da união o companheiro terá direito à meação, bem como à sucessão em concorrência com os descendentes, ascendentes e colaterais do falecido. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).  

Ao comentar essa possibilidade, Euclides de Oliveira (2005) critica a concessão ao convivente do direito à meação, em conjunto com o direito à sucessão sobre os bens adquiridos onerosamente durante a união livre, lembrando que em situação semelhante, o cônjuge teria apenas a meação, sem nenhuma participação na herança, salvo o direito de habitação.

Para Inacio de Carvalho Neto (2007, p. 185-186), apesar da relativa confusão entre meação e sucessão, “prevalece ainda a distinção, já que o art. 1.725 é claro em falar do regime de bens na união estável”. O autor não vê incompatibilidade entre as duas disposições, considerando que “nada impede que o companheiro tenha direito à meação e à herança. Mas esta será sempre [na sucessão legítima] sobre os bens adquiridos na constância da união a título oneroso”.

2. “não tendo o de cujus deixado nenhum outro herdeiro sucessível, o companheiro recolherá todos os bens adquiridos na constância da união a título oneroso, e os demais bens serão considerados vacantes” (CARVALHO NETO, 2007, p. 185), passando ao domínio do Poder Público, conforme disposto nos arts. 1.790 (caput e inciso IV) e 1.819 a 1.823, todos do Código Civil.

3. inexistindo parentes sucessíveis e bens adquiridos onerosamente ao longo da convivência, o companheiro não terá direito à meação, nem à sucessão sobre os bens particulares do falecido, que serão declarados vacantes e outorgados ao Poder Público, conforme disposto nos arts. 1.790 (caput e inciso IV) e 1.819 a 1.823, todos do Código Civil.

Analisando estas hipóteses, Luiz Felipe Brasil Santos (2003) fala em antinomia entre o caput e o inciso IV do art. 1.790. Para o autor seria necessária uma “interpretação construtiva” para entender que, no caso do inciso IV, não há limitação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união e que a expressão herança, utilizada nos incisos III e IV do prefalado artigo, deve ser interpretada em seu sentido próprio, indo além dos bens descritos no caput.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2002), além de criticarem a falta de técnica legislativa, sugerem uma interpretação do art. 1.790 que favoreça os interesses do companheiro, em busca do que teria sido a real intenção do legislador.

Os autores lembram que, segundo o art. 1.844 do Código Civil, inexistindo cônjuge, companheiro e parentes sucessíveis, ou tendo eles renunciado à herança, esta será devolvida ao Poder Público.

Salientam que quando o convivente não concorre com parentes sucessíveis, a própria lei se apressa em dizer que o mesmo terá direito à totalidade da herança (art. 1.790, inciso IV), fugindo ao comando do caput, ainda que de forma atécnica. 

Ao final, afirmam que, por força do art. 1.819 a abertura da herança jacente apenas se dá quando não há herdeiro legítimo. Com isso conferem status de herdeiro legítimo ao companheiro, ainda que não haja previsão nesse sentido no art. 1.829.

Apesar da justiça do critério interpretativo empregado pelos ilustres autores, a melhor doutrina recomenda uma exegese sistemática dos incisos, observados os mandamentos do caput. Nas palavras de Luís Paulo Cotrim Guimarães (2003, p. 53):

(...) o art. 1.790 do NCC, ao explicitar as regras sucessórias daqueles que vivem em união estável, vinculou os quatro incisos, sistematicamente, ao conteúdo de seu comando central, o caput, que restringe, assim, a entrega do monte hereditário aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência.

Inacio de Carvalho Neto (2007, p. 191-192) conclui que, neste caso, “a herança será parcialmente vacante se, mesmo havendo companheiro, não tiver o de cujus deixado outros herdeiros, deixando, contudo, bens anteriores à união ou adquiridos a título gratuito. Não socorre a redação do art. 1.844, que deve ser interpretado também em consonância com o caput do art. 1.790”.

As críticas da doutrina são veementes, a ponto de Luís Paulo Cotrim Guimarães (2003, p. 53) e Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2004, p. 539) afirmarem a inconstitucionalidade do dispositivo por ofender ao princípio constitucional da isonomia e promover o enriquecimento sem causa do Estado.

