Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/22852
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Responsabilidade civil do Estado por erros judiciais

Responsabilidade civil do Estado por erros judiciais

Publicado em . Elaborado em .

O Poder Judiciário, no exercício de sua função, pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações cíveis ou penais. Em caso de falha nesta prestação, o lesado poderá acionar o Estado para ter ressarcido o direito que foi lesionado.

INTRODUÇÃO

O tema Responsabilidade Civil do Estado sempre foi palco de acalorados debates ao longo dos anos, tendo variadas interpretações que muitas vezes são decorrência do momento histórico em que o tema é analisado e da força com que os direitos fundamentais são respeitados por determinada sociedade.

Evoluindo desde a tese da irresponsabilidade (“The king can do not wrong”, dos ingleses, e “Le roi ne peut mal faire”, dos franceses) até a do risco integral, a temática apresenta interessantes questões a serem discutidas.

Mesmos nos dias atuais, em que se aceita com poucas discussões a adoção, no sistema jurídico brasileiro, da teoria do risco administrativo, que será adiante analisada, ainda resta certa controvérsia acerca da possibilidade de responsabilização do Estado decorrente da conduta de certos agentes que realizam especiais funções.

Destarte, a responsabilidade patrimonial da Administração em decorrência do exercício da função jurisdicional tem sido objetivo de divergência doutrinária. Se o juiz é um representante do Estado, administrando a justiça, e o serviço judiciário é considerado público, o magistrado seria um preposto e o Estado, comitente. Em caso de dano, atrair-se-ia quase que obrigatoriamente a responsabilidade patrimonial do Estado.

José dos Santos Carvalho Filho, entretanto, ao noticiar a existência de entendimentos pela irresponsabilidade patrimonial pelos danos causados em virtude de sentença judicial anota que o exercício da jurisdição, sendo ato que traduz uma das funções estruturais do Estado, reflete o exercício da própria soberania, não havendo espaço para a responsabilização[1].

Argumenta[2], ademais, que a atuação do Judiciário ocorre no bojo de um processo em que é dado às partes o direito à ampla defesa e, no mais das vezes, duplo grau de jurisdição, razão pela qual o trânsito em julgado da decisão seria em grande parte decorrente da própria atuação das partes interessadas no processo. Tratar-se-ia, então, de presunção absoluta de que foi dado às partes a possibilidade de provar seu direito e em caso de decisão desvantajosa, a própria parte processual seria responsável.

Do ponto de vista do direito positivado, o Código de Processo Civil, em seu artigo 133, estabelece que o juiz responda por perdas e danos quando proceder com dolo ou fraude ou recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva tomar de ofício, ou a requerimento da parte, desde que tenha sido expressamente solicitada sua atuação.

Em um momento histórico no qual se observa uma crescente importância do Poder Judiciário, que acaba muitas vezes fazendo controle político de decisões dos poderes Legislativo e Executivo, não parece mais haver espaço para qualquer tipo de teoria que afaste a priori a responsabilidade do agente no exercício de uma função tão importante.

Nesse sentido, será abordado no presente trabalho o quadro constitucional e legal acerca da caracterização das condutas do juiz como agente público e da possibilidade de responsabilização do Estado e do próprio juiz.

Para tanto, o estudo estará estruturado em quatro capítulos. O primeiro aborda a organização institucional do Poder Judiciário no Brasil, com a respectiva distribuição constitucional de competências, e a forma e importância do exercício da Jurisdição.

No segundo capítulo a abordagem é voltada ao magistrado como agente público responsável pelo exercício da jurisdição, enfocando a necessidade de na análise dos atos dos juízes de acordo com a mesma teoria geral da responsabilidade por atos dos demais agentes públicos.

No terceiro capítulo é feita análise acerca da Responsabilidade Civil do Estado no Direito Brasileiro, apresentando-se a evolução histórica do tema no Brasil e outros países, até se chegar aos pontos consolidados ou polêmicos atualmente encontrados em doutrina e jurisprudência.

No quarto e último capítulo se adentra especificamente no tema Responsabilidade do Estado por Ato Judicial, analisando-se as diversas formas pelas quais esta pode ser analisada.


1 ORGANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL

1.1 Organização da Justiça Brasileira

De acordo com o modelo de Estado Federal adotado pelo Brasil, a Constituição da República de 1988 caracteriza como entes dotados de autonomia a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, não havendo, ao menos no plano jurídico, qualquer ascendência ou subordinação entre os mesmos.

Na esteira da adoção em quase todos os países civilizados da tripartição das funções estatais, todas as constituições republicanas do Brasil adotaram a divisão de tarefas do estado entre três Poderes: legislativo, executivo e judiciário.

O Poder Executivo é exercido, em âmbito federal, pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado. Em âmbito estadual e municipal a liderança cabe aos Governadores e Prefeitos, respectivamente, não havendo que se falar em ingerência de uns sobre os outros. Todos os entes têm autonomia.

O Poder Legislativo Federal é bicameral, sendo exercido pelo Congresso Nacional, que possui duas casas: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Em que pese a existência de diferentes condições para eleição dos respectivos membros, não há que se falar em prevalência da vontade de qualquer das Casas, em caso de conflito.

Nos Estados, o processo legislativo é exercido pelas Assembléias Legislativas, enquanto nos Municípios a tarefa fica a cargo da Câmara dos Deputados. Não há que se falar, também, em qualquer tipo de subordinação entre os diversos órgãos do Legislativo das três esferas de governo.

Quando o assunto, entretanto, é o Poder Judiciário, a situação de independência entre as diversas instâncias é de certa forma alterada.

Em um primeiro momento, a Constituição prevê dois tipos de jurisdição: a comum e a especial.

A Justiça Especial compreende o conjunto de órgãos do Judiciário responsável pelo exercício da jurisdição em matérias previamente determinadas, quais sejam: eleitoral, trabalhista e militar (artigo 92, incisos III, IV, V e VI, da Constituição da República de 1988). Registre-se que há previsão de criação, nos Estados, de justiça militar para o julgamento de militares estaduais (artigo 125, §3º da Constituição da República). Com exceção desta última ressalva, as Justiças Especializadas são federais.

Acerca da justiça militar, é interessante notar que o Superior Tribunal de Militar (STM), apesar de ser órgão de cúpula, não tem competências análogas às dos demais tribunais superiores, uma vez que não pode rever as decisões dos Tribunais Militares dos Estados. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior adverte:

Isso porque o Superior Tribunal Militar, não obstante qualificado, constitucionalmente, como Tribunal Superior, atua como órgão de segunda instância da Justiça Militar da União (CF, art. 122, I). Isso significa, portanto, que o Superior Tribunal Militar não dispõe de competência, para, em tema de crimes militares praticados por integrantes da Polícia Militar e dos Corpos de Bombeiros Militares, reexaminar, quer em sede recursal, quer em sede de “habeas corpus”, as decisões que, nessa mesma matéria, hajam sido proferidas por Tribunais de Justiça locais ou, onde houver, por Tribunais de Justiça Militar, como ocorre nos Estados de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais (CF, art. 125, §3º). Cumpre acentuar nesse ponto, por necessário, que a competência penal da Justiça Militar dos Estados-membros restringe-se, unicamente, tratando-se de crimes militares definidos em lei, aos membros integrantes da respectiva Polícia Militar, “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil” (CF, art. 125, §4º, na redação dada pela EC n° 45/2004).[3]

A Justiça Comum é dividida em Federal e Estadual. A Justiça Federal atua quando houver em litígio qualquer interesse que a Constituição haja classificado como de interesse direto ou indireto da União (artigo 109 da Constituição), enquanto à Justiça Estadual é reservada à chamada competência residual.

Ao contrário do que se analisou em relação aos demais poderes, nos quais não se admitem ingerências na vontade de órgãos de um ente federativo na de outro, no Poder Judiciário há verdadeiro entrelaçamento entre alguns órgãos.

Na Justiça Eleitoral, por exemplo, que é federal, o primeiro grau de jurisdição é exercido por juízes estaduais, com recursos para os Tribunais Regionais Eleitorais, compostos por magistrados federais.

