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A deturpação do paradigma pós-positivista na prática judiciária brasileira

A deturpação do paradigma pós-positivista na prática judiciária brasileira

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Os princípios que adentraram ao ordenamento jurídico justamente para expressar os valores de dada comunidade no texto constitucional são utilizados como álibis para a imposição da vontade individual do julgador. Essa postura enfraquece a democracia.

Resumo: O Direito, a partir do paradigma neopositivista, buscando a aproximação de valores morais e de justiça, atribuiu força normativa aos princípios, o que acarretou poder de criação ao juiz. Acontece que a principiologia desse “novo direito”, por oferecer grande margem de discricionariedade ao intérprete, desendadeou “decisionismos” distantes do texto constitucional. A prática judiciária brasileira vem deturpando o paradigma neopositivista ao proferir decisões que têm privilegiado mais a individualidade do juiz do que a aplicação do texto constitucional.

Palavras-chave: Pós-positivismo. Argumentação Jurídica. Principiologia Constitucional. Decisionismo judicial. Democracia.

Sumário: Introdução. I. O advento da normatividade dos princípios, a distinção entre princípios e regras e a insuficiência da proporcionalidade de Alexy. II. A “sofisticação” argumentativa através da invocação frouxa dos princípios, o panpricipiologismo e o decisionismo judicial. III. O fracasso dos paradigmas metodológicos-interpretativos em produzir uma decisão constitucionalmente adequada e uma crítica ao “decido conforme minha consciência”. Considerações Finais.


INTRODUÇÃO

O paradigma pós-positivista que influencia boa parte das democracias ocidentais desde o fim da 2ª Grande Guerra Mundial, somente passa a exercer influência em terras brasileiras com o advento da Constituição da República de 1988. Note-se que a recepção tardia do movimento que abriu a discussão jurídica para o diálogo moral, político e filosófico se deveu à usurpação de nosso Estado por uma ditadura fardada. Há, portanto, a partir da promulgação da Carta de 88, o deslocamento do texto constitucional para o centro do ordenamento jurídico, a atribuição de força normativa aos princípios, bem como a previsão de um modelo de jurisdição constitucional que objetiva dar concretude aos desígnios constitucionais.

Nesse sentido, pode-se dizer que o destacado papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal na vida institucional brasileira não é fruto da vontade dos ministros que compõem aquela Corte, mas, antes, da nova estrutura orgânica desenhada pela Constituição de 88. Todavia, ainda que estivesse bastante firmada a legitimidade democrática do Supremo Tribunal Federal em se pronunciar sobre temas de forte apelo popular, um alerta deve ser feito e deve ser aceso o sinal amarelo para que a vivacidade de nossa Corte Constitucional não se transmude em uma fonte de decisionismos.

Enfim, os princípios que adentraram ao ordenamento jurídico justamente para expressar os valores de dada comunidade no texto constitucional são utilizados como álibis para a imposição da vontade individual do julgador. Não há a menor dúvida que essa postura enfraquece a democracia. O “decido conforme a minha consciência” se tornou jargão comum na prática judiciária brasileira às vezes confundido com uma postura pós-positivista, mas que na verdade só faz por fortalecer o positivismo kelseniano, enfraquecendo o texto constitucional em nome do tirocínio interpretativo do julgador. Eis a problemática que se debruça de agora em diante.


I) O ADVENTO DA NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS, A DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS E A INSUFICIÊNCIA DA PROPORCIONALIDADE DE ALEXY

Em primeiro plano, deve-se notar que o movimento neopositivista encampado pelo texto constitucional de 1988 não só trouxe os princípios para o centro da discussão jurídica, como também lhe impingiu caráter normativo. Ou seja, os princípios deixaram de ser meros postulados valorativos para alcançar o status de verdadeira norma jurídica. Na linha do que ensina Alexy (1993), a norma jurídica é um gênero do qual são espécies os princípios e as regras. O modelo normativo que deu sustentação às barbáries cometidas na Europa Ocidental até meados do século XX se baseava na aplicação subsuntiva de regras, tão somente de regras. Com o fim da II Guerra e a derrocada do modelo subsuntivo-legalista que visava, sobremodo, a segurança jurídica do Estado, o Direito não poderia mais ficar à mercê de uma ordem jurídica que desconsiderasse os valores do humanismo. Um ordenamento jurídico baseado unicamente em regras não traria a carga valorativa necessária para a proteção dos direitos fundamentais, daí a necessidade da normatização dos princípios. Ocorre que a positivação dos princípios implicou não só uma modificação da estrutura semântica da disposição normativa, tendo em vista que a previsão de um princípio, pela sua pretensão valorativa, sempre se dá de modo mais aberto e geral que as regras, como também modificou algumas técnicas de aplicação. As regras obedecem a máxima do tudo ou nada, isto é, ou ela se aplica integralmente a determinada situação, ou o ato/fato está fora de seu raio de incidência. Não se dosa a aplicação de uma regra, para se aplicar uma regra não se utiliza conta-gotas. No que tange a aplicação dos princípios, a máxima é diferente. Os princípios obedecem condições de possibilidade para sua maior eficácia. A depender da situação concreta, os princípios podem ser aplicados em diferentes graus. Eles são ordenações para que os valores ali inseridos sejam aplicados na maior medida possível. Daí se dizer, como fizera Alexy (1993), que os princípios são mandados de otimização. Para melhor elucidação sobre a distinção entre princípios e regras, anote-se, ipsis litteris, o paralelo traçado pelo próprio Robert Alexy:

El punto decisivo para la distición entre reglas y princípios es que los princípios son normas que ordenan que algo sea realizado em la mayor medida posible, dentro de lãs possibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los princípios son mandatos de optimizacion, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado y que La medida debida de su cumplimiento no solo depende de las possibilidades reales sino ambién de las jurídicas. El âmbito de las possibilidades jurídicas es determinado por los princípios y reglas opuestos.

