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O Poder Judiciário como implementador de políticas públicas no combate ao trabalho infantil no lixo

O Poder Judiciário como implementador de políticas públicas no combate ao trabalho infantil no lixo

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É possível a judicialização dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes que trabalham em meio ao lixo, por meio da implementação de políticas públicas sociais pelo Poder Judiciário, a quem cabe socorrer, em última análise, toda lesão ou ameaça a direito, nos termos da Constituição Federal.

Sumário: Introdução. 1. O trabalho infantil. 1.1. Origem e evolução. 1.2. Fundamentos para a proibição. 1.3 Legislação. 1.3.1. No Brasil. 1.3.2. No mundo. 2. Trabalho infantil no lixo como uma das piores formas de trabalho (Convenção nº 182 da OIT). 3. Controle judicial de políticas públicas. 3.1. Aplicabilidade e exigibilidade dos direitos fundamentais. 3.2. Omissão inconstitucional do administrador público municipal. 3.3. Reserva do possível x mínimo existencial. 3.4. Possibilidade de judicialização de políticas públicas. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

Não é de agora que o trabalho infantil vem trazendo preocupação para a humanidade, segundo Martins[1] o trabalho do menor traz preocupações à humanidade desde a época das Corporações de Ofício, em que sua assistência era feita para preparação profissional e moral, para conferir-lhe aprendizagem. Isso explica o surgimento de alguns mitos que diariamente cercam o cotidiano de grande parte da sociedade, dos quais podemos destacar: a) o trabalho infantil é necessário porque a criança está ajudando sua família a sobreviver; b) a criança que trabalha fica mais esperta, aprende a lutar pela vida e tem condições de vencer profissionalmente quando adultas; e c) o trabalho enobrece a crianças e adolescentes.

Preocupados com esta realidade, inúmeros organismos internacionais passaram a lutar contra o trabalho precoce, a exemplo da Organização Internacional do Trabalho – OIT, a qual criou diversas Convenções e Recomendações com o fito de proteger as crianças dos malefícios evidenciados pelo trabalho desempenhado precocemente. O Brasil adotou o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, insculpido no art. 227 da Constituição da República de 1988, já antes inscrito em diversas normas internacionais relacionadas aos Direitos Humanos, princípio este repetido no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Também quanto ao meio ambiente de trabalho em geral e ao limite de idade para o trabalho, a Constituição albergou os principais compromissos internacionais, como se infere da leitura de seu art. 7º, incisos XXII e XXXIII.

De outra banda, diuturnamente, ao arrepio da lei, crianças e adolescentes que se encontram no patamar de miserabilidade e, por isso, socialmente vulneráveis, concorrem com urubus e adultos na catação de alimentos e objetos no “lixão” de diversas cidades, por muitas vezes exercendo esta atividade insalubre e penosa no período noturno. Tal tipo de trabalho afronta de morte a dignidade de uma pessoa humana em formação, afetando seu desenvolvimento físico e sociológico de uma forma tão grave que inviabiliza totalmente a possibilidade de seu ingresso no mercado de trabalho e seu futuro como cidadão.

Tomando por premissa o fato de que esta mão de obra infantil é encontrada nos “lixões” por ausência do Poder Público na efetivação dos direitos fundamentais destas crianças, analisamos nesta pesquisa a possibilidade de se cobrar judicialmente o implemento de políticas públicas voltadas à erradicação do trabalho infantil nos “lixões”, tendo como principais vetores à dignidade da pessoa humana, a proteção integral dos direitos dos pequeninos e a prioridade absoluta na efetivação destes direitos, para fazer frente aos argumentos lançados para justificar a inércia estatal em garantir o mínimo existencial das crianças carentes que vivem e sobrevivem do lixo.

Para tanto, partimos da análise da doutrina nacional encontrada em livros e artigos publicados na internet, da jurisprudência dos Tribunais e da legislação interna e internacional, em especial a Constituição da República, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estatuto da Criança e do Adolescente e alguns instrumentos normativos internacionais relativos ao tema.