Na organização da Justiça do Trabalho, há previsão de que em casos de na Comarca em que reside o obreiro não haver a justiça especializada, o Juiz de Direito, agente público Estadual, exerce a jurisdição trabalhista, com recurso para o Tribunal Regional do Trabalho respectivo (artigo 112 da Constituição). Situação idêntica ocorre, por expressa previsão constitucional, em causas previdenciárias, com recurso para os Tribunais Regionais Federais (artigo 109, parágrafos 3º e 4º da Constituição).

No âmbito da Justiça Estadual, as causas são decididas em segundo grau, por Desembargadores dos Tribunais de Justiça ou juízes de Turmas Recursais (no sistema dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais). Em caso de ser cabível, segundo as leis processuais e materiais, recurso dessa decisão, os mesmos serão analisados por Ministros do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, que, embora não se tratem a rigor de tribunais federais, são custeados pelos cofres da União e têm membros indicados pelo Presidente da República.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, tem competência para declarar, em sede de controle difuso, leis estaduais inconstitucionais por violação às Constituições Estaduais, quando também haja ofensa à Carta da República.

O que se observa, desse modo, é que o Poder Judiciário, apesar de situado no mesmo plano dos demais poderes constituídos, tem estrutura totalmente diversa dos demais, havendo até mesmo entrelaçamento entre as diversas esferas de governo.

1.2.A função jurisdicional

Conforme já salientado alhures, adotou o Brasil, desde a primeira constituição republicana, de 1891, o modelo da tripartição das funções estatais.

Ao Legislativo cabe criar normas, de conteúdo normalmente geral e abstrato, além da função de fiscalizar o Executivo e outras funções secundárias.

Ao Executivo cabe implementar, através de medidas diretas, concretas e imediatas, os comandos normativos editados pelo Legislativo.

Ao Judiciário, que propriamente mais interessa ao presente estudo, coube como função própria o exercício da jurisdição.

Por exercício da função jurisdicional se entende, em doutrina mais clássica, a atividade de dizer o Direito, isto é, diante de um conflito concreto posto em juízo, cabe ao Judiciário criar, diante do arcabouço normativo existente, a norma individual. A função do juiz, portanto, é a de dizer, na análise de um caso concreto, como se aplica o Direito, sendo este comando normativo individual potencialmente imutável pelo fenômeno da coisa julgada[4].

Em regra, a função jurisdicional é exercida por um órgão inerte: o Estado-juiz somente atua quando demandado. Nesse sentido, ao contrário dos demais Poderes, o juiz não atua quando sente necessidade de mudar uma situação social concretamente vivenciada. Atua apenas quando efetivamente solicitada pelas partes sua atuação.

A função jurisdicional ainda se destaca das demais por ser exercida por intermédio de agentes públicos que não tem ligação, ao menos direta, com qualquer processo democrático.

Os magistrados são escolhidos, em sua maioria, por meio de critério meritório, através de concurso público aberto a bacharéis em Direito com pelo menos três anos de atividade jurídica após a conclusão do curso superior.

É válido ressaltar, entretanto, que em alguns casos a Constituição determina que a escolha dos magistrados seja feita não pelo critério meritório, mas sim por indicação.

Especificamente no caso dos Tribunais Superiores, a escolha ganha contornos democráticos, uma vez que a Constituição determina que os Ministros do Supremo Tribunal Federal (artigo 101, Parágrafo único), do Superior Tribunal de Justiça (artigo 104, Parágrafo único), do Tribunal Superior do Trabalho (artigo 111-A), do Superior Tribunal Militar (artigo 123) e dois ministros do Tribunal Superior Eleitoral (artigo 119, II) sejam escolhidos pelo Presidente da República, após aprovação do Senado Federal.

Nos Tribunais de segundo grau, é possível o acesso de pessoas que não integram a magistratura de carreira, ou seja, é válida a escolha que não recaia diretamente em critério meritório. Assim, a Constituição da República determina que 1/5 dos lugares nos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais do Trabalho seja ocupado por membros do Ministério Público com mais de 10 anos no cargo ou advogados de notório saber jurídico e reputação ilibada com mais de 10 anos de exercício (artigo 94, caput para os dois primeiros Tribunais, e artigo 115, I, para o último).

Registre-se, ainda, que no caso do Conselho Nacional de Justiça, órgão de cúpula do Poder Judiciário, há participação de pessoas indicadas por órgãos do Ministério Público e do Legislativo, mas tais agentes públicos não exercem a jurisdição, uma vez que, embora integrante do Judiciário, a função do Conselho Nacional de Justiça é meramente administrativa.

1.3 A independência do Poder Judiciário e da Magistratura

O Judiciário é tido como um dos Poderes da República, não havendo mais que se falar de sujeição ao Legislativo ou ao Executivo

Apesar da situação hoje consolidada, é importante tecer breves considerações acerca do desenvolvimento histórico do Poder Judiciário no Brasil.

Em nossa primeira Constituição, a imperial de 1824, havia expressa disposição, no artigo 151, de que o Poder Judiciário era independente.

Entretanto, é sabido que àquela época a idéia prevalecente era a do controle dos Poderes nas mãos do Imperador, que o fazia por meio do chamado Poder Moderador. Dessa forma, ao Judiciário ficava relegada apenas a tarefa de dirimir conflitos individuais, sem grande repercussão, e de aplicar a lei penal.

Naqueles tempos o máximo que se escrevia em prol da independência do Judiciário era, em verdade, sobre a necessidade de independência do magistrado para o exercício de seu mister.

Nesse sentido, assevera Antônio Pimenta Bueno que:

A faculdade que ele tem, e que necessariamente deve ter de administrar a justiça, de aplicar a lei como ele exata e conscienciosamente entender, sem outras vistas que não sejam a própria imparcial justiça, a inspiração de seu sagrado dever. Sem o desejo de agradar ou desagradar, sem esperanças, sem temor algum. (...) A independência do magistrado deve ser uma verdade, não só de direito como de fato; é a mais firme garantia dos direitos e liberdades, tanto civis como políticas dos cidadãos; é o princípio tutelar que estabelece e anima a confiança dos povos na reta administração da justiça; é preciso que o povo veja e creia que ela realmente existe[5]

Com a mudança do Estado ditatorial para o Republicano, o Poder Judiciário sai da posição de mero solucionador de contendas privadas e aplicador do direito penal para a de titular de uma das funções do Estado. Com as Constituições seguintes o decisivo papel exercido pelo Poder Judiciário é reforçado, havendo sempre a previsão de rol que assegure aos magistrados garantias para o exercício de suas funções, como forma de desempenhá-las sem qualquer tipo de pressão por parte de grupos eventualmente interessados.

1.4 Controle Jurisdicional

Como conseqüência da atribuição de autonomia ao Poder Judiciário para a decisão potencialmente definitiva acerca do direito aplicável a casos de conflitos entre interesses inter-individuais, estabeleceu a Constituição da República, em seu artigo 5º, XXXV, a regra da inafastabilidade da Jurisdição.

Ressalte-se, em um primeiro passo, que a nomenclatura geralmente utilizada pela doutrina pátria para identificar a regra acima apresentada é de “princípio”. Entretanto, se aplicada corretamente à doutrina de Robert Alexy[6], grande responsável pela aceitação do caráter normativo dos princípios, estes são mandados de otimização, que devem ser aplicados na maior medida possível, sem que se excluam outros princípios eventualmente colidentes.

A inafastabilidade da jurisdição, entretanto, não é tratada como mandado de otimização, mas sim como norma cogente, que deve sempre ser aplicada em sua plenitude. Por expressa disposição constitucional, nenhuma lesão a direitos pode ser afastada de apreciação do judiciário. De acordo com o comando deôntico apresentado, a inafastabilidade da jurisdição é regra, e não princípio.

Afora esta questão terminológica prévia, é essencial ressaltar que o Brasil adotou a tese da unidade da jurisdição. Toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão, seja proveniente de que qualquer órgão, pode ser analisada pelo Poder Judiciário.

