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Distinção entre afastamento temporário do lar e separação de corpos e o conflito existente a partir da perda de prazo para ajuizamento da ação principal

Distinção entre afastamento temporário do lar e separação de corpos e o conflito existente a partir da perda de prazo para ajuizamento da ação principal

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Diferencia-se a separação de corpos, que tão somente libera um dos cônjuges do débito conjugal, do afastamento de um dos cônjuges do lar conjugal, que implica necessariamente a saída de um deles do imóvel onde reside a família.

Nosso Código de Processo Civil – CPC regula, em seus artigos 888 e 889, uma série de medidas por ele denominadas “provisionais”. Antes de tudo, impende estabelecer o significado da palavra provisional. Embora com frequência utilizada para significar “provisório”, quer a expressão também significar “relativo à provisão”, que, como se sabe, é ato ou efeito de prover, de assegurar os atendimentos das necessidades humanas. Tal distinção é fundamental para se analisar a real natureza dessas medidas provisionais. Há de se afirmar, desde logo, sem embargo de controvérsias, que no artigo 888 do CPC dificilmente se encontrará alguma medida que tenha, realmente, natureza cautelar. Senão vejamos.

A medida prevista no inciso VI do art. 888 supracitado tem gerado intensa polêmica doutrinária. Autores há que equiparam a medida de afastamento temporário de um dos cônjuges àquela de separação de corpos[1], prevista no artigo 1562 do Código Civil. Contudo, outros se filiam à distinção entre as duas medidas, o que fazem apoiados na ideia de que a separação de corpos limita-se a estabelecer um rompimento do dever de coabitação, dispensando o cônjuge do debitum conjugale e impedindo, por sua vez, que o outro consorte se valha desse argumento para que se pleiteie, em sede de separação judicial, o abandono de lar pelo primeiro, imputando a este a causa pela dissolução da sociedade conjugal.

Aqui incide a real distinção entre a separação de corpos e a medida de afastamento temporário de um dos cônjuges. Pela primeira, não há implicação necessária de que os dois cônjuges, uma vez separados os corpos, permaneçam residindo no mesmo endereço, dividindo até a mesma cama; pela segunda, fundamentalmente há o afastamento físico, com a saída de um dos consortes da residência familiar.

Assim, para essa segunda corrente, faz-se mister diferenciar uma medida de separação jurídica, a “separação de corpos”, que tão-somente libera um dos cônjuges do débito conjugal, de outra medida, de separação fática, o “afastamento de um dos cônjuges do lar conjugal”, que implica necessariamente a saída de um deles do imóvel onde reside a família. É de ser feita a ressalva que os pedidos podem ser cumulados; não há, inclusive, cabimento que se tenha separação física sem que tenha também separação jurídica, embora a recíproca não possa ser tomada como verdadeira[2]. Uma vez esclarecida tal divergência, passemos à análise da questão que me proponho a responder.

Conquanto tratada no Código de Processo Civil como espécie do gênero ação cautelar, a medida de "afastamento de um dos cônjuges da morada do casal" (artigo 888, VI) não ostenta esta natureza jurídica.  É sabido que a ação cautelar é aquela que almeja garantir resultado útil à tutela de outra natureza (de conhecimento ou de execução). Presta-se, por conseguinte, uma tutela - cautelar - com a finalidade de assegurar, através dela, a efetividade de outra tutela, a ser perseguida em outro processo. Desta forma, facilmente se percebe que a medida em comento não tem a finalidade de garantir resultado útil à tutela de outra natureza – como uma separação judicial, um divórcio, uma anulação de casamento etc. – o que, como já se disse, constitui a característica fundamental de qualquer ação cautelar genuína.

Na verdade, o que se pretende com a medida do art. 888, VI, é a antecipação de um dos efeitos da dissolução da sociedade conjugal ou do casamento – a cessação do dever de satisfazer o debitum conjugale – e, também, o da vida em comum no domicílio conjugal, implicando dizer que o "afastamento de um dos cônjuges da morada do casal" participa da natureza jurídica da antecipação da tutela de mérito, regulada no artigo 273, e não de verdadeira e própria ação cautelar, como tal regulada no artigo 888, VI. Isso porque a referida medida tutela diretamente o direito substancial, já que protege um dos cônjuges de sevícias, maus tratos ou outros malefícios que a convivência sob o mesmo teto com outro consorte poderia lhe causar. É assim uma medida antecipatória, que permite a imediata produção de parte dos efeitos que se produzirão após a prolação da sentença de procedência do pedido na ação matrimonial, a qual possui o fito de buscar a dissolução da sociedade conjugal, do vínculo matrimonial ou da união estável[3].