El cambio, las reglas son normas que solo pueden ser cumplidas o no. Si uma regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni mas ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en  el âmbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y princípios es cualitativa y no de grado. Toda normas es o bien uma regla o um principio. (ALEXY, 1993: 86-87)

Por esta esteira, necessário dizer que, num ordenamento jurídico em que há a convivência entre princípios e regras, o método subsuntivo - baseado no raciocínio silogístico pelo qual a premissa maior (norma) recai sobre a premissa menor (ato/fato), resultando na aplicação da lei ao caso concreto – não é mais suficiente para obter soluções para todas as crises jurídicas. Tudo bem que a colisão entre regras ainda é solucionada por critérios oriundos do próprio modelo subsuntivo, quais sejam: critério hierárquico (por exemplo, norma constitucional afasta a eficácia e validade de norma legal); critério temporal (lei posterior revoga lei anterior); critério especializante (lei especial revoga lei geral). Mas como, por exemplo, solucionar uma contradição entre princípios através da técnica de subsunção? Dada a sua inexatidão e vagueza, a colisão entre princípios requer a adoção de métodos mais fluidos de interpretação. Daí nasce o método da ponderação de raiz pós-positivista e exaustivamente trabalhado por Alexy.

Para Alexy (1993: 91), diferentemente das regras, o conflito entre princípios não implica a exclusão de um em favor do outro; os princípios em colisão convivem de maneira tal que o enfrentamento no caso concreto induzirá apenas a preponderância de um em detrimento do outro, sem exclusão. Isto quer dizer que, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas, um princípio pode ter mais “peso” que o outro, sem que isso implique a exclusão do princípio de menor densidade daquele caso concreto, tampouco do ordenamento jurídico.

A proporcionalidade entra em cena, então, na teoria de Alexy, pela inevitabilidade de se ponderar valores quando se está diante de um conflito entre princípios. O autor alemão, preocupado com a possibilidade da técnica da ponderação alargar a discricionariedade do magistrado e abrir espaço para subjetivismos avessos a uma decisão com base constitucional, recrudesceu o processo intelectivo/aplicativo de ponderação através de um critério metodológico rigoroso na aplicação da proporcionalidade. Nesse sentido, a aplicação da proporcionalidade se dá com obediência a três balizas objetivo-argumentativas que permitem ao auditório averiguar sua suficiência. Os três testes seqüenciais pelos quais a proporcionalidade deve passar para sua aplicação legítima estão elencados, necessariamente, na seguinte ordem: adequação, que se resume à análise de compatibilidade entre o meio adotado para alcançar determinado fim; necessidade, entendida como a busca do meio que cause o menor dano possível a um direito fundamental na concretização de determinado fim; proporcionalidade em sentido estrito, este teste talvez seja o de maior carga subjetiva, pois se resume a uma avaliação de custo/benefício entre o direito fundamental que se restringe e aquele que se sobreleva. Segundo Alexy, a ponderação reside mesmo é no critério da proporcionalidade em sentido estrito, senão veja-se:

Ya se há insinuado que entre la teoria de los princípios y la máxima de la proporcionalidade existe uma conexión. Esta conexión no puede ser más estrecha: El carácter de principio implica la máxima de la proporcionalidad, y ésta implica aquélla. Que el carácter de principio implica la máxima de la proporcionalidad significa que la máxima de la proporcionalidad, com sus tres máximas parciales de la adequacion, necessidad (postulado del médio más benigno) y de la proporcionalidad em sentido estricto (el postulado de ponderación propriamente dicho) se infiére lógicamente del caráter de princípio, es decir, es deducible de él. (Ibidem)

Não há a menor dúvida que Alexy, em sua construção teórica, tentou rebater dois standards positivistas: em primeiro lugar, demonstrou a superação do método subsuntivo do Positivismo-Legalista em resolver a problemática relacionada a Teoria dos Princípios; em segundo, rebateu com autoridade o subjetivismo propagado pelo Positivismo-Normativista Kelseniano que propagava larga margem de discricionariedade ao intérprete/aplicador do direito, criando mecanismos de controle da racionalidade constitucional das decisões, qual foi a criteriosa aplicação da proporcionalidade. Todavia, na realidade doutrinária e jurisprudencial brasileira, a proporcionalidade de Alexy é utilizada como um engodo para que o magistrado possa decidir conforme a sua miopia.

Malgrado o cuidado teórico de Alexy em criar uma teoria dos princípios que visasse, inclusive, a solução do conflito entre eles, a bem da verdade, em terrae brasilis, o fenômeno do pós-positivismo, em geral, e a proporcionalidade, em específico, abriu espaço para decisões dos mais diferentes matizes (progressistas e conservadoras) sob o mesmo fundamento: a proporcionalidade. Conforme assinalara Virgílio Afonso da Silva:

A invocação da proporcionalidade é, não raramente, um mero recurso a um topos, com caráter meramente retórico, e não sistemático. Em inúmeras decisões, sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva, recorre-se a fórmula “à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade”, o ato deve ser considerado inconstitucional. (SILVA, 2002: 09)

Dentre tantos outros, um exemplo da frouxidão na invocação da proporcionalidade para solucionar um conflito entre princípios está no rumoroso caso Ellwanger (HC. 82.424/RS) julgado pelo Supremo Tribunal Federal em que se colocava em questão, entre outros princípios, a liberdade de imprensa e a dignidade da pessoa humana[1]. No caso, o proprietário de uma editora dedicada a publicar livros anti-semitas, sofrendo ação penal por crime de racismo, impetrou habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. Dois ministros, baseando-se na ponderação alexyana, chegaram a conclusões diametralmente opostas, demonstrando a maleabilidade do critério e a sucumbência da proporcionalidade à vontade determinante do juiz. Vide, em primeiro lugar, a decisão do Ministro Gilmar Mendes que opinara pela improcedência do habeas corpus:

