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A cidadania das mulheres, imigrantes e os direitos dos escravos no século XIX

A cidadania das mulheres, imigrantes e os direitos dos escravos no século XIX

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No Brasil Império os direitos sociais eram restringidos ao gênero, cor, etnia e classe social; ficando os senhores (grandes fazendeiros) com o controle do poder da lei e fazê-la, ou até mesmo distorcê-la em seu favor.

Resumo: As questões dos direitos relativos à cidadania vão além das definições postas no Direito positivo, inclusive no século XIX, para fazer uma reflexão se faz necessário que se coloque na balança os principais indivíduos da época que não tinham perante a Justiça seus direitos devidamente consolidados (positivados) de cidadãos, outros até mesmo “parcialmente” inexistentes, como os escravos. Dentro dessa esfera de indivíduos é importante que considere a cultura e as tendências de pensamentos da época e como as decisões políticas de conquistas de direitos e mudanças sociais eram um reflexo da confluência entre etnias e conquistas de direitos.

Palavras-chave: Cidadania – Século XIX – Escravos – Mulheres – Imigrantes – Segundo Reinado – Processo Abolicionista.


Introdução

O século XIX foi marcado por um conflito tácito de direitos e consolidações de tais, a escravidão era pauta de discussões acaloradas por estudantes que retornavam da Europa e não se conformavam em ver esse “atraso social”, enquanto o mundo desatava-se da escravidão, o Brasil continuava a insistir sua produção com base escravista, e sofria pressões dos liberalistas ingleses. Mas o Direito em si estava mesmo atado nas mãos dos grandes latifundiários e pessoas com recursos para obter tal acesso, os imigrantes que chegavam aos portos sem um centavo no bolso eram obrigados a se submeterem a leis paralelas, as dos “coronéis” assim como toda gama de pessoas que dependiam de grandes donos de terras para sobreviverem, juntamente com a ilustração da mulher da época, confirma-se a mudança de pensamento sobre direitos naquela época. Todos esses direitos passam por um cenário de uma guerra perdulária nas fronteiras brasileiras e uma monarquia em descrédito.


1. Escravos

1.1 Processo Abolicionista no Segundo Reinado

Para que conheçamos a situação escravista no segundo reinado se faz necessário fazer uma análise de algumas leis de caráter abolicionistas da época e ver suas implicações dentro do sistema escravocrata. Dentro da configuração social da época e suas influências no processo abolicionista, conseguimos ver a relação entre Brasil e Inglaterra, relação essa que vai desencadear as primeiras pressões para as leis liberais abolicionistas. O Brasil devia a Inglaterra dois milhões de libras esterlinas, de empréstimo feito pelo governo brasileiro para pagar Portugal, condição imposta pelos lusitanos para reconhecer a independência; essas relações econômicas (é importante ressaltar a importância econômica de importação e exportação inglesa para o Brasil) entre Brasil e Inglaterra, davam aos Ingleses certas prerrogativas tácitas de influência no território brasileiro.

 Entre as pressões inglesas a mais relevante é as relativas à mão de obra brasileira (escrava). Resultando em uma lei brasileira em 1831 (Lei Feijó) que proibia o tráfico de escravos para o Brasil, que ficou mais conhecida com “lei para inglês ver”, porque apesar de aprovada a lei não possuía nenhuma efetividade na prática, e o tráfico negreiro descambou até 1845.

Em 1845 foi tomada uma primeira medida contra o tráfico negreiro, o Aberdeen Act, uma lei inglesa e não brasileira que tomava medidas “extremas” contra o tráfico negreiro, segundo a lei todo navio que estivessem fazendo tráfico de escravos para as Américas, interceptados pelas canhoneiras inglesas poderia ser abatido (afundado), e muitos foram.

Pode-se entender as pressões abolicionistas a partir de um ex-rico traficante de escravos, Cerqueira Lima que vai a falência após ter um de seus navios negreiros apreendidos pelo governo inglês.[1] O tema escravidão no segundo reinado começa a se tornar um transtorno social e político para o governo; quanto mais se adentra ao Brasil oitocentista, mais se complica a situação escravagista.

