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Uma modesta contribuição para a discussão sobre a distinção entre regras e princípios

Uma modesta contribuição para a discussão sobre a distinção entre regras e princípios

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Princípios possuem uma justificação material e nem sempre uma formal. Há mais princípios não legislados do que regras não legisladas. No confronto entre regras e princípios, deve-se verificar se o princípio em questão possui também justificação formal, ou apenas material.

Introdução

Nenhum tema recebeu mais atenção nos últimos anos na dogmática jurídica, especialmente no que concerne a direito constitucional e teorias da argumentação e interpretação, do que a distinção entre princípios e regras. Isso, por si só, deveria levantar suspeitas quanto a qualquer artigo que pretendesse desenvolver mais uma contribuição ao tema. Essa é, no entanto, minha modesta proposta. Antes de mais nada, saliento que não irei procurar explicar as diversas teorias já elaboradas. Não vejo sentido em somar mais um artigo a um debate que já está praticamente esgotado. Isso não é dizer que a dogmática brasileira, especialmente, é clara e precisa quando trata desses temas. Muito pelo contrário, ela é muitas vezes confusa e pouco esclarecedora, mas creio que a solução para esse mal não é adicionar mais um artigo procurando esclarecer essas confusões, mas apenas recomendar a leitura atenta dos trabalhos originais daqueles que deram as mais importantes contribuições ao tema, como Dworkin[1] e Alexy.

O que pretendo aqui, apenas, é tanto marcar alguns pontos que acredito que foram insuficientemente tratados mesmo por esses dois autores, como enfatizar alguns aspectos que não têm merecido o devido relevo nas discussões sobre o tema, para assim contribuir para uma visão um pouco mais rica da distinção entre regras e princípios.


Por que um sistema jurídico deve contemplar princípios jurídicos?

Comecemos com uma questão crucial: por que um sistema jurídico contempla, ou até deve contemplar, princípios jurídicos? Pois alguém poderia sugerir que se poderia prescindir deles caso uma legislação exaustiva contemplasse todas as situações possíveis de conflito e estabelecesse uma solução para elas. No entanto, a prática atesta que muitos casos, devido à sua complexidade, não podem ser capturados por regras, que teriam de ser tão especiosas que um dos objetivos de haver regras (orientar a conduta dos cidadãos) seria abalada, pois ninguém conseguiria dominá-las todas. Princípios são um outro TIPO de standard normativo, não algo que existe devido a uma falha legislativa. Mesmo a legislação ideal precisaria de princípios, pois esses surgem não de um problema com a legislação, mas, poderíamos dizer, de um problema com o mundo, que falha em ser completamente normatizado apenas com regras.

Isso não implica que o poder legislativo pode se abster de sua tarefa de estabelecer regras. A bem da verdade, em um modelo ideal o debate em torno de princípios conflitantes se dá nos debates legislativos, que encerram-se com uma votação onde a maioria determina qual será não apenas o princípio vencedor, mas a forma como ele será instanciado numa regra. Mas mesmo aí haverá espaço para princípios, embora esse seja reduzido. Num Estado com poucas regras, ou com essas excessivamente genéricas, é natural que os princípios tenham um espaço maior, e que o juiz acabe atuando como legislador.

É interessante explorar também como surge, para o intérprete, a necessidade de um caso ser resolvido com a invocação de um princípio. Tudo começa com um desconforto pela aplicação da regra, um sentimento de injustiça com as consequências que ela trará. Ainda que o caso à primeira vista pareça corresponder à descrição da regra e, com isso, atrair sua consequência, o intérprete sente que isso acarretará numa injustiça, como alguém ser punido ou absolvido indevidamente, ou receber uma punição maior ou menor do que a que merece.

A partir daí, o intérprete passa a analisar o propósito da norma e se ele é de fato obtido ao aplicar a regra daquela maneira ou se, pelo contrário, a instanciação da norma daquela maneira, ainda que de acordo com o dispositivo legal, ofende a razão que o fundamenta. Ou então ele parte para considerar se os propósitos de outra norma não podem auxiliar no afastamento daquela, mostrando que o seu propósito, no caso concreto, está em dissonância com outros propósitos de outras normas, e que esses refletem melhor tanto a solução mais justa como a mais harmônica com o ordenamento jurídico. É com esse tipo de método que, geralmente, princípios jurídicos passam a ter uma importância fundamental na argumentação jurídica.

