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A erosão do juiz como símbolo nas sociedades contemporâneas e a necessidade de formação ética e crítica do indivíduo-magistrado

A erosão do juiz como símbolo nas sociedades contemporâneas e a necessidade de formação ética e crítica do indivíduo-magistrado

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Verifica-se uma erosão do símbolo do juiz, prejudicial para a sociedade e dilacerante para o próprio juiz, sendo o remédio a sua formação ética.

Resumo: Decorridos mais de quinze anos da identificação do juiz como uma das últimas instâncias simbólicas da sociedade por ANTOINE GARAPON, o artigo apresenta reflexão acerca de tal condição na atualidade. Partindo do exame do individualismo e razão instrumental tais quais examinados por CHARLES TAYLOR e do reflexo de tais fenômenos, à luz da Antropologia Filosófica de LIMA VAZ, na auto-configuração do indivíduo-juiz, identifica uma erosão do símbolo do juiz que afirma ser prejudicial para a sociedade e dilacerante para o próprio juiz, tendo por resultado final a objetivação dos direitos colocados sob sua guarda, e como remédio a formação ética.

Palavras-chave: Juiz, Símbolo, Erosão, Individualismo, Razão Instrumental, Formação Ética.


1 INTRODUÇÃO

Em “O juiz e a Democracia – O Guardião das Promessas”[1], ANTOINE GARAPON afirma a existência de uma crise valorativa e simbólica nas sociedades contemporâneas,  sendo tal crise a principal causa do imenso volume e diversidade de pleitos submetidos à apreciação dos juízes. Segundo o autor, parte desse fenômeno se explica pelo fato de ser o juiz um sobrevivente no universo simbólico da humanidade. Em suas palavras, a jurisdição – e, assim, em boa medida o juiz – seria a última instância moral de nossa sociedade, uma das últimas instâncias simbólicas a se manter de pé.

No presente artigo propomos a seguinte reflexão: passados mais de quinze anos da obra de GARAPON, podemos ainda afirmar, com ele, que o juiz permanece uma instância simbólica da sociedade, ou a razão instrumental, a lógica econômica e a tecnociência tomaram de assalto essa última cidadela de referência simbólica para os indivíduos? E, a depender da resposta a essa questão, quais conseqüências podemos esperar para a sociedade, para o indivíduo-juiz e para os valores e direitos cuja guarda lhe foi atribuída?

Para encontrar uma resposta nos apoiaremos nas reflexões de CHARLES TAYLOR acerca dos problemas decorrentes do individualismo e da razão instrumental, bem como na antropologia filosófica de LIMA VAZ e o tratamento por ele despendido à questão da auto-configuração do indivíduo enquanto ser-com-os-outros-no-mundo – ou seja, membro de uma intersubjetividade na qual constrói sua própria identidade.

Explicitaremos como a figura do juiz vem sofrendo uma erosão vinda de fora como conseqüência do individualismo e da razão instrumental – erosão essa que influi na sua própria visão interna sobre a estatura e dignidade de suas atribuições, na medida em que, como integrante da sociedade, se configura enquanto juiz também a partir do olhar que o outro na sociedade lança sobre ele.

Por fim, apontaremos para uma significativa erosão do juiz como símbolo - inclusive a seus próprios olhos -, com graves conseqüências para toda a sociedade: a erosão do sentido heróico e a burocratização do indivíduo responsável pela guarda dos bens mais caros do ser humano: vida, liberdade e dignidade. O resultado óbvio é a redução, ou objetivação, desses próprios direitos à vida, à liberdade e à dignidade.


2  A VISÃO DE GARAPON: O JUIZ COMO INSTÂNCIA SIMBÓLICA DA SOCIEDADE

Em sua obra, GARAPON tematiza com insistência a questão do símbolo, da ordem simbólica e de sua importância na estabilidade das sociedades.