Em que pese a divergência doutrinária acerca do tema, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assim decidiu:

EMENTA:  União Estável. Direitos sucessórios da companheira. Não possuindo o companheiro falecido descendentes e nem ascendentes, a companheira tem direito à integralidade da herança, independentemente de os bens inventariados terem sido adquiridos antes ou depois da união estável. Inteligência do art. 2º da Lei 8.971-94, aplicável à espécie. Negado provimento ao apelo. (TJRGS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº. 70016506693, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 08/11/2006, apud ISMAEL, 2008)

É preciso esclarecer, também, que a celebração de um contrato escrito entre os conviventes para a alteração do regime patrimonial da convivência não afeta a regra sucessória prevista no art. 1.790 do Código Civil. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

Feitas estas observações, passaremos à análise das normas relativas à concorrência sucessória do companheiro com os descendentes e ascendentes do falecido, relativamente aos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável, sendo que a concorrência com os parentes colaterais será objeto de capítulo específico.

Nos termos do inciso I do art. 1.790, concorrendo com descendentes comuns, o companheiro terá direito a uma quota equivalente à de cada um daqueles, em oposição ao tratamento conferido ao cônjuge, cuja concorrência com descendentes diferencia-se de acordo com o regime de bens (art. 1.829, I) e cuja quota parte não pode ser inferior a ¼ (art. 1.832).

Já o inciso II, do mesmo artigo, dispõe que, se concorrer com descendentes exclusivos do autor da herança, caberá ao companheiro a metade do que couber a cada um daqueles.

Como se vê, os referidos incisos I e II reproduzem a equivocada distinção entre descendentes exclusivos do autor da herança e descendentes comuns, prevista no art. 1.832 do Código, relativo à sucessão do cônjuge. Não existe razão para diferenciação de quotas da herança pela origem dos filhos concorrentes na sucessão. (OLIVEIRA, 2005).

Além disso, “a diversidade de critérios de atribuição da herança conforme sejam os filhos descendentes comuns ou exclusivos do autor da herança, constitui fator de complicação no momento da partilha. (...) quando houver filhos de híbrida origem”. (OLIVEIRA, 2005, p. 166).

Neste caso, surge a problemática do cálculo da quota devida ao convivente. Inexistindo critério legal aplicável, Giselda Hironaka (apud OLIVEIRA, 2005, p. 167-169) apresenta as seguintes possibilidades para a partilha da herança:

1.                  identificação dos descendentes como se todos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusivamente o inciso I do art. 1.790 do Código Civil, conferindo ao companheiro quota igual à atribuída àqueles;

2.                  identificação dos descendentes como se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, aplicando-se, neste caso, apenas o inciso II do art. 1.790 do Código Civil, restringindo a quota do companheiro à metade do que couber aos descendentes;

3.                  composição dos incisos I e II pela atribuição de uma quota e meia ao convivente sobrevivente;

4.                  composição dos incisos I e II pela subdivisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

Os Professores Gabriele de Tusa e Fernando Curi Peres aperfeiçoaram o cálculo proporcional, considerando o número de filhos de origem diversa e propuseram a adoção de uma fórmula matemática, baseada na leitura conjunta dos incisos I e II do artigo em análise.

Francisco José Cahali e Fabiane Domingues Cardoso (2008, p. 138-139) citam a referida fórmula nos seguintes termos: 

Onde:

X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.

C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.

H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.

F = o número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

Para facilitar a intelecção desta fórmula vejamos a sua aplicação numa situação hipotética (apud CAHALI; CARDOSO, 2008, p. 139):

H = R$ 100.000,00.

F = oito filhos comuns.

S = dois filhos exclusivos.

Cada filho receberá:

X =            2 (8 + 2)          . R$ 100.000,00

        2 (8 + 2)2 + 2 (8 + 2)

X =   20  . R$ 100.000,00

       218

X = R$ 9.174,31

O companheiro sobrevivente receberá:

C =     2 (8 + 2)   . R$ 9.174,31

           2 (8 + 2)

C =  18  . R$ 9.171,31

        20

C = R$ 8.256,88

Como se vê, cada filho herdará R$ 9.174,31 (nove mil, cento e setenta e quatro reais e trinta e um centavos), enquanto o companheiro sobrevivente receberá R$ 8.256,88 (oito mil, duzentos e cinquenta e seis reais e oitenta e oito centavos).

