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ADI nº 3510: a atuação da AGU na defesa das pesquisas com células-tronco

ADI nº 3510: a atuação da AGU na defesa das pesquisas com células-tronco

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O STF, por maioria, julgou improcedente a ADI 3510, declarando a constitucionalidade dos dispositivos impugnados, permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias, aceitando a implementação da política pública defendida pela AGU.

1. Apresentação do caso

Contra a Lei de Biossegurança, lei n. 11.105/2005, o Ministério Público Federal ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade, tombada sob o número 3510[1]. Referida ação visava à declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º e seus parágrafos[2] da citada lei, que permitia pesquisas científicas com o uso de células-tronco embrionárias.

O fundamento da referida ADI era a defesa do direito à vida, como sendo inato do embrião, ainda que conservado in vitro, bem como a dignidade da pessoa humana agregado ao princípio da isonomia, já que todos, brasileiros ou estrangeiros, residentes ou domiciliados no Brasil são iguais perante a lei[3].

Com efeito, a partir da premissa fixada na inicial de que a vida biológica começa no momento da concepção, os impetrantes desenvolvem todo o seu argumento no sentido de que não há diferença ontológica entre um embrião fecundado in vitro e não introduzido no útero materno e um embrião fecundado de modo natural ou fecundado in vitro e introduzido no útero materno, para os fins da aplicação das disposições constitucionais que prescrevem o direito fundamental à vida, bem como à dignidade da pessoa humana e igualdade de tratamento.


2. Dos argumentos da AGU

Antes de se apresentar a argumentação da AGU nas informações prestadas pelo Presidente da República e reafirmadas pelo Advogado-Geral da União[4], quando de sua manifestação nos termos do art. 103, § 3º da Constituição, importante destacar observação consignada naquela peça de que “as premissas biológicas utilizadas pelo requerente para fundamentar sua tese não foram proferidas de modo isento sob o aspecto religioso”. É que, como apontado na nota de rodapé n. 26 das informações do Presidente da República (p. 33), os estudos que embasaram as afirmações do Procurador-Geral da República são de autoria de pesquisadores ou financiados pela Igreja Católica ou próximos à doutrina Cristã em razão de convicções pessoais[5], senão observe-se:

De fato, importa destacar que a professora Elizabeth Kipman Cerqueira é representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. Já a professora Alice Teixeira Ferreira integra o Núcleo de Fé e Cultura da PUC de São Paulo, uma iniciativa da Arquidiocese de São Paulo. Por sua vez, o professor Dalton Luiz de Paula Ramos, além de integrar o Núcleo de Fé e Cultura, é correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita, entidade criada pelo Vaticano. Com referência aos cientistas Jerôme Lejeune e Gozalo Herranz se faz necessário aduzir que ambos são integrantes da Opus Dei – que é uma prelazia pessoal da igreja Católica que ajuda os cristãos comuns a procurarem a santidade no seu trabalho e na sua vida diária. Por derradeiro, seis dos nove cientistas brasileiros citados são autores de uma obra coletiva patrocinada pela Pastoral Familiar, da Igreja Católica. Informações baseadas na reportagem ‘Isso deve ser pecado’ In PETRY, André. Veja, Edição 1908, 8/06/2005, p. 46.

Com essas afirmações a AGU tenta desqualificar a inicial apresentada, pois a mesma veicularia um posicionamento embasado na doutrina Cristã. Assim, referidas teses não poderiam servir de parâmetro ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, já que o Estado brasileiro não poderia se comprometer com posicionamentos religiosos[6] em razão de ser um Estado laico, como preconizado pela própria Constituição (arts. 5º, VI e 19, I)[7].

A AGU, por sua vez, defendendo a política pública de saúde e da livre expressão da atividade científica, já que entende constitucional o dispositivo desafiado, alegou que a Lei da Biossegurança encontra esteio inclusive no artigo 5º da Constituição, eis que como visa promover pesquisas que levarão à cura de diversas doenças hoje tidas por incuráveis, promove e garante reflexamente o direito à vida de todos os brasileiros.

Nesse sentido, a Advocacia-Geral da União iniciou sua argumentação discorrendo sobre a importância das pesquisas com células-tronco a fim de permitir o avanço da medicina na busca da cura de doenças que atualmente não têm um tratamento satisfatório.

Com efeito, há dois tipos de células-tronco: as embrionárias e as adultas. Aquelas são encontradas nos óvulos fertilizados in vitro e não implantados no útero materno, estas são encontradas principalmente na medula óssea e no cordão umbilical (Informações do Presidente da República, p. 4).

Segundo argumentado pela AGU as células-tronco embrionárias[8] tem maior capacidade de se desenvolverem em diferentes tipos de células, ou seja, possuem uma plasticidade superior às células-tronco adultas, sendo, portanto, mais propícias às pesquisas científicas que as segundas (Informações do Presidente da República, p. 5).

Um segundo argumento utilizado pela AGU diz respeito ao momento em que se considera legalmente ocorrida a cessação da vida humana. Trata-se de um argumento fundado em tese eminentemente jurídica, ponto esse bastante reforçado pela Advocacia-Geral da União em sua manifestação[9].

O fato é que a lei n. 9.434/1997, que autoriza o transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano post mortem, considera como marco temporal exato a fim de caracterizar o fim da vida humana o diagnóstico de morte encefálica[10]. Utilizando um argumento a contrario sensu, a AGU sustenta que se a vida, consoante critério legal, se encerra com o fim da atividade encefálica, ela deve iniciar, com base nesse mesmo critério, com o surgimento da linha primitiva do sistema nervoso central, que se dá a partir do décimo quarto dia de desenvolvimento do embrião, fase conhecida como neurulação (Informações do Presidente da República, p. 6).

Assim, percebe-se que a fase em que se iniciam as pesquisas com as células-tronco embrionárias por anteceder a neurulação não implicaria em desrespeito à vida do embrião, com base em critérios adotados pelo legislador pátrio, porque, nessa fase de desenvolvimento celular, não se haveria de falar em vida, já que sequer surgiu a linha primitiva do sistema nervoso central.

Todavia, a AGU não se restringe em sua argumentação acerca do conceito jurídico de vida à análise isolada do art. 3º da lei n. 9.434/1997. Em sua defesa da constitucionalidade da Lei de Biossegurança promove um amplo diálogo, constitucional e legal, entre os mais diversos dispositivos normativos do ordenamento jurídico brasileiro a fim de chegar com uma margem de segurança mais larga ao conceito ou à ideia jurídica de proteção à vida que mais se adapte à realidade normativa nacional.