Nas palavras de Celso Agrícola Barbi:

A redação do inciso legal em exame permite a conclusão de que o direito cuja ameaça ou lesão não pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário não é mais apenas o direito subjetivo individual, mas também o direito coletivo, nome que é usado, com freqüência, como sinônimo de interesse difuso ou de interesse legítimo. Desse modo, a Constituição deu um grande passo para o aprimoramento dos costumes na atividade dos órgãos públicos, vedando à lei retirar da apreciação do Poder Judiciário a ameaça ou lesão de direito coletivo, interesse difuso, ou interesse legítimo. Em outras palavras, a Constituição deu ao Poder Judiciário a atribuição de controlar a legalidade dos atos da Administração, impedindo-a de praticar atos ilegais que firam direito coletivo, interesse difuso ou legítimo, ou tirando os efeitos a esses atos e suas conseqüências[7]

O exercício da jurisdição, conforme demonstrado, é privativo do Poder Judiciário e não pode haver qualquer norma jurídica válida em nosso ordenamento que afaste por completo a possibilidade de a parte que se acha prejudica procurar o Judiciário.

1.5 O processo como ação política estatal e a justiça social

Nos dias em curso, o processo deixa de ter aspecto meramente formal, de instrumento para provocação do Judiciário, para ter feições mais sociais, como sendo o instrumento a ser franqueado a todos aqueles que se achem em injusta condição de opressão.

A existência de instrumentos, que tornem reais - e não meramente simbólicos - os direitos do cidadão comum, é imperativo de um Estado Democrático de Direito, tal como o concebe a Constituição de 1988. Exsurge, desse modo, como decorrência natural, que não é possível pensar em uma ordem democrática, sob a égide da justiça social, sem assegurar a tutela jurisdicional a todos os cidadãos, afastada discriminação de qualquer natureza.

A garantia, em concreto, do acesso efetivo à jurisdição, por todos, na defesa de seus direitos e da liberdade, quando violados ou ameaçados, constitui, de tal sorte, postulado central dessa ordem, que aos Poderes do Estado cumpre diligenciar na plena consecução. Assume, no particular, especial relevo a norma do inciso LXXIV do art. 5º, da Constituição, ao estipular que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos", o que se completa com o art. 134 e parágrafo único, da Lei Magna de 1988, quando prevêem a Defensoria Pública como "instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV", e sua organização "em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos”, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais" (artigo 134, Parágrafo 1º da Constituição).

Em verdade, superada está a época em que o direito ao acesso à proteção judicial significava, essencialmente, o direito formal de o indivíduo agravado propor ou contestar uma demanda, não constituindo preocupação do Estado, neste plano, afastar a "pobreza no sentido legal" - a incapacidade que muitas pessoas têm de utilizar plenamente a Justiça e suas instituições.

Nas valiosas palavras de Reginaldo de Castro Cerqueira Filho:

O Estado democrático encontra-se preso a seus jurisdicionados pelo dever de garantir-lhes o regular exercício de seus direitos conquistados, quanto de facilitar-lhes a reintegração ou a defesa de direitos violados, ou ameaçados, ou ainda a reparação de lesões oriundas de atos ilícitos, bem assim de proporcionar-lhes condições de realizar a dignidade da pessoa humana. É, no particular, pois, questão de primeiro plano a oferta de justiça pelo Estado, compatível com a procura e a necessidade decorrentes de uma convivência social, cada vez mais complexa, posto que se acentua, extraordinariamente, nos países de desequilíbrios sociais graves.

Entre nós, a melhoria do serviço público de administração da justiça, incumbência institucional do Poder Judiciário, enquanto Poder Político do Estado, afirma-se como anseio profundo da Nação. O serviço de justiça ao povo há de ser prestado de forma satisfatória, o que pressupõe boa qualidade, acessibilidade a todos e pronto desempenho. Nessa ordem, as preocupações com o acesso efetivo à justiça, por todos, inclusive pelos menos favorecidos da fortuna, tornaram-se, nas últimas décadas, de uma forma mais intensa, questão, ao mesmo tempo, do interesse da ciência do direito, quanto da sociologia jurídica. As relações entre o processo civil e a justiça social, entre a igualdade jurídico-formal e a desigualdade socio-econômica, ganham, neste plano, significativas dimensões.

A função do Poder Judiciário cresce, em conseqüência, de interesse, não só ao saber dos profissionais do direito, mas, também, relativamente ao domínio da sociologia jurídica. Estudos de natureza sociológica, no campo da administração da justiça, evidenciam, de outra parte, que dificuldades de todas as ordens cercam os pobres e necessitados, quer as econômicas, quer as condicionantes sociais e culturais, constituindo, todas elas, obstáculos reais ao acesso à Justiça. Em razão disso, lamentavelmente, são milhares os estados de insatisfação que se perpetuam e se convertem em decepções permanentes ou em casos de violência, ou procuram soluções aos conflitos, à margem das estruturas oficiais do Poder Judiciário, porque as pessoas não se animam ou não podem litigar em juízo, nem logram meios a fazê-lo. Disso resulta, em conseqüência, um distante acesso à tutela jurisdicional, que o Estado moderno lhes promete como um dos princípios fundamentais da ordem democrática.

Entre nós, no art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988, como referido, assenta-se o princípio básico da inafastabilidade da tutela jurisdicional, ocorrendo lesão ou ameaça a direito. São, destarte, ilegítimas ou injustas as restrições ou omissões do Poder Público, e de quem quer que seja, a dificultarem o efetivo acesso de todos ao Poder Judiciário. Incompatível com a fisionomia e as metas do Estado de Direito, realmente democrático, sob a égide da justiça social, é não assegurar tutela jurisdicional a todos os cidadãos, notadamente, quando acusados, por mais revoltantes sejam os ilícitos, ou quando essa discriminação se dá por razões de fortuna[8].


2 O MAGISTRADO ENTRE OS AGENTES PÚBLICOS

2.1 Estado e agente

Através da análise do texto constitucional e do grande número de leis enquadráveis dentro da disciplina Direito Administrativo é possível perceber a grande quantidade de atribuições de que é dotado o Estado na atualidade.

No Brasil, em que pese o liberalismo marcante nas décadas anteriores, prevalece o entendimento de que a Constituição da República adotou o modelo de Estado Social, atribuindo ao Estado a prestação de relevantes tarefas.

O Estado, em si, ser fictício, é pessoa jurídica. O Estado é, em verdade, aquilo que seus agentes fazem.

Ao longo dos anos surgiram diversas teoria que tentaram explicar a relação existente entre o Estado e seus agentes

Para a Teoria do Mandato, o agente público era mandatário do Estado. O ente estatal seria desprovido de vontade, sendo a vontade do agente considerada a do próprio Estado. Falhou a teoria, entretanto, por não se tentar encaixar a relação eminentemente de Direito Público num contrato, sabidamente com restrições quanto à capacidade para outorgar o mandato e a responsabilidade do mandante por atos que ultrapassem os poderes repassados[9].

Surgiu, em seguida, a Teoria da Representação, segundo a qual o Estado, assim como um incapaz, é representado pelos seus agentes. Sendo o ente estatal, porém, incapaz, seria inviável imputar-lhe responsabilidade civil. Nesse sentido, somente os agentes responderiam pelos atos do Estado, o que ocasionariam grave insegurança jurídica.[10]

Atualmente prevalece a Teoria do Órgão. O Estado age por meio de órgãos, por intermédio do princípio da imputação: o ato do agente é ato do próprio Estado, sem que haja qualquer outro instrumento de direito privado para regular tal relação. [11]

Assim, de acordo com a Teoria do Órgão e do princípio da imputação, os atos dos agentes públicos são considerados para todos os fins como atos do próprio Estado, com todas as imputações daí decorrentes.