Da circunstância de não ostentar o "afastamento de um dos cônjuges da morada do casal" natureza jurídica cautelar, decorrem duas conseqüências importantes. A primeira delas consiste em que a duração da decisão que determina ou autoriza o afastamento de um dos cônjuges da morada do casal deve estender-se até o trânsito em julgado da sentença que venha a ser proferida na causa principal, ficando assim imune a revogações ou modificações, não se lhe aplicando, portanto, o artigo 807, o qual permite, em relação às verdadeiras medidas cautelares, que sejam a qualquer tempo revogadas ou modificadas.

A segunda conseqüência se perfaz na desnecessidade de ser proposta a ação principal no prazo de 30 dias, sob pena de cessação da eficácia da medida (CPC, artigos 806 e 808, inciso I). Contudo, tal entendimento presta-se a controvérsias.

Mas da premissa de que se parte – o afastamento de um dos cônjuges da morada do casal não ostenta natureza cautelar – a conclusão a que se deve chegar é a de que quem a obteve não tem o ônus de propor a ação principal dentro do prazo legal para atender a dispositivo que trata daquilo que o artigo 888, VI não é: medida cautelar[4].

Parte da jurisprudência, no entanto, orienta-se no sentido inverso[5], no que se faz acompanhar por doutrina de peso (Ovídio Baptista, Humberto Theodoro Júnior, dentre outros). Argumenta-se que, uma vez concedida a medida do artigo 888, VI, terá a parte que a obteve o prazo do artigo 806 para a propositura da ação, sob pena de a mesma perder a eficácia. Contudo, essa perda se daria no plano jurídico, tornando ilegítimo o afastamento do cônjuge da morada do casal, mas não haveria qualquer eficácia condenatória ou mandamental capaz de impor o retorno do separado à convivência conjugal, que é mera questão de fato.

A solução preconizada ainda não resolve o problema que consiste em saber se, decretada a ineficácia da medida, no plano jurídico, teria o cônjuge que se afastou da morada do casal, voluntária ou compulsoriamente, o direito de a ela regressar, uma vez que a separação fática estaria consumada.

Ao meu entender, a resposta é negativa. A falta da propositura da ação, no prazo legal, não pode trazer por conseqüência a reunião compulsória de corpos que se odeiam. Isso fere o interesse público de se evitar animosidades. Deve-se sempre buscar o bem geral. Se, v.g., o marido se julgar injustiçado pela decisão que o afastou compulsoriamente do lar conjugal, tendo a mulher se desinteressado pela propositura da ação principal, deverá ele propor a ação principal contrária, alegando, por exemplo, em ação de separação judicial intentada com base no artigo 5° da Lei do Divórcio, grave violação, pela mulher, dos deveres do casamento.

Quando se dá "afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal", há, já se disse, uma separação não apenas jurídica, mas também fática, ou seja, física. Para a concessão da medida, são necessários a comprovação da existência do casamento, avaliação da existência de constrangimentos resultantes da vida em comum ou da insuportabilidade do convívio durante todo o transcurso da ação principal.

Tratando-se de medida de antecipação de efeitos da tutela definitiva de mérito, a sua concessão depende também da coexistência dos requisitos do artigo 273 do Código Processual Civil: probabilidade da existência do direito para o qual se pretende pedir tutela, fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, inexistência de perigo de irreversibilidade, etc.

Por todo o exposto, pode-se concluir que, por não se tratar de medida de providência essencialmente cautelar, ao “afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal" não se aplica o disposto no artigo 806 do CPC. Não há necessidade de intentar a ação principal naquele prazo (30 dias da efetivação da medida), amparando-se, para tanto, em abalizada doutrina e jurisprudência[6].

Na hipótese em discussão, entendo que deva prevalecer o pedido de afastamento, não havendo a necessidade de o cônjuge retornar ao lar, posto que, mesmo que se entendesse que a medida perderia eficácia, hipótese essa admitida apenas a título de argumentação, não haveria, como asseverado em linhas precedentes, qualquer eficácia condenatória ou mandamental capaz de impor o retorno do separado à convivência conjugal, que é mera questão de fato.