Nesse contexto passa a analisar o teor do art. 2º do Código Civil de 2002[11], que reproduziu texto normativo adotado pelo Brasil desde o Código Civil de 1916, especialmente quanto ao significado do vocábulo nascituro e o termo inicial da personalidade civil (Informações do Presidente da República, p. 21).

Segundo aponta, o nascimento com vida, ou seja, o momento em que o feto sai/desprende-se do ventre materno e autonomamente respira o ar externo, é o preciso instante em que se adquire a personalidade civil (Informações do Presidente da República, p. 25).

Todavia, embora tenha resguardado direitos (na verdade uma expectativa de direitos, como sustenta a AGU[12]), o feto, desde o momento da concepção até o último instante que antecede o nascimento, não é considerado juridicamente uma pessoa, mas um nascituro, desprovido de personalidade jurídica (Informações do Presidente da República, p. 24).

Assim, vê-se uma clara diferenciação legal entre o feto com vida intrauterina e aquele que já deixou o ventre materno e autonomamente se mantém sem mais depender biologicamente da mãe para desenvolver suas funções vitais básicas.

Outra clara distinção legal existente entre um feto e um ser humano já nascido é colocada pelo art. 128, II do Código Penal[13], ao permitir o chamado aborto sentimental ou humanitário. Ora, sustenta a AGU, acaso a proteção constitucional à vida tivesse a estatura preconizada pelo requerente, fatalmente o referido dispositivo legal seria inconstitucional (Informações do Presidente da República, p. 27-28).

Ademais, a inalienabilidade do direito à vida também é excepcionada nos casos de pena capital, em caso de guerra declarada, consoante previsão da alínea “a”, do inciso XLVII, do art. 5º do próprio texto constitucional (Informações do Presidente da República, p. 29).

Dentro desse quadro, a AGU visou demonstrar que o direito à vida não é absoluto e que a própria legislação diferencia claramente os direitos ou expectativa de direitos de um nascituro com os direitos de um ser humano já nascido. Tanto no que se reporta à aquisição da personalidade jurídica, quanto no que se refere à ponderação de interesses entre permitir que se protraia no tempo a expectativa de vida do nascituro e a dignidade da mãe que engravidou em razão de uma violência sofrida.

Mas observe-se que se está sempre a falar de nascituro, ou seja, “o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo”[14], fato este (certeza do nascimento) que não se pode atribuir a um embrião concebido in vitro que não esteja implantado no útero materno[15].

Com efeito, o cerne da discussão, no nosso modo de ver, resume-se a saber se o embrião in vitro tem direito à vida e, num segundo momento, se essa vida é viável. Ainda que se chegasse à conclusão que embriões concebidos em laboratório, mesmo não introduzidos nos útero materno em momento posterior, têm direito à vida, o fato é que a Lei de Biossegurança não viola o referido direito, já que só permite pesquisas com células-tronco embrionárias daqueles embriões inviáveis, ou congelados a mais de três anos, situação essa que os torna inviáveis para nascimento com vida, consoante informa a AGU, por meio da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde[16].

Nesse sentido, nas informações apresentadas pela AGU em nome do Presidente da República, diz-se textualmente:

Ora, se o direito à inviolabilidade do direito à vida surte seus efeitos quando a pessoa pode ser sujeito de direitos e isso ocorre com o nascimento com vida, e se os direitos do nascituro garantidos por lei pressupõem a condição de poder nascer objetivamente, se não há nascimento com vida ou não há condições objetivas de nascer, não há direito à inviolabilidade do direito à vida por falta de pressuposto lógico necessário. Em outras palavras, não basta a existência de vida biológica para a inviolabilidade jurídica do direito à vida, em face de que não é verdadeira a afirmação do Autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510.[17]

Noutro giro, a AGU, por meio da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde (no Parecer indicado na nota de rodapé n. 403), tece interessante arrazoado acerca do fundamento Constitucional apontado pela parte autora. Inicialmente, com relação à dignidade da pessoa humana, consigna a AGU em seu parecer jurídico que a Constituição visa proteger a “pessoa”, o ser humano personificado nos termos do art. 2º do Código Civil, não havendo qualquer referência à “vida humana”, razão pela qual não se haveria de perquirir acerca da existência ou não da vida do embrião para o debate travado, nos termos propugnados pelo Ministério Público, mesmo porque vida sabe-se que há. O relevante é saber se o embrião é ou não considerado pessoa.

Nesse sentido, citando o bioeticista e filósofo italiano Mori, a AGU pondera em seu parecer:

[...] da mesma forma que um estudante de engenharia é um engenheiro em potencial, mas não é um engenheiro, uma semente é potencialmente um carvalho, mas não é um carvalho, um embrião é potencialmente uma pessoa, portanto, não é uma pessoa.[18]

E mais a frente, desta feita citando o filósofo francês Lucien Sève, declina:

[...] quando se afirma que um embrião é uma pessoa em potencial se quer dizer precisamente que: a) não pode ser considerado como uma pessoa atual, pois, não é capaz de valer sua dignidade, sendo essa a primeira diferença entre uma pessoa no momento presente e uma pessoa a ser no futuro; b) falar de pessoa em potencial implica não lhe atribuir as mesmas propriedades éticas das pessoas em ato. Portanto, um embrião não possui em si toda a carga do ser correspondente à pessoa humana que nascerá, considerando que é uma pessoa possível, dependendo de fatores externos para se chegar ao seu nascimento.

Em complemento, quanto ao princípio da igualdade, o dispositivo Constitucional fala em brasileiros e estrangeiros. Significa dizer, adotando-se uma interpretação sistemática da Constituição, que são iguais os brasileiros natos, naturalizados (art. 12 da Constituição) e os estrangeiros. Assim, o embrião ou feto por não ser nato (nascido) ou naturalizado (que pressupõe dentre seus requisitos o prévio nascimento) não pode ser considerado brasileiro, nem, portanto, estrangeiro. Desse modo, o princípio aventado restaria impossibilitado de vir a ser aplicado no caso previsto pelo art. 5º da Lei de Biossegurança[19].