É evidente a adequação da condenação do paciente para se alcançar o fim almejado, qual seja, a salvaguarda de uma sociedade pluralista, onde reina a tolerância. Assegura-se a posição do Estado, no sentido de defender os fundamentos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), do pluralismo político (art. 1, V, CF), o princípio do repúdio ao terrorismo e ao racismo, que rege o Brasil nas suas relações internacionais (art. 4º, VIII), que estabelece ser o racismo um crime imprescritível (art. 5º, XLII). Também não há dúvida de que a decisão condenatória, tal como proferida, seja necessária, sob o pressuposto da ausência de outro meio menos gravoso e igualmente eficaz. Com efeito, em casos como esse, dificilmente vai-se encontrar um meio menos gravoso a partir da própria definição constitucional. Foi o próprio constituinte que determinou a criminalização e a imprescritibilidade da prática do racismo. Não há exorbitância no acórdão.

(...) A decisão atende, por fim, ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é necessário aferir a existência de proteção entre o objetivo perseguido, qual seja a preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista, da dignidade humana, e o ônus imposto à liberdade de expressão do paciente. Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância e o estímulo à violência, tal como afirmado no acórdão condenatório. Há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacrificados na hipótese  de ser dar uma amplitude absoluta, intangível, à liberdade de expressão na espécie. Assim, a análise da bem fundamentada decisão condenatória evidencia que não restou violada a proporcionalidade. (MENDES, 2003 apud CRUZ, 2009: 200-201)

Noutro giro, o Ministro Marco Aurélio, também lançando mão da ponderação de Alexy, profere decisão concedendo a ordem de habeas corpus:

O subprincípio da conformidade ou da adequação dos meios (geeingnetheit) examina se a medida adotada é apropriada para concretizar o objetivo visado, com vistas ao interesse público. Assim, cabe indagar se condenar o paciente e proibi-lo de publicar os pensamentos, apreender e destruir as obras editadas são os meios adequados para acabar com a discriminação contra o povo judeu ou com o risco de incitar a discriminação. Penso que não, uma vez que o fato do paciente querer transmitir a terceiros a sua versão da história não significa que os leitores irão concordar e, ainda, que concordem, não significa que vão passar a discriminar os judeus, mesmo porque, ante a passagem inexorável do tempo, os envolvidos são outros.

O segundo subprincípio é o da exigibilidade ou da necessidade (erforderlichkeit), segundo o qual a medida escolhida não deve exceder ou extrapolar os limites indispensáveis à conservação do objetivo que pretende alcançar. Com esse subprincípio, o intérprete reflete, no caso, se não existem outros meios não considerados pelo Tribunal de Justiça que poderiam igualmente atingir o fim almejado, a um custo ou dano menor aos interessados. (...) Na hipótese, a observância desse subprincípio deixa ao Tribunal, ante a impossibilidade de aplicar outro meio menos gravoso ao paciente; conceder a ordem, garantindo o direito a liberdade de manifestação do pensamento, preservados os livros, já que a restrição a tal direito não garantirá sequer a conservação da dignidade do povo judeu.

Finalmente, o último subprincípio é o da proporcionalidade em sentido estrito (verhaltnismassiggkeit, também conhecido como “lei da ponderação”). O intérprete deve questionar se o resultado obtido é proporcional ao meio empregado e à carga coativo-interventivo dessa medida.

(...) Assim, cumpre perquirir se é razoável, dentro de uma sociedade plural como a brasileira, restringir-se determinada manifestação de opinião por meio de um livro, sob o argumento de que tal idéia incitará a prática da violência, considerando-se, todavia, o fato de inexistirem mínimos indícios de que o livro causará tal revolução na sociedade brasileira. E mais, se é razoável punir o paciente pela edição de livros alheios, responsabilizá-lo por idéias que nem sequer lhe pertencem, tendo em vista que há outras maneiras mais fáceis, rápidas e econômicas de a população ter acesso a tais pensamentos, como a internet. (...) Assim, aplicando o princípio da proporcionalidade  na hipótese de colisão da liberdade de manifestação do paciente e da dignidade do povo judeu, acredito que a condenação efetuada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – por sinal, a reformar a sentenças do juízo – não foi o meio mais adequado, necessário e razoável. (MENDES, 2006 apud CRUZ, 2009: 201-202)  

A conclusão a que se chega é que a poderação alexyana, em que pese o esforço para impingir ás decisões judiciais racionalidade e objetividade, (re) produziu, deparando-se com a concretude da realidade, mais do mesmo, isto é, ao tentar combater a discricionariedade do intérprete no Positivismo-Normativista de Kelsen, fez da proporcionalidade/ponderação uma via aberta para o solipsismo[2] interpretativo. Afinal de contas, como evitar a arbitrariedade se a discricionariedade é indispensável para solucionar um conflito (ou pseudo conflito?) entre princípios que têm como característica justamente a textura aberta? Assim como concluíra Streck (2009: 344-345) em crítica a teoria alexyana, pode-se dizer que a ponderação é um procedimento que tem por fim legitimar uma decisão que fora tomada intimamente, ou seja, o método proporciona o controle do meio, mas o conteúdo da decisão (o fim) continua insondável, pois é fruto do solipsimo do intérprete.