O trabalho foi desenvolvido em três partes que se relacionam e se complementam rumo à conclusão. O primeiro capítulo inicia-se com a narrativa histórica acerca do trabalho infantil, passando à análise dos principais fundamentos encontrados para a proibição da mão de obra infantil e concluindo com a análise dos principais instrumentos jurídicos pertinentes à vedação do trabalho de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. Na segunda parte do trabalho focamos a atenção ao trabalho infantil no “lixão”, enquadra-o entre uma das piores formas de trabalho infantil prevista na Convenção nº 182 da OIT e finalizamos com análise da responsabilidade primária do ente público municipal no combate ao trabalho infantil no “lixão”. Na terceira etapa discorremos acerca dos principais pontos da controvérsia existente a respeito da possibilidade de se exercer o controle judicial de políticas públicas. Por fim, expusemos nossa conclusão com base no estudo desenvolvido.  


1. O TRABALHO INFANTIL

1.1 Origem e evolução

A história do trabalho infantil vem desde os primórdios da humanidade, quando o homem passou a se organizar para a produção de alimentos e vestimentas, pois nesta época os filhos acompanhavam os pais na busca por alimento enquanto que as filhas ajudavam as mães a produzir vestes e a preparar o alimento colhido pelos homens da tribo.

Na antiga Babilônia, há 2.000 anos antes de Cristo, o Código de Hamurabi já estabelecia que um menor que fosse tomado como filho por algum artesão, e este viesse a lhe ensinar seu ofício, o filho adotivo não poderia mais ser reclamado por seus pais de sangue. Porém, do contrário, se o artesão não lhe ensinasse o ofício, o filho adotivo poderia voltar livremente à casa de seu pai biológico[2].

Mais adiante, quando o homem começou a explorar a força de trabalho do outro, crianças também padeceram desse mal ao serem escravizadas junto com seus pais, ou até sem estes, por povos dominantes.[3] E assim continuou no período feudal, em que os servos - geralmente formados por um grupo familiar – produziam em terras de senhores feudais, a quem lhes eram dadas boa parte da produção.

Porém foi com advento das corporações de ofício que o trabalho infantil se tornou uma esperança profissionalizante, engendrando boa parte dos mitos acerca dos benefícios do trabalho da criança para sua formação. Estas corporações eram compostas por três personagens: os mestres, os companheiros e os aprendizes. No início só existiam os dois primeiros graus (mestres e aprendizes), só aparecendo o terceiro (companheiro) no século XIV, assumindo uma posição intermediária[4].  

Os mestres eram proprietários das oficinas, que já tinham passado pela prova da obra-mestra, os companheiros eram trabalhadores que percebiam salários dos mestres, enquanto que os aprendizes eram os menores que recebiam dos mestres o ensino metódico do ofício ou profissão. Sérgio Pinto Martins[5] narra que “os aprendizes trabalhavam a partir de 12 ou 14 anos, e alguns países já se observava prestação de serviço com idade inferior”. O consagrado jurista ensina ainda que os aprendizes ficavam sob a responsabilidade do mestre que, inclusive, poderia impor-lhes castigos corporais. Os pais dos aprendizes pagavam taxas, muitas vezes elevadas, para os mestres ensinar seus filhos. Além do que, a jornada de trabalho era muito longa, chegando até 18 horas no verão; porém, na maioria das vezes, terminava com o pôr-do-sol, por questão de qualidade de trabalho e não por proteção aos aprendizes e companheiros.

Com o século XVIII deu-se início a Revolução Industrial, e com ela o menor ficou completamente desprotegido, pois no afã de se aproveitar ao máximo a capacidade das máquinas, passou-se à utilização maciça da mão-de-obra de mulheres, adolescentes e crianças – as chamadas meias-forças[6].

Em pleno fervor da Revolução, crianças e adolescentes chegavam a cumprir uma jornada de trabalho entre 12 e 16 horas diárias, com pequenos intervalos para refeições. Era corriqueiro o trabalho noturno e algumas crianças, em especial as que fossem órfãs, eram obrigadas a dormir nas fábricas, em alojamentos coletivos, onde não raras vezes eram vítimas de abusos sexuais. Nesse cenário escabroso uma grande quantidade de crianças ia a óbito entre os sete e os dez anos[7].