Evidentemente as sociedades escravagistas, incluindo as do sul, estavam com os dias contados. Nenhuma delas sobreviveu ao período de 1848 a 1890 – nem mesmo Cuba e Brasil.[2] Existia a tendência abolicionista em todo o mundo, mas especialmente aqui no Brasil a escravidão começou a torna-se onerosa, após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que abolia agora definitivamente (e não mais somente “para inglês ver”) o tráfico negreiro. A lei proporcionou um aumento no preço dos escravos (já que começou a diminuir a oferta no mercado negreiro) e conseqüentemente um declínio da migração africana para o Brasil. Outro fator como a insubordinação dos escravos começou a onerar o sistema escravista.

Diversos autores têm enfatizado que o custo da vigilância e disciplinarização dos cativos tornou-se extremamente elevado, após 1850. É complicado provar um aumento da violência dos cativos, para além da paranóia senhorial, no contexto do que se chamou na época de “onda negra”. Não é, entretanto, o número de atentados violentos a senhores e feitores que deve ser contabilizado, mas a mudança de postura no discurso que os cativos apresentaram nessas ocasiões.[3]

Hebe M. Mattos de Castro discursa sobre essa inflexão:

Inconvenientes aos escravagistas se assomavam ao cenário pós 1850, como a Lei do Ventre Livre, que já prenunciava uma abolição iminente; os números de processos relativos a essas leis abolicionistas eram crescentes. Entre 1850 e a aprovação da Lei do Ventre Livre (1871), o número de Ações de Liberdade movidas por escravos contra seus senhores na Corte de Apelação no Rio quase triplicou em relação às décadas anteriores, reunindo 194 processos e envolvendo 736 cativos.[4]

Temos que nos ater aqui as mudanças sócias e de pensamento da época, a barbárie pública e esdrúxula do começo da escravidão no Brasil, já não era bem vista no Brasil Império.

Na verdade, são sinais dos tempos modernos: Na década de 1870, não era mais de “bom tom” anunciar violências “domésticas” para o mundo.[5]

Essa “moral” que era implícita na época pode ser vista no tratamento dos escravos por seus senhores ao negociá-los, procurando não separar o núcleo familiar do escravo, mas a quem diga que essa era mais uma estratégia do senhor do que uma questão de humanidade.

Em suma, a família escrava transformava os cativos em “reféns”, tanto de seus próprios anseios quanto do proprietário. Os senhores certamente sabiam disso quando refletiam sobre os ditames da “humanidade” e da “boa razão”.[6] Por outro lado, a ameaça da separação sempre existia, pelo menos até 1869-71, quando leis nacionais proibiram a prática restringindo afinal esse abuso do poder privado.[7]

Lilia Moritz Schwarcz define essas correntes de acontecimentos:

Uma breve olhada na “agenda” de fatos é suficiente para se ter uma idéia da situação: em 1880 funda-se a Sociedade Brasileira contra a Escravidão e em 1883 a Confederação Abolicionista. Também nesse ano castro Alves publica Os escravos e Joaquim Nabuco O abolicionismo, obras cujos autores eram líderes do movimento de emancipação e que passaram a ser – na literatura e na ciência política – livros de referência sobre o assunto. Em 1884 a escravidão é extinta no Ceará e no Amazonas, e em 28 de setembro de 1885 se promulga a Lei Saraiva Cotegipe – que dava liberdade aos escravos com mais de sessenta anos, mas garantia seus trabalhos por mais três anos –, apenas acirrando os ânimos. O processo de abolição concretizava-se, dessa forma, pelos extremos: primeiro os recém-nascidos e agora os idosos.[8]

Para melhor esclarecimento do processo abolicionista, não existe algo melhor que uma exemplificação da época: em 1872, por exemplo, a escrava Francelina foi acusada de matar sua proprietária por envenenamento. Os vizinhos livres testemunharam a favor dela, dizendo que a moça era muito maltratada pela senhora morta. Francelina foi absolvida pela justiça.[9] É possível ver nessa história a defesa de Francelina por vizinhos que se apiedaram dela, mas mais que isso podemos ver que as antigas barbáries da escravidão não eram mais suportadas.