2.2 O juiz como agente do Estado

Conforme já exposto alhures, acolheu a Constituição da República a regra da tripartição das funções estatais. O Estado age por intermédio dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Sendo o Judiciário um dos Poderes do Estado e ainda de acordo com a Teoria do Órgão, os atos dos agentes públicos que exercem a jurisdição são atos que se devem considerar realizados pelo próprio Estado.

Nas palavras de Cretella Júnior, “o ato judicial é, antes de tudo, um ato público, ato de pessoa que exerce o serviço público judiciário”[12].

Em sede doutrinária a nomenclatura usualmente utilizada para designar os indivíduos que prestam serviços para o Estado é genericamente agentes públicos.

Conforme definição de Marçal Justen Filho, agente público “é toda pessoa física que atua como órgão estatal, produzindo ou manifestando a vontade do Estado”[13].

Dentro da classificação dos agentes públicos, os de maior nível são os chamados Agentes Políticos, responsáveis, em linhas gerais, pela execução das diretrizes traçadas pelo Poder Público.[14] Trata-se, em suma, dos agentes públicos de grau mais elevado, com atribuições geralmente fixadas pela própria Constituição da República.

Além destes, são também agentes públicos os particulares em colaboração – como os jurados e os mesários -, os servidores públicos ligados à administração por vínculo de caráter estatutário, os empregados públicos celetistas, e os agentes de fato – assim entendidos os agentes necessários, que atuam em nome da administração, mesmo sem prévio vínculo, em situações de emergência, e os agentes putativos, que agem irregularmente, mas com a aparência de vínculo regular[15].

Discute-se, em nível doutrinário, acerca da caracterização ou não dos Magistrados e Membros do Ministério Público como Agentes Políticos.

José dos Santos Carvalho Filho expõe que:

Alguns autores dão sentido mais amplo a essa categoria, incluindo Magistrados, membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas. Com a devida vênia a tais estudiosos, parece-nos que o que caracteriza o agente político não é só o fato de serem mencionados na Constituição, mas sim o de exercerem efetivamente (e não eventualmente) função política, de governo e administração, de comando e, sobretudo, de fixação das estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que cabe realmente traças os destinos do país[16].

Na mesma linha de raciocínio, Celso Antônio Bandeira de Mello pontua que:

O vínculo que tais agentes (políticos) entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um múnus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos passíveis à condução dos destinos da Sociedade[17].

Em sentido contrário, ressaltando as grandes diferenças existentes entre os juízes e os servidores públicos em geral, Alexandra Nery de Oliveira ressalta que:

Não são os juízes servidores públicos, ainda que devam bem servir ao público na função de julgar. São os magistrados agentes políticos do Estado, órgãos do Poder Judiciário, pilares da Democracia, garantias do indivíduo frente ao Poder Público e guardiães da própria legalidade e da harmonia entre os Poderes do Estado.[18]

O Supremo Tribunal Federal segue esta mesma linha, isto é, considera os magistrados como agentes políticos. A esse respeito, confira-se o seguinte julgado:

EMENTA: - Recurso extraordinário. Responsabilidade objetiva. Ação reparatória de dano por ato ilícito. Ilegitimidade de parte passiva. 2. Responsabilidade exclusiva do Estado. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. 3. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual - responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições -, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. 4. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido[19].

Realizando os magistrados atos em nome do Estado, não há como considerá-los em outra categoria jurídica que não a de Agente Públicos, na modalidade Agentes Políticos, razão pela qual é necessária a análise acerca da aplicabilidade ou não das regras de responsabilidade civil previstas no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição da República, o que se fará logo adiante.


3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO

3.1 Noções de Responsabilidade Extracontratual do Estado

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

A obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos[20]

A idéia em si da responsabilidade extracontratual do Estado é decorrência lógica do Estado de Direito.

Uma vez editada pelo próprio Estado, a ordem jurídica, em que se estabelecem, através de leis constitucionais e infraconstitucionais, a impossibilidade de alguém lesar o patrimônio de outrem sem ser obrigado a repará-lo, somente se pode dizer efetivamente respeitada esta mesma ordem jurídica se o Estado, ele próprio, também se submeter às referidas leis.

Além de se apresentar como paradigma básico do Estado de Direito, é de se reconhecer a exigência de responsabilização patrimonial do Estado como decorrente também do princípio da isonomia.

Se o Estado age presumidamente em prol da coletividade, não se afigura legítimo que apenas alguns administrados sofram prejuízos em decorrência das atividades que beneficiarão a coletividade.

Nesse sentido, Maria Helena Diniz ressalta ser essencial “uma equânime repartição dos ônus resultantes do evento danoso, evitando que uns suportem prejuízos oriundos de atividades desempenhadas em prol da coletividade”[21].

Apresentada uma breve noção do que vem a ser Responsabilidade Extracontratual do Estado, passemos à análise da evolução histórica do instituto.

3.2 Evolução histórica

A responsabilidade civil do Estado sofreu inúmeras modificações que variavam, no mais das vezes, de acordo com os referenciais políticos dominantes no momento, conforme já salientado em outra passagem deste trabalho.

Em um primeiro momento histórico, identificado com um Estado mais forte e menos aberto ao atendimento dos anseios coletivos, surgem as Teorias da Irresponsabilidade do Estado.

O Estado, que era o criador das normas jurídicas, seria incapaz de violá-las. Presumia-se de forma absoluta o respeito ao ordenamento jurídico pelo Estado. Dessa época surgem na Inglaterra e na França, respectivamente, as expressões “The King can do no wrong” e “Le roi ne peut mal faire”, expressando a impossibilidade de violação de direitos por parte do Estado.

Sobre esse aspecto da Teoria da Irresponsabilidade, interessante passagem na obra de Duguit, que informa que:[22]

É, pois, em definitivo, o Estado soberano quem cria o direito e, assim sendo, não se pode admitir que possa ser responsável. A concepção tradicional de responsabilidade implica uma violação do direito: e quem cria o direito por um ato de sua vontade soberana, não o pode violar. Assim como nos países de monarquia absoluta ‘o rei não pode fazer o mal’ e, portanto, não pode ser responsável, o Estado democrático, que nada mais é que a nação soberana organizada, tampouco pode fazer o mal nem ser responsável.

Registre-se que a Teoria da Irresponsabilidade, entretanto, não era dogma irrefutável. Em Estados de Direito, embora não democráticos, era plenamente possível a existência de leis que previssem a responsabilização do Estado. Foi o caso na França, por exemplo, da Lei 28 Pluvioso do ano VIII, que previa a responsabilidade do Estado em casos de danos causados por obras públicas.

A situação de irresponsabilidade do Estado causava sérias conseqüências de ordem social e clara insegurança jurídica, razão pela qual passou a ser severamente combatida pelos setores sociais.

Na França houve evoluções já no século XIX, mas é válido ressaltar que em países como Inglaterra e Estados Unidos a situação perdurou até o fim da primeira metade do Século XX, através, respectivamente, do Crown Proceding Act (responsabilidade idêntica à atribuída aos particulares) e Federal Tort Act (responsabilidade apenas subjetiva)[23].

Abandonada a claramente injusta Teoria da Irresponsabilidade, passamos, conforme já adiantado na citação das leis estadunidenses e inglesas, às chamadas Teorias Civilistas.

Conforme o nome já anuncia, tratam-se de teorias que tentam repassar para o campo da responsabilidade do Estado teorias eminentemente de Direito Privado.

Em um primeiro momento surge a Teoria dos Atos de Gestão e de Império. Os primeiros seriam aqueles em que o Estado se despe de sua potestade, agindo no mesmo nível do particular, não se tratando propriamente da administração de interesses públicos, enquanto nos segundos o Estado age como Soberano, com supremacia sobre os demais membros da sociedade.[24]

Por essa teoria o Estado somente poderia ser responsabilizado por qualquer violação à ordem jurídica em casos de condutas indevidas na prática de atos de gestão.

A Teoria era, em verdade, bastante cruel com os administrados: além de provar que o ato seria qualificável como de gestão, era preciso provar o elemento subjetivo. Com o tempo a teoria foi perdendo o prestígio.