Diagnosticando o enfraquecimento e o colapso de referências simbólicas (que exemplifica através do enfraquecimento da família e a desqualificação da função paterna), alça a justiça à condição instância simbólica central e de última instância da moral.[2] No mesmo sentido, anota que “Quer se trate de uma questão relativa à bioética, ao transexualismo, à eutanásia ou à medicina preventiva, os juízes se defrontam a cada caso com um problema metafísico para cuja solução o direito positivo lhes oferece pouco auxílio”.[3]

Dessa forma,

 A jurisdição converte-se no último disciplinador de uma sociedade em vias de desintegração, a política eleitoral de sociedades decepcionadas com suas instituições tradicionais, o único centro possível de uma sociedade policêntrica, a última instância moral  no momento em que a religião desaparece no horizonte democrático, o último palco de uma sociedade sem projetos”.[4]  “O contato com a justiça é temido, ao mesmo tempo em que a ela se recorre como último amparo contra a falta total de vínculos. O juiz é convocado como ministro de orientação, numa sociedade desorientada.[5]

Nesse ponto, é necessário trazer uma reflexão com base na definição de universo simbólico tecida por RIBEIRO:

[...] quero esclarecer que chamo de universo simbólico o sistema de cultura ou o sistema de significações com que determinada sociedade e nela seus indivíduos representam e organizam seu mundo. ... Essa perspectiva permite argumentar que o mundo em que os sujeitos existem historicamente é um mundo de formas simbólicas nas quais se configuram as dimensões do ser-no-mundo-com-os-outros. Assim, esse universo simbólico, que ainda poderia chamar-se sistema de cultura, espírito objetivo ou sistema de significações, tem na linguagem e na práxis as formas por excelência em que os indivíduos representam e organizam o mundo humano.[6]

Com base na definição de RIBEIRO, entendo que não se pode afirmar, com GARAPON, que o juiz é uma das últimas instâncias simbólicas da sociedade – esta sempre terá um universo simbólico. Pode-se, contudo, apontar o juiz como uma das últimas instâncias simbólicas do universo de significações do homem medieval, um sobrevivente ao fenômeno que Taylor chama de “[...] colapso das sociedades hierárquicas. As sociedades hierárquicas são aquelas em que identidade e reconhecimento dependem das hierarquias sociais” [7].

Com essa observação, ressalto que continua pertinente a reflexão de GARAPON – que, respondendo ao título “Um equivalente moderno da religião?”, lança um diagnóstico contundente:

 A autoridade se apresenta como uma resposta comum a duas dificuldades distintas da democracia, a saber, o esgotamento do executivo e o desaparecimento da tradição. Como explicar que a resposta à crise do Estado e a resposta à crise do sujeito passem ambas pela solução judiciária? Não ocuparia a justiça o lugar deixado vago pela religião? Aliás, seria por acaso que as metáforas religiosas florescem nesse campo? ‘O direito é nossa religião nacional’, diz um jurista americano; ‘os advogados, nosso clero; os palácios da justiça, nossas catedrais, onde paixões contemporâneas são representadas”.[8]

A questão que se coloca, mais de quinze anos após a publicação do livro de GARAPON, é a seguinte: será que o juiz ainda pode ser considerado essa instância simbólica? Pensamos que não, pelo menos não com tanta força; e que está em curso um processo de erosão do que ainda resta dessa instância simbólica, tanto aos olhos da sociedade quanto aos olhos do próprio juiz.  É o que mostraremos a partir de agora.


3  A EROSÃO EXTERIOR DO JUIZ COMO SÍMBOLO

No livro The Ethics of Authenticity, CHARLES TAYLOR reflete sobre certos problemas das sociedades modernas. A esses problemas denomina “mal estar da modernidade”, entendidos como tais alguns aspectos da cultura contemporânea que experimentamos como uma perda ou declínio[9]. Conforme destacou, apesar de se tratar de temas amplamente conhecidos, ainda não foram devidamente examinados. Seriam eles: o individualismo, a razão instrumental e o despotismo leve.

Para os propósitos desta reflexão, examinaremos apenas os dois primeiros – individualismo e razão instrumental – e seus efeitos sobre o universo simbólico do juiz e sua atuação na sociedade.