Não se pode olvidar, destaca o Parecer da Advocacia-Geral da União, que a Constituição acolhe o direito à saúde tanto como direito fundamental, quanto como direito à livre expressão da atividade científica (art. 5º, IX), cabendo ao Estado, por consequência, prestar ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde de todos (art. 196, CF/88), além de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnologia (art. 218, CF/88), sendo que a referência aos dois últimos dispositivos serve de alicerce fundamentador para a análise acerca da permissão das pesquisas com células-tronco embrionárias, já que tais pesquisas podem representar a esperança para o tratamento de milhões de pessoas no Brasil[20].

Neste sentido e a título de conclusão, a AGU afirma que “com fulcro no direito à saúde e no direito de livre expressão da atividade científica, a permissão para a utilização de material embrionário, em vias de descarte, para fins de pesquisa e terapia consubstanciam-se em valores amparados constitucionalmente” (Informações do Presidente da República, p. 33-34)[21].


3. Do Acórdão do STF

No caso, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou improcedente a ADI 3510, declarando, por conseguinte, a constitucionalidade dos dispositivos impugnados, permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias inviáveis, ou congeladas há mais de três anos, albergando deste modo a implementação da política pública defendida pela AGU em nome da União.

Observem-se os fundamentos condutores do posicionamento dos Ministros do STF, iniciando pelos argumentos propugnados no voto vencedor e condutor do acórdão, o do Ministro Carlos Ayres Britto, relator do feito.

O Ministro Ayres Britto conceitua o que são células-tronco embrionárias afirmando que são aquele conjunto de células encontradas em cada embrião humano de até 14 dias, sendo que alguns cientistas reduzem esse prazo para até 5 dias, fase em que se convencionou denominar esse aglomerado de células de blastocisto.  Mas, registra o relator, que o objeto das pesquisas permitidas pela legislação desafiada não alcança toda e qualquer célula-tronco, mas tão somente aquela produzida com manipulação humana, porquanto produzidos em laboratório (in vitro). Em seguida, o relator diz não ser missão do Supremo Tribunal Federal aferir quais das duas pesquisas é mais promissora, se a com células-tronco embrionárias ou a com células-tronco adultas, mesmo porque tais pesquisas não são excludentes uma da outra, mas, ao contrário, complementares.

Prossegue o relator afirmando que a Lei da Biossegurança, longe de desprezar o embrião in vitro, encurta caminhos para que se possa superar os infortúnios alheios[22]. Deste modo, permitindo a pesquisa científica com o objetivo de enfrentar e superar patologias e traumatismos que limitam severamente a vida dos seus detentores, promove no seu mais amplo significado a dignificação da pessoa humana. Princípio este que se potencializa uma vez se tenha em mente que as células-tronco utilizadas nas pesquisas ou são inviáveis, por natureza, ou se tornaram inviáveis em razão do tempo de congelamento (mais de três anos).

Ademais, sustenta que, em que pese seja passível de proteção, o embrião não é pessoa, eis que a nossa legislação adotou a teoria “natalista” e não a “concepcionista” a fim de conceder a personalidade civil ao indivíduo humano. Deste modo, e seguindo lição de José Afonso da Silva, defende que a personalidade jurídica adquirida com o nascimento com vida não se adstringe à concepção eminentemente biológica do termo, mas, ao contrário, congrega a concepção biográfica da expressão, senão observe-se:

Se é assim, ou seja, cogitando-se de personalidade numa dimensão biográfica, penso que se está a falar do indivíduo já empírica ou numericamente agregado à espécie animal-humana; isto é, já contabilizável como efetiva unidade ou exteriorizada parcela do gênero humano. Indivíduo, então, perceptível a olho nu e que tem sua história de vida incontornavelmente interativa. Múltipla e incessantemente relacional. Por isso que definido como membro dessa ou daquela sociedade civil e nominalizado sujeito perante o Direito. Sujeito que não precisa mais do que de sua própria faticidade como nativivo para instantaneamente se tornar um rematado centro de imputação jurídica. Logo, sujeito capaz de adquirir direitos em seu próprio nome, além de, preenchidas certas condições de tempo e de sanidade mental, também em nome próprio contrair voluntariamente obrigações e se pôr como endereçado de normas que já signifiquem imposição de “deveres”, propriamente. O que só pode acontecer a partir do nascimento com vida, renove-se a proposição[23].

E em seguida arremata com uma “ainda provisória definição jurídica”: “vida humana já revestida de personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte”[24].

É certo, diz o relator, que a tão só potencialidade de “algo” vir a se tornar pessoa humana justifica por si só a necessidade de proteção jurídica, a fim de afastar as tentativas levianas e frívolas – palavras do Ministro relator – de interrupção do seu natural desenvolvimento. Mas, isso não nos legitima a confundir três realidades diversas: embrião, feto e pessoa humana. Não existe, portanto, segundo aponta, pessoa humana embrionária, mas, sim, embrião de pessoa humana[25].

Não nega o Ministro, e nem poderia, que a vida do ser humano tem seu mais remoto início com a fecundação do óvulo feminino pelo espermatozoide masculino, absolutamente. “Não pode ser diferente”, sustenta o relator. “Não há outra matéria prima da vida humana ou diverso modo pelo qual esse tipo de vida animal possa começar, já em virtude de um intercurso sexual, já em virtude de um ensaio ou cultura em laboratório”[26]. Todavia, prosseguindo, pondera que de igual modo não há manhã sem madrugada anterior e não há decisão judicial sem pedido inicial, mas nem por isso a madrugada se confunde com a manhã, nem o pedido com a sentença ou acórdão. “Cada coisa tem o seu momento ou a sua etapa de ser exclusivamente ela, no âmbito de um processo que o Direito pode valorar por um modo tal que o respectivo clímax (no caso, a pessoa humana) apareça como substante em si mesmo”[27].

Declina, ainda, tal qual apontado pelo parecer da Advocacia-Geral da União, que muito embora a constituição não determine quando começa a vida humana, quando fala em dignidade da pessoa humana, está falando dos direitos e garantias do indivíduo-pessoa, um ser humano já nascido. Tanto que ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição trata do brasileiro residente no País (“não em um útero materno ou menos ainda em um tubo de ensaio ou ‘placa de Petri’”), de igual modo ao falar de nacionalidade a Constituição considera ou brasileiro “nato”, reportando-se expressamente à ideia de nascimento e não de concepção, ou brasileiro “naturalizado”, sendo que para a naturalização é necessário o prévio nascimento com vida[28].