Flávia Langes de Castro fala sobre a atmosfera antes da abolição:

Os abolicionistas cresciam em número, o movimento se agigantava no país, mas o golpe de misericórdia veio mesmo dos próprios escravos (em uma mudança de postura) que, com auxílio dos abolicionistas, começaram a abandonar as fazendas causando o caos no trabalho e tornado a situação insustentável. O desespero tomou conta dos escravistas que em vão tentaram incluir o exército no combate as fugas e rebeliões. A saída era única: a abolição, muitos fazendeiros que haviam lutado contra a emancipação também viram isto.[10]

Todos esses acontecimentos levaram indelevelmente à Lei Áurea, aprovada em 13 de maio 1888, pela Princesa Isabel, que era a regente na ausência de D. Pedro II, aboliu a escravidão.

1.2 A Situação Geral do Escravo No Segundo Reinado

Novas teorias classificatórias do gênero humano entram em cena no século XIX. O poligenismo ganhara suporte científico (pelo menos assim definido na época), na seqüência das descobertas da paleontologia oitocentista, ao propor, contra o monogenismo bíblico, a idéia de que as raças contemporâneas proviam de troncos originalmente distintos do gênero humano.[11] É sobre esses conceitos que no século XIX passasse a analisar o escravo, e é desse conceito que deriva agora a justificação escravista e a situação do escravo dentro da sociedade.

Vamos dividir aqui em três partes essa analise da situação social do escravo, o convívio em grupo, a educação e a saúde. Para maior entendimento comecemos pela saúde, é comezinho que a vida do escravo não tinha grande importância, mas a vida do escravo era vista como um investimento, ou seja, sua importância limitava-se a quantidade de riqueza que o escravo produziria para pagar a sua existência e a onerosidade de sua compra. Mas as vezes tamanho era o descasos com a vida dos escravos que ficava evidente a crueldade, algumas vezes em prol de pesquisas cientificas se sacrificava a saúde e a vida dos negros, em uma espécie de “eugenia” do século XIX.

Um médico chamado Doutor Santos publicou em 1838, na Revista Médica Fluminense, os resultados de uma experiência inédita: fez uma cascavel picar um negro leproso para estudar os efeitos do veneno da cobra na evolução da doença. Mas o experimento fracassou porque o doente morreu em vinte e quatro horas.[12] O completo descaso neste caso se dá porque o negro, leproso, já não tinha muita utilidade, perdera seu valor.

Uma alimentação pobre, aliada a senzalas sujas já era o suficiente para uma manifestação de doenças, mas em escravos de ganho o problema era a pandemia mundial de cólera (1830-2).

A cólera acometia principalmente as pessoas mais modestas, mal instaladas: os escravos e os proletários portugueses que começavam a sair para a corte.[13] A principal medida profilática era o uso de calçados, mas isso nos escravos de ganho em especial era um impasse, pois a ausência de calçado do negro explicitava sua situação de cativo e o diferenciava do negro ou mulato liberto, nas duas opções o senhor de escravo correria o risco de perdê-lo.

A educação do escravo era rara, ou melhor, quase que inexistente; mas certo letramento por parte dos escravos era visto com receio pela sociedade da época.

Fabrício, o estudante de medicina carioca, personagem do romance de Joaquim Manuel de Macedo, dono de fala escorreita: “o maldito do crioulo era um clássico a falar português.”[14] Manter o negro ignorante era vital para famílias e senhores que queria guardar segredos, pois se levando em conta que o principal meio de comunicação era a fala e a escrita, no século XIX um cativo que sabe ler poderia levar vantagem sobre o seu senhor.