3.1 O INDIVIDUALISMO E SUAS CONSEQUÊNCIAS: PERDA DO SENTIMENTO DE HEROÍSMO E SURGIMENTO DE UMA ÉTICA DA AUTENTICIDADE

O primeiro fenômeno a ser examinado é o individualismo[10]. Marca de nosso tempo, trouxe, por um lado, o aspecto positivo da valorização do indivíduo e da liberdade individual. Contudo, a liberdade moderna daí surgida teria sido conquistada deixando-se para trás antigos horizontes morais, com o que foi retirada das pessoas a sensação de pertencer a uma ordem maior[11], de ter uma função no mundo ou num projeto universal. É o que, segundo TAYLOR, foi chamado “desencantamento” do mundo.

Nessa perda de um horizonte mais amplo causada pelo individualismo, teria o homem moderno também perdido a “dimensão heroica da vida”: “as pessoas não têm mais um sentimento de um objetivo maior, de algo pelo que valeria a pena morrer”.[12]

Ainda como efeito do individualismo instaura-se o relativismo - que, na sociedade moderna, foi “parcialmente fundado num princípio de respeito mútuo” pela opinião de cada um: “toda pessoa tem seus próprios ‘valores’, e acerca destes é impossível discutir”.[13] Dizendo de outra forma,

 ... o relativismo foi ele próprio o fruto de uma forma de individualismo, cujo princípio pode ser elaborado da seguinte forma: todos têm o direito de desenvolver sua própria forma de vida, fundada em seu próprio senso do que é realmente importante ou valioso. Espera-se das pessoas que sejam verdadeiras com elas próprias e que busquem sua própria auto-realização. Em que esta consiste, cada um deve, em última instância, definir por si próprio. Ninguém mais pode ou deveria tentar prescrever seu conteúdo. [14]

Tratar-se-ia, na concepção de TAYLOR, de um “ideal contemporâneo”, ao qual deu o nome de “ideal de autenticidade”.

Ora, a perda do sentimento heróico e de um horizonte moral comum geram conseqüências de especial gravidade quando se trata da questão da justiça.

Em primeiro lugar, se por um lado não parece haver mais espaço em nossa sociedade (a qual o indivíduo juiz integra) para o ideal, para a “disposição de morrer por uma causa”, para o sentimento heroico, por outro lado, quando o que está em jogo no processo em concreto é o drama de nossas próprias vidas, tendemos a esperar do juiz justamente esse tipo de dedicação: esperamos que lute até o fim por nosso direito; que estude todas as possibilidades até o limite de sua capacidade, ou além; que cale seus preconceitos e traumas que porventura influenciem negativamente no julgamento; que encerre em si uma humanidade e um humanismo que nós mesmos não temos; que cumpra em todos os casos a máxima de amar-nos como a ele mesmo – a despeito do fato de que nós mesmos provavelmente jamais alcançaremos a mesma atitude por mais que nos esforcemos para tanto por toda a duração de nossas vidas.

Quanto ao segundo efeito do individualismo, i.e., a perda do horizonte moral comum desaguando na “Ética da autenticidade” (cada um elege sua própria medida moral), não obstante seja o cidadão obrigado a se socorrer do Judiciário por uma imposição normativa, cabe indagar: que valor a sociedade dará ao juiz como referencial valorativo, bússola explicitadora do norte ético encerrado na lei, numa sociedade em que cada um sua própria fonte de valores e constitui para si seu próprio norte do que é certo ou errado? (Cabe aqui uma ponderação: é claro que os efeitos do individualismo e da autenticidade serão mais sentidos em localidades em que a cultura de massa se instalou com mais força. Mas a tendência, com a crescente urbanização e democratização do acesso à informação, é a de erosão completa do juiz enquanto instância simbólica da sociedade. Também a seus próprios olhos.).

A título exemplar dessa erosão do símbolo do magistrado, reflitamos sobre um fenômeno corrente nos dias de hoje: o tratamento dado pela mídia de massa às questões funcionais dos juízes.