Prosseguindo, acentua que o silêncio da constituição no que se refere à proteção do ser humano desde a sua concepção tem uma forte significação hermenêutica no sentido de que restou delegado à legislação infraconstitucional essa missão. Se assim não fosse o art. 128, I e II do Código Penal seria inconstitucional ante a previsão Constitucional de proibição da pena de morte, eis que a vida dos embriões ou fetos, tendo a mesma estatura Constitucional que a vida da mãe, não poderia ser relativizada ao se permitir o abortamento[29]. Tal, consoante consignado pela AGU (com muito mais razão no caso do art. 128, II, já que em tese não há risco de morte para mãe), demonstra a opção legislativa, constitucionalmente alicerçada, de diferenciação quanto à abrangência protetiva que se dedica a uma vida extrauterina e a uma vida intrauterina.

Nesse sentido, destaca que o embrião referido pela Lei de Biossegurança é aquele que não detém a capacidade de caminhar para formação de uma nova vida, já que faltam as possibilidades de desenvolver as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível e, para tanto, promove paralelo com a disposição normativa constante da lei n. 9.434/1997, em seu artigo 3º. Assim, sustenta o relator, como a morte decorre do fim da atividade cerebral, a vida, por sua vez, deve decorrer do início desta mesma atividade. Em assim sendo, como o embrião in vitro não possui cérebro, não há que se falar em pessoa humana, nem que em potencialidade[30], argumento este expressamente consignado na manifestação da Advocacia-Geral da União.

Ademais, o relator afasta qualquer pseudossemelhança que se possa querer impingir à pesquisa com células-tronco embrionárias, fecundadas in vitro, ao aborto: a um porque não se trata de ser humano em estado embrionário, já que não introduzido no útero, único ambiente capaz de possibilitar o seu pleno crescimento, mas de entidade embrionária de ser humano; a dois porque o aborto é a retirada ou extirpação do ser humano em estado embrionário do ambiente que lhe possibilitará o pleno desenvolvimento, o útero materno. Assim, a utilização das células-tronco embrionárias, fecundadas in vitro e não introduzidas no ambiente uterino não pode ser equiparado à interrupção de uma gravidez, simplesmente porque, antes de sua introdução no ventre materno, de gravidez não se pode falar.

Em seguida aborda o tema dos princípios da paternidade responsável e da autonomia da vontade, aduzindo-se que um casal é tanto livre para optar pela fertilização in vitro quanto para planejar sua família responsavelmente. Daí advém que não se pode coagir a mulher a ter em si implantados (tentativa de nidação) todos os óvulos fertilizados artificialmente, mesmo porque tal prática, além de afrontar a dignidade da mulher, iria de encontro à autonomia da vontade e ao princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CF/88). Deste modo, a fim de se garantir, como pretende o autor, o pleno direito à vida ao embrião fertilizado in vitro haveria de se lhe assegurar o “direito a um útero”, interpretação essa que não comporta guarida pelo texto Constitucional[31].

Registre-se que o Ministro Carlos Ayres Britto sustenta que a Lei de Biossegurança caminha ao encontro dos preceitos constitucionais que garantem o direito à saúde, na medida em que o próprio texto Constitucional, em seu art. 199, § 4º, incorpora à seção normativa que trata da “saúde” a “pesquisa com substâncias humanas para fins terapêuticos”, o que transforma a referida lei em instrumento de encontro do direito à saúde com as ciências médica, biológica e correlatas[32].

Por fim, e ainda em sintonia com a tese defendida pela Advocacia-Geral da União, sustenta que a Lei de Biossegurança é a concretização do preceito constitucional[33] que estipula ser obrigação do Estado promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas, compatibilizando-se a liberdade de expressão científica, com estatura de direito fundamental (art. 5º, IX), com os deveres estatais de propulsão da ciência ao serviço da melhoria das condições de vida para todos os indivíduos, assegurada sempre a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o referido Ministro entende presente no art. 5º da Lei de Biossegurança o bloco normativo constitucional necessário a afastar-lhe qualquer pecha de invalidade jurídica.

Acompanharam na integralidade o voto do Ministro Relator, sem falar em interpretação conforme ou fazer qualquer ressalva por mínima que seja, os Ministros Ellen Gracie, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello, razão pela qual se apontará pontos específicos de seus votos que guardam correspondência à argumentação da Advocacia-Geral da União[34].

Das Ministras Ellen Gracie[35] e Cármen Lúcia[36] extraem-se ponderações interessantes que têm por base um argumento utilitarista pragmático: ora, se os embriões são inviáveis para os fins de formação de um futuro ser humano, sendo seu destino natural o descarte, empresta-lhes dignidade o fato de serem utilizados como fonte de pesquisa que visa alcançar o bem “vida” numa esfera maior que a que se pretende defender com a ação direta de inconstitucionalidade. De igual modo, se o seu destino final é o descarte, não há que se falar, por consequência, em ofensa a um provável direito à vida dos embriões, já que ao fim e ao cabo tal direito não lhes será resguardado com a procedência da ADI.

Já o Ministro Joaquim Barbosa[37] expõe em seu voto o pensamento de que o ordenamento jurídico brasileiro confere gradações diversas de tutela da vida, a depender do seu estágio de desenvolvimento (se embrião, se feto, se recém-nascido etc.), para tanto traz os exemplos das penas aplicadas aos crimes de aborto, infanticídio[38] e homicídio, a fim de comprovar sua afirmação. Neste particular, guarda congruência o voto do Ministro com a argumentação da AGU no exato ponto em que esta trata das diferenciações promovidas por nossa legislação nos casos em que o aborto é permitido (art. 128, I e II, Código Penal). Se a proteção da vida do embrião inviável ou congelado a mais de três anos tivesse a estatura que se lhe pretende conferir, por consequência o aborto terapêutico e especialmente o aborto sentimental seriam flagrantemente inconstitucionais, como, analogamente, também os seriam as penas diferenciadas impostas aos crimes de aborto e homicídio.

De igual modo sustenta o Ministro Marco Aurélio[39] em seu voto a inexistência de similaridade sob a ótica protetiva do Estado entre os nascituros e aqueles que já nasceram. Acrescenta ademais que a personalidade jurídica, somente adquirível por meio do nascimento com vida, sequer pode ser considerada, potencialmente, nos embriões fecundados in vitro (inviáveis ou congelados por três anos ou mais), já que não lhes é garantido o direito ao útero materno, ambiente que poderia vir a lhes conferir a possibilidade de desenvolver uma potencialidade adormecida. Contudo, no caso, ainda que garantido o ambiente uterino, tal não proporcionaria o esperado crescimento, já que referidos embriões são ou se tornaram inviáveis.