Portanto, um ordenamento jurídico necessita de princípios por, basicamente, duas razões:

1)  porque o mundo é complexo demais para ser capturado unicamente por regras;

2) porque o intérprete sente que é possível corrigir uma injustiça que seria advinda da aplicação de uma regra através do apelo a princípios subjacentes à ela mesma ou em outras normas, decisões e no próprio ordenamento jurídico.


A equivocidade do termo “princípios”

A primeira observação que deve ser feita é que o termo “princípios” admite diversos sentidos: um princípio pode ser aquilo que dá sustentação a um sistema, o que é mais importante, aquilo que serve como ponto de partida, que dá sentido a diversas regras, que são objetivos a serem alcançados etc. Sem uma definição precisa do sentido que se está usando, duas pessoas podem discutir sem chegar a conclusão alguma porque utilizam sentidos diferentes do mesmo termo, como dois sujeitos que discutem se o banco é para sentar ou para colocar seu dinheiro. Tais discussões são estéreis porque o debate não gira em torno de um pressuposto comum previamente estabelecido.

Nos debates jurídicos, são basicamente dois sentidos completamente diversos que estão em jogo: o de princípios como a articulação de algo subjacente a diversas normas e ao ordenamento jurídico como um todo e o de princípios como mandados de otimização de estado de coisas no mundo. A grosso modo, a primeira  posição é típica de um sistema de Common Law, e a segunda, de Civil Law. Não à toa, ambas foram inicialmente tratadas por representantes dessas tradições, respectivamente Dworkin e Alexy.

O primeiro sentido fica claro nos próprios exemplos oferecidos por Dworkin. No primeiro deles (Riggs x Palmer), ao discutir se alguém que matou seu avô pode receber a herança, Dworkin mostra como o caso foi decidido apelando-se para o princípio de que “ninguém pode se valer da sua torpeza”:

(...) all laws as well as all contracts may be controlled in their operation and effect by general, fundamental maxims of the common law. No one shall be permitted to profit by his own fraud, or to take advantage of his own wrong, or to found any claim upon his own iniquity, or to acquire property by his own crime.[2]

Já no segundo caso (Henningsen x Bloomfield Motors, Inc) o que estava em questão eram problemas como a limitação de responsabilidade, autonomia privada e injustiça de uma barganha com abuso de poder econômico. Os problemas vieram à tona na discussão de se um fabricante de automóveis pode limitar sua responsabilidade no caso de defeito do veículo quando isso traz como consequência um grave acidente automobilístico, mesmo se o comprador assinou um contrato em que o fabricante limitava sua responsabilidade a apenas consertar as partes defeituosas. Segundo Dworkin, a decisão da corte foi no sentido de que o fabricante era responsável, e os argumentos para sustentar tal posição foram embasados em princípios:

(...) is there any principle which is more familiar or more firmly embedded in the history of Anglo-American law than the basic doctrine that the courts will not permit themselves to be used as instruments of inequity and injustice?(...) More specifically the courts generally refuse to  lend themselves to the enforcement of a “bargain” in which one party has unjustly taken advantage of the economic necessities of other.[3]

Também podem ser encontrados vários exemplos de princípios nesse sentido no Direito brasileiro como, por exemplo, no art. 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece que a Política Nacional das Relações de Consumo será orientada pelo reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Em todos esses casos, o que está por trás da compreensão dos princípios é que eles subjazem ao ordenamento jurídico, são o fundamento diversas normas, dando sentido ao ordenamento e indicando linhas de interpretação. Mas nenhum deles pode ser encarado como “mandados de otimização”, como diretrizes para trazer um certo “estado de coisas” no mundo. Que ninguém possa se valer da sua torpeza e que as relações de consumo devem ser orientadas pelo reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor não são propriamente coisas que devem otimizadas.

Esse segundo sentido, no entanto, é o que está presente nos conflitos que Alexy apresenta, como o já clássico exemplo da liberdade de informação x direito à privacidade. Aqui temos dois princípios que, tomados separadamente, devem ser otimizados: o ideal é que uma sociedade tenha o maior nível possível de liberdade de informação e direito à privacidade. E, embora eles possam, como no primeiro sentido de princípios, ser compreendidos como fundamento de diversas regras, não é nesse sentido que são utilizados num conflito, mas como desvinculados dessas regras e enfrentando-se num nível abstrato, onde o que é levado em conta é o peso que cada um tem no caso concreto.