Em meio a ausência de qualquer barreira ética, moral ou legal à exploração do trabalho da criança, surge na Inglaterra um movimento operário de protesto denominado Moral and Health Act, no ano de 1802, encabeçado por Robert Peel, e que despertou a atenção dos legisladores da época, culminando na proibição do trabalho noturno e de jornada de trabalho superior a 12 horas diárias aos menores de 16 anos. Por iniciativa de Robert Owen foi vedado o trabalho ao menor de 9 anos de idade[8]. Posteriormente, surgiu algumas normas acanhadas relativas à segurança e saúde no trabalho, como a previsão de janelas que permitissem a ventilação nas fábricas. Todavia, somente a partir de 1870, com a publicação do Ato da Educação Elementar, as crianças foram obrigadas a freqüentar a escola, então ao menos por meio período. No início do século XX, as crianças britânicas passaram a ter de freqüentar a escola em tempo integral, como os filhos das classes abastadas, e essa exigência legal culminou com a erradicação do trabalho infantil naquelas terras[9].

Enquanto isso na França foi proibido, em 1813, o trabalho dos menores nas minas. Em 1841 vedou-se o trabalho dos menores de 8 anos, fixando-se a jornada de trabalho dos menores de 12 anos em oito horas diárias. Já na Alemanha, a lei industrial de 1869 vedou o trabalho dos menores de 12 anos; e na Itália, em 1886, o trabalho do menor foi proibido antes dos 9 anos[10].

No entanto a proteção à criança e ao adolescente demorou um pouco mais a chegar ao Brasil, porquanto as primeiras Constituições – a do império, em 1824 e a da República, em 1891 – não se preocuparam em tratar do assunto. Natural para um país que acabara de sair da escravatura e em que predominava o modelo patriarcal, no qual toda forma de proteção que refletisse no meio familiar era visto como uma forma de interferência no direito da família decidir o que fosse melhor para os seus filhos.

Eis que na Constituição de 1934, mais precisamente em seu art. 121, §1º, “d”, fica expressamente vedado o trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 anos e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e mulheres. Nos idos de 1943 entra em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho, que ratifica a proibição aos menores de 14 anos, porém estabelece aos trabalhadores maiores de 14 e menores de 18 anos um salário equivalente a meio salário mínimo.

As Constituições de 1937 e a de 1946 mantiveram a idade mínima para o trabalho aos maiores de 14 anos, com um detalhe nesta última, qual seja, a de que era possibilitado ao juiz permitir exceções, observando-se as condições impostas por lei (art. 157, IX, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946).

A proibição do trabalho ao menor foi reduzida para doze anos pela Constituição de 1967 (art. 158, X), e segundo Jane Araújo dos Santos Vilani[11] em artigo intitulado “A questão do trabalho infantil: mitos e verdades” essa redução teve como fundamento a obrigação estatal do fornecimento do “curso primário” obrigatório, o qual coincidia com a idade de 11 anos. Permaneceu, todavia, a proibição do salário insalubre ou noturno aos menores de 18 anos.

A Constituição de 1969 – travestida de emenda à Constituição – também manteve os termos da anterior. E, por fim, a atual Constituição de 1988, que na redação original de seu art. 7º, XXXIII, vedava o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de 18 anos e de qualquer trabalho aos menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz. Contudo com o advento da Emenda Constitucional nº. 20, do ano de 1998, a redação passou a ser a seguinte: “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”.

Em face do contexto histórico delineado é possível compreendermos o atual estágio do trabalho infantil no Brasil, assim como os mecanismos de seu combate e os obstáculos encontrados na árdua tarefa de sua erradicação. Pelo desenvolvimento histórico, percebe-se a modificação da característica do trabalho infantil ao passar dos anos, pois em um primeiro momento temos um trabalho infantil em âmbito familiar em razão da subsistência do grupo ou da tribo; já no segundo momento constata-se a exploração da mão-de-obra infantil escrava; depois disso, observa-se o intuito profissionalizante das corporações de ofício no labor infantil; com a revolução industrial o trabalho infantil passou a ser intensamente explorado pelo capital econômico; com advento de diversas leis, o trabalho infantil formal foi perdendo espaço para o surgimento do trabalho infantil informal, desenvolvido quase que exclusivamente por crianças de baixa renda em atividades domésticas, em feiras e semáforos, bem como em tantas outras atividades degradantes como é o caso de crianças que catam lixo para garantir o sustento próprio e de sua família.