Após refletir sobre tamanha diversidade de posicionamentos, o mestre Euclides de Oliveira (2005, p. 171) conclui “que a interpretação mais consentânea e que poderá vingar no tumulto interpretativo da disposição em comento será a de atribuir ao companheiro quota igual à dos descendentes apenas quando seja ascendente de todos habilitados na herança. Na situação inversa, subsistindo filhos de outra origem, ainda que concorrendo com filhos em comum entre o autor da herança e o companheiro, a este tocaria somente metade de cada quota hereditária”.

Em sentido contrário, defendendo a prevalência do inciso I do art. 1.790, Aldemiro Rezende Dantas Júnior (apud OLIVEIRA, 2005, p. 171-172) pondera que, havendo concorrência sucessória do companheiro com descendentes comuns e com exclusivos do falecido, “o companheiro deverá receber quota igual à que será atribuída a cada um dos descendentes”.

É certo que tal polêmica poderia ter sido evitada pelo legislador, bastando para isso elidir esta equivocada distinção de critérios, limitando-se a deferir ao convivente determinada quota em concurso com os descendentes, à semelhança do que seja devido ao cônjuge, impedindo litígios quanto a atribuição de bens em concurso com os descendentes, qualquer que seja sua origem.

Ainda com relação ao regime de concorrência sucessória, passemos à análise do disposto no inciso III do art. 1.790 do Código Civil. O referido inciso determina que o companheiro receberá um terço da herança quando concorrer com outros parentes sucessíveis, sendo que estes compreendem os ascendentes e os colaterais.

Este inciso consubstancia “mais uma injustificável discriminação do companheiro em relação ao cônjuge, e, mais ainda, uma injustificável redução no direito hereditário do companheiro”. (CARVALHO NETO, 2007, p. 190).

Conforme esclarece Euclides de Oliveira (2005, p. 172):

Havendo pai e mãe sobrevivos ao autor da herança, o concurso do companheiro é igual ao direito que teria o cônjuge, ou seja, um terço da herança para cada um dos três herdeiros concorrentes. Mas sendo pré-morto um dos ascendentes, ou sobrevivendo apenas avós do autor da herança, o companheiro continua tendo apenas um terço, enquanto, se fosse casado, perceberia metade dos bens (art. 1.837 do Código Civil).

Como a concorrência sucessória do companheiro limita-se aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, se o de cujus não deixou bens desta natureza, mas tão-somente patrimônio particular, o companheiro nada receberá, uma vez que não terá direito à meação e tampouco à participação na herança.

Outra impropriedade da sucessão do companheiro no Código Civil decorre do disposto no art. 1.830, que autorizaria a concorrência sucessória entre o companheiro e o cônjuge sobrevivente, desde que este comprove estar separado de fato há menos de dois anos, ou, em caso de separação fática superior ao referido prazo, demonstre que a convivência se tornou impossível por culpa exclusiva do de cujus.

É grande a polêmica a esse respeito, daí por que invocamos a lição precisa dos mestres José Francisco Cahali e Giselda Hironaka (2003, p. 236):

Existe um conflito entre as normas, na medida em que duas pessoas, pela análise fria dos textos, seriam titulares da mesma herança. Para a convivência das regras, caracterizada a união estável, há que se prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge, integrante formal de matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil. Mas, à evidência, não se privará o cônjuge de eventual meação sobre o patrimônio adquirido na constância do casamento, bens estes a cuja comunhão o companheiro não terá direito, pois adquiridos anteriormente à união estável.

Além das inúmeras impropriedades, equívocos e retrocessos já apontados, causa ainda mais espanto o fato da nova legislação ter instituído a concorrência sucessória entre o convivente supérstite e os parentes colaterais do falecido, conferindo a estes privilégio há muito extinto, em prejuízo daquele que contribuiu na construção do patrimônio do autor da herança.

Razão pela qual, no próximo capítulo, dedicaremos especial atenção à análise da concorrência sucessória do companheiro sobrevivente com os parentes colaterais até o quarto grau.


5. A CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA ENTRE O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE E OS PARENTES COLATERAIS DO FALECIDO.

Ao determinar que o companheiro sujeita-se à concorrência com os demais parentes sucessíveis, o art. 1.790, inciso III, do Código Civil, possibilita que na ausência de descendentes e ascendentes, os parentes colaterais até o quarto grau sejam chamados a suceder, cabendo ao companheiro apenas um terço da herança em casos tais. Trata-se de um evidente retrocesso, diante do caráter protetivo das leis que anteriormente disciplinavam a sucessão na união estável.