Quanto ao convívio em grupo, podemos nos ater aos próprios cativos, podemos dentro dessas relações citar vários casos de contendas entre os escravos, mas o que prevalecia era ajuda mútua devido as condições.

Sem dúvida, havia tensões na comunidade cativa, por exemplo, entre africanos e crioulos e entre campineiros e brasileiros de outras origens, trazidos pelo tráfico interno após 1850.[15]15 A existência de diferenças étnicas e culturais entre a própria população cativa é evidente, vê-se ai a Revolta dos Malês, que foi uma insurreição de teor abolicionista (em parte, pois os revoltosos só libertariam os de origem mulçumana) de escravos mulçumanos em Salvador. Os escravos mulçumanos caracterizavam os outros como inferiores, pois a divergência cultural nesse caso se fez extenuante, e achavam que aqueles que não partilhavam de suas etnias deviam continuar cativos.

Para maior entendimento da situação dos cativos no segundo reinado, é preciso entender sua participação na guerra do Paraguai. Segundo Leandro Narloch:

Os escravos formavam a linha de frente de várias tropas e eram os primeiros a morrer. No lado brasileiro, os negros eram 5% do Exército em 1868. Após essa data, o alistamento aumentou, mas dificilmente passou de 20% do total de soldados. O mais importante é que, depois da guerra, a escravidão não seria mais a mesma. Os escravos que sobreviveram à guerra engrossaram a fatia dos escravos livres, o que pesava a favor da abolição. Em 1889, quando a escravidão acabou, aproximadamente 95% dos negros já estavam livres.[16]

Após o fim da escravidão a situação do negro, agora livre, pode ser compreendida pela transcrição que define um pouco esse day after 1888; é uma poesia publicada no jornal O Monitor Campista em 28/03/1888:

"Fui ver pretos na cidade

que quisessem trabalhar.

Falei com esta humildade

- Negros, querem trabalhar?

Olharam-me de soslaio,

E um deles, feio, cambaio,

Respondeu-me arfando o peito:

- Negro, não há mais não.

Nós tudo hoje é cidadão.

O branco que vá pro eito."[17]

Mas essa cidadania era real? Mas quanto a essa “cidadania” reclamada pelo negro no poema podemos levar em conta a definição de Hebe M. Mattos de Castro:

O que significa, porém, essa cidadania? Quais os sentimentos da liberdade? Politicamente, ela era uma farsa, mesmo para os “cidadãos ativos”. Em termos civis, garantia as liberdades clássicas (de ir e vir, o direito à família, à propriedade, etc.), bem como a liberdade de opinião e a integridade física, quando proibia a tortura e o castigo infamante. Qual, entretanto, o significado real de tais garantias para os “cidadãos passivos”, em face do poder privado dos potentados rurais?[18]

Como vimos a cidadania era subordinada pré e pós abolição aos citados “potentados rurais” (grandes proprietários e agricultores); sendo assim mesmo com o Direito positivado da época, era impossível o fazer valer sem que esse passasse pelo escrutínio dos “barões e coronéis”, em seus “feudos”. Em suma o poder da lei e o policial continuavam nas mãos dos ricos fazendeiros (inclusive no interior) até após o período escravista e por toda antiga república.


2. Os Imigrantes

Vamos ver aqui a emigração européia e oriental, é evidente que no Brasil Império desembarcou pessoas provenientes dos lugares mais variados ao redor do mundo, mas a principal concentração é o que aqui importa.

A condição social do imigrante que chegava ao Brasil era de início precário, além da insuficiência financeira (pelo menos da maioria), podemos adicionar a falta de estrutura do governo brasileiro ao aporte desses imigrantes.

Alimentava-se uma “falsa realidade” no imaginário do candidato à imigração.[19] As promessas feitas aos imigrantes em seus países eram na maioria “falsas” ou “maquiava-se a verdade”. Mas fazia necessária medidas migratórias do governo.