Por fim, o Ministro Celso de Mello[40], utilizando como marco normativo o art. 3º da lei 9.434/1997, defendeu abertamente, tal qual a AGU em sua manifestação, a teoria neurológica de modo a fixar os termos inicial e final da vida humana. Nesse sentido, por coerência argumentativa, não se poderia garantir a plenitude do direito à vida a embriões produzidos em laboratório e que, além de inviáveis ou congelados a mais de três anos, não têm ainda desenvolvido os primeiros rudimentos de um sistema nervoso central, sendo esse o momento em que as pesquisas são efetivadas.

Adotando esses fundamentos, o STF, por maioria de votos, julgou improcedente a ADI e declarou constitucionais os dispositivos legais atacados[41].


O artigo visa promover uma análise descritiva da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tendo como ponto de referência a manifestação da Advocacia-Geral da União. Deste modo, inicia-se o texto com a descrição dos principais argumentos utilizados pela AGU na defesa da União, suas Autarquias e Fundações Públicas Federais, bem como os ventilados pelas partes adversas. Em seguida, descrevem-se os mais relevantes fundamentos declinados pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a demanda, a fim de se verificar se a AGU efetivamente influenciou o judiciário, tendo contribuído de forma efetiva e eficaz para a implementação da política pública desafiada judicialmente. Tal conclusão (A AGU influenciou ou não o STF no seu julgamento da demanda?) fica a cargo da percepção crítica do leitor.


Notas

[1]     STF, ADI n. 3510, Relator Ministro Carlos Ayres Britto. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador pub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723>. Acesso: 10 mar. 2012.

[2]     “Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completaram 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.”

[3]     “Estabelecidas tais premissas, o artigo 5º e parágrafos, da Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005, por certo inobserva a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana, e faz ruir o fundamento maior do Estado democrático de direito, que radica na preservação da dignidade da pessoa humana.” (Petição inicial, p. 11. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2299631>. Acesso em: 11 mar. 2012.

[4]     Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2299631>. Acesso em: 11 mar. 2012.

[5]     Nesse sentido, o Ministro Marco Aurélio adverte que se devem colocar em segundo plano as paixões e buscar a prevalência da Constituição na discussão ora travada, in litteris: “Devem-se colocar em segundo plano paixões de toda ordem, de maneira a buscar a prevalência dos princípios constitucionais. Opiniões estranhas ao Direito por si sós não podem prevalecer, pouco importando o apego a elas por aqueles que as veiculam. O contexto apreciado há de ser técnico-jurídico, valendo notar que declaração de inconstitucionalidade pressupõe sempre conflito flagrante da norma com o Diploma Maior, sob pena de relativizar-se o campo da disponibilidade, sob o ângulo da conveniência, do legislador eleito pelo povo e que em nome deste exerce o poder legiferante. Os fatores conveniência e oportunidade mostram-se, em regra, neutros quando se cuida de crivo quanto à constitucionalidade de certa lei – e não de medida provisória. Somente em situações extremas, nas quais surge, ao primeiro exame, a falta de proporcionalidade, pode-se adentrar o âmbito do subjetivismo e exercer a glosa. No caso, a lei foi aprovada mediante placar acachapante – 96% dos Senadores e 85% dos Deputados votaram a favor, o que sinaliza a razoabilidade.” (Inteiro teor do acórdão, p. 03-04 do voto do Ministro Marco Aurélio e 540-541 do processo)

[6] Registro que no nosso entender o Estado brasileiro não pode se comprometer com posicionamentos religiosos enquanto profissão de fé. Nesse caso, estar-se-ia confundindo a convicção pessoal do “representante” do Estado com o posicionamento do próprio Estado, o que, em razão da desvinculação deste último a qualquer ordem religiosa, não seria permitido. Todavia, o posicionamento eventualmente externado pelo Estado com embasamento científico é plenamente legítimo, ainda que coincida com o posicionamento defendido por alguma ordem ou seita religiosa, já que os alicerces de um e de outro não se confundem, embora ambos concluam da mesma maneira.

[7] Nesse mesmo sentido, mas não visando (pelo menos abertamente) desqualificar a inicial, o Ministro Celso de Mello em seu voto alerta que o Supremo Tribunal Federal não pode decidir a questão acerca da possibilidade ou não de se permitir pesquisas com células-tronco embrionárias com base em argumentos religiosos, em razão da laicidade de que se reveste o Estado brasileiro, verbis: “Note-se, portanto, que este Supremo Tribunal Federal deve sustentar o seu julgamento em razões eminentemente não-religiosas,  considerada a realidade de que o Estado brasileiro, fundado no pluralismo de ideias e apoiado em bases democráticas, qualifica-se como uma República essencialmente laica e não-confessional, para que não se repita, uma vez mais, o gravíssimo erro histórico em que incidiu, em 1633, o Tribunal do Santo Ofício, que constrangeu Galileu Galilei (“eppur si muove!”), sob pena de condenação à morte na fogueira, a repudiar as suas afirmações (cientificamente corretas) a propósito do sistema heliocêntrico, reputadas incompatíveis com a Bíblia pelas autoridades e teólogos da Igreja de Roma.” (Inteiro teor do acórdão, p. 16-17 do voto e p.569-570 do processo)

[8]     Frise-se que as células-tronco embrionárias propícias a pesquisas, são aquelas encontradas na fase de desenvolvimento denominada blastocisto, ou seja, o “amontoado de células” formado 4 ou 5 dias depois da fecundação.

[9]     Nas informações (p. 19) em nome do Presidente da República, elaboradas pela AGU, encontra-se a seguinte passagem que denota a preocupação em se fixar um conceito jurídico para o termo “vida”, a fim de se permitir uma interpretação razoavelmente segura da constituição e das leis nacionais:

“Importa aqui ressaltar a importância de uma definição jurisdicional – qualquer que seja ela – do conceito da palavra ‘vida’ e, via de consequência, dos limites do significado do termo inserto no art. 5º, caput, da Carta de 1988, da respectiva proteção jurídica e dos parâmetros para as condutas a serem adotadas pelo jurisdicionados.