II.  A “SOFISTICAÇÃO” ARGUMENTATIVA ATRAVÉS DA INVOCAÇÃO FROUXA DOS PRINCÍPIOS, O PANPRICIPIOLOGISMO E O DECISIONISMO JUDICIAL

É inegável que há a necessidade de normatização dos princípios com o fito de interiorizar no ordenamento jurídico os valores e conquistas históricas de dada comunidade. Nesse sentido, os princípios são a porta de entrada para a discussão de cunho filosófico, moral e político na seara jurídica. A bem da verdade, numa sociedade complexa como a nossa, não se pode conceber uma sistematização jurídica que não seja vincada em princípios constitucionais. Uma ordenação que estivesse esteio somente em regras não daria conta de resolver conflitos de alta carga valorativa e de forte conteúdo social e político. Quer-se dizer com isso que os princípios, pela sua maleabilidade e fundamentalidade, são imprescindíveis para solver uma desinteligência advinda de uma sociedade que cultiva valores às vezes contrapostos.

 Não há a menor dúvida que o neopositivismo, com fulcro na normatividade dos princípios, veio a combater, ao mesmo tempo, dois modelos clássicos de aplicação do direito: o positivismo legalista que não vislumbrava poder de criação ao juiz (juiz boca da lei) e o positivismo normativista kelseniano que delegava ao intérprete ampla discricionariedade. A normatividade dos princípios visava, assim, concomitantemente, derrubar a mecanização da interpretação (positivismo legalista), bem como impor balizas racionais e valorativas advindas do texto constitucional que impedisse o voluntarismo desmedido do intérprete (positivismo kelseniano).

Ocorre que a práxis judicial brasileira tem deturpado as vigas sustentadoras do paradigma neopositivista do direito, mormente, quando se trata da invocação débil de importantes princípios (com o perdão do pleonasmo, já que não há princípio que não seja importante) para dar um viés sofisticado à decisão, e mais, encobrir a vontade íntima do julgador com um adorno deveras persuasivo do ponto de vista jurídico. Tal problema é alertado por Streck:

O caráter normativo dos princípios – que é reivindicado no horizonte das teorias pós-positivistas – não pode ser encarado como um álibi para a discricionariedade, pois, desse modo, estaríamos voltando para o grande problema não resolvido pelo positivismo. (STRECK, 2010: 104)

A prática judicial brasileira, sorrateiramente, tem se socorrido da maleabilidade dos princípios para dar a solução ao gosto do freguês, isto é, evoca-se determinado princípio, diga-se de passagem, sem qualquer ônus argumentativo, a fim de impor ao caso concreto o capricho do juiz. Dito de outro modo, os princípios, na maioria das vezes, servem como engodo para que o juiz imponha a sua vontade solitária no conflito que se pôs a analisar. A bem da verdade, os princípios têm servido como enunciados performativos. Assim, segundo Streck (2010: 50): “A sua simples enunciação já faz “emergir” a sua significação. Portanto, já “não pode ser contestado”; não pode sofrer críticas; consta como “algo dado desde sempre”. A sua mera evocação já é um “em si mesmo”.”

A dignidade da pessoa humana, a razoabilidade, a isonomia, a liberdade de expressão, o devido processo legal, dentre outros princípios que são os verdadeiros alicerces da ordem jurídica constitucional, pela imponência simbólica e por sua eloqüência inata, estão sendo usurpados à todo gosto pela prática judiciária brasileira sem o menor pudor. Tais princípios são evocados para dar um tom de sofisticação a fundamentação e, ao mesmo tempo, torná-la irrefutável. Não se percebeu que esse recurso é um engodo argumentativo que esconde a vontade íntima do juiz. Nesse sentido disserta Sarmento:

E a outra face da moeda (do uso desmesurado do princípios) é o lado do decisionismo e do oba-oba. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem justiça – ou o que entendem por justiça – passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, convertem-se em verdadeiras varinhas de condão: com eles, o julgador consegue fazer quase tudo o que quiser. (SARMENTO, 2006: 199-200, grifei)

Interessante dizer que erra também quem enxerga em uma decisão principiológica uma decisão constitucionalmente adequada, progressista ou de vanguarda. O uso desmesurado dos princípios serve também para deixar vazar na realidade judicial valores ultrapassados, sem respaldo constitucional, mas que ainda permeiam o imaginário do jurista conservador, como: o “bom pai de família”, a “mulher honesta” e os “bons costumes”, para dizer alguns. E mais. Alerta Sarmento (2009) que numa sociedade como a brasileira, marcada pelo “jeitinho” e pelo patrimonialismo, a invocação frouxa dos princípios é bastante perigosa, lembrando de obra clássica da sociologia brasileira – Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda[3] – enfatiza que o brasileiro é o “homem cordial” que tende a sobrelevar a simpatia e o compadrio em detrimento do cumprimento objetivo e racional das regras legais.

Por tudo isso, a invocação frouxa dos princípios, em todo e qualquer lugar, mas, no Brasil em específico, pelas peculiaridades de nossa cultura, pode acarretar um decisionismo valorativo avesso aos próprios valores que emanam do texto constitucional. Noutros dizeres, o uso indiscriminado da norma principiológica acarretará uma espécie de suicídio aos princípios. A utilização de determinado princípio sem o necessário desencargo argumentativo promoverá, aos poucos, o falecimento do próprio princípio, tendo em vista que a conseqüência será a perda de sua força normativa. O mau uso tende a desfalecer a própria essência da norma principiológica, e isso não se quer. Somente para citar um exemplo, sobre a sujeição do réu em ação de investigação de paternidade ao cumpulsório exame de DNA, há decisões no sentido de admitir e de inadmitir, ambas sob o mesmo fundamento: a dignidade da pessoa humana.[4] Pelo seu caráter genérico, abstrato e fundamental, os princípios passam a jogar em todas as posições, chegando a bater o corner e ainda correr para cabecear.