Temos, assim, os dois principais sentidos em que o termo “princípios” é usado, e cada um deles remete à tradição jurídica dos seus principais teóricos. Aliás, é interessante observar como eles guardam relação com o próprio método de operar de cada uma dessas tradições. O primeiro sentido é relacionado a casos (case-related), pois surge da análise das razões subjacentes a diversas decisões; já o segundo sentido prescinde de casos, ele surge através da análise em abstrato dos fins almejados por um determinado ordenamento jurídico e sociedade (é dizer, embora o conflito entre princípios nesse segundo sentido sempre se dê em casos concretos, os princípios não são compreendidos como a ratio decidendi subjacente a diversas decisões e casos, mas como um fim, explícito na legislação ou implícito entre os valores fundamentais, que deve ser perseguido, um estado de coisas que deve ser buscado).


A distinção entre regras e princípios como uma distinção lógica

Embora Dworkin e Alexy possuam visões distintas de princípios, como anteriormente analisado, ambos concordam num ponto: o critério de distinção entre regras e princípios é um critério LÓGICO, e diz respeito ao modo como ambos operam. Irei me centrar, no entanto, na análise do artigo de Dworkin.

Para Dworkin, uma regra se aplica sempre que suas condições são verificadas (por exemplo: a responsabilidade jurídica penal se dá aos 18 anos, e não se invoca princípio alegando que aos 17 anos e 11 meses o sujeito já é capaz de entender as implicações dos seus atos e controlá-los tão bem quanto alguém 1 mês mais velho). Da mesma forma, se há exceções à regra, uma enumeração completa delas é, em princípio, possível. Princípios não operam dessa forma: eles são razões que devem ser levadas em conta e que inclinam a decisão mais para um lado. Princípios têm uma dimensão de PESO que não existe nas regras. Enquanto uma regra é ou não é válida, princípios são hierarquizados de acordo com sua importância num caso concreto. Por exemplo, o principio do caso Riggs (ninguém pode se valer da sua torpeza) não vale em todo caso, como na possibilidade de usucapir produto de crime, possibilidade aceita pela jurisprudência e pela doutrina brasileiras. Poderíamos dizer que nesse caso estaríamos frente à uma exceção, mas para Dworkin esse não é o caso, pois não poderíamos capturar contraexemplos como este simplesmente por uma melhor exposição do principio. Tais contraexemplos não estão, mesmo em teoria, sujeitos a enumeração, pois os casos hipotéticos são inumeráveis.

A distinção entre ambos se torna mais clara ao se verificar que muitos princípios nem sequer se parecem com regras, como a "obrigação especial" dos fabricantes de carros (expressa no caso Henningsen), que não estabelece quais deveres ela impõe ao fabricante e quais direitos garante ao consumidor. Ela não elimina completamente a liberdade contratual nem estabelece que os juízes podem alterar os contratos como lhes aprouver, somente que se uma clausula for demasiado injusta, pode ser anulada.

É importante ressaltar dois critérios que NÃO podem ser utilizados para distinguir regras de princípios, o da sua origem e o da sua expressão linguística. Uma regra não se distingue de um princípio por ser legislada, enquanto um princípio não o seria. Sendo o critério essencial a forma de operar (por tudo ou nada, no caso de regras, ou por balanceamento de razões, no caso de princípios), a origem da norma é completamente indiferente. Tanto um princípio pode ser legislado (como o já citado exemplo da vulnerabilidade no CDC), como uma regra pode ser não legislada (como as regras criadas a partir dos princípios invocados nos casos Riggs e Henningsen[4]).

Da mesma forma, uma regra não se distingue de um princípio por ser clara e direta, enquanto um princípio seria vago e impreciso. Dworkin é muito didático nesse ponto ao explicar as dúvidas que surgiram em torno do Sherman Act, que estabelece, no seu primeiro artigo, que “every contract in restraint of trade shall be void.”[5] A Suprema Corte considerou o artigo em questão uma regra, mas interpretou-a como contendo a palavra “irrazoável” (unreasonable), o que permitiu que substancialmente ela se tornasse um principio, pois com essa inserção deve-se investigar o quê, em termos econômicos (ou sociais ou culturais, em outros casos) é unreasonable. Mas, mesmo sendo construído com um termo vago e impreciso, a norma ainda é uma regra. Como afirma Dworkin:

If we are bound by a rule that says that “unreasonable” contracts are void, or that grossly “unfair” contracts will not be enforced, much more judgment is required than if the quoted terms were omitted. But suppose a case in which some consideration of policy or principle suggests that a contract should be enforced even though its restraint is not reasonable, or even though it is grossly unfair. Enforcing these contracts would be forbidden by our rules, and thus permitted only if these rules were abandoned or modified. If we were dealing, however, not with a rule but with a policy against enforcing unreasonable contracts, or a principle that unfair contracts ought not to be enforced, the contracts could be enforced without alteration of the law.[6]

O mesmo pode ser direto de diversas normas do direito brasileiro que utilizam termos como “inexperiente”, “injustamente”, “probidade”, “zelo” etc, onde, embora funcionando logicamente como regras, substancialmente, em virtude desses termos, funcionam como princípios.

Além do mais, ainda que tenhamos clareza sobre o critério lógico como essencial para a distinção dos dois tipos normativos, isso não significa que será fácil realizar essa separação. Como afirma Dworkin,[7] nem sempre é claro a partir da forma de uma norma se ela é uma regra ou princípio. Seu exemplo é da Primeira Emenda:

The first amendment to the United States Constitution contains the provision that Congress shall not abridge freedom of speech. Is this a rule, so that if a particular law does abridge freedom of speech, it follows that it is unconstitutional? Those who claim that the first amendment is “an absolute” say that it must be taken in this way, that is, as a rule. Or does it merely state a principle, so that when an abridgement of speech is discovered, it is unconstitutional unless the context presents some other policy or principle which in the circumstances is weighty enough to permit the abridgement? That is the position of those who argue for what is called the “clear and present danger” test or some other form of “balancing”.[8]

O mesmo problema verifica-se na interpretação, para citar apenas como exemplo, dos artigos 421 e 422 do Código Civil e 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor, que estabelecem:

 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

Como disse, do fato de os termos dessas normas serem vagos e imprecisos não segue que elas são necessariamente princípios. Da mesma forma, do fato de serem legislados não segue que sejam necessariamente regras. Temos que verificar como eles operam, e isso se pode fazer através de perguntas como estas:

1) uma vez verificado que um contrato não cumpriu sua função social, ele é ipso facto nulo ou a função social deve ser pesada com a liberdade contratual e a proteção das expectativas legitimas?

2) uma vez verificado que um contratante violou os ditames da boa-fé objetiva, ou que certas obrigações são iníquas ou abusivas, o contrato é nulo ou, de novo, questões como liberdade contratual e expectativas legítimas devem ser levadas em conta?

O critério da distinção eminentemente lógica entre regras e princípios foi disputado por vários autores. Quero me concentrar aqui apenas num deles, Humberto Ávila e seu livro “Teoria dos Princípios”,[9] tanto pelo impacto que ele causou na doutrina brasileira contemporânea como por considerar um tratamento bem argumentado e articulado. Também me concentrarei em apenas algumas das suas críticas, que servirão como início de análise dos seus argumentos, tarefa esta que pretendo completar futuramente.

Ao criticar o que ele chama de distinção por “modo final de aplicação”, Ávila se vale de um exemplo da jurisprudência do STF em que o réu foi inocentado da acusação de estupro de um menor de 14 anos, mesmo com uma norma (o art. 224 do Código Penal) estabelecendo uma presunção incondicional de violência para o caso de a vítima ter idade inferior a 14 anos. Não irei adentrar na análise do caso concreto, mas no mínimo três críticas podem ser avançadas: 1) o STF errou; 2) foi adicionada uma exceção não prevista na norma; 3) a presunção funciona não como uma regra, mas como um princípio.

Outra crítica de Ávila é que, por haver regras com expressões cujo âmbito de aplicação não é delimitado, o intérprete fica encarregado de decidir pela incidência ou não da norma diante do caso concreto e, nessas hipóteses, o caráter absoluto da regra se perde em favor de um modo mais ou menos de aplicação, como um princípio. Ora, mas o que está em questão aqui é, na verdade, apenas a complexidade dos fatos, e não o modo de incidência da regra. Para uma norma ser uma regra não é necessário que os fatos sobre os quais ela incide sejam facilmente verificáveis. A estrutura de tudo ou nada da regra pode prevalecer mesmo que os fatos sobre os quais ela irá incidir sejam de difícil apuração, mas isso não quer dizer que ela operará como um princípio, apenas orientando a decisão num sentido, pois uma vez que os fatos tenham sido corretamente delimitados, a regra incidirá normalmente.