1.2 Fundamentos para sua proibição

O valor social do trabalho foi erigido a status de fundamento da República Federativa do Brasil por força do disposto no inciso IV, do art. 1º da Constituição de 1988. Tamanha a importância social do trabalho em nossa ordem jurídica que a Carta Magna se encarregou de garanti-lo como direito social em seu art. 6º, além de consagrá-lo como fundamento, junto com a livre iniciativa, da ordem econômica, a teor do art. 170.

Nada obstante a reconhecida importância do trabalho para o homem, é preciso impor limites a sua realização para que de fato alcance o seu desiderato. Assim, o Direito tratou de regular o exercício laboral no que tange a idade mínima para o trabalho, bem como em relação ao ambiente em que o menor trabalhador exerce suas atividades.

É cediço que a criança e o adolescente são seres humanos em fase de desenvolvimento e, assim sendo, merecem atenção especial por parte do Estado. Nossa Constituição, seguindo a tendência mundial insculpida na Convenção nº. 138 da OIT, estabeleceu em seu art. 7º, XXXIII, a proibição de qualquer trabalho aos menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos e vedou o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de 18 anos, graças a alteração implantada pela Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998[12].

Eduardo Gabriel Saad[13] tece críticas à alteração implementada pela Emenda nº. 20/98, nos seguintes dizeres:

Nosso legislador foi tocado de irrealismo ao aprovar a Emenda constitucional n 20/98, que estabelece a idade mínima de 16 anos para ingresso no mercado de trabalho e de 14 anos para o aprendizado profissional.

O desigual desenvolvimento das regiões em que se divide o país não serve de supedâneo a essa alteração do texto constitucional. Ao revés, recomenda ao legislador que obedeça ao critério flexível da Organização Internacional do Trabalho autorizador de diferentes idades mínimas para o trabalho conforme o grau de desenvolvimento econômico do país.

O texto magno evoluiu, outrossim, no aspecto antidiscriminatório ao trabalhador  adolescente, pois, além de reportar-se à vedação de diferença salarial do texto constitucional de 1946, também o fez em relação ao exercício de funções e de critério de admissão (art. 7, XXX). A Constituição da República de 1988 foi além ao ampliar a proteção especial normativa aos menores, englobando a garantia de direitos previdenciários e trabalhistas, bem como a garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola (art. 227, §3º, II e III)[14].

De outra banda, há momentos em que a Magna Carta admite o tratamento jurídico diferenciado ao menor submetido ao contrato de aprendizagem (art. 7º, XXXIII; art. 227, §3º, I), em nítido propósito de se atingir a isonomia em seu plano material, dada as peculiaridades evidenciadas na estrutura psicofisiológica do ser humano nessa faixa etária[15].

Nesse passo, diversos textos legais do ordenamento jurídico pátrio foram revogados, ou melhor, não recepcionados pela Constituição de 1988, por admitirem o trabalho do menor de 16 anos de idade, ou ainda do menor de 14 anos, como ocorria com o Decreto-Lei nº. 2.318/86 que previa o chamado “menor assistido”.

Todavia, persiste válidas as normas da CLT que fixam restrições e especificidades no tocante ao trabalho desempenhado pelo menor de 18 anos, posto que não contraria a norma ápice da República do Brasil, mas pelo contrário, a ela se coaduna, uma vez que a Constituição determina expressamente o tratamento diferenciado como forma de proteção ao menor.

O saudoso Orlando Gomes[16] (2007, p. 421) já asseverava que “a maturidade física e a constituição fisiológica ou anatômica do trabalhador são fatores relevantes, que não podem ser desdenhados do ponto de vista da disciplina jurídica”. Com efeito, o Estado deve-se preocupar não só com a tutela social do trabalhador, como também com a integridade biológica deste.