Trata o caso concreto da arguição de inconstitucionalidade da lei que autoriza a pesquisa em células-tronco embrionárias.

Tais células, extraídas de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos, têm ampla utilidade na seara das pesquisas biomédicas e poderão acarretar avanços em diversos ramos teóricos e práticos do conhecimento, conforme já explanado anteriormente.

Resta saber se é possível a realização desse estudo sem violar a garantia à integridade da ‘vida’ segundo o conceito do termo dado pela Constituição.”

[10]    “Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.”

[11]    “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”

[12]    Diz-se “expectativa de direitos”, pois se por alguma razão o esperado nascimento com vida não ocorrer, a expectativa se desfaz e nenhum direito lhe será conferido, pois o pressuposto legal à aquisição da personalidade civil e dos direitos que dela advém não se concretizou, o nascimento com vida.

[13]    “Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

[...]

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

[14]    Essa definição, extraída do dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI, versão 3.0, novembro de 1999, foi utilizada pela AGU nas Informações do Presidente da República, p. 30.

[15]    “Inquestionavelmente, o nascimento de um embrião que não esteja implantado no ventre materno, principalmente aquele congelado, não pode ser tido como um fato futuro e certo. Neste ponto, não há como tergiversar.

Também é certo que a maioria dos embriões gerados in vitro não implicará em uma efetiva fecundação – pois como é de conhecimento notório para se tentar uma única inseminação artificial são gerados inúmeros embriões – e, desta maneira, tais embriões não podem ser reconhecidos como nascituros, uma vez que o nascimento destes não resta configurado como um fato futuro e certo. Ao oposto, configura fato atemporal e incerto.” (Informações do Presidente da República, p. 30)

[16]    Parecer/Conjur/Assessoria/Gabin/MS/AA n. 2516. Documento juntado aos autos anexado às informações do Presidente da República, p. 40-62 do arquivo digitalizado.

[17]    Manifestação do Consultor-Geral da União, 38ª página do arquivo digitalizado.

[18]    Parecer/Conjur/Assessoria/Gabin/MS/AA n. 2516. Documento juntado aos autos anexado às informações do Presidente da República, p. 51 do arquivo digitalizado.

[19]    “Inicialmente, para o deslinde da questão ora posta importa analisar os conteúdos dos preceitos constitucionais apontados pelo requerente. O inciso III do artigo 1º da Constituição da República dispõe que a dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado brasileiro. Sendo assim, verifica-se que o princípio fundamental é o respeito à pessoa, não há referência à vida humana, portanto, não há que se debater sobre a existência da vida humana ou não, em se tratando de embrião. Da mesma forma, o caput do artigo 5º dispõe que ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida...’. Conforme o inciso I do artigo 12 da Constituição Federal, são brasileiros os nascidos nas circunstâncias elencadas no citado dispositivo, denominados natos, bem como os naturalizados, que para assim serem considerados precisam preencher determinados requisitos. Seja nato ou naturalizado, o brasileiro, de acordo com o poder constituinte originário, é o nascido, portanto, o embrião não é considerado brasileiro.

Com efeito, a inviolabilidade do direito à vida diz respeito aos brasileiros, considerando os nascidos, e, por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana tutela o ser humano que recebe o qualificativo pessoa. Destaca-se, assim, a assertiva de Alexandre de Moraes:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar...

Desta forma, não há que se debater sobre a existência de vida humana ou não no caso dos embriões, na medida em que o ordenamento constitucional vigente não protege a vida humana por si só, mas sim a vida da pessoa humana. Até porque é inegável que o embrião está vivo, qualquer célula do nosso corpo está viva, nesse sentido ‘não há dúvida de que, desde os primeiros momentos de sua existência, um embrião concebido de esperma e óvulos humanos é um ser humano, uma vida humana.’”

(Parecer/Conjur/Assessoria/Gabin/MS/AA n. 2516. Documento juntado aos autos anexado às informações do Presidente da República, p. 47-48 do arquivo digitalizado.)

[20]    Parecer/Conjur/Assessoria/Gabin/MS/AA n. 2516. Documento juntado aos autos anexado às informações do Presidente da República, p. 57 do arquivo digitalizado.

[21]    Frise-se que referida passagem foi textualmente transcrita no relatório/voto do Ministro relator Carlos Ayres Britto (pág. 03 do relatório e 144 do processo).

[22]    Inteiro teor do acórdão, p. 47 do voto do Ministro relator e 199 do processo.

[23]    Voto do Ministro Carlos Ayres Brito, inteiro teor do acórdão, p. 10-11 do voto e 162-163 do processo.

[24]    Voto do Ministro Carlos Ayres Brito, inteiro teor do acórdão, p. 11 do voto e 163 do processo.

[25]    “Não estou a ajuizar senão isto: a potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-lo, infraconstitucionalmente, contra tentativas esdrúxulas, levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Esta não se antecipa à metamorfose dos outros dois organismos. É o produto final dessa metamorfose. O sufixo grego ‘meta’ a significar, aqui, u’a mudança tal de estado que implica um ir além de si mesmo para se tornar um outro ser. Tal como se dá entre a planta e a semente, a chuva e a nuvem, a borboleta e a crisálida, a crisálida e a lagarta (e ninguém afirma que a semente já seja a planta, a nuvem, a chuva, a lagarta, a crisálida, a crisálida, a borboleta). O elemento anterior como que tendo de se imolar para o nascimento posterior. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana, passando necessariamente por essa entidade a que chamamos ‘feto’”(Voto do Ministro Carlos Ayres Brito, inteiro teor do acórdão, p. 20 do voto e 172 do processo.).

[26]    Voto do Ministro Carlos Ayres Brito, inteiro teor do acórdão, p. 22 do voto e 174 do processo.

[27]    Vide nota de rodapé anterior.

[28]    Voto do Ministro Carlos Ayres Brito, inteiro teor do acórdão, p. 11-12 do voto e 163-164 do processo.