Além disso, “para acentuar ainda mais o rebaixamento no trato sucessório do companheiro, sua concorrência na herança restringe-se aos bens havidos onerosamente durante a convivência, conforme a regra do caput do art. 1.790. Ou seja, ele nada receberá sobre bens havidos pelo de cujus a título de liberalidade (doação ou herança) e sobre aqueles adquiridos antes de iniciada a convivência”. (OLIVEIRA, 2005, p. 174).

Antes de analisarmos as críticas feitas pelos doutrinadores e pelos magistrados a este dispositivo, vejamos quem são os parentes colaterais sucessíveis do de cujus: os irmãos do falecido (colaterais em 2º grau), os sobrinhos e os tios do morto (colaterais em 3º grau), bem como os tios-avós, os sobrinhos-netos e os primos-irmãos (colaterais em 4º grau). (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2007, p. 221) demonstram a injustiça gerada por este dispositivo através do seguinte exemplo:

João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes nem ascendentes, tinha dois bens: uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum). Deixou seu tio-avô vivo. Nesse caso, a divisão da herança será a seguinte:

Bens do falecido

Apartamento – Bem comum (arts. 1.790, III, e 1.839 do CC)

- 50% (meação) pertencem à companheira;

- 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/3) e o tio-avô do falecido (2/3).

Casa de praia – Bem particular (arts. 1.790, caput, e 1.839 do CC)

- 100% (herança) será apenas do tio-avô do falecido.

Ainda mais absurda seria a situação em que o autor da herança houvesse deixado apenas o imóvel em que residia com o companheiro, sendo esse um bem particular e supondo a habilitação de um herdeiro colateral, o convivente supérstite não teria qualquer participação na herança e não poderia continuar residindo no referido imóvel, já que o novo Código Civil não lhe assegura o direito real de habitação.

Causa espanto imaginar que a parentes tão distantes, como um primo-irmão ou um sobrinho-neto, sejam assegurados mais direitos que ao companheiro de uma vida.

Note-se também que, em oposição ao tratamento sucessório do companheiro, o cônjuge sobrevivo ocupa o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, sendo-lhe atribuída a totalidade da herança na falta de descendentes e de ascendentes do falecido (art. 1.829, III c/c o art. 1.838).

O retrocesso evidencia-se quando comparamos o atual regime sucessório da união estável com aquele anteriormente previsto no art. 2º, inciso III, da Lei nº. 8.971/94, segundo o qual na falta de descendentes ou ascendentes ao convivente era deferida a totalidade da herança.

Quanto ao tema, vale lembrar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet que, ao fazer referência à doutrina portuguesa de Vital Moreira e J.J. Gomes Canotilho, afirma que a proibição do retrocesso “pode ser considerada uma das consequências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, nesse contexto, assume condição de verdadeiros direitos de defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruição ou redução”. (apud TARTUCE; SIMÃO, 2007, p. 221).

Ao autorizar a participação dos colaterais em concorrência com o companheiro, atribuindo-lhes a maior parte do patrimônio deixado pelo falecido, o legislador infraconstitucional privilegiou de forma equivocada laços sanguíneos remotos, em detrimento dos laços de afeto, hoje tão valorizados pelo Direito, e, por conseguinte, promoveu uma injustificável discriminação entre cônjuges e companheiros.

Após sucinta apresentação do evidente retrocesso decorrente da norma contida no inciso III, do art. 1.790 do Código Civil, cumpre-nos trazer à baila as controvérsias suscitadas pela doutrina, bem como a interpretação que vem sendo consolidada na jurisprudência acerca da matéria.

5.1. Controvérsia sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, inciso III, CC.

Desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a doutrina e a jurisprudência criticam veementemente o art. 1.790, em virtude do tratamento sucessório conferido ao companheiro supérstite, muitas vezes discriminatório, se comparado ao novo status do cônjuge sobrevivente.

O mestre Zeno Veloso (2003) faz crítica contundente ao legislador. Após lembrar que na sociedade contemporânea, em oposição à família patriarcal, ampla e hierarquizada de outrora, prevalece a família nuclear, correspondente à comunidade formada pelo casal e seus descendentes, fundada na afetividade, bem como nos princípios da liberdade e igualdade, conclui que “o legislador não pode dar as costas para este fato social”.