Eduardo Gabriel Saad[17], comentando o art. 402 da CLT, cita Garcia Oviedo em sua obra Tratado Elemental de derecho social, para expor os principais fundamentos para a proteção do trabalho infantil, nos seguintes dizeres:

Garcia Oviedo (in Tratado Elemental de derecho social, Madrid, 1934, p. 403) sustenta que as ordens dos fundamentos para a proteção particular ao trabalho do menor são: fisiológica – a fim de que as atividades insalubres ou penosas possam dificultar o desenvolvimento normal do menor; cultural – para que o trabalho não seja motivo do afastamento do menor, da escola; moral – para que o menor não permaneça em ambientes nocivos à formação de seu caráter; segurança – para que o menor fique bem protegido contra os infortúnios do trabalho.

Pois bem, enquanto ser humano em desenvolvimento, criança e adolescente têm direito a não trabalhar e sim a estudar, preparar-se biológica, psicológica e socialmente para o mercado de trabalho, formando-se um cidadão probo e que possa contribuir para uma sociedade livre, justa e solidária. O Brasil adotou o princípio da proteção integral, consubstanciado no art. 227 da Constituição da República.

O preceito constitucional foi secundado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº. 8.069/90 -, em seu art. 3º, ao declarar que são assegurados aos adolescentes, como pessoa em desenvolvimento, além de todos os direitos inerentes à pessoa humana, o direito à proteção integral, cujo fundamento se baseia na prioridade absoluta, atribuindo ao Estado o dever de assegurar esses direitos, por intermédio de lei ou por outros meios, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual, em condições de liberdade e dignidade.

O eminente jurista João de Lima Teixeira Filho[18], em obra já citada alhures, elucida os fatos básicos protegidos pela Carta Política de 1988, em que se pretende assegurar à criança e ao adolescente, nas seguintes palavras:

Como se infere, a Constituição assegura, na realidade, o direito de o menor não trabalhar, não assumir encargo de sustento próprio e de sua família em certa faixa etária, o que é reiterado no art. 227, §3º, I, do mesmo Diploma. E a Carta Política assim o faz movida pela compreensão de que nessa tenra idade é imperiosa a preservação de certos fatores básicos, que forjam o adulto de amanhã, tais como: (I) o convívio familiar e os valores fundamentais que aí se transfundem; (II) o inter-relacionamento com outras crianças, que molda o desenvolvimento psíquico, físico e social do menor; (III) a formatação da base educacional sobre a qual incidirão aprimoramentos posteriores; (IV) o convívio com a comunidade para regular as imoderações próprias da idade etc. Os afazeres do trabalho não podem comprometer esses fatores estruturantes, que lapidam a personalidade da pessoa. Tudo a seu tempo. Cumpre evitar inversões como a poetizada por Lêdo Ivo: “Manejo minha infância perdida como se fosse um chicote. Nunca estive tão longe de mim sem me desejar tanto!”.

Nesse passo, tem-se inadmissível a utilização de mão-de-obra infantil em nosso país, posto que ao menor é dado o direito de crescer de forma saudável, cabendo aos adultos o desempenho do trabalho como fonte de renda, haja vista que a atividade desempenhada pelo infante tem como finalidade a profissionalização e nunca a sua sobrevivência.

Via de regra, o menor que trabalha o faz por necessidade, pois ele é um dos braços da família e, por isso, a questão do trabalho infantil está intimamente ligada à condição econômica. A criança que trabalha, muitas vezes em circunstâncias que comprometem sua saúde e esperança de vida, ou deixa de lado o estudo ou passa a ter um péssimo rendimento escolar, o que reflete negativamente no seu futuro profissional, perpetrando um ciclo de pobreza, na medida em que filhos ingressam no trabalho antecipadamente por conta da baixa condição econômica de seus pais - fruto do baixo grau de escolaridade - e, conseqüentemente, por ingressarem de maneira precoce no trabalho, deixam de estudar e não podem, no futuro, ocupar postos de trabalhos em razão da falta de qualificação.