A escravidão estava com os anos contados, expectativa muito favorável à nascente política imigratória nacional, levado a cabo desde o inicio pelas oligarquias paulistas.[20] As nacionalidades que desembarcavam eram as das mais diversas, mas há de se ressaltar que umas afluíam mais que outras.

Os africanos, portugueses e alemães ocupavam as três primeira posições no contingente estrangeiro.[21] Os alemães talvez mereça uma melhor atenção no estudo já que faziam a maior parte do contingente  imigratório europeu (fora os portugueses), vinham esses teutônicos ao Brasil em busca de oportunidade e principalmente terras.

Emigrar surgia como a única alternativa para um dia se realizar o sonho de ser proprietário de um pedaço de chão.[22] De fato, a mentalidade com que todos vieram começar a vida no Brasil era de que ninguém trabalharia para os outros, para os grandes proprietários, e todos ansiavam pela sua autonomia econômica.[23] Pensamento esse que logo entrou em conflito com os senhores proprietários de grandes terras produtoras, que só procuravam nos imigrantes meios para suprir a mão de obra escrava, que depois de 1850 se tornava escassa e cara, alem da Lei das Terras (1850) que dificultava o acesso mais ainda aos que chegavam ao país, nos tornando um país de latifundiários.

Logo começaram a surgir os conflitos, que pode ser bem relatada nas palavras de Robert W. Slenes:

A prepotência dos senhores e seu afã de transformar trabalhadores em dependentes sobrevivem à substituição de escravos por imigrantes. O contraponto entre proprietários e “colonos” no final do século XIX guarda certas semelhanças com aqueles entre senhores e escravos, ainda que expresse também as novas relações de trabalho.[24]

As dificuldades de lidar com o povo proveniente de países europeus por parte dos senhores que estavam acostumados a tratar seu subordinados da “maneira escrava” não parecia permear entre os colonos europeus.

Quando chegaram os imigrantes, pelo menos alguns fazendeiros tentaram alojá-los em antigas senzalas. Os colonos, no entanto, não gostaram do plano arquitetônico, semelhante ao de uma cadeia, e insistiram em mudanças.[25] É natural esperar essa inflexão dos imigrantes ante a política de servidão imposta pelos senhores, tanto pelo modo como eles eram educados até a manutenção de suas culturas.

Havia entre os imigrantes uma viva consciência da importância do livro e da leitura, mais ainda entre os luteranos, educados na prática constante da leitura da Bíblia.[26] Era de se esperar que onde um nível cultural, e até mesmo intelectual, permeie não haveria uma servidão cega sem antes uma argumentação.

O olhar do restante da comunidade brasileira sobre esses novos “cidadãos” vindos da Europa era de certa estranheza e curiosidade, principalmente os alemães.

Luís Augusto Fisher fala sobre o olhar brasileiro sobre o povo alemão de uma maneira bem humorada, retratando como era a imagem do alemão no império:

Mais ainda, os alemães eram vistos com reservas pela população em geral: além de trabalharem tanto quanto os negros escravos, eram luteranos num país que na prática não permitia nenhuma ascensão a quem não fosse católico. Isso sem falar no fato que as mulheres dessa etnia sabiam ler e tinham um desembaraço que as tornava, aos olhos luso-brasileiros, extraordinariamente livres, a ponto de terem relações sexuais antes de casar![27]

Não podemos deixar de notar que a introdução de etnias com um ideal de liberdade mais exacerbado do que os próprios luso-brasileiros, influenciaria os rumos do Brasil que entraria na república; já que muitos desses imigrantes enriqueceram.

Como o industrial Hermann Hering, que relata essa facilidade de estabilização econômica do imigrante em uma carta: “Todo imigrante, sem ser doente, nem mendigo, três ou quatro anos após a sua chegada assume status social médio da concepção alemã”.[28]

Mas a insistência do patrão em sublevar o imigrante permanece evidente em alguns documentos da época.