[29]    “Não que a vedação do aborto signifique o reconhecimento legal de que em toda gravidez humana já esteja pressuposta a presença de pelo menos duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação. Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do art. 128 do Código Penal seriam inconstitucionais, sabido que a alínea a do inciso XLVII do art. 5º da Magna Carta Federal proíbe a pena de morte [...]. O que traduz essa vedação do aborto não é outra coisa senão o Direito Penal brasileiro a reconhecer que, apesar de nenhuma realidade ou forma de vida pré-natal ser uma pessoa física ou natural, ainda assim faz-se portadora de uma dignidade que importa reconhecer e proteger. Reconhecer e proteger, aclare-se, nas condições e limites da legislação ordinária mesma, devido ao mutismo da Constituição quanto ao início da vida humana. Mas um mutismo hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária ou usual, até porque, segundo recorda Sérgio da Silva Mendes, houve tentativa de se embutir na Lei Maior da República a proteção ao ser humano desde a sua concepção.” (Voto do Ministro Carlos Ayres Brito, inteiro teor do acórdão, p. 18-19 do voto e 170-171 do processo.)

[30]    Inteiro teor do acórdão, p. 44-46 do voto do Ministro relator e 196-198 do processo.

[31]    Inteiro teor do acórdão, p. 31-36 do voto do Ministro relator e 183-188 do processo.

[32]    Inteiro teor do acórdão, p. 50 do voto do Ministro relator e 202 do processo.

[33]    “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. § 1º A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e progresso da ciência.”

[34]    Tal poderia ser tido como desnecessário, eis que se os referidos Ministros acompanharam o voto do relator, embora não o tenham dito, acompanharam as suas razões de decidir, já que a elas não fizeram qualquer ressalva explícita ou implícita, as quais já guardam correspondência com a argumentação desenvolvida pela AGU. Todavia, é interessante observar como determinados temas são postos e repostas novamente no debate.

[35]    “Assim, por verificar um significativo grau de razoabilidade e cautela no tratamento normativo dado à matéria aqui exaustivamente debatida, não vejo qualquer ofensa à dignidade humana na utilização de pré-embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos nas pesquisas de células-tronco, que não teria outro destino que não o descarte.

Aliás, mesmo que não adotada a concepção acima comentada, que demonstra a distinção entre a condição do pré-embrião (massa indiferenciada de células da qual um ser humano pode ou não emergir), e do embrião propriamente dito (unidade biológica detentora de vida humana individualizada), destaco a plena aplicabilidade, no presente caso, do princípio utilitarista, segundo o qual deve ser buscado o resultado de maior alcance com o mínimo de sacrifício possível. O aproveitamento, nas pesquisas científicas com células-tronco, dos embriões gerados no procedimento de reprodução humana assistida é infinitamente mais útil e nobre do que o descarte vão dos mesmos.

A improbabilidade da utilização desses pré-embriões (absoluta no caso dos inviáveis e altamente previsível na hipótese dos congelados há mais de três anos) na geração de novos seres humanos também afasta a alegação de violação ao direito à vida.” (Inteiro teor do acórdão, p. 6 do voto da Ministra Ellen Gracie e 219 do processo)

[36]    “A utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e, após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem a dignidade humana, constitucionalmente assegurada. Antes, valoriza-a. O grão tem de morrer para germinar. Se a célula-tronco embrionária, nas condições previstas nas normas agora analisadas, não vierem a ser implantadas no útero de uma mulher, serão elas descartadas. Dito de forma direta e objetiva, e ainda que certamente mais dura, o seu destino seria o lixo. Estaríamos não apenas criando um lixo genético, como, o que é igualmente gravíssimo, estaríamos negando àqueles embriões a possibilidade de se lhes garantir, hoje, pela pesquisa, o aproveitamento para a dignidade da vida. A sua utilização é uma forma de saber para a vida, transcendendo-se o saber da vida, que com outros objetos se alcança. Conhecer para ser. Essa a natureza da pesquisa científica com células-tronco embrionárias, que não afronta, mas busca, diversamente, ampliar as possibilidades de dignificação de todas as vidas. (Inteiro teor do acórdão, p. 26 do voto da Ministra Cármen Lúcia e 351 do processo).

[37]    “Conforme acentuei em outra oportunidade, ‘a tutela da vida humana experimenta graus diferenciados. As diversas fases do ciclo vital, desde a fecundação do óvulo, com a posterior gestação, o nascimento, o desenvolvimento e, finalmente, a morte do ser humano, recebem do ordenamento regimes jurídicos diferenciados. Não é por outra razão que a lei distingue (inclusive com penas diversas) os crimes de aborto, de infanticídio e de homicídio’ (HC 84.025). Em outras palavras, segundo nosso ordenamento jurídico o direito à vida e a tutela do direito à vida são dois aspectos de um mesmo direito, o qual, como todo direito fundamental, não é absoluto nem hierarquicamente superior a qualquer outro direito fundamental.” (Inteiro teor do acórdão, p. 02 do voto do Ministro Joaquim Barbosa e 462 do processo).

[38]    Entendemos que a menção ao infanticídio não se aplica a comprovar a afirmação do Ministro Joaquim Barbosa, pois a pena diferenciada não se dá em razão do estágio de desenvolvimento do ser humano (criança recém-nascida), mas em razão do estado psicológico (estado puerperal) da mãe no momento do cometimento do crime. Afastado o abalo psicológico comum à parturiente, o crime deixa de ser tipificado como infanticídio e passa a ser tipificado como homicídio.

[39] “Assentar que a Constituição protege a vida de forma geral, inclusive a uterina em qualquer fase, já é controvertido – a exemplo dos permitidos aborto terapêutico ou o decorrente de opção legal após estupro –, o que se dirá quando se trata de fecundação in vitro, já sabidamente, sob o ângulo técnico e legal, incapaz de desaguar em nascimento. É que não há a unidade biológica a pressupor, sempre, o desenvolvimento do embrião, do feto, no útero da futura mãe. A personalidade jurídica, a possibilidade de considerar-se o surgimento de direitos depende do nascimento com vida e, portanto, o desenlace próprio à gravidez, à deformidade que digo sublime: vir o fruto desta última, separado do ventre materno, a proceder à denominada troca oxicarbônica com o meio ambiente.” (Inteiro teor do acórdão, p. 09 do Ministro Marco Aurélio e 546 do processo)

[40]    “Como se sabe, a Lei n. 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, estabelece, em seu art. 3º, ‘caput’, como marco final da vida, o momento em que se dá a morte encefálica, ao prever que a retirada ‘post mortem’ de tecidos, órgãos e partes do corpo humano destinados ao transplante ‘[...] deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica [...]’ (grifei).