Como se não bastasse o mau uso dos princípios postos, há ainda o fenômeno da criação de princípios para toda e qualquer situação em que bastaria uma regra para dispor. Trata-se do panprincipiologismo. A conseqüência dessa cultura – tanto da utlização desmesurada de princípios quanto da criação de novos princípios - pode ser (e será) devastadora em relação aos verdadeiros princípios constitucionais: a uma, porque a inflação de princípios acarretará a perda de força normativa dos princípios autênticos; a duas, porque o panprincipiologismo está a usurpar o espaço da regra no ordenamento jurídico, e isso pode conduzir à mais ampla discricionariedade judicial; a três, e em conseqüência do excesso de discricionariedade judicial, perder-se-ia em segurança jurídica. É por isso que, na linha do que diz Streck (2010), sob o mesmo fundamento de ordem principiológica, um réu é preso em Santa Catarina e outro é solto no Rio Grande do Sul.

Por fim, não há a menor dúvida que a normatização dos princípios foi uma conquista histórica que permitiu uma virada no modo de interpretar/aplicar o direito – mudança aliás aplaudida no decorrer de todo o presente trabalho – todavia, o alerta feito aqui se dá em razão do desvirtuamento do paradigma neopositivista que, ao mesmo tempo em que concedeu força normativa aos princípios, trouxe à baila a racionalidade-argumentativa-constitucional. O que tem sido feito, em terrae brasilis, através da principiologia, foge a razão constitucional e reforça a prevalência da vontade intimista do juiz. Numa palavra, os princípios, hoje, têm servido para escamotear a visão de mundo solipsista do juiz. E isso pode ser trágico num país que tem arraigado, como já dito, o jeitinho, o patrimonialismo, o patriarcalismo e tantos outros “valores” que, acobertados pelo verniz da principiologia constitucional, podem passar a impressão de decisão adequada, mas que na verdade estão sendo reafirmados sob novas vestes.

Não se defende aqui a retirada do argumento principiológico das decisões judiciais, aliás, os princípios, como fora defendido no decorrer do presente trabalho, servem bem a solução de conflitos de alta indagação moral, social e política, assim como são vetores interpretativos das regras. O que se pretende é a colocação das coisas em seus devidos lugares. A pura argumentação principiológica não pode tomar lugar da incidência de uma regra quando esta se amolda com precisão a determinado caso. O afastamento de uma regra de pronta incidência a determinado caso em prol de uma argumentação principiológica é um artifício pelo qual lança mão o juiz para que afinal possa prevalecer a sua vontade. E isso sim é ditadura da toga. Não se questiona o papel, por exemplo, da jurisdição constitucional em afastar a aplicação de uma lei que afronte a Constituição, mas daí a simplesmente, sem qualquer ônus argumentativo, impor a aplicação de um princípio que permite a fácil manipulação semântica de sentido, não parece ser – como não é – uma decisão verdadeiramente democrática. Lado outro, não se quer também o império das regras e a conseqüente sucumbência dos princípios, pois se estaria a reproduzir as mazelas do positivismo legalista, assim como a desmesurada aplicação dos princípios tem reproduzido a arbitrariedade do positivismo kelseniano. Portanto, no mesmo passo em que conclui Sarmento (2009), é necessária a busca de um meio-termo, isto é, nem um sistema tão fechado como fora em outros tempos em que havia a hegemonia das regras; tampouco um sistema aberto demais que permita abusos decisionistas. Enfim, sem desprezar os princípios, deve-se levar a sério as regras.


III. O FRACASSO DOS PARADIGMAS METODOLÓGICOS-INTERPRETATIVOS EM PRODUZIR UMA DECISÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA E UMA CRÍTICA AO “DECIDO CONFORME MINHA CONSCIÊNCIA”

A queda do positivismo jurídico na Europa Ocidental implicou na superação dos métodos de subsunção da Escola de Exegese[5], assim como a derrocada da discricionariedade da Teoria da Moldura[6] proposta pelo positivismo normativista de Kelsen. No mesmo passo em que o Positivismo Kelseniano - embasado na distinção entre Texto e Norma[7]- isto é, na necessária desvinculação do texto legal escrito e aquilo que é fruto da interpretação, ou seja, da pré-compreensão do intérprete, refuta a idéia de intérprete coisificado da Escola da Exegese, que não vislumbra atividade criativa do juiz, é também superado pela Teoria da Argumentação – pós-positivista- que acusa a Teoria da Moldura de propagar um voluntarismo avesso a racionalidade.

A perspectiva Neocosntitucionalista – principalmente, com espeque na Teoria da Ponderação de Valores de Robert Alexy - rebate tanto o método lógico-formal do Positivismo-Legalista, que se assentava na única resposta possível, quanto o método discricionário do Positivismo-Normativista, que atribuía ao intérprete o poder de escolha entre as tantas decisões possíveis. É certo, porém, que o Neoconstitucionalismo não refuta integralmente o Positivismo-Normativista, pois se apropria da idéia de que o juiz também cria o direito, já que a norma não é outra coisa senão fruto da interpretação.

 Ademais disso, a partir do paradigma neopositivista, a própria normatividade dos princípios, quando mal utilizada, se torna um cheque em branco em favor do intérprete, conforme largamente salientado alhures. Saliente-se também nesse sentido que a ponderação alexyana é a porta de entrada para a discricionariedade. E daí advém o problema: a discricionariedade que permite prevalecer a vontade solipsista do julgador está presente tanto em Kelsen quanto em Alexy.