Robert W. Slenes cita um desses documentos em que foi preso um colono chamado Guilherme Schmidt:

Em 1872, esse Schmidt foi preso a pedido do administrador da fazenda onde estava empregado por haver rompido seu contrato de trabalho. Além de ser acusado de não cuidar bem dos cafezais, ele e outros colonos “vão ao Amparo e voltam quantas vezes querem sem pedir licença, quer ser um dia santo ou um dia da semana”.[29]

Warren Dean trata em um de seus livros sobre a relação entre empregado e senhor do século XIX, falando ser usual o fazendeiro distribuir aos colonos o mesmo trato dado aos escravos.[30] Mas como já foi visto isso não era tão fácil como antes do inicio das leis abolicionistas.


3.  Mulheres

Quando pensamos na imagem da mulher do século XIX, vemos um ser submisso ao seu marido ou entidade patriarcal e preocupada com os afazeres domésticos, mas não é essa a real situação da mulher no século XIX, Emília Viotti da Costa explica essa visão:

Durante muito tempo, esses dois retratos – o da mulher dependente e o do poder patriarcal com seu inegável viés classista – ocultaram dos historiadores não só a complexidade e variedade da experiência feminina, como também as mudanças que estavam tendo lugar na vida das mulheres no decorrer do século XIX.[31]

Talvez isso se deva a analise da legislação da época, que de forma extremamente patriarcalista, subordinava a mulher em relação ao homem.

Em um livro publicado em 1869, o político liberal Lafayette Rodrigues Pereira, ilustre jurista e membro do Parlamento, observava que o marido tinha o direito de exigir obediência de sua mulher. Estava obrigada a moldar seus sentimentos aos dele em tudo o que fosse “honesto e justo”.[32] Diante a lei, a mulher estava permanentemente num estado de menoridade.[33] Mas nem todas as mulheres enquadravam-se nesse quadro, segundo Emília:

Dificilmente se enquadrariam nesse retrato patriarcal as escravas, mulheres que trabalhavam como empregadas e amas-de-leite na casa dos ricos, as trabalhadoras da indústria, as prostitutas e vendeiras nas ruas das cidades, assim como as que, na zona rural, trabalhavam de sol a sol ao lado dos homens, ou aquelas que apareciam desde o período colonial nos censos como chefes de família.[34]

Mas pensar que as mulheres na época permaneceram estáticas sob o domínio dos seus patriarcas é inconcebível, já que muitas mulheres – inclusive da alta sociedade – estavam recebendo influências “libertinas” inglesas e francesas.

Um número cada vez maior de mulheres passou a criticar a sociedade que dera aos homens mais direitos do que obrigações e às mulheres mais obrigações do que direitos.[35]

Mas os estreitos limites da sociedade local frustravam suas aspirações à independência econômica e à cidadania que aquela convivência alimentava.[36]

É bom lembrar que os avanços dos direitos femininos continuavam restritos aos grandes centros urbanos que adaptavam seus costumes aos cosmopolitas europeus, fora dessas áreas (no interior) continuava as mulheres submetidas ao julgo patriarcal.

Quanto aos direito da educação as mulheres, permaneciam nas escolas até os doze anos de idade quando saíam para se casar. Nas escolas, as meninas apreendiam rudimentos de história, geografia, aritmética, composição literária, doutrina cristã e trabalhos de agulha.[37]

Em razão da precária educação, poucas mulheres estavam preparadas para prestar os exames de seleção quando as Faculdades de Direito, Medicina, Farmácia e Arquitetura abriram finalmente suas portas às mulheres em 1879.[38] Mas apesar disso, você pode encontrar ao findar do século algumas mulheres entre os advogados, dentistas e médicos. Foi destes quadros que saíram as principais feministas.[39]

A história dos direitos da mulher passa pela luta contra os abusos sexuais, que eram muito comuns naquela época; que pode ser muito bem visto em um processo, em que um senhor é acusado de estrupar uma de suas escravas, e por incrível que pareça em 1877 o tribunal declara o processo improcedente:

“se o legislador tivesse em mente punir [...] os estrupos praticados pelos senhores em seus escravos menores de dezessete anos, dando nesses casos o direito de queixa aos promotores públicos [...] seguir-se-ia que iguais direitos teriam os promotores [...] de se queixarem pelos escravos em referência aos senhores todas as vezes que se tratasse de alguma outra ação [...] criminosa [...] do que resultariam milhares de processos em perigo para a sociedade”.[40]

Mas, com o fim da escravidão essa onda de abusos sexuais, tão freqüentes nos primórdios da história brasileira, vai ficando para trás com os imigrantes e trabalhadores livres que vieram assumir as novas forças de trabalho. Segundo Robert W. Slenes:

Com as mulheres livres, pertencentes a famílias que migravam freqüentemente entre fazendas, não funcionavam mais nem a letra morta da alforria, a promessa de estabilidade, com prêmios, a ameaça de expulsão e separação da família, tampouco a insinuação de trabalho mais duro (que não cabia mais ao senhor impor, mas ao chefe da família da trabalhadora).[41]

Podemos nessa mesma análise olhar o tráfico de pessoas (mulheres), que vinham se prostituir no Brasil.

Com efeito, uma estatística da polícia observava, em 1859, que na Freguesia do Sacramento, no centro do Rio, havia perto de mil prostitutas, das quais novecentas eram estrangeiras.[42]

Em última análise a mulher imigrante, em especial a alemã, que tinha hábitos muito controversos à realidade feminina brasileira.

Segundo Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux, consegue-se ver o retrato claro da mulher alemã no segundo reinado:

As mulheres que permaneceram isoladas nas colônias – muitas das quais embarcaram na aventura da imigração para o Império por escolha do marido, estabelecia um contraste entre o papel da dona de casa alemã e o da brasileira, gerando o preconceito de que “brasileira é má dona de casa”.[43]

Dentro da família alemã apresentava-se como uma pequena empresa e, enquanto os filhos cresciam, o maior número de tarefas repousava sobre os ombros das mães.[44]


Considerações Finais

Dentre os fatos analisados nota-se uma diferenciação classista e uma luta constante entre elas dentro do processo imigratório e abolicionista; a retenção do direito fica a cargo do poder coercitivo dos senhores, que dispunham de recursos e gerenciavam a economia do país. A equidade legal esta longe de ser alcançada dentro do Brasil Império, mas no adentrar no Brasil oitocentista, uma graduação de conquista de direitos efetivasse; por parte dos escravos com tardias evoluções, mas inevitáveis.

Nota-se claramente nesse espaço que os direitos sociais eram restringidos ao gênero, cor, etnia e classe social; ficando os senhores (grandes fazendeiros) com o controle do poder da lei e fazê-la, ou até mesmo distorcê-la em seu favor. Criando no Brasil Império o cidadão e o sub-cidadãos (mulher, cativo e imigrante), mesmo o escravo, pois apresentavam na sociedade alguns direitos tácitos e as próprias leis abolicionistas garantiam certas prerrogativas; é claro que em regiões interioranas, onde potentados rurais prevaleciam, as seguranças jurídicas até mesmo do cidadão livre eram balizadas pelos fazendeiros latifundiários.

Esses cidadãos do século XIX foram o princípio para conquistas ulteriores, tendo cada um deles suas formas de gradualmente livrarem-se dessas contradições características do segundo reinado.


Bibliografia

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NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Leya, 2011.

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NARLOCH, Leandro. Guerra do Paraguai. Aventuras na História: Grandes Guerras, São Paulo : Abril, vol. 10. p. 26-43. março. 2006.

DEZEM, Rogério. A Propaganda e Contrapropaganda na Imigração. História Viva, São Paulo : Duetto, ano II, vol. 19. p. 82-86. maio. 2005

FISHER, Luís A. O Maníaco do Açougue. Aventuras na História, São Paulo : Abril, vol. 12, p. 72-75. agosto. 2004.