Themistocles Brandão Cavalcanti, ao tratar da impossibilidade da distinção entre os atos de império e os atos de gestão, cita Léon Duguit para dar fins à velha doutrina que sustenta tal teoria. Diz o autor:

A administração, diz ele, quando intervém, não o faz, nunca, como qualquer particular. A sua intervenção tem uma peculiaridade que é a de prover ao funcionamento do serviço público, e é esse o característico que define o ato administrativo, qualquer que ele seja.[25]

Em virtude da dificuldade de separação entre atos de gestão e de império, passa-se à chamada Teoria da Culpa Civil.

Maria Sylvia Zanella di Pietro explica que:

Embora abandonada a distinção entre atos de império e de gestão, muitos autores continuaram apegados à doutrina civilista, aceitando a responsabilidade do Estado desde que demonstrada a culpa. Procurava-se equiparar a responsabilidade do Estado à do patrão, ou comitente, pelos atos de empregados ou prepostos.[26]

Para a Teoria da Culpa Civil, portanto, estará caracterizada a responsabilidade civil do Estado sempre que a conduta estatal causadora do dano for praticada com culpa ou dolo, nos mesmos termos em que se apresentam nas condutas de particulares.

Registre-se que o artigo 15 do Código Civil Brasileiro de 1916 adotava esta Teoria. Assim, o Estado Brasileiro somente respondia perante os administrados quando sua atuação fosse dolosa ou culposa.

Em evolução às chamadas Teorias Civilistas, chega-se à época das Teorias Publicistas.

Diante da insatisfação e descabimento da aplicação do mesmo regime de responsabilização para os particulares e para o Estado, passe-se a defender a aplicação de regras especiais para a responsabilização do Estado.

Nessa esteira, surge a chamada Teoria da “Faute du service”, na França, que pode ser traduzido para “Falha ou Falta do Serviço”.

Para esta teoria, independentemente a identificação do agente responsável pela prática do ato, haveria responsabilidade do Estado sempre que o serviço público fosse mal prestado, prestado a destempo, ou não fosse prestado.

Nas palavras do administrativista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:

Não se trata de culpa individual do agente público, causador do dano. Ao contrário, diz respeito a culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima, em certas circunstâncias, quando não é possível individualizá-la, e, então, considera-se como causador do dano só a pessoa coletiva ou jurídica.[27]

Apesar da nítida evolução demonstrada, ainda se encontrava dificuldades para responsabilização da Administração em casos práticos, uma vez que ainda era necessário provar, ainda que de forma mitigada, um elemento subjetivo: a falha ou falta.

Não atendidos, portanto, plenamente os anseios sociais que exigem a responsabilização do Estado quando devida, evolui-se para as Teorias da Responsabilidade Objetiva do Estado.

Toda a dogmática que serve como substrato para a teoria da responsabilidade objetiva do Estado baseia-se, nos dizeres do magistério de Maria Sylvia Zenella Di Pietro "no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais". Desta sorte, assim como são – ao menos em tese – repartidos entre toda a coletividade os benefícios oriundos da prestação de serviços públicos por parte do Estado, o mesmo deve ocorrer quando a situação se inverte, ou seja, havendo por parte de um (ou alguns) o sofrimento de um ônus maior do que aquele que lhe era lícito suportar face aos demais, rompe-se o equilíbrio pretendido pela ordem social devendo o Estado, para que as coisas retroajam ao status quo, indenizar o prejudicado utilizando-se, para tal, recursos da Fazenda Pública.[28]

Para tais teorias, a análise da responsabilidade civil do Estado se assentará apenas na demonstração de três elementos: a conduta, o dano e o nexo causal. A conduta deverá, num primeiro momento, ser comissiva, guardando-se para um tópico seguinte a responsabilidade por conduta omissiva do Estado. Havendo uma conduta positiva estatal, analisa-se se há, associada minimamente à mesma, um dano a um particular. Existente o dano, a análise passa a ser na tentativa de se estabelecer um nexo de independência entre a conduta e o dano – o nexo causal. Verificando-se a ocorrência destes três elementos, haverá responsabilidade civil do Estado.

Foi sob o influxo dessas Teorias que foi editado o artigo 37, parágrafo 6º da Constituição da República, que em momento algum exige a demonstração de culpa ou dolo por parte da Administração.

Ainda no bojo das Teorias da Responsabilidade Objetiva do Estado, despontam duas subteorias principais. Para a Teoria do Risco Administrativo, a responsabilidade do Estado estará presente em decorrência de sua atuação ser potencialmente causadora de danos aos particulares. O Estado responderá de forma diversa em face dos particulares porque em seu modo de atuar possui prerrogativas especiais, que aumentam a possibilidade de causar danos a terceiros.[29]

Nessa variante da responsabilidade objetiva, entretanto, são aceitas as chamadas excludentes de responsabilidade.[30]

Os dizeres acima ficam corroborados pela seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário de n.º 113.587-5 em que litigavam o Município de São Paulo e um particular:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no principio da igualdade dos ônus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuízos decorrentes da construção de viaduto. Procedência da ação. III. R.E. conhecido e provido.

Há que se advertir, entretanto, que as causas normalmente apontadas como excludentes da responsabilidade estatal são muitas vezes consideradas por parte da doutrina como causas que excluem um dos elementos próprios da definição de responsabilidade civil.

Dessa forma, a culpa exclusiva da vítima não seria propriamente uma excludente particular da responsabilidade do Estado, já que em casos em que a conduta do particular é determinante para o dano, já não haveria que se falar em responsabilidade do Estado em razão da inexistência de nexo causal. Da mesma forma ocorre com as demais circunstâncias elencadas como excludentes de responsabilidade do Estado.

A última e mais avançada Teoria Objetiva seria a do Risco Integral, segundo a qual haverá responsabilidade do Estado e o conseqüente dever de indenizar em todo e qualquer caso, inclusive naqueles em que algum evento acabe por excluir o nexo causal. É adotada em nosso regime constitucional, por exemplo, para o caso de danos nucleares (artigo 21, XXI, alínea d).

3.3 Responsabilidade Civil e a Constituição de 1988

O tema Responsabilidade Civil do Estado é tratado no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição, nos seguintes termos:

As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Da análise do texto do artigo em comento já se percebe com facilidade que a Constituição da República adotou a Teoria da Responsabilidade Objetiva. É que, em um primeiro momento, admite-se a responsabilização do Estado mesmo que não tenha havido culpa por parte de seus agentes, já que somente quando presente este elemento subjetivo será possível o manejo, pelo Estado, da ação de regresso.

É de se ressaltar da análise da norma constitucional, ainda, que não apenas as pessoas jurídicas de direito público, mas também algumas pessoas jurídicas de direito privado estão sujeitas à responsabilidade objetiva.

A norma constitucional em comento tratou de forma igual todas aquelas pessoas jurídicas que exercem prerrogativas públicas, atribuindo às mesmas, em contrapartida, modalidade de responsabilidade mais grave.

Nesse sentido, todas as pessoas jurídicas de direito público, isto é, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as Autarquias, inclusive Associações Públicas de Direito Público e Fundações Autárquicas estão sujeitas à modalidade de responsabilidade prevista no parágrafo 6º do artigo 37 da Carta Constitucional.

As empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito privado, embora integrem formalmente a estrutura do Estado, não obrigatoriamente estarão sujeitos às regras do artigo ora em comento.

Conforme já dito, também pessoas jurídicas de direito privado podem responder de acordo com a norma constitucional ora analisada. Basta que a mesma seja prestadora de serviço público. Dessa forma, uma empresa pública e uma empresa privada que prestem serviços públicos necessariamente responderão objetivamente pelos atos comissivos danosos causados por seus agentes.

Por fim, é fundamental ressaltar que o artigo 37, parágrafo 6º só disciplina a responsabilidade do Estado na modalidade comissiva.

Quanto ao Estado omisso, isto é, os danos causados por má prestação de serviços públicos, continuam a haver discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da qual modalidade de responsabilidade existe: subjetiva ou objetiva.