O eminente jurista e Ministro do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Goudinho Delgado (2008, p. 785), tratando acerca do tema assim o fez:

O debate enfrentado nesse tema diz respeito, na verdade, às distintas orientações que existem no que concerne ao enfrentamento do problema do jovem carente.

Trabalho versus escola parece ser dilema proposto, inevitavelmente, neste debate. Os padrões internacionais vigorantes indicam que o trabalho precoce consolida e reproduz a miséria, inviabilizando que a criança e o adolescente suplantem suas deficiências estruturais através do ensino. Por isso é que a Organização Internacional do Trabalho reconhece a proibição de qualquer trabalho anteriormente à idade de quinze anos (Convenção nº. 138 da OIT). 

Esse cenário lastimável fere de morte o princípio da dignidade da pessoa humana e vai na contra-mão de um país desenvolvido e que tem como objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e religiosas; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, CRFB/88).

Ademais, o trabalho precoce é deformador da infância. As longas jornadas de trabalho, as ferramentas, os utensílios e o próprio maquinário inadequado à idade resultam em vários problemas de saúde e elevação de índices de mortalidade. Se a precarização das relações de trabalho atinge de forma nefasta o trabalhador adulto, teoricamente apto à defesa de seus direitos, ela massacra a criança trabalhadora, vítima indefesa de toda sorte de exploração.

A infância é tempo de formação física e psicológica; tempo de brincar e de aprender. Sendo assim, a criança que trabalha está, na verdade, perdendo a chance de estudar, de poder se profissionalizar quando adulta e adentrar ao mercado de trabalho com melhor qualificação que seus antepassados. Aliás, quando a família se torna incapaz de prover seu próprio sustento, cabe ao Estado apoiá-la, e não à criança, como prevê o art. 203 de nossa Lex Fundamental.[19]

Andou bem o art. 67 do ECA e o art. 403 da CLT ao estabelecerem, em consonância ao texto constitucional, horários e locais prejudiciais ao menor trabalhador.

O convívio familiar é de extrema importância para o desenvolvimento salutar da criança. De modo que o trabalho retira do infante uma parte substanciosa de sua base ética e principiológica, sendo este mais um dos motivos para que a criança não venha a desenvolver atividades laborais antes dos 16 anos de idade.

Há de se frisar que a Constituição da República dispensa proteção especial à família, pois sabe que esta é a célula mater de toda a sociedade. Se a família vai mal, toda sociedade, por conseguinte, irá mal também. Portanto, o art. 226 do texto Magno robustece a ideologia consagrada pela Constituição cidadã, complementando a proteção especial que o Estado deve dispensar à criança e ao adolescente.

Ante todo o exposto, é de uma clareza solar a necessidade de amparo ao trabalho desempenhado por menores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos, e a proibição de qualquer trabalho aos menores de dezesseis anos, restando evidente, outrossim, a insubsistência dos argumentos daqueles que resistem a esta vedação, por entenderem que de alguma forma o trabalho de uma criança carente é melhor para ela, olvidando-se dos diversos malefícios biopsicossociais para o menor, o que reflete, inevitavelmente, para toda coletividade.

1.3 Legislação

1.3.1 No Brasil

É importante ressaltar que o Estado brasileiro sempre subscreveu os documentos internacionais que, de alguma forma, protegem as crianças e adolescentes, fossem eles Tratados Internacionais, Convenções ou Declarações, de sorte que o direito internacional é inserido dentro do ordenamento jurídico brasileiro, senão como valor de emenda constitucional (diante do novo teor do art. 5º, § 3º da Constituição Federal de 1988, com redação dada pela EC nº 45/04), como norma legal de status federal ou a novel classificação de supralegalidade[20] e, ainda, como costume jurídico.

Com efeito, é imperioso analisarmos as normas internacionais inseridas em nosso ordenamento jurídico, que dizem respeito à proteção da criança e do adolescente contra os malefícios do trabalho.