A respeito da concorrência sucessória entre o companheiro e os colaterais até o quarto grau, objeto imediato do presente trabalho, o autor afirma:

Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que começou a vigorar no Terceiro Milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4º grau do de cujus. Temos de convir: isto é demais! Para tornar a situação mais grave e intolerável, conforme a severa restrição do caput do art. 1.790, que foi analisado acima, o que o companheiro sobrevivente vai herdar sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de cujus, mas, apenas, o que foi adquirido na constância da união estável, e a título oneroso.  (...) Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa ou justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferências sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando? (VELOSO, 2003, p. 293).

Silvio Rodrigues (2002, p. 119) também não poupa críticas ao dispositivo em comento:

Não vejo razão alguma para que o companheiro sobrevivente concorra – e apenas com relação à parte da herança que for representada por bens adquiridos onerosamente durante a união estável – com os colaterais do de cujus. Nada justifica colocar-se o companheiro sobrevivente numa posição tão acanhada e bisonha na sucessão da pessoa com quem viveu pública, contínua e duradouramente, constituindo uma família, que merece tanto reconhecimento e apreço, e que é tão digna quanto a família fundada no casamento. O correto, como já fazia a Lei n. 8.971/94, art. 2º, III, teria sido colocar o companheiro sobrevivente à frente dos colaterais, na sucessão do de cujus.

Inúmeros autores, além de apontarem as injustiças do atual regime sucessório do companheiro, afirmam a inconstitucionalidade do inciso III do art. 1.790, seja pela valorização excessiva do parentesco biológico, seja pela violação a princípios constitucionais.

Um dos primeiros autores a abordar este assunto foi o professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2003, p. 46), para quem:

O correto seria cuidar, em igualdade de condições às pessoas dos cônjuges, da sucessão em favor dos companheiros. Tal conclusão decorre da constatação de que, desde o advento das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96, os companheiros e os cônjuges passaram a receber igual tratamento em matéria de Direito das Sucessões: ora como sucessores na propriedade, ora como titulares de usufruto legal, ora como titulares de direito real de habitação. Desse modo, considerando que, por força de normas infraconstitucionais, desde 1996 existe tratamento igual na sucessão entre cônjuges e na sucessão entre companheiros, deveria ter sido mantido tal tratamento para dar efetividade ao comando constitucional contido no art. 226, caput, da Constituição Federal. Diante de tais ponderações, cabe à doutrina e à jurisprudência corrigir os vícios detectados no curso do processo legislativo e, desse modo, proceder a combinação das disposições contidas no art. 2º da Lei nº 8.971/94, com as relativas aos cônjuges no art. 1.829, incisos I, II e III, CC, sob pena de flagrantes inconstitucionalidades serem cometidas contra as pessoas dos companheiros. (grifo nosso)

Combatendo a valorização dos vínculos sanguíneos, a Juíza Maria Luiza Póvoa Cruz (2007, p. 156) leciona:

Limitar o direito sucessório dos companheiros aos bens adquiridos a ‘título oneroso’ na vigência da união estável e estabelecer um sistema de fixação das quotas hereditárias em supremacia aos vínculos sanguíneos (colaterais até o 4º. Grau) é inconstitucional e representa retrocesso, abandonando os direitos que as Leis 8.971/94 e 9.278/96 haviam concedido aos companheiros.

Denigelson da Rosa Ismael (2008), apoiado em vários julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, posiciona-se a favor da inconstitucionalidade do dispositivo em foco, vez que, a seu sentir:

Inferioriza aquele que dividiu e compartilhou uma vida em comum com o de cujus. Coloca numa esfera abaixo aquele que participou e contribuiu para a aquisição do patrimônio em comum. Valorizou o legislador ordinário, de forma errônea e equivocada, um grupo de pessoas "outros parentes sucessíveis" que, em muitos casos, nem ao menos têm convivência com o autor da herança (...).

Para o advogado Antonio Artêncio Filho (2008) a regra em comento é inconstitucional por ofensa aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, cabendo aos interessados requerer a declaração de inconstitucionalidade, pelo controle difuso, com vistas à obtenção de uma solução mais justa.

Elisa Costa Cruz (2005) enfrenta a questão da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790, sob o prisma dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da vedação do retrocesso, concluindo que é indispensável um exame acurado da matéria.

Contudo, em oposição à tese da inconstitucionalidade do novo regime sucessório dos companheiros, Inacio de Carvalho Neto (2007) defende que não se pode falar em igualdade constitucional entre o casamento e a união estável, motivo pelo qual seria constitucional a distinção operada pela lei.