É por esta razão que Streck (2009) alerta para o fato de que, na verdade, não há uma superação da discricionariedade entre o positivismo kelseniano e a teoria da argumentação (pós-positivista) alexyana, mas, sim, uma substituição de discricionariedade. Diz ainda que a tese da ponderação de valores permitiria uma margem discricionária ainda maior que no positivismo clássico porque os princípios parecem ter uma textura muita mais aberta que as regras. Sobre a fragilidade do método de ponderação, Ana Paula de Barcellos, embora adepta da ponderação, lamenta: “Não há como negar, considerando o estado atual da dogmática sobre o assunto, que, de fato, a ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja excessiva subjetividade e não dispõe de mecanismos que previnam o arbítrio.” (BARCELLOS, 2006: 53)

Decreta-se, assim, o fracasso dos paradigmas metodológicos-interpretativos em produzir uma decisão constitucionalmente adequada: o positivismo legalista, por não ter convivido com a normatividade dos princípios e impingir um sistema demasiado fechado e avalorativo de regras aplicadas por processo mecânico; o positivismo normativista, por conceder ao intérprete nos hard cases autorização para julgar conforme seu sentimento do justo, ou seja, pecou-se pelo excesso de discricionariedade; a teoria da argumentação de matriz neopositivista, pecou também por conferir ao intérprete uma margem de discricionariedade muito grande na realização da ponderação de valores, o que acarreta o arbítrio no processo decisório.

Por tudo isso, torna-se necessário encontrar um caminho para se buscar uma decisão que promova mais a Constituição do que o instinto individual do juiz. É tempo de se buscar uma decisão constitucionalmente adequada.

Na linha do que diz Streck (2010), o Estado Democrático de Direito é uma conquista da qual não pode ser relegada a vontade ou ao pensamento que alguém tem sobre alguma coisa. Discricionariedade e democracia não se bicam. A democracia não pode depender da vontade de alguém. Em plena vigência da Constituição Federal de 88 é no mínimo paradoxal o resultado de um processo depender da consciência individual de um sujeito. Aliás, indaga Streck (2010): quando se diz que o juiz julga conforme a sua consciência, onde fica a Constituição? O direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, e sim, o que a Constituição determina.

Tornou-se freqüente na prática judiciária brasileira um discurso pretensiosamente neopositivista de que o juiz/intérprete paira por cima da legalidade estrita, posto que sua decisão deve estar em consonância com a sua consciência, e a lei poderia restringir o seu sentido de justiça. O juiz, em última análise, estaria atrelado a sua consciência, ao seu sentimento do “justo”, a sua (cosmo) visão de “verdade”, e não a determinação legal. Interessante anotar que esse discurso, travestido de neopositivista, não coaduna com este modo de interpretar/aplicar o direito que tem a Constituição como parâmetro aplicativo. E mais. Importante deixar bem vincado, assim como fizera Streck (2010), que o estrito cumprimento da lei em um Estado Democrático de direito não é o mesmo que seu cumprimento sob o paradigma positivista-legalista em que a lei estava despida de valorações sociais e desprovida de filtragem constitucional. No Estado Democrático de Direito é mais perigoso a consciência solitária do justo do que o cumprimento de uma lei constitucional. No ambiente verdadeiramente pós-positivista fala-se em uma nova legalidade em que a moral é co-originária à lei, enquanto no positivismo ultrapassado o campo da moral estava de fora. Essa nova legalidade, necessário dizer, somente se estabelece sob o manto da constitucionalidade. Daí se dizer que cumprir estritamente uma lei constitucional é concretizar a democracia, e isso sim é ser pós-positivista.[8]

É necessário deixar claro que quando se diz que a interpretação não pode vir unicamente da cabeça do julgador não se está a tirar o poder de criação do juiz engendrado pelo paradigma pós-positivista, e sim, que o julgador, como está inserido em um ambiente constitucional, deve buscar uma solução condizente com o texto constitucional, e não com o seu sentido de “justo”. Ao invés do excesso de discricionariedade, deve-se pensar, hoje, na vinculação entre o intérprete e a constituição. É dizer: se sou um juiz ideologicamente inclinado à esquerda, para utilizar as expressões mais comuns no espectro político brasileiro, não posso desconsiderar que a Constituição Federal de 88 previu como princípio da ordem econômica a livre concorrência (art. 170, IV, da CF/88); assim como se sou um juiz liberal de direita, não posso desprezar que a Constituição de 88 é comprometida com a função social da propriedade e com a erradicação da pobreza (art. 5º, XXIII, art. 170, III; art. 3º, III, art. 170, VII, todos da Constituição Federal de 1988).

Interessante anotar que dizer o que é a dignidade da pessoa humana não é dizer o que se entende por dignidade da pessoa humana, mas o que aquele ambiente constitucional a que está inserido o intérprete compreende o conceito. A solução não está no indivíduo sozinho, mas na comunidade política a que o intérprete está inserido. Segundo Streck (2010), uma decisão adequada à Constituição está condicionada ao sentido do direito projetado pela comunidade política. Nas suas palavras:

Portanto, e isso é definitivo, a decisão jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador das diversas possibilidades de solução da demanda. Ela se dá como um processo em que o julgador deve estruturar a interpretação – como a melhor, a mais adequada – de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política. (STRECK, 2010: 106)

Torna-se oportuna aqui, uma vez mais, a menção a “sociedade aberta dos intérpretes da constituição” de Peter Haberle que traz à hermenêutica constitucional a idéia de interpretação difusa da Constituição. A Constituição não é um documento a ser interpretado somente na esfera institucional, ela vai além e alcança o imaginário da comunidade. A Constituição interpretada comunitariamente é um pressuposto interpretativo do próprio intérprete oficial. O juiz (intérprete oficial) não pode descolar sua interpretação da interpretação comunitária, já que é daí que se retira a legitimidade da decisão. Ademais, o interpretar do texto não pode advir da opinião pessoal que o juiz tem sobre determinado assunto, mas da intersubjetividade, do intercambio comunitário, de certo consenso constitucional da sociedade. Diz Lênio Streck:

O juiz deve saber suspender seus pré-juízos. Caso contrário, não pode ser juiz. E, atenção: dizer isso não quer dizer que os juízes estão proibidos de interpretar. Longe disso, todos têm subjetividades, ideologias, etc. O que não pode acontecer é esses aspectos subjetivos se colocarem no “lugar da produção dos sentidos” em uma sociedade democrática. (STRECK, 2011: 15-16)

 É por isso que se torna necessária, utilizando a expressão cunhada por Streck (2010), a “fundamentação da fundamentação” que significa a aplicação radical do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988. A invocação frouxa dos princípios permite decionismos individuais avessos ao texto constitucional. Portanto, sendo o caso de se proferir uma decisão principiológica, cabe ao intérprete/aplicador se aprofundar na argumentação não só para que se demonstre a necessária incidência do princípio, como também para se aferir se o conceito dado àquele princípio coaduna com aquele retirado da comunidade política.

Já caminhando para o término do presente trabalho, necessário salientar que, embora possa parecer que a crítica ao subjetivismo através da manipulação dos princípios, bem como a crítica ao descumprimento de regras legais sob o fundamento do “decido conforme a minha consciência”, tenha o condão de ser também um levante contra a Jurisdição Constitucional e ao contramajoritarismo, na forma do que apregoa Streck (2010), tais críticas não atingem o papel fundamental da jurisdição constitucional de efetivar direitos fundamentais e de se contrapor à lei quando esta não está em consonância com os desígnios da Constituição de 88. Aliás, o papel proeminente da jurisdição constitucional brasileira é aplaudido no presente trabalho. O problema, conforme salientado alhures, reside em “como” juízes e tribunais tem desrespeitado balizas constitucionais para fazer valer sua própria vontade solipsista e o quanto isso é perigoso pelas peculiaridades da cultura brasileira. Assenta Streck:

Mais uma vez é preciso alertar para os possíveis mal-entendidos: o rigoroso controle das decisões judiciais (veja-se o que escrevo no posfácio de Verdade e Consenso) não quer dizer – sob hipótese alguma – diminuição do papel da jurisdição (constitucional). Aliás, esse mesmo controle deve ser feito em relação em relação às atividades do Poder Legislativo. O Estado Democrático de Direito é uma conquista. É, portanto, um paradigma, a partir do qual compreendemos o direito. Quando propugno pelo cumprimento da Constituição e o direito fundamental à obtenção de respostas adequadas (à Constituição), quero dizer com isso que, mesmo em face de o Parlamento realizar amplas reformas e (visar a) desvirtuar a Lei Maior, ainda assim poderemos continuar a sustentar as mesmas teses! Ou seja, a defesa que faço da Constituição não significa ‘qualquer Constituição’! Há uma principiologia constitucional que garante a continuidade da democracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica. Ora, o direito possui uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidade política. A integridade e a coerência devem garantir o DNA do direito nesse novo paradigma. Para ser mais claro: quero dizer com isso que, em última ratio, levando em conta as inexoráveis possibilidades de o Parlamento aprovar leis ou emendas constitucionais “de ocasião” (inconstitucionais), a jurisdição constitucional deve se constituir na garantia daquilo que é o cerne do pacto constituinte de 1988! Entretanto – e esse é o motivo pelo qual defendo uma Teoria da Decisão – isso não depende (e não pode depender) da visão solipsista de juízes ou Tribunais. Depende (rá), sim, daquilo que se convencionou denominar de “sentimento constitucional”. (STRECK, 2010: 112, grifei)

Para finalizar, importa dizer que o fracasso dos modelos metodológicos interpretativos não corresponde ao triunfo da liberdade interpretativa, muito pelo contrário, a derrota dos métodos tanto do positivismo kelseniano quanto da argumentação alexyana, deixando de lado o positivismo legalista já há muito superado, se deveu justamente a margem de discricionariedade concedida ao intérprete que permitiria que a jurisdição se tornasse um poder à disposição da subjetividade do julgador. Mas o fim do método equivaleria a um livre atribuir de sentidos? Certamente que não. Mas é necessário que se inicie uma nova discussão entorno da criação de uma teoria da decisão que tenha como parâmetro inicial as bases críticas que Streck vem tecendo ao modo de interpretar/aplicar o direito em terrae brasilis, mormente, quanto ao enfraquecimento da força normativa da constituição ante ao “decido conforme a minha consciência”. Por fim, nas palavras de Streck: “Na especificidade do direito brasileiro, a grande conquista foi a Constituição – sem dúvida a mais democrática do mundo. Esse é o vetor que deve conformar a atividade do jurista”. (Ibidem)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetivou demonstrar que o triunfo do paradigma pós-positivista, fruto de nosso avançado texto constitucional de 88, tem servido de engodo para que juízes e tribunais decidam conforme o seu bel prazer. É que a normatividade dos princípios se tornou uma “arma poderosa” nas mãos de quem não tem o mínimo de preparo ético-constitucional. Não há a menor dúvida que a normatividade dos princípios foi uma conquista das mais valiosas, permitindo um diálogo aberto e franco entre a moral, a política e o direito, firmando também os alicerces que estruturam o Estado brasileiro, ocorre que o seu sentido tem sido corrompido para beneficiar o sentimento individual do intérprete. Não se percebeu até o momento que a grande conquista do pós-positivismo é a normatividade da Constituição, e não a discricionariedade do indivíduo. O intérprete/aplicador está imerso em uma atmosfera constitucional, daí se deduzir que ele nunca poderá chegar a uma decisão que não esteja inserida nesse ambiente.