Em outro ponto Ávila afirma que:

(...)a distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no suposto método tudo ou nada de aplicação das regras, pois também elas precisam, para que sejam implementadas suas consequências, de um processo prévio – e, por vezes, longo e complexo como o dos princípios de interpretação que demonstre quais as consequências que serão implementadas.[10]

A segunda parte está absolutamente correta, mas ela não é oposta à afirmação inicial como Ávila supõe. Só o seria caso as regras fossem tomadas de forma caricata, como se fosse essencial que elas sejam aplicadas mecanicamente. Mas isso não é assim: é compatível com o método de aplicação tudo ou nada que os fatos possam ser complexos e de difícil classificação, e que os termos da regras sejam vagos e demandem intensa interpretação.

Por fim, Ávila comenta que “não é coerente afirmar, como fazem Dworkin e Alexy, cada qual a seu modo, que, se a hipótese prevista por uma regra ocorrer no plano dos fatos, a consequência normativa deve ser diretamente implementada.”[11] Em primeiro lugar, segundo ele, porque “há casos em que as regras podem ser aplicadas sem que suas condições sejam satisfeitas”.[12] Mas essa crítica está claramente equivocada, pois ela sustenta que um argumento condicional do tipo “se p então q” (como é o caso de “se a hipótese prevista por uma regra ocorrer no plano dos fatos, então a consequência normativa deve ser diretamente implementada), quando tem seu antecedente negado, deve ter igualmente o seu consequente negado (“se não-p, então não-q”), o que nada mais é do que a famosa falácia da negação do antecedente. As teses de Dworkin e Alexy só seriam refutadas caso, presente o antecedente, não se verificasse o consequente, ou seja, nos casos em que as regras não são aplicadas apesar de suas condições terem sido satisfeitas. E, de fato, Ávila também dirige essa crítica quando afirma que é isso o que ocorre nos casos de “cancelamento da razão justificadora da regra por razões consideradas superiores pelo aplicador diante do caso concreto.”[13] Nesses casos pode ser dirigida a crítica acima: o tribunal pode ter errado; o que ocorreu, na verdade, não foi o cancelamento da regra naquele caso com sua permanência no sistema, mas meramente a inserção de uma exceção; a regra, na verdade, é um princípio.


Sobre o conflito entre regras e princípios

Dentro das discussões sobre regras e princípios, ainda causa muita discussão o tópico sobre como deve se solucionar um conflito entre as duas espécies normativas. Alguns defendem que os princípios devem sempre prevalecer, outros, as regras. Quero desafiar ambas proposições, mas primeiramente devemos entender quais as principais justificativas para elas. Quem defende a primazia dos princípios sobre as regras geralmente alega que os princípios, por serem hierarquicamente superiores, uma vez que informam a construção das regras e se irradiam por todo o ordenamento jurídico, nunca podem ser rejeitados em nome de uma regra. Já quem defende a primazia das regras sobre princípios, argumenta tanto que elas, por serem, na verdade, a instanciação de princípios, são orientações claras e diretas do que os princípios querem dizer, como que por serem a expressão da vontade do povo (diretamente ou através dos seus representantes) devem ser sempre respeitadas caso queiramos levar a democracia a sério.

O problema da primeira posição é que, em primeiro lugar, ela confunde princípios com os valores que informam um ordenamento jurídico (geralmente expressos na sua Constituição). Se assim fosse, seriam muito poucos os princípios que poderiam figurar na argumentação jurídica, e de pouca utilidade, pois devido à sua generalidade e imprecisão eles não seriam capazes de fornecer inequivocamente uma única resposta correta. Em segundo lugar, tal teoria imagina que o sistema jurídico como um todo se assemelha ao esquema de validade das normas tal como exposto por Kelsen, com regras na base da pirâmide, princípios acima e, acima de todos, um princípio maior que infundiria todo o ordenamento (o princípio citado aqui geralmente é o da dignidade da pessoa humana). Que tal esquema possa ser verdadeiro e útil para a explicação da validade das normas, no entanto, não implica que ele seja um bom modelo explicativo e normativo para o modo como as regras e princípios se articulam, pois ele supõe que tanto princípios como regras têm um peso específico independentemente do caso concreto e que esse pode ser aferido. De fato, caso isso fosse de fato assim, poderíamos simplesmente estabelecer uma régua com o peso atribuído a cada princípio e, a partir daí, qualquer conflito poderia ser resolvido quase que matematicamente. Essa proposta, no entanto, não tem condições de prosperar: os princípios não têm peso específico, e muito menos ele pode ser aferido independentemente do caso concreto.