 As manifestações da imprensa acerca de questões funcionais do judiciário são paradoxais: ao mesmo tempo em que tendem a ressalvar a relevância da figura e atribuições do juiz abstrato (aquele que não come, não dorme, não se cansa, não precisa usar dinheiro, não sofre), na tematização das questões referentes ao juiz real (aquele que precisa estar alimentado e sobreviver no mundo da vida para que, sem ter que se preocupar tanto com suas próprias condições de vida corporal, passe a ter mais condições psicológicas e funcionais de se preocupar com a vida de seu semelhante) tende a dispensar aos magistrados a mesma visão que se dá a agentes não políticos de quadros técnicos responsáveis por atribuições que, não obstante a dignidade de todo e qualquer trabalho, não pareiam com as responsabilidades de um magistrado em termos de repercussão social, âmbito de resultado de suas ações e gravidade dos bens tutelados pelo juiz, que diariamente decide sobre o direito de vida ou morte, liberdade ou cárcere, dignidade ou indignidade de cada pessoa.

3.2 RAZÃO INSTRUMENTAL

O segundo “mal estar da modernidade” apontado por TAYLOR é a razão instrumental. No vazio gerado pelo desaparecimento do horizonte moral e existencial mais amplo a razão instrumental dominante em nosso tempo ocupou cada vez mais espaços.

Na concepção de TAYLOR, razão instrumental consiste “no tipo de racionalidade obtida quando calculamos a aplicação mais econômica de meios para alcançar um determinado fim. Eficiência máxima, melhor razão custo-resultado, é sua medida de sucesso”.[15]

Na era das metas estatísticas, o outro lado da moeda do sucesso numérico é a objetivação dos processos. Cada processo passa a ser apenas mais um número – assim como os pedidos ali encartados. Atualmente, o próprio juiz passa a ser fiscalizado como um agente de eficiência operacional atrelado a metas insuperáveis (geralmente quantitativas), e mesmo suas questões pessoais (férias, licenças para estudo, etc) são decididas por técnicos de visão estritamente financeira ou operacional, sem qualquer preparo acerca do caráter teleológico da Justiça. E, logicamente, as pessoas cujos pedidos são transformados em meros dados também são transformadas em números, parâmetros objetivos à mercê das secretarias de orçamento ou de estatística, despreparadas para questões éticas e desprovidas do telos moral. A consequência disso, para TAYLOR, é a seguinte: “Uma vez que as criaturas que nos cercam tenham perdido o significado que derivava de seu lugar na cadeia do ser, abre-se o caminho para que sejam tratadas como matérias-primas ou instrumentos de nossos projetos”.[16]

Lamentavelmente, com a perda do horizonte e referência moral, a maioria dos jurisdicionados, apesar de ter uma compreensão abstrata acerca das responsabilidades de um juiz, somente parece tomar consciência de sua gravidade quando é sua própria (ou de alguém próximo) vida, liberdade ou dignidade que estão em jogo num processo concreto. E a tendência é que, em sua auto-configuração intersubjetiva, o próprio indivíduo juiz vá perdendo a consciência da gravidade de suas atribuições, com crescente insensibilidade para o drama que se encena nas páginas do processo frio. É a erosão simbólica interior do juiz, decorrente de seu ser-com-os-outros-no-mundo. Trata-se do aspecto que examinaremos a seguir.

 


4 A EROSÃO INTERIOR DO JUIZ COMO SÍMBOLO

Até o momento traçamos um panorama dos problemas que geram a erosão do símbolo do juiz para a sociedade. Mas como esse quadro reflete no juiz-indivíduo, em sua auto-configuração enquanto membro dessa mesma sociedade – e, afinal, na própria maneira como esse indivíduo-juiz enxerga as causas do jurisdicionado e, enfim, o próprio jurisdicionado?

Nessa etapa do artigo, nos apoiaremos na antropologia filosófica de LIMA VAZ, mais especificamente na categoria da intersubjetividade como configuradora do homem através da reciprocidade.