Para evitar possíveis equívocos, o problema não é em si o resultado das decisões que a Corte Constitucional brasileira tem tomado, que, diga-se de passagem, não têm rompido com os consensos sociais, tampouco o problema reside na ampla visibilidade do Supremo Tribunal Federal, já que isso lhe dá maior legitimidade, o problema reside, sim, em “como” a fundamentação dessas decisões podem vir a manipular os resultados; e mais, a jurisdição constitucional brasileira não se restringe a Excelsa Corte, portanto, juízes e Tribunais estariam preparados constitucionalmente para proferir decisões constitucionais? A resposta é não. Não estão preparados. Há na verdade uma manipulação da principiologia constitucional em favor do intérprete. Juízes e Tribunais, deturpando o paradigma neopositivista que imprime normatividade aos princípios, proferem decisões carregadas de apreciações individuais ao invés de aplicarem as regras ou de se desencarregarem da devida fundamentação de ordem constitucional. Tornou-se comum invocar, em razão da textura aberta, a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a proporcionalidade, a separação de poderes, para dizer alguns dos princípios mais freqüentes nas decisões judiciais, a fim de que se prevaleça o sentimento pessoal do intérprete/aplicador em detrimento da própria regra estabelecida em uma lei ou no texto constitucional. Outro recurso também pretensamente neopositivista é o “decido conforme a minha consciência” que tem o condão de afastar a aplicação de uma lei “injusta”, porém constitucional (que paradoxo, não?), para prevalecer o voluntarismo do julgador. Ao que parece, no imaginário do jurista brasileiro, a normatividade dos princípios engendrada pelo neopositivismo foi uma carta de alforria em termos de interpretação. É dizer: faz-se o que se quer com os princípios.

Não se percebeu que a discricionariedade do intérprete criticada no positivismo kelseniano é encontrada no ambiente neopositivista tanto no uso da ponderação quanto na invocação frouxa dos princípios. Esse é o grande equívoco da prática judiciária e de alguns setores da dogmática brasileira: não perceber que resgataram a discricionariedade kelseniana, e o quanto isso é prejudicial à força normativa da Constituição e, conseqüentemente, à democracia. Assim como anunciara Sarmento (2009), o momento é oportuno para se repensar a interpretação/aplicação da norma jurídica, levando mais a sério as regras e o critério de subsunção, sem desprezar a importância dos princípios. Mas só isso não basta para superar o fracasso dos paradigmas metodológicos de interpretação. O espaço não pode ficar aberto para o “livre atribuir de sentidos”. Por isso é que Streck (2010) alerta para a necessidade de se criar uma teoria da decisão que não tem a pretensão de trazer à tona a única resposta correta, mas a que é mais adequada à Constituição. E essa resposta, segundo Streck (2010) não pode depender da vontade, da consciência, da subjetividade do julgador.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

[1] O exemplo destacado do artigo foi retirado de “A teoria da Ponderação de Valores e os Direitos Fundamentais: Avanços e Críticas” de autoria de Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Felipe Faria de Oliveira.

[2] Expressão cunhada por Lenio Streck para designar a idéia de consciência individual do intérprete, o intérprete que se ampara em seu psicologismo para decidir (STRECK, 2010).

[3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[4] V. STF, DJU, 1º de Nov. 1994, HC 71.373/RS, Rel. Min. Marco Aurélio e TJ/SP, AC 191.290-4/7-0, ADV 37-01/587, n. 98.580, Rel. Des. A. Germano.

[5] Segundo João Maurício Adeodato, na perspectiva da Escola da Exegese: “O conceito de norma jurídica é identificado com o de lei. Assim, interpretar consiste apenas em aplicar a lei ao fato e só há diferença entre aplicação e interpretação do direito quando há obscuridades sobre os fatos ou quando a lei é mal feita. O judiciário é um mal necessário. Daí que o método hermenêutico deve ser o mais literal, e a interpretação, a mais declaratória possível”. (ADEODATO, 2009: 285)

[6] Op. Cit – Para Adeodato: “Os positivistas mais críticos do legalismo, que vão desembocar em Kelsen, passam assim a advogar a tese do texto da lei como “moldura” da várias decisões, sempre o flexibilizando em alguma medida e considerando intransponível a necessidade de interpretação. Segundo esse entendimento, um conflito concreto teria algumas possíveis decisões diferentes, todas igualmente adequadas, desde que dentro do sentido e do alcance dos textos aplicáveis e correspondentes procedimentos”.

[7] Na dicção de Humberto Ávila: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. (...) Daí se dizer que interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir: a uma, porque utiliza como ponto de partida os textos normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual”. (ÁVILA, 2009:30)

[8] A fim de ilustrar que o cumprimento estrito da lei promoveria a constituição e que grande parte dos juízes das varas criminais brasileiras têm se olvidado à sua aplicação, atados que estão ao modelo presidencialista e inquisitorial na condução do processo penal, Streck cita o exemplo da não aplicação do art. 212 do Código de Processo Penal (com redação dada pela Lei 11.690/08). Ora, a aplicação do cross examination é algo que pode ser considerado como um conquista do modelo acusatório inspirado na Constituição de 88. Aplicar estritamente a lei neste caso é dar vida a própria constituição, e isso é um grande avanço. Mas grande parte dos juízes, com fundamento no princípio da instrumentalidade das formas ou em qualquer outro, afastam a incidência do art. 212 do CPP para fazerem do processo o que melhor entendem. (STRECK, 2010)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Allender Barreto Lima da. A deturpação do paradigma pós-positivista na prática judiciária brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3348, 31 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22517. Acesso em: 29 mar. 2024.