Uma vez registradas as opiniões que impulsionam a polêmica doutrinária, passemos à análise do posicionamento jurisprudencial acerca do tema.

Com o objetivo de estabelecer regras e critérios de aplicação do novo Código Civil aos casos concretos, no ano de 2006, magistrados paulistas reunidos no I Encontro dos Juízes de Família do Interior de São Paulo resolveram, por maioria de 2/3 dos presentes e após extensos debates, formular enunciados, norteadores de sua atuação em questões sobre o Direito da Família e das Sucessões.

Dentre os enunciados elaborados nesse Encontro, Carlos Eduardo Silva e Souza (2008) destaca aqueles relativos à sucessão do companheiro:

ENUNCIADO 49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima.

ENUNCIADO 50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação.

ENUNCIADO 51. O companheiro sobrevivente, não mencionado nos arts. 1.845 e 1.850 do Código Civil, é herdeiro necessário, seja porque não pode ser tratado diferentemente do cônjuge, seja porque, na concorrência com descendentes e ascendentes, herda necessariamente, sendo incongruente que, tornando-se o único herdeiro, possa ficar desprotegido.

ENUNCIADO 52. Se admitida a constitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis, conforme o previsto no inciso IV, sem a limitação indicada na cabeça do artigo.

Como se vê, boa parte da magistratura brasileira vem posicionando-se a favor da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil, em especial o seu inciso III, em virtude do tratamento desigual dispensado ao companheiro em relação ao cônjuge, verdadeira afronta à proteção jurídica reservada pela Constituição à união estável.

Enfrentando tal questão o Desembargador Justino Magno Araújo, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afastou a aplicação do art. 1.790, inciso III do Código Civil, no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 386.577.4/3-00, cuja Ementa é a seguinte:

Agravo. Arrolamento de bens. Morte do companheiro. Ausência de ascendentes ou descendentes. Existência, porém, de colaterais noticiada pela própria companheira. União estável iniciada na vigência da lei 8.971/94 e que perdurou até o falecimento do companheiro. Fato ocorrido em 2004. Inaplicabilidade da disciplina sucessória prevista no Novo Código Civil. Atribuição à companheira sobrevivente do mesmo status hereditário que a lei atribui ao cônjuge supérstite. Totalidade da herança devida à companheira, afastando da sucessão os colaterais e o Estado. Inaplicabilidade da norma do art. 1.790, III, do Código Civil em vigor. Recurso provido. (TJESP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº. 386.577.4/3-00, Rel. Des. Justino Magno Araújo, julgado em 02/06/2005, apud ZUCCARINO, 2007)

Nesse sentido, também decidiu o Desembargador Ricardo Raupp Ruschel, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, argumentando que é inaceitável “que prevaleça a interpretação literal do artigo 1.790 do CC 2002, (...) o que implicaria em verdadeiro retrocesso social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então”. (BRASIL, 2007).

A respeito da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790, o Desembargador José Ataídes Siqueira Trindade, também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar o Agravo de Instrumento nº. 70017169335, que buscava o reconhecimento de colaterais como herdeiros, em seu voto delineou:

Observa-se que o legislador de 2002, ao tratar do direito sucessório, não conferiu tratamento igualitário entre companheiros e cônjuges, o que até então havia e era recepcionado pelas leis e decisões dos Tribunais. A Carta Magna de 1988, entretanto, o que é importante, deu tratamento igualitário à união estável em relação ao casamento. No entanto, o Código Civil em vigor, ao tratar a sucessão entre companheiros, rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, o que se evidencia inconstitucional. (...) Assim, rogando a mais respeitosa vênia aos que pensam de modo diverso, entendo que a regra contida no art. 1790, inc. III, se apresenta absolutamente inconstitucional porque atenta contra o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana esculpido no art. 1º, inc. III, da CF, bem como contra o direito de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento (grifo nosso). (apud ISMAEL, 2008).

Em decisão recente, o Dr. Maurício Pinto Ferreira, Juiz Titular da 2ª Vara de Sucessões de Belo Horizonte acampou a tese da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790 do Código Civil, para afastar da sucessão os parentes colaterais do falecido e deferir à companheira a totalidade da herança. (BRASIL, 2009).