O erro da segunda posição é assumir que regras são sempre claras e diretas e que apenas elas são legisladas. Isso, como já foi visto, é um erro: tanto regras podem ser vagas e imprecisas como princípios podem ser legislados.

Minha posição é que a prevalência de um princípio ou de uma regra num determinado caso deve ser sempre verificada no caso concreto, sendo que o que determinará a prevalência de um sobre o outro serão os argumentos utilizados pelo intérprete, a “história” que ele conta em favor da sua solução, procurando mostrar de que forma ela é a melhor solução para o caso e a que melhor se harmoniza com os diversos valores, normas e precedentes que informam um ordenamento jurídico. Minha solução é pouco confortadora, pois demanda um enorme conhecimento (jurídico, político e filosófico) por parte do intérprete e um grande esforço de reconstrução do ordenamento jurídico, mostrando como sua interpretação se conforma a ele. O corolário dessa tese é que, contrariamente ao que Alexy defende, a argumentação jurídica pode ser às vezes extremamente mais complexa que o que ele chama de argumentação prática geral. Sua tese é de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral, pois é exercido sob pressão de condições limitadoras (como legislação e precedentes), e que tais condições limitadoras tornam a argumentação jurídica mais simples, pois certos elementos que têm livre trânsito numa argumentação prática geral deixam de ser considerados numa argumentação jurídica. Mas ele esquece de mencionar um aspecto que torna a argumentação jurídica, e só ela, especialmente complexa: a necessidade de harmonizar os argumentos práticos gerais e os argumentos jurídicos dentro de uma estrutura institucional, e articulá-los numa narrativa coerente.

Ainda que a prevalência de um princípio ou de uma regra num determinado caso deva ser sempre verificada no caso concreto, pode-se aventar uma justificativa para uma primazia ao menos prima facie de regras sobre princípios. Pois uma regra quase sempre tem dois tipos de princípios que as fundamentam, um formal e outro material. Os princípios formais que fundamentam uma regra são os princípios da supremacia e autoridade legislativas e separação dos poderes (presentes mesmo na mais comezinha das regras),[14] e o material é qualquer princípio substantivo que embase a existência e necessidadeda regra. Princípios possuem uma justificação material e nem sempre uma formal (há mais princípios não legislados do que regras não legisladas). No confronto entre regras e princípios, deve-se verificar se o princípio em questão possui também justificação formal, ou apenas material. Contudo, não é porque num caso há dois princípios em questão e noutro um que os primeiros sempre irão prevalecer, pois conta aqui a intensidade de cada um deles. Meu ponto é que o ônus argumentativo do intérprete que quer afastar a incidência da regra é muito maior quando o princípio que ele contrapõe à regra não tem justificação formal, apenas material. Pois ele terá que argumentar tanto que as razões materiais que fundamentam o princípio são superiores àquelas que fundamentam a regra, como que elas são fortes o suficiente para igualmente afastar a justificativa de se obedecer, em geral, às regras, ou seja, que elas são fortes o suficiente para afastar as justificativas ligadas à segurança jurídica, proteção de expectativas, estabilidade social, separação dos poderes e autoridade legislativa.

Por isso que regras que já perderam sua fundamentação material, pois o princípio substantivo que lhe dava suporte não tem mais apelo para a sociedade (como foi o caso, no Brasil, dos crimes de adultério e bigamia, cujos princípios que os fundamentavam, manutenção dos bons costumes e santidade do matrimônio, já não tinham peso numa sociedade secular e de casamentos efêmeros, o que fez com que, embora ainda presentes na legislação penal, fossem solenemente ignorados), são mais facilmente derrubadas por outros princípios materiais.