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que:

É corretíssima, portanto, a posição sempre e de há muitos lustros sustentada pelo Prof. Oswandlo Aranha Bandeira de Mello – que serviu de fundamento e de norte para os desenvolvimentos contidos neste trabalho – segundo quem a responsabilidade do Estado é objetiva no caso de comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento omissivo.

Com efeito, a lição perfeita do citado mestre está sintetizada com absoluta precisão nas seguintes palavras: “A responsabilidade do Estado por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funciona ou funciona aml ou em atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados.

Já a responsabilidade objetiva tem lugar em hipótese distina, como expõe o mencionado autor:

“A responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito pressupõe sempre a ação positiva do Estado, que coloca o terceiro em risco, pertinente à sua pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica ou social, em benefício da instituição governamental ou da coletividade em geral, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns inerentes à vida em sociedade”[31].

No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho assevera que:

A conseqüência, dessa maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano. Resulta, por conseguinte, que, nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas[32]. (grifos no original)

Confira-se, a respeito, julgado do Supremo Tribunal Federal:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO. OMISSÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. CRIME PRATICADO POR FORAGIDO. ART. 37, § 6º, CF/88. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL. 1. Inexistência de nexo causal entre a fuga de apenado e o crime praticado pelo fugitivo. Precedentes. 2. A alegação de falta do serviço - faute du service, dos franceses - não dispensa o requisito da aferição do nexo de causalidade da omissão atribuída ao poder público e o dano causado. 3. É pressuposto da responsabilidade subjetiva a existência de dolo ou culpa, em sentido estrito, em qualquer de suas modalidades - imprudência, negligência ou imperícia. 4. Agravo regimental improvido.”[33]

Apesar do entendimento acima sedimentado, é válido ressaltar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é farta de casos em que se decidiu que a responsabilidade do Estado, ainda que em casos de omissão, prescinde da demonstração de culpa.

Nesse sentido, em recente julgamento no STF afirmou-se que:

Essa concepção teórica – que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público tanto no que se refere à ação quanto no que se refere à omissão do agente público – faz emergir, da mera ocorrência da lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano moral e/ou patrimonial sofrido, independentemente da caracterização de culpa dos agentes estatais, não importando que se trate de comportamento positivo (ação) ou que se cuide de conduta negativa (omissão) daqueles investidos na representação do Estado, consoante enfatiza o magistério da doutrina.[34]

O caso acima apontado se refere à responsabilidade do Estado em caso no qual o filho de uma servidora pública exposta a agentes nocivos à sua saúde como condição para o serviço teve contágio de doença relacionado à prática laborativa. Entendeu-se, no caso, que o Estado tinha o dever de impedir ou minorar as conseqüências do contato com tais substâncias, e que sua omissão, qualificada pelo dever de agir, gera responsabilidade objetiva.

Sem embargo da conclusão firmada pelo Pretório Excelso, parece conveniente destacar que o caso acima tratado – e outros mais em que se afirma possível a caracterização da responsabilidade objetiva mesmo em casos de omissão do Estado – se caracteriza, em verdade, pelos casos, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello, de “Danos dependentes de situação apenas propiciada pelo Estado”. Conforme pontual o citado autor:

Há determinados casos em que a situação danosa, propriamente dita, não é efetuada por agente do Estado, contudo é o Estado quem produz a situação da qual o dano depende. Vale dizer: são hipóteses nas quais é o Poder Público quem constitui, por ato comissivo seu, os fatores que propiciarão decisivamente a emergência de dano. Tais casos, a nosso ver, assimilam-se aos de danos produzidos pela própria ação do Estado e por isso ensejam, tanto quanto estes, a aplicação do princípio da responsabilidade objetiva[35].

Nesse sentido, é válido ressaltar que nos casos em que a conduta omissiva do Estado se relaciona a situações em que a atuação do Estado é um dever geral – como o de investir em saúde, segurança pública e saneamento básico – a responsabilidade será em regra subjetiva. Quando, entretanto, a conduta omissiva se ligar a especial dever de agir – como nos casos de assassinato de um presidiário por outro, danos nas vizinhanças oriundos de explosão em depósito militar, lesões radioativas[36] – a responsabilidade será objetiva.


4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS JUDICIAIS

Apesar de já demonstrada a evolução do tema Responsabilidade Civil do Estado, quando a análise se volta para os casos de responsabilização decorrente de atos judiciais, o posicionamento doutrinário dominante ainda é relativamente atrasado.

Ao argumento de que a função do juiz é soberana e de que a Coisa Julgada e a Segurança Jurídica não podem ser ameaçadas pelo temor de responsabilização do juiz, entende-se que os atos do Judiciário estão afastados de qualquer tipo de responsabilização.

Quanto ao primeiro argumento – função soberana do juiz -, a idéia não tem qualquer diferença estrutural quando comparada às antigas Teorias do “The king can do no wrong” e “Le roi ne peut mal faire”, em que se entendia que o Estado estava completamente afastado da responsabilização por danos, já que exercia função soberana.

A proteção à Coisa Julgada, por sua vez, não parece ser ameaçada pelo simples fato de existir a possibilidade de responsabilização do Estado.

Nesse sentido, João Sento Sé afirma que:

Se o que impede a reparação é a presunção de verdade que emana da coisa julgada, a prerrogativa da Fazenda Pública não pode ser absoluta, mas circunscrita à hipótese de decisão transitada em julgado. Logo, se o ato não constitui coisa julgada, ou se esta é desfeita pela via processual competente, a indenização é irrecusável. [37]

É válido, ressaltar, ainda, que nem todos os atos praticados pelo Poder Judiciário são atos jurisdicionais, que examinem conflitos intersubjetivos com pretensão de definitividade. O Judiciário, como os demais Poderes do Estado, também realiza atos administrativos.

Sobre o tema, Yussef Said Cahali leciona que:

Como Poder autônomo e independente, com estrutura administrativa própria e serviços definidos, o Judiciário, pelos seus representantes e funcionários, tem a seu cargo a prática de atos jurisdicionais e a prática de atos não-jurisdicionais, ou de caráter meramente administrativo: quanto a estes últimos, os danos causados a terceiros pelos servidores da máquina judiciária, sujeitam o Estado à responsabilidade civil segundo a regra constitucional, no que se aproximam dos atos administrativos, em seu conteúdo e na forma ( Themístocles Brandão Cavalcanti.[38]

Quanto à possibilidade de responsabilização do Estado por atos propriamente jurisdicionais, serão analisados a seguir os tópicos atualmente mais debatidos sobre o tema, na doutrina e jurisdição brasileiras.

4.1 Erro Judiciário

A responsabilidade civil do Estado não pode ser analisada sem que seja fixado, a priori, o conceito de erro judiciário.

Em uma premissa clássica, a expressão tem sido usada para qualificar indevida atividade jurisdicional no campo penal.

Assim, ocorre erro judiciário quando o Juiz condena alguém que posteriormente se prova inocente, ou aplica penalidade excessivamente onerosa a quem não merecia reprimenda de tal magnitude.

Nesse sentido, é cabível a aplicação direta do disposto no artigo 5º, LXXV, primeira parte: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.

O erro judiciário é classicamente considerado como a condenação indevida.

Ocorre, entretanto, que não apenas a conduta do juiz que erra e põe em risco o “status libertattis” do indivíduo pode ser considerada como erro judiciário.

Toda e qualquer conduta do magistrado que se mostre inadequada diante do quadro fático-jurídico que lhe foi apresentado, uma vez capaz de ofender qualquer bem jurídico daquele prejudicado em grau elevado, pode e deve ser considerado erro judiciário.

Se nenhuma lesão ou ameaça à direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário (artigo 5º, XXXV da Constituição), as lesões perpetradas por intermédio de atos judiciais não podem ficar impunes.