Um primeiro nível da intersubjetividade como realidade da vida cotidiana partilhada temo-lo descrito por RABUSKE, ao registrar que,

Para os adeptos da corrente do Personalismo – MOUNIER, Martin BUBER e outros [...] a intersubjetividade é anterior à subjetividade, que somente dentro dum “nós” é que pode surgir um verdadeiro “eu” e “tu”. Estes autores também podem basear-se sobre experiências de vida. Antes de tudo, podem evocar a “socialização primária”, em que a criança adquire sua identidade ao ser tratada, incentivada, apelada e amada por “outros significativos”.[17]

Tratando da constituição da identidade do indivíduo, RIBEIRO ensina que

Nesse contexto [o da ligação entre identidade e reconhecimento], a formação da identidade, tanto individual quanto coletiva, depende do esforço e da criatividade individual, mas também das relações com os outros nos vários contextos de nossa existência social. A formação da identidade depende do reconhecimento do outro. ... A identidade humana não é algo que realizamos sozinhos, de forma monológica, mas sim dialogicamente.[18]

Aprofundando a questão na intersubjetividade, LIMA VAZ leciona:

Ora, no terreno da relação intersubjetiva, o sujeito tem diante de si um outro sujeito e deve assumi-lo no discurso da auto-afirmação de si mesmo: vale dizer, tem diante de si uma outra infinidade intencional. Essa paradoxal relação recíproca de dois infinitos é que está no fundo do mistério do conhecimento do outro enquanto outro, que só pode ser um reconhecimento, expresso na identidade dialética do Eu com o não-Eu como Eu (alter ego). A categoria da intersubjetividade deve abrigar, pois, de alguma maneira ou, mais exatamente, dialetizar esse paradoxo do encontro humano que é sempre, fundamentalmente, um encontro entre sujeitos e, como tal, um encontro espiritual. Ela deve explicitar o substrato conceptual que permite ao sujeito afirmar a infinidade intencional do seu Eu nela compreendendo a infinidade intencional do outro e sendo por ela compreendido. Tal condição significa que só me é possível afirmar o outro ou acolhê-lo no espaço intencional do meu sentir, entender e querer na medida em que for por ele também afirmado. Do contrário, recairíamos na relação de objetividade, ou no caso extremo da coisificação do outro. [19]

Em suma: o homem é um ser-com-os-outros-no-mundo. Na relação de intersubjetividade configura sua própria personalidade; no olhar do outro homem é que, desde a primeira infância, ele se reconhece e se afirma: se verá como livre ou escravo, digno ou indigno, de acordo com o olhar de seu semelhante sobre si.

Ora, numa sociedade em que a razão instrumental, o individualismo e a autenticidade dissolvem qualquer horizonte moral comum (realidade em que não só ele, mas também seus jurisdicionados e seus direitos mais vitais são conduzidos sobre o fio de um telos econômico), como se auto-configura o indivíduo-juiz a partir da relação de intersubjetividade? Ser auto-consciente, como se constitui enquanto indivíduo-juiz a partir do olhar do outro, quando esse olhar mostra a ele que não  há ideal de justiça a ser perseguido, não há atitude heroica possível, não há horizonte moral comum fundando a lei, e que ele não passa de um executor de números ou um mero técnico do direito? Conseguirá se manter totalmente descolado de sua realidade, e não olhar aquelas pessoas jurisdicionadas como uma mera estatística? Refletindo a partir da antropologia filosófica, podemos concluir que precisará de muito esforço para não se tornar simples tecnocrata. Talvez mais um esforço sobre-humano que será dele exigido. Caso não consiga, quem há de querer ser julgado por tal funcionário?

Como exemplo dessa realidade, cito um fenômeno que vem sendo observado atualmente: o número cada vez maior de afastamentos para tratamento de saúde dos juízes brasileiros. E os motivos parecem claros: em sua vida interior, como verá o juiz sua própria condição de ser livre e digno, quando recebe mensagens exteriores de objetivação e desvalorização da liberdade e dignidade das pessoas que buscam a justiça? Certamente com sofrimento; afinal, a visão do outro num mundo de intersubjetividade configura sua própria visão de si. No caso, visão de si próprio como ser não-livre e não-digno.