Fazer essa divisão entre os princípios (como formais e materiais) dá fundamento para que mesmo regras comezinhas, como prazos processuais ou até a cor da caneta para assinar um documento, não sejam simplesmente descartadas, pois mesmo essas têm fundamento num princípio formal – e ainda que por isso possam ser facilmente derrubadas, elas não devem ser encaradas como absolutamente descartáveis, em primeiro lugar pela função de orientação à ação e ordenação do processo que exercem, e em segundo lugar porque o respeito à elas demonstra nosso respeito pelos princípios formais, e que estamos dispostos a manter mesmo aquelas regras que não julgamos as mais adequadas, pois assim demonstramos nosso zelo pela manutenção e respeito a esses princípios, já que sem eles algumas das funções mais essenciais do Direito, como proteger expectativas legítimas, garantir estabilidade social e institucional para o desenvolvimento de negócios jurídicos e a proteção da igualdade formal sairiam gravemente prejudicadas.

O segundo ponto que quero marcar, ligado a essa questão, é que não há nenhuma espécie de moeda que possa mensurar se o princípio ou a regra deve prevalecer no caso concreto,[15] quaisquer que sejam eles (nenhum princípio possui, em abstrato, uma superioridade frente aos demais).[16] Nesse caso, a superioridade e prevalência de um sobre outro devem ser estabelecidas pela força das razões lançadas pelo intérprete, que deverá socorrer-se dos mais diversos tipos de argumentos para justificar sua posição (Alexy chama tais argumentos de “argumentos práticos gerais”, uma mistura de questões pragmáticas, éticas e morais).[17] Argumentos morais, históricos, políticos, econômicos, sociais etc, mesclam-se com argumentos especificamente jurídicos, numa tentativa de mostrar que o afastamento da regra naquele caso é o que não apenas é o correto a se fazer, mas o juridicamente correto, como a decisão que melhor se harmoniza com o espírito do ordenamento jurídico e a reverência ao Direito.

Outra maneira de lidar com o conflito entre regras e princípios é levar a discussão para um plano onde somente princípios são considerados, ou seja, analisando o princípio que se pretende opor à regra com os princípios que fundamentam a regra (mesmo que sejam apenas os princípios formais, no caso de uma regra que não possui nenhuma fundamentação substantiva relevante). A disputa, assim, seria entre os dois princípios, e não entre um princípio e uma regra. Assim, podemos descrever o caso Riggs como um conflito em que o que estava em jogo eram a liberdade de testar x ninguém pode se valer da sua torpeza; o caso Henningsen, a liberdade de contratar x o judiciário não pode aceitar barganhas em que uma das partes se valeu de sua superioridade para se beneficiar da outra. A vantagem desse tratamento é que ele oferece um contra-argumento para quem, num conflito entre regras e princípios, rápida e decididamente sempre toma a posição pelo princípio, como se outros princípios não estivessem subjacentes à própria regra que ele critica.


Conclusão

Este foi, como anunciei no início, um trabalho com modestas pretensões. Minha intenção foi apenas marcar alguns pontos que, na imensa discussão sobre a distinção entre regras e princípios, creio que não foram tratados, ou apenas superficialmente, bem como enfatizar alguns pontos que, embora inclusive presentes nos artigos originais de Dworkin e Alexy, não ganharam a devida atenção na discussão subsequente. A humildade do presente trabalho anda junto com o reconhecimento de que o problema que ele tratou é de enorme complexidade, e que não pode ser enfrentado através de fórmulas prontas aceitas acriticamente, um fenômeno que marca a maior parte da discussão doutrinária sobre o tema.


Bibliografia citada

ALEXY, Robert. La tesis del caso especial. Isegoría, n°21, p. 23-35, 1999.

______. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2.ed. São Paulo: Landy, 2001.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1978.

HABERMAS, Jürgen. A short reply. Ratio Juris, v.12, n°4, p. 445-453, 1999.

POHLMANN, Eduardo Augusto. O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral: uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy. (2007a) In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 27, Dez/2007, p. 59-99.

______. O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral. Uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1613, 1 dez. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10723>. Acesso em: 14 ago. 2012.


Notas

[1] O que deve ser inicialmente marcado, no entanto, é que o artigo de Dworkin onde a discussão iniciou – “Is law a system of rules?”, posteriormente revisado e inserido como o capítulo “The model of rules I” no seu livro “Taking rights seriously” – não tinha a pretensão de diferenciar regras e princípios para a partir dali construir uma teoria da argumentação jurídica. Dworkin constata a existência de princípios no Direito como um fato incontestável, e utiliza-os para criticar o modelo hartiano de conceito de direito como um sistema de união entre regras primárias e secundárias. Seus objetivos é mostrar que a teoria de Hart, em especial a regra de reconhecimento, ao não dar espaço para o importante papel que princípios jurídicos exercem na prática do Direito, falha em ser uma boa explicação do Direito.