Luiz Antonio Soares Hents observa:

O princípio da indenização da prisão além do tempo fixado na sentença foi explicitado no direito constitucional juntamente com a reparação do erro judiciário e, embora haja pontos de contato entre os dois institutos de direito material, afirma-se que o erro judiciário não depende da verificação de prisão, assim como a indevida privação da liberdade física não decorre necessariamente de erro de julgamento [39]

Estabelece o art. 954, do Código Civil, a reparação por ofensa à liberdade pessoal nas hipóteses de cárcere privado, prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé e prisão ilegal.

Referido artigo seguiu os ditames constitucionais, corroborando com a ineficácia do §2º, do art. 630, do Código de Processo Penal. Ademais, buscando um rol taxativo, o legislador civil não elencou as hipóteses de prisão além do tempo fixado na sentença, previstas pela Constituição Federal, dentre outras hipóteses como prisões decretadas com abuso de autoridade por parte de autoridade policial, sem que a vítima venha a ser objeto de investigação ou de ação penal, a prisão temporária da Lei nº 7.172/83, a prisão em flagrante efetivada por agente público e a prisão preventiva sem que ocorra a instauração de ação penal, fatos que ensejam a prisão indevida por erro judicial (e não judiciário).

A seguir, será analisado o caso em que mais amplamente se aceita a responsabilização do Estado por erro judiciário: a prisão indevida

4.2 Da Prisão Indevida

A denominada prisão indevida não pode ser entendida apenas como aquela que decorre de uma condenação injusta, mas sim, toda privação injustificada da liberdade, seja antes ou depois do trânsito em julgado de uma sentença condenatória, como a prisão cautelar, o excesso no tempo de cumprimento da prisão e a não observância do devido regime de cumprimento da pena, por exemplo.

Tratando-se propriamente de prisão penal, isto é, aquela prisão decorrente de aplicação de uma sentença condenatória transitada em julgado, é possível que, ainda que não haja falha imputável ao réu durante a instrução processual, a sentença seja injusta.

Em casos tais, se no momento em que o indivíduo ainda está a cumprir a pena for descoberto o equívoco, é plenamente possível a tutela específica de seu direito de liberdade, com o imediato relaxamento do cárcere. A reparação extrapatrimonial terá caráter meramente complementar.

Em casos, entretanto, que o antes suposto criminoso já tiver cumprido a pena, a única alternativa para tentar diminuir as conseqüências da conduta indevida do Estado será a difícil busca da “quantificação da dor”. O erro judiciário já terá ocorrido e não poderá ser apagado, mas a indenização ao menos diminuirá, ainda que de forma irrisória, o constrangimento sofrido pela vítima do erro.

Quando, entretanto, se tratar de prisão processual, que ocorre antes mesmo que tenha havido a condenação criminal definitiva do encarcerado, a situação se torna ainda mais delicada.

É que a prisão cautelar ocorre muitas vezes no início do processo, geralmente baseada em conceitos fluidos, como “garantia da ordem pública”, sem que, no mais das vezes, seja dado o devido direito prévio de defesa ao réu.

Em casos tais, é comum que no desenrolar do processo o réu prove que é inocente. Mas a prisão processual já ocorreu e seus efeitos deletérios não poderão ser apagados.

Também nesses casos deve ser reconhecida a responsabilidade civil do Estado. O erro, ainda que baseado em juízo perfunctório, foi causador do dano sofrido pelo encarcerado, sendo evidente o nexo causal.

O Superior Tribunal de Justiça já adota este entendimento, conforme decidido no processo supra:

PROCESSUAL CIVIL ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DANO MORAL. GARANTIA DE RESPEITO À IMAGEM E À HONRA DO CIDADÃO. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. PRISÃO CAUTELAR. ABSOLVIÇÃO. ILEGAL CERCEAMENTO DA LIBERDADE. PRAZO EXCESSIVO. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PLASMADO NA CARTA CONSTITUCIONAL. MANIFESTA CAUSALIDADE ENTRE O "FAUTE DU SERVICE" E O SOFRIMENTO E HUMILHAÇÃO SOFRIDOS PELO RÉU.[40]

O entendimento adotado é, sem dúvida, o mais acertado e mais consentâneo com os Princípios Constitucionais vigentes.

A prisão processual é sem dúvida mais gravosa, uma vez que por meio dela o Estado afasta temporariamente o estado de presunção de inocência do indivíduo, determinando-se sua privação de liberdade baseada em elementos que ainda não gozam ainda de satisfatório de grau de certeza.

Nas palavras do processualista Eugênio Pacelli:

O princípio da presunção de inocência, cuja origem mais significativa pode ser referida à Revolução Francesa e à queda do Absolutismo, sob a rubrica de presunção de inocência, recebeu tratamento distinto por parte de nosso constituinte de 1988. A nossa Constituição, com efeito, não fala em nenhuma presunção de inocência, mas da afirmação dela, como valor normativo a ser considerado em todas as fases do processo penal ou da persecução penal, abrangendo, assim, tanto a fase investigatória (fase pré-processual) quanto à fase processual propriamente dita (ação penal).

E por se tratar de prisão de quem deve ser obrigatoriamente considerado inocente, à falta de sentença penal condenatória passada em julgado, é preciso e mesmo indispensável que a privação de liberdade seja devidamente fundamentada pelo juiz e que essa fundamentação esteja relacionada com a proteção de determinados e específicos valores positivados na ordem constitucional em igualdade de relevância.

4.3 Da indenização

Fixada a premissa da possibilidade de responsabilização do Estado por atos judiciais, ressaltando-se o avanço no entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da possibilidade de indenização em casos de prisão indevida, inclusive nos casos de encarceramento cautelar, cabe agora uma breve análise acerca da quantificação da indenização.

A prisão indevida traz consigo inegável dano extrapatrimonial.

O Desembargador Sérgio Pitombo, a respeito do tema, faz as seguintes considerações:

A prisão traz hoje, consigo risco de mal grave, perigo de lesão intensa. Sem esquecer a quebra da dignidade da pessoa humana. As celas, nos Distritos Policiais, tornaram-se jaulas obscenas e perigosas. Impossível ignorar o que todos sabem e ninguém contesta. Aquém da grade, o tempo não se conta em dias, nem sequer em horas, porém, em minutos. Prisão é constrangimento físico, pela força ou pela lei, que priva o indivíduo de sua liberdade de locomoção. Prisão indevida, portanto, significa, antes de tudo, ilegalidade e invasão lesante do status dignitatis e libertatis. O dano moral, dela decorrente, é in re ipsa. Vale assentar: surge inerente à própria prisão. Dano que se mostra intrínseco (...).[41]

A fixação do quantum indenizatório deverá atender à gravidade dos danos morais sofridos pelo sujeito indevidamente encarcerado, sem esquecer o caráter necessariamente repressor da indenização, que deve ser sentida pelo Estado.

Quanto aos danos patrimoniais, como perda de dias de trabalho ou até a perda do próprio emprego, a situação se torna simplificada, sendo mais facilmente encontrado o valor a ser ressarcido ao lesado.

Ressalte-se que o atual Código Civil fixou em 3 anos o prazo prescricional para a pretensão de responsabilidade civil, em seu artigo 206, parágrafo 3º, razão pela qual o manejo da ação de ressarcimento deverá ser feito neste prazo, contado desde o momento em que se torne conhecido o dano.


  CONCLUSÃO

Após todo o exposto no presente trabalho, algumas conclusões podem ser evidenciadas.

De início, destacou-se que a organização do Poder Judiciário no Brasil é feita de modo diverso dos demais Poderes, uma vez que há verdadeiro entrelaçamento entre as atribuições dos diversos órgãos, sejam Estaduais ou Federais. Com isso, é possível dar uniformidade às decisões judiciais que tratem de temas análogos, mediante o estabelecimento prévio de instâncias recursais pelas quais um mesmo processo pode tramitar, com a palavra final sendo dada pelos órgãos de cúpula.

Demonstrou-se que a jurisdição – tarefa de dizer o direito no caso concreto, com potencial carga de imutabilidade – é exercida por agentes públicos recrutados prioritariamente por critério meritório, o que busca dar maior racionalidade e imparcialidade ao sistema. Nesse contexto se justifica a atribuição das prerrogativas de inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios e vitaliciedade aos magistrados (artigo 95, I, II e III da Constituição da República).