A atividade cerebral, referência legal para a constatação da existência da vida humana, pode, também, ‘a contrario sensu’, servir de marco definidor do início da vida, revelando-se critério objetivo para afastar a alegação de que a utilização de células-tronco embrionárias, para fins de pesquisa e terapia, obtidas de embriões produzidos por fertilização ‘in vitro’, transgrediria o postulado que assegura a inviolabilidade do direito à vida.

As células-tronco embrionárias são passíveis de utilização em pesquisas realizadas até um dado limite temporal em que ainda não se tenha iniciado o processo de formação do sistema nervoso central. Nessa perspectiva, o art. 5º da Lei de Biossegurança não ofende o ordenamento constitucional, eis que a extração das células-tronco embrionárias ocorre antes do início da formação do sistema nervoso.” (Inteiro teor do acórdão, p. 27-28 do voto do Ministro Celso de Mello e 580-581 do processo)

[41]EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5º DA LEI N. 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA). PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO.

I - O CONHECIMENTO CIENTÍFICO, A CONCEITUAÇÃO JURÍDICA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E SEUS REFLEXOS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE BIOSSEGURANÇA. As "células-tronco embrionárias" são células contidas num agrupamento de outras, encontradiças em cada embrião humano de até 14 dias (outros cientistas reduzem esse tempo para a fase de blastocisto, ocorrente em torno de 5 dias depois da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozóide masculino). Embriões a que se chega por efeito de manipulação humana em ambiente extracorpóreo, porquanto produzidos laboratorialmente ou "in vitro", e não espontaneamente ou "in vida". Não cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir sobre qual das duas formas de pesquisa básica é a mais promissora: a pesquisa com células-tronco adultas e aquela incidente sobre células-tronco embrionárias. A certeza científico-tecnológica está em que um tipo de pesquisa não invalida o outro, pois ambos são mutuamente complementares.

II - LEGITIMIDADE DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS PARA FINS TERAPÊUTICOS E O CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. A pesquisa científica com células-tronco embrionárias, autorizada pela Lei n° 11.105/2005, objetiva o enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém u'a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello).

III - A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À VIDA E OS DIREITOS INFRACONSTITUCIONAIS DO EMBRIÃO PRÉ-IMPLANTO. O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria "natalista", em contraposição às teorias "concepcionista" ou da "personalidade condicional"). E quando se reporta a "direitos da pessoa humana" e até dos "direitos e garantias individuais" como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais "à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança ("in vitro" apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição.

IV - AS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO NÃO CARACTERIZAM ABORTO. MATÉRIA ESTRANHA À PRESENTE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. É constitucional a proposição de que toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se tratando de experimento "in vitro". Situação em que deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino. O modo de irromper em laboratório e permanecer confinado "in vitro" é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva. Isto sem prejuízo do reconhecimento de que o zigoto assim extra-corporalmente produzido e também extra-corporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária do ser humano. Não, porém, ser humano em estado de embrião. A Lei de Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não se cuida de interromper gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A "controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto." (Ministro Celso de Mello).

V - OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AUTONOMIA DA VONTADE, AO PLANEJAMENTO FAMILIAR E À MATERNIDADE. A decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria Constituição rotula como "direito ao planejamento familiar", fundamentado este nos princípios igualmente constitucionais da "dignidade da pessoa humana" e da "paternidade responsável". A conjugação constitucional da laicidade do Estado e do primado da autonomia da vontade privada, nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa. A opção do casal por um processo "in vitro" de fecundação artificial de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização artificial ou "in vitro". De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à "liberdade" (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva (art. 226 da CF). Mais exatamente, planejamento familiar que, "fruto da livre decisão do casal", é "fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável" (§ 7º desse emblemático artigo constitucional de n. 226). O recurso a processos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o próprio instituto do "planejamento familiar" na citada perspectiva da "paternidade responsável". Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição. Para que ao embrião "in vitro" fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não autorizada pela Constituição.

VI - DIREITO À SAÚDE COMO COROLÁRIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA DIGNA. O § 4º do art. 199 da Constituição, versante sobre pesquisas com substâncias humanas para fins terapêuticos, faz parte da seção normativa dedicada à "SAÚDE" (Seção II do Capítulo II do Título VIII). Direito à saúde, positivado como um dos primeiros dos direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º da CF) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguridade social (cabeça do artigo constitucional de n. 194). Saúde que é "direito de todos e dever do Estado" (caput do art. 196 da Constituição), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como "de relevância pública" (parte inicial do art. 197). A Lei de Biossegurança como instrumento de encontro do direito à saúde com a própria Ciência. No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas, diretamente postas pela Constituição a serviço desse bem inestimável do indivíduo que é a sua própria higidez físico-mental.

VII - O DIREITO CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO CIENTÍFICA E A LEI DE BIOSSEGURANÇA COMO DENSIFICAÇÃO DESSA LIBERDADE. O termo "ciência", enquanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítulo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de n. IV do título VIII). A regra de que "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas" (art. 218, caput) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218) que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal dota o bloco normativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer invalidade jurídica (Ministra Cármen Lúcia).

VIII - SUFICIÊNCIA DAS CAUTELAS E RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA LEI DE BIOSSEGURANÇA NA CONDUÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. A Lei de Biossegurança caracteriza-se como regração legal a salvo da mácula do açodamento, da insuficiência protetiva ou do vício da arbitrariedade em matéria tão religiosa, filosófica e eticamente sensível como a da biotecnologia na área da medicina e da genética humana. Trata-se de um conjunto normativo que parte do pressuposto da intrínseca dignidade de toda forma de vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto. A Lei de Biossegurança não conceitua as categorias mentais ou entidades biomédicas a que se refere, mas nem por isso impede a facilitada exegese dos seus textos, pois é de se presumir que recepcionou tais categorias e as que lhe são correlatas com o significado que elas portam no âmbito das ciências médicas e biológicas.

IX - IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Afasta-se o uso da técnica de "interpretação conforme" para a feitura de sentença de caráter aditivo que tencione conferir à Lei de Biossegurança exuberância regratória, ou restrições tendentes a inviabilizar as pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência dos pressupostos para a aplicação da técnica da "interpretação conforme a Constituição", porquanto a norma impugnada não padece de polissemia ou de plurissignificatidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada totalmente improcedente.”


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AMORIM, Filipo Bruno Silva. ADI nº 3510: a atuação da AGU na defesa das pesquisas com células-tronco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3402, 24 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22877. Acesso em: 29 mar. 2024.