Desde 1924, com a Declaração de Genebra, reconheceu-se a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial. A partir de então, o direito à proteção integral está presente em todos os documentos internacionais que tratam de direitos humanos, de forma universal ou regionalizada, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Paris, 1948), que trata em seu artigo XXV, 2, do “direito a cuidados e assistência especiais” e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, 1969) que alinhou, em seu artigo 19, que “toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”

A Declaração Universal dos Direitos das Crianças, documento do qual o Brasil é signatário, também disponibiliza proteção contra o trabalho precoce e insalubre, consoante se infere de seu art. 32º.

A OIT cuidou de tratar do tema, passando a expedir uma série de convenções e recomendações pertinentes à proteção da criança contra o trabalho. Inúmeras convenções e recomendações relativas a atividades específicas desempenhadas pelos menores, tais quais as convenções de nº 5, nº 6, nº 10, nº 59, nº 60, nº 78 e a de nº 128; e a Recomendação nº 45. Foi, contudo, com a Convenção nº 138, de 1973, que a idade mínima para o trabalho foi objeto de preocupação na esfera internacional, de maneira que a idade mínima para a admissão no emprego não fosse inferior ao fim da escolaridade obrigatória, nem inferior a 15 anos, admitindo-se o patamar de 14 anos, como primeira etapa, para os países insuficientemente desenvolvidos (art. 2º, 3 e 4).[21]

A Convenção nº 138 da OIT foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 179, de 1999, e promulgada pelo Decreto nº 4.134, de 15/02/02, passando, desta forma, a pertencer à ordem jurídica interna, malgrado o Brasil não tenha adotado o modelo flexível disponível aos países em desenvolvimento da mencionada convenção.

O Brasil ratificou ainda a Convenção nº 182 da OIT e a Recomendação nº 190, as quais tratam das piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para sua eliminação. Tais instrumentos internacionais foram aprovados pelo Decreto Legislativo nº 178, de 1999, e promulgados pelo Decreto nº 3.597/00.

Nessa esteira, influenciado pelos documentos internacionais acima referidos, o Brasil moldou sua legislação visando atender esta nova demanda no combate ao trabalho infantil. A Constituição da República reflete bem esta absorção dos princípios emanados pelos tratados internacionais que tratam sobre direitos humanos.

A Constituição de um País democrático de direito é a norma ápice de seu ordenamento jurídico, pois irradia os princípios que norteiam um determinado Estado, traça a sua estrutura organizacional, bem como garante direitos a seu povo, de maneira que as demais normas jurídicas devem obediência a seus comandos, sob pena de ser fulminada do arcabouço jurídico daquela nação, em virtude do vício denominado de inconstitucionalidade. A par disso, é curial observar, ab initio, os dispositivos constitucionais que dão supedâneo a proibição do trabalho infantil, para só então passarmos às demais normas infraconstitucionais brasileiras.

Logo de início, em seu art. 1º, o texto Magno elenca os fundamentos da República Federativa do Brasil, dos quais destacamos os incisos III e IV, que se referem, respectivamente, à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho. É partindo destes fundamentos que o Brasil adotou um sistema jurídico voltado à proteção integral das crianças e dos adolescentes, incluindo-se a proteção contra o trabalho infantil.

Mais adiante a norma ápice assegura, como garantia fundamental e individual, a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e a garantia de inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, consoante se infere do caput do art. 5º, da CRFB.

Nesse diapasão, tem-se que tais direitos são inerentes à condição humana, portanto estão sedimentados no inciso III do art.1º, da CRFB. De sorte que não se pode admitir tratamento desigual a pessoas que se encontram nas mesmas condições (crianças e adolescentes), deixando de lado pequenos trabalhadores carentes, quando a lei que veda o trabalho infantil é imperativa para todos. Da mesma maneira não se pode negar o direito a uma vida digna a estas crianças que, por não possuírem os mínimos direitos, são obrigadas a lançarem-se no trabalho precocemente, compartilhando, e até mesmo suportando sós, a responsabilidade pelo sustento próprio e familiar. E o que dizer do direito à segurança? Expostas a toda sorte de acidentes e doenças oriundas da atividade laboral, máxime em se tratando de seres humanos em desenvolvimento, cuja estrutura corporal sequer encontra-se formada. Inadmissível, pois, o trabalho infantil também pelas normas mais basilares de nosso ordenamento jurídico.

Na mesma linha segue