Foi ressaltada a importância que possui, nos dias atuais, a jurisdição, uma vez que se apresenta como um dos principais instrumentos para implementar a igualdade material trazida como mandamento no caput do artigo 5º da Constituição da República, já que o exercício imparcial da jurisdição, desafetado de pressões de quaisquer natureza, tende a efetivamente dar a cada um aquilo que lhe pertence.

Num segundo momento, concluiu-se que o magistrado é órgão do Estado. Assim, ao agir, não age em seu nome, mas em nome do Estado, do qual é representante. Pela já citada Teoria da Imputação, o ato do magistrado, no exercício da Jurisdição, é ato do próprio Estado.

No terceiro capítulo foi apresentada a evolução histórica do tema Responsabilidade Civil do Estado, sendo pontuado que atualmente prevalece o mandamento de responsabilidade objetiva - sem necessidade de comprovação de culpa da Administração ou de seu agente -, para todos os atos comissivos do Estado e para as condutas propiciadas por este, restando ainda presente a responsabilidade subjetiva para os atos omissivos puros.

Por fim, foram apresentados os principais casos de responsabilidade por ato judicial, pontuando-se os conceitos de erro judicial e prisão indevida, além de serem fixados parâmetros para o valor a ser pago a título de indenização.

Conclui-se que o Poder Judiciário, no exercício de seu mister, pode causar danos às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações cíveis ou penais. Em caso de falha nesta prestação, o lesado poderá acionar o Estado para ter ressarcido o direito que foi lesionado.

Voluntário ou involuntário, o erro de conseqüências danosas exige reparação, respondendo o Estado civilmente pelos prejuízos causados; se o erro foi motivado por falta pessoal do órgão judicante, ainda assim o Estado responde, exercendo a seguir o direito de regresso sobre o causador do dano, por dolo ou culpa.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001,

BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2ª ed. rev. atual. amp. São Paulo: Malheiros, 1995.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

CERQUEIRA FILHO, Reginaldo de Castro. Responsabilidade Civil do Estado por Atos de Seus Agentes. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/3866/responsabilidade-civil-do-estado-por-atos-de-seus-agentes, acessado em 31/10/2010.

CRETELLA JR., José. Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: 99/13-32, jan./mar. 1970.

CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 3ed. Editora Juspodivm. Salvador. Bahia.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 8ª Edição. Salvador. Jus Podvim, 2007.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 1 v. 20ª ed. rev. atual. aum. São Paulo: Saraiva, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo. 198:85-96. Rio de Janeiro: out./dez. 1994.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Saraiva. 4ª Edição. Págs. 704 e 705.

LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. 1ª ed. 2ª tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo,1.ed., v. II, Rio de Janeiro, Forense, 1974, p 482

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. 11ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

OLIVEIRA, Alexandre Nery de. Juízes não são funcionários públicos. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/250/juizes-nao-sao-funcionarios-publicos, acessado em 31/10/2010

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

PAULO, Vicente, Marcelo Alexandrino. Direito Constitucional Descomplicado – 4.ed., rev. e atualizada – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: 2009.

PAULO, Vicente, Marcelo Alexandrino. Direito Administrativo Descomplicado – 18 ed., rev. e atualizada – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: 2010.


Notas

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris. 11ª Edição. Pág 466.

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris. 11ª Edição. Pág 466

[3] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Editora Jus Podvim, pág. 1028.

[4]DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Editora Juspodvim. Volume I. 8ª Edição. Pág 65.

[5] BUENO, José Antônio Pimenta "Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império", Brasília: Senado Federal, 1978, págs. 34/35

[6] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001,

[7] REVISTA DOS TRIBUNAIS, "Garantias Constitucionais Processuais", vol. 659, pág. 8.

[8] CERQUEIRA FILHO, Reginaldo de Castro. Responsabilidade Civil do Estado por Atos de Seus Agentes. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/3866/responsabilidade-civil-do-estado-por-atos-de-seus-agentes, acessado em 31/10/2010.

[9] PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo, Direito Administrativo Descomplicado. Editora Método, 18ª Edição. Págs. 117 e 118

[10] PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo, Direito Administrativo Descomplicado. Editora Método, 18ª Edição. Pág. 118

[11] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Saraiva. 4ª Edição. Págs. 704 e 705.

[12] CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. 1967, p.67. vol. IV

[13] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Saraiva. 4ª Edição. Pág 704.

[14] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de Direito Administrativo. Lumen Juris.11ª Edição. Pág 484

[15] [15] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de Direito Administrativo. Lumen Juris.11ª Edição. Págs 484 a 487

[16] [16] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de Direito Administrativo. Lumen Juris.11ª Edição. Pág 484

[17] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. 25ª Edição. Pág 245.

[18] OLIVEIRA, Alexandre Nery de. Juízes não são funcionários públicos Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/250/juizes-nao-sao-funcionarios-publicos, acessado em 31/10/2010

[19] ADPF 144, Distrito Federal,  Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 06/08/2008, divulgado no DJe de 25/02/2010

[20] 14. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p.654.

[21] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. v. 7., 13. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, p. 518.

[22]DUGUIT, León. Las transformaciones del Derecho (publico y privado). Buenos Aires: Editorial Heliasa S.R.L., 1975. p.136.  No Original consta: “Es, pues, en definitiva el Estado soberano quien crea el derecho y siendo así no se puede admitir que pueda ser responsable. En la concepción tradicional la responsabilidad implica una violación del derecho: y quien crea el derecho por un acto de su voluntad soberana, no puede violare. Así como en los países de monarquía absoluta ‘el rey no puede hacer mal y, por tanto, no puede ser responsable, el Estado democrático, que no es más que la nación soberana organizada, tampoco puede hacer mal ni puede ser responsable”

[23] BORGES, Vanessa. Responsabilidade Civil do Estado. www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/17978/public/17978-17979-1-PB.PDF (acessado em 31/10/2010

[24]  CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris. 11ª Edição. Pág 447

[25] CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. v. I, 5ª ed. Rio de Janeiro: Editoras Freitas Bastos, 1964. pg. 259.

[26] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002. P. 526

[27] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de, Princípios Gerais de Direito Administrativo,1.ed., v. II, Rio de Janeiro, Forense, 1974, p 482

[28] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 524

[29] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris. 11ª Edição. Pág 448

[30] [30] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris. 11ª Edição. Pág 456 a 460

[31] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. 25ª Edição. Págs. 1000 e 1001

[32] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris. 11ª Edição. Pág. 462.

[33] RE 395942 AgR / RS - RIO GRANDE DO SUL  AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIORelator(a):  Min. ELLEN GRACIE Julgamento:  16/12/2008  Órgão Julgador:  Segunda Turma

Publicação DJe-038  DIVULG 26-02-2009  PUBLIC 27-02-2009

[34] Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 495.740-0 Distrito Federal. DJe 152, divulgado em 13/08/2009

[35] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. 25ª Edição. Págs 1001 e 1002.

[36] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. 25ª Edição. Pág 1002.

[37] SÉ. João Sento. Responsabilidade Civil do Estado por Atos Judiciais. Bushatsky, 1976, p.99-103.

[38] 29. CAHALI, Yussef Said. Tratado de Dirito Administrativo, p. 439; e se aproveitando da distinção preconizada por Léon Duguit, "Traité de Droit Constitucionnel", 3,p.538)

[39] Apud Rui Stoco, Tratado, cit. p. 1030.

[40] REsp 872630 / RJRECURSO ESPECIAL 2006/0132523-1  Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, data do julgamento 13/11/2007 Data da publicação/Fonte DJe 26/03/2010

[41] 62 Voto nº 6276 - Desembargador Sergio Pitombo, proferido no julgamento da Apelação Cível nº 054.432.5/0-


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Emanuel José Matias. Responsabilidade civil do Estado por erros judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3400, 22 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22852. Acesso em: 28 mar. 2024.