 


5 CONCLUSÃO: A EROSÃO DO SÍMBOLO, A NECESSIDADE DE SUA RECONSTRUÇÃO E A EDUCAÇÃO ÉTICA COMO CAMINHO POSSÍVEL

Na modernidade caracterizada por TAYLOR como uma época de mal estar, de domínio do individualismo e da razão instrumental, a sociedade viu erodidos seus horizontes morais e, com eles, o próprio símbolo do juiz. O indivíduo-juiz, ser-com-os-outros-no-mundo espelhando em sua auto-configuração, numa relação de intersubjetividade, o olhar sobre ele lançado pela sociedade, também tem dificuldade em se enxergar como instância simbólica. As visões externas (da sociedade sobre o juiz) e internas (do juiz sobre si próprio) convergem para um servidor técnico em tudo mais equiparado aos demais integrantes de um corpo técnico governamental com os olhos voltados para metas, números e, principalmente, custo-benefício.

Tal realidade talvez não seja necessariamente negativa, pois a ascensão da figura do servidor público sobre a do missionário do direito parece fazer mais sentido em nossa era da tecnologia.

Contudo parece-nos que, ao erigir à condição de apenas “mais um técnico em meio a tantos outros” aquele que julgará nossa vida, dignidade e liberdade, reduzimos e aviltamos esses próprios direitos. Afinal, a dimensão que terão nossos mais caros bens sempre guardará proporcionalidade com a relevância que damos aos guardiões desses mesmos bens.  Por fim, a objetivação dos sujeitos de direito será inevitável, e o próprio Direito – cujo ponto de partida e fim último é o ser humano – perderá o sentido.

Por todo o exposto, se considerarmos tais consequências como algo a ser evitado, vislumbra-se uma única saída ao alcance do Judiciário: a formação ética do juiz, dotando-o de conhecimento histórico acerca dos modelos éticos já elaborados pelos homens e de suas crises através dos tempos, capacitando-o assim para refletir de maneira crítica e construtiva acerca de seu real papel na sociedade atual.  


6 BIBLIOGRAFIA

GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia – O guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

LIMA VAZ, H.C. de. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992.

RIBEIRO, Elton Vitoriano. Reconhecimento Ético e Virtudes. São Paulo: Edições Loyola, 2012. RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica – Um estudo sistemático. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Harvard University Press, 1991.


Notas

[1] GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia – O guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

[2] GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia – O guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 141.

[3] Id. p.156.

[4] Id. p.173-174.

[5] Id. p.137.

[6] RIBEIRO, Elton Vitoriano. Reconhecimento Ético e Virtudes. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p.75.

[7] RIBEIRO, Elton Vitoriano. Reconhecimento Ético e Virtudes. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p.141.

[8] GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia – O guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p.182.

[9] TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Harvard University Press, 1991. p.1. Doravante apresentaremos todos os trechos da obra em tradução livre.

[10] Id. p.2.

[11] TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Harvard University Press, 1991. p.3.

[12] Id. p.4.

[13] Id. p.13-14.

[14] Id. p.14.

[15] TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Harvard University Press, 1991. p.5.

[16] Id. p.5.

[17] RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica – Um estudo sistemático. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p.149.

[18] RIBEIRO, Elton Vitoriano. Reconhecimento Ético e Virtudes. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p.135.

[19] LIMA VAZ, H.C. de. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992. p. 65. 


Autor

  • Bruno Augusto Santos Oliveira

    Juiz Federal. Juiz Auxiliar da Coordenação dos Juizados Especiais Federais da 1ª Região (entre fevereiro de 2003 a outubro de 2004). Responsável pela concepção, implantação e gestão (até setembro de 2004) do Juizado Virtual do TRF da 1ª Região. Mestre em Direito Constitucional Comparado pela Cumberland School of Law (EUA). Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. A erosão do juiz como símbolo nas sociedades contemporâneas e a necessidade de formação ética e crítica do indivíduo-magistrado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3402, 24 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22876. Acesso em: 29 mar. 2024.