[2] Dworkin (1978), p. 23.

[3] Idem, p. 24.

[4] Cf. Dworkin (1978), p. 28.

[5] Idem, p. 27.

[6] Idem, p. 28.

[7] Idem, p. 27.

[8] Idem, p. 27.

[9] Que não se confunda minha crítica com uma rejeição da inegável contribuição que o trabalho de Ávila prestou à dogmática brasileira. Embora com falhas, seu livro é bem articulado e trouxe um importante sopro de renovação sobre um tema que já estava esgotado e que girava em torno de si mesmo, com a maioria dos nossos juristas aceitando acriticamente o mantra da distinção entre regras e princípios, sem sequer entendê-la adequadamente. Outro mérito do livro de Ávila está no constante uso de exemplos para ilustrar suas posições, um expediente que nem sempre é utilizado pelos nossos teóricos, e que muito contribui para o esclarecimento dos termos de uma discussão eminentemente abstrata. Creio, no entanto, que a relação que a doutrina deve ter com exemplos na construção dos seus argumentos teóricos deve ser melhor explorada, utilizando-os não apenas para ilustrar um ponto, mas como ponto de partida para a reflexão, que deve ser construída em torno dos problemas que um caso particular traz à tona. Pretendo voltar, um dia, a esse tema.

[10] Ávila (2004), p. 40.

[11] Idem, p. 41.

[12] Idem, p. 41.

[13] Idem, p. 42.

[14] Que os princípios da supremacia legislativa e separação dos poderes devem ser levados em conta fica evidente num caso em que a norma emanada não é absolutamente perfeita, mas também não é gritantemente injusta ou muito importante (digamos: um certo prazo deveria ser maior, ou quando o ordenamento veda a apresentação de recursos intempestivos mesmo quando o atraso foi ocasionado por caso fortuito ou força maior, como uma enchente). Nesses casos, é prudente manter a norma, pois caso contrário corre-se o risco dos princípios da supremacia e separação dos poderes serem tão amesquinhados que eles podem passar a ser vistos como descartáveis.

[15] Embora não tenham sido poucas as tentativas de criá-las, sendo a mais famosa a teoria do “Law and economics”, que propunha que a decisão deveria ser guiada por critério de eficiência na alocação de recursos. Não à toa, uma das principais influência dessa teoria é o Utilitarismo, teoria moral que igualmente propõe um critério para mensurar a correção de uma ação, tendo como objetivo a maximização da felicidade.

[16] Mesmo a dignidade da pessoa humana. O fato de no Brasil ser obrigatório o regime de separação de bens para idosos casados com jovens é encarado por muitos como uma violação da dignidade da pessoa humana (tal justificativa estaria em confronto com a proteção patrimonial de sujeitos vulneráveis e psicologicamente indefesos – ao que poderia se responder que é exatamente tal justificação que viola a dignidade da pessoa humana, por ser paternalista). Mas é ainda mais certo que os presos dos presídios brasileiros tem sua dignidade violada de modo muito mais intenso. Não é possível igualar as duas situações, embora seja o mesmo princípio que esteja em questão.

[17] Argumentos práticos gerais, segundo Alexy, devem ser entendidos como “dogmas práticos”, necessários sempre que são feitos julgamentos de valor que não podem ser derivados do material normativo. Mas eles, segundo o jusfilósofo alemão, igualmente são necessários mesmo onde há material normativo anterior. Isso fica mais evidente, por exemplo, na análise e crítica de conceitos da dogmática jurídica, como legítima defesa, terceiro, dever de informar, boa-fé... A abertura para argumentos práticos gerais é constitutiva de tais conceitos e, em todos esses casos, somente (ou principalmente) através desses argumentos é que é possível esclarecê-los, criticá-los e reformulá-los (veja-se Alexy, 2001, p. 250). Sobre o tema, veja-se também seu artigo “La tesis del caso especial,” (1999), bem como as críticas de Habermas (1999). Examinei a plausibilidade da chamada “tese do caso especial” em Pohlmann (2007a), disponível também em Pohlmann (2007b).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. Uma modesta contribuição para a discussão sobre a distinção entre regras e princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3342, 25 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22486. Acesso em: 29 mar. 2024.