Contudo, assim como na doutrina, a questão da inconstitucionalidade do referido inciso também não é pacífica na jurisprudência, como se vê da decisão proferida pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

Agravo de Instrumento. Inventário. Sucessão aberta após a vigência do novo Código Civil. Direito sucessório da companheira em concurso com irmãos do obituado. Inteligência do art. 1.790, III da novel legislação. Direito a um terço da herança. Inocorrência de inconstitucionalidade. (apud GAMA, 2007, p. 124)

Nesse sentido, também se manifestou a 8ª Câmara Cível do mesmo Tribunal:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. DIREITOS DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO DO EX-COMPANHEIRO. APLICAÇÃO DO ART. 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. EXISTÊNCIA DE OUTROS PARENTES SUCESSÍVEIS, QUAIS SEJAM, OS COLATERAIS. ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790, SOB O ARGUMENTO DE TRATAMENTO DESIGUAL ENTRE UNIÃO ESTÁVEL E CASAMENTO. IMPROCEDÊNCIA. O §3º do artigo 226 da Constituição Federal apenas determina que a união estável entre homem e mulher é reconhecida, para efeito de proteção do Estado, como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento, o que evidencia que união estável e casamento são conceitos e realidades jurídicas distintas, razão pela qual não constitui afronta à Constituição o tratamento dado ao companheiro na nova legislação civilista. (...) Desprovimento do recurso. (TJRJ, 8ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº. 2004.002.16474, Rel. Des. Odete Knaack de Souza, julgado em 19/04/2005).

Comentando a controvérsia sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, inciso III, a Juíza Rita de Cássia Andrade (2008) chega à seguinte conclusão:

Diante dessa nova concepção do Código Civil, tarefa de maior urgência é a alteração legislativa, ou a declaração de inconstitucionalidade erga omnes do seu art.1790, haja vista a igualdade de tratamento dado pela CF/88, a união estável e ao casamento. Pois apesar dos julgamentos de inconstitucionalidade de forma incidental, relativamente a casos concretos e isolados, tal situação não se mostra satisfatória para a produção de uma justiça ordenada e lógica, havendo sempre decisões controvertidas para situações jurídicas iguais, na intimidade da família brasileira, uma vez que o legislador ordinário quis se sobrepor às disposições da própria Constituição, pois apesar de se tratar de uma lei nova, a mesma passou por muitos anos de espera no Congresso Nacional, vindo a entrar em vigência já de forma totalmente ultrapassada, preconceituosa, e distante da evolução dos fatos sociais, especificamente em relação a família e sucessões.

Se inexiste consenso a respeito da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790 do Código Civil e das demais disposições acerca da sucessão dos companheiros, fato é que a reforma da atual codificação afigura-se indispensável, motivo pelo qual analisaremos a seguir os dois principais Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional.

5.2. A reforma do Código Civil: os Projetos Fiúza e Biscaia/IBDFAM.

O Projeto de Lei nº. 6.960/2002, apresentado pelo deputado Ricardo Fiúza, ainda no ano de 2002, objetiva a alteração substancial do art. 1.790 do Código Civil.

O princípio orientador do Projeto Fiúza é a manutenção do atual artigo 1829, inciso I, que trata da sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes. O regime de bens dos companheiros seria o marco divisório entre a concorrência ou não com os descendentes.

Este Projeto confere ao companheiro tratamento análogo ao do cônjuge, sem promover a equiparação entre eles, uma vez que o companheiro terá sempre meia quota em concorrência com ascendentes e descendentes, privilegiando os cônjuges.

Este Projeto consegue afastar as críticas formuladas contra o atual artigo 1.790, solucionando os problemas referentes à filiação híbrida, à concorrência do companheiro com colaterais do falecido, além disso, devolve ao convivente o direito real de habitação e impossibilita que parte da herança seja considerada vacante e, portanto, de propriedade do Poder Público. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

O Projeto Fiúza propõe a seguinte redação para o art. 1.790:

Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:

I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1641);

II – em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;

III – em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.

Parágrafo único: Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Já o Projeto de Lei nº. 4.944/2005, também conhecido como Projeto Biscaia/IBDFAM, é fruto de um amplo debate doutrinário travado no âmbito do Instituto Brasileiro de Direito de Família e principalmente da comissão de legislação que conta com membros notáveis dentre os quais estão Giselda Hironaka e Francisco José Cahali.

Este Projeto difere do anterior por alterar os dispositivos do Código Civil, estabelecendo total igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, que seriam disciplinados por apenas um único dispositivo, qual seja, o artigo 1.829, com a revogação do art. 1.790. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

De acordo com o Projeto Biscaia/IBDFAM, o art. 1.829 passaria a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;

III – ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Parágrafo único. A concorrência referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do casamento ou da união estável, e sobre os quais não incida direito à meação, excluídos os sub-rogados. 