COSTA, Emília Viotti. Da Monarquia à República. 8. ed. São Paulo : Unesp, 2007.


Notas

[1] MATOSO, Katia M. Q. A opulência na província da Bahia In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 169.

[2] HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital: 1848 – 1875. 15. ed. São Paulo : Paz e Terra, 1917. p. 222

[3] CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de família e direitos no final da escravidão In:  ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 357.

[4] CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de família e direitos no final da escravidão In: História da vida privada no Brasil II: Império: a corte e a modernidade nacional, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 355.

[5] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 277-8.

[6] Ibidem, p. 276.

[7] Ibidem, p.276.

[8] SCHWARCZ, Lilia M. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. p. 428-9.

[9] NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Leya, 2011. p. 94.

[10] CASTRO, Flávia L. História do Direito: Geral e Brasil 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 405-6

[11] ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 79-80

[12] Jornal Comercial, 8/11/1851 In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 76-7

[13] ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.78.

[14] Joaquim Manuel de MACEDO, A Moreninha. cap. II, p. 22. Apud ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 32.

[15] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 282.

[16] NARLOCH, Leandro. Guerra do Paraguai. Aventuras na História: Grandes Guerras, São Paulo : Abril, vol. 10. março. 2006, p. 40.

[17] O Monitor Campista, 28/3/1888. apud ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 372.

[18] CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de família e direitos no final da escravidão In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 374.

[19] DEZEM, Rogério. A Propaganda e Contrapropaganda na Imigração. História Viva, São Paulo : Duetto, ano II, vol.19.  maio. 2005, p. 85.

[20] Ibidem, p.84.

[21] ALENCASTRO, L. F. e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 314.

[22] ALENCASTRO, L. F. e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 . p. 318-9.

[23] Emílio WILLEMS, A aculturação dos alemães no Brasil, pp. 55 e 61-4. apud ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 321.

[24] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 236.

[25] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 284

[26] ALENCASTRO, L. F. e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 325.

[27] FISHER, Luís A. O Maníaco do Açougue. Aventuras na História, São Paulo : Abril, vol. 12. agosto. 2004, p. 75.

[28] ALENCASTRO, L. F. e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 321.               

[29] DP, Amparo, ao CP, 13/12/1872, pasta: “Delegados, dezembro, 1872”, cx. 2542-107 (Polícia, 1872), APESP. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 283.

[30] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 284-5.

[31] COSTA, Emília Viotti.Da Monarquia à República. 8. ed. São Paulo : Unesp, 2007. p. 496.

[32] Ibidem, p. 494-5.

[33] Ibidem, p. 495.

[34] Ibidem, p. 497.

[35] Ibidem, p. 501.

[36] Ibidem, p. 501.

[37] Ibidem, p. 504

[38] Ibidem, p. 505.

[39] Ibidem, p. 507.

[40] Acórdão de 11/5/1883 do Tribunal da Relação de Pernambuco, cit. em Lenine NEQUETE, “As relações entre senhor e escravo no século XIX – o caso da escrava Honorata”, Revista Brasileira de Estudos Políticos, jul. 1981, n° 53, p. 231. apud  ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 262.

[41] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 288.

[42] MELLO MORAES, Corographia histórica, vol. II, p. 444. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 73-4

[43] ALENCASTRO, L. F. e RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.324

[44] Arthur RAMBO, Jornal de Santa Catarina, 28/11/96, Cad. A, Destaque “Colonização” (2), p. 3A. apud ALENCASTRO, L. F. (org.) História da Vida Privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 322.


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MICHELON, Mateus Rodrigues de Oliveira; OLIVEIRA, Carlos Daniel Rodrigues de. A cidadania das mulheres, imigrantes e os direitos dos escravos no século XIX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3411, 2 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22914. Acesso em: 29 mar. 2024.