Entretanto, afirma-se mais uma vez que a medida prevista no art. 888, VI do CPC, ao meu entender, não se trata de medida cautelar. Em sendo assim, o consorte que fez o requerimento para deixar o imóvel não seria tomado como se tivesse abandonado o lar, pois a medida não perderia a eficácia se ele não tivesse entrado com a ação principal no prazo de 30 dias a contar da ciência da efetivação dela.


BIBLIOGRAFIA

1. FREITAS CÂMARA, Alexandre – Lições de Direito Processual Civil, vol. III, 6ª ed., Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004.

2.  NEGRÃO, Theotônio - Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, 37ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005.

3.  THEODORO JÚNIOR, Humberto – Processo Cautelar, 4ª ed., São Paulo: LEUD, 1980.

4.  SILVA, Ovídio Baptista da – Do Processo Cautelar, Rio de Janeiro: Forense, 1996.


Notas

[1] Theodoro Júnior, Processo Cautelar, p. 339.

[2] Freitas Câmara, Lições de Direito Processual Civil, p. 289.

[3] Baptista da Silva, Do Processo Cautelar, p. 549.

[4] Nesse sentido é o posicionamento de Galeno Lacerda. Assim também entendeu, por unanimidade de votos, a 4ª Comissão do Congresso de Magistrados, realizado no Rio de Janeiro, em 1974. A favor, segue uma jurisprudência: “EMENTA:  SEPARACAO DE CORPOS. PERDA DE EFICACIA DA LIMINAR. NAO PROPOSITURA DA ACAO PRINCIPAL NO PRAZO DE 30 DIAS. SUMULA N-10 DO TJ. SEGUINDO MAGISTERIO DE GALENO LACERDA, APOS DECIDIR REITERADAMENTE NO MESMO SENTIDO, O TJ SUMULOU O ENTENDIMENTO DE QUE NAO PERDE A EFICACIA A LIMINAR DE SEPARACAO DE CORPOS SE NAO AJUIZADA A ACAO PRINCIPAL NO PRAZO DO ART-806 DO CPC. SUMULA APLICADA. AGRAVO IMPROVIDO.” (Agravo de Instrumento Nº 594026197, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Heerdt, Julgado em 27/04/1994)

[5] “AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA. SEPARAÇÃO DE CORPOS. NÃO PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL NO TRINTÍDIO LEGAL. CÔMPUTO DO PRAZO A PARTIR DA EFETIVAÇÃO DA LIMINAR. CESSAÇÃO DOS EFEITOS DA MEDIDA. EXTINÇÃO DO PROCESSO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 806 E 808, I, DO CPC. NAS AÇÕES CAUTELARES PREPARATÓRIAS, O PRAZO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL CONTA-SE A PARTIR DA EFETIVAÇÃO DA LIMINAR, E, INOBSERVADO, ACARRETA A CESSAÇÃO DOS EFEITOS DA MEDIDA COM A CONSEQÜENTE EXTINÇÃO DO PROCESSO. RECURSO DESPROVIDO.” (TJ/SC - Ap. Cível n. 99.002961-1 - Comarca de Tubarão - Ac. unân. - 3a. Câm. Cív. - Rel: Des. Silveira Lenzi - Fonte: DJSC, 31.05.99, pág. 18).

[6] Súmula 10 do TJRS: “O deferimento do pedido de separação de corpos não tem sua eficácia submetida ao prazo do art. 806 do CPC.” (Theotônio Negrão, Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, p. 861).


Autor

  • René da Fonseca e Silva Neto

    René da Fonseca e Silva Neto

    Procurador Federal. Coordenador Nacional de Matéria Administrativa da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes - ICMBio. Ex-Coordenador Nacional do Consultivo da PFE/ICMBio. Bacharel em Direito pela UFPE. Especialista em Direito Ambiental. Coautor do livro Manual do Parecer Jurídico, teoria e prática, da Editora JusPodivm.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, René da Fonseca e. Distinção entre afastamento temporário do lar e separação de corpos e o conflito existente a partir da perda de prazo para ajuizamento da ação principal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3397, 19 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22840. Acesso em: 28 mar. 2024.