O Projeto em análise merece aplausos por equalizar os direitos sucessórios dos cônjuges e dos companheiros, por eliminar a concorrência do companheiro com os colaterais e com o Poder Público, bem como por eliminar diferenças entre a filiação híbrida, comum ou exclusiva na hipótese de concorrência do companheiro com descendentes. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

 Merece destaque a solução da polêmica decorrente da atual redação do inciso III, do artigo 1.790, já que, assim como o cônjuge, o companheiro ocuparia o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária e em nenhuma hipótese haveria concorrência com os colaterais do falecido. Além disso, os colaterais chamados a suceder seriam apenas os parentes até o 3º grau, através da alteração do art. 1.839.

Contudo, nas palavras de Flávio Tartuce e José Fernando Simão, o parágrafo único do art.1.829 do Projeto Biscaia/IBDFAM representa verdadeiro retrocesso, já que não garante ao cônjuge ou companheiro, em regra, situação patrimonial que assegure o seu sustento na hipótese de falecimento do consorte.

Apesar de não serem ideais, os supracitados Projetos de Lei merecem aplausos, por demonstrarem que o legislador está atento às críticas acima explicitadas e aos anseios da sociedade brasileira.


6. CONCLUSÃO.

No decorrer deste trabalho observamos a evolução do tratamento dispensado às entidades familiares pela legislação pátria. A família patriarcal e patrimonializada perdeu espaço para a família fundada na valorização dos laços de amor, respeito e afeto.

A princípio, o único meio legítimo de constituição de família era o casamento. Contudo, diante da necessidade da adequação da norma à realidade social, a Constituição Federal de 1988 conferiu proteção jurídica às famílias oriundas de uniões estáveis e à família monoparental. 

Os novos princípios e valores constitucionais promoveram não só a constitucionalização do Direito Civil, mas também a repersonalização do Direito de Família e das Sucessões, sendo vedada qualquer forma de discriminação com relação à forma de constituição de família.

As Leis nº. 8.971/94 e 9.278/96 regulamentaram a união estável, atribuindo aos companheiros direitos sucessórios semelhantes aos do cônjuge sobrevivente.

No entanto, os avanços alcançados pelas leis da união estável foram ignorados pelo Código Civil de 2002, que gerou inúmeras polêmicas, sobretudo pelo tratamento sucessório diferenciado conferido ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente.

Há, inclusive, quem defenda a constitucionalidade de estatutos sucessórios diferenciados entre cônjuges e companheiros, argumentando que a Carta Política de 1988 não equiparou a união estável ao casamento. Com o devido respeito, esta não nos parece a melhor doutrina.

Nesse contexto, causa imenso espanto a disposição do art. 1.790, inciso III do Código Civil, que, ao estabelecer a concorrência sucessória entre os parentes colaterais do falecido e o companheiro sobrevivente, foi de encontro à Constituição, que não explicitou qualquer distinção entre as formas de constituição de família.

Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da solidariedade e da vedação ao retrocesso impedem a discriminação instituída pelo dispositivo em comento.

Desta forma, ao companheiro deveria ser atribuído regime sucessório idêntico ao dos cônjuges, ou seja, o convivente deveria ocupar o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, cabendo-lhe a totalidade da herança na ausência de descendentes e ascendentes, sendo-lhe atribuída, também, a condição de herdeiro necessário.

Como visto, há inúmeros doutrinadores e magistrados que corroboram esse entendimento, motivo pelo qual mostra-se imperiosa a reforma do Código Civil ou, diante da morosidade do Poder Legislativo nacional, a declaração de inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790 do Código Civil com eficácia erga omnes, com o objetivo de impedir que situações semelhantes tenham soluções diversas e, até mesmo, injustas.

Em que pese a existência de dois Projetos de Lei para alteração do referido dispositivo, inexiste previsão para a aprovação dos mesmos no Congresso Nacional, razão pela qual caberá aos magistrados, apoiados na doutrina, promover o controle difuso de constitucionalidade, alcançando a justiça nos casos concretos através da leitura do Código Civil à luz dos supracitados princípios constitucionais.


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SILVA, Joyce Keli do Nascimento. Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3299, 13 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22210. Acesso em: 26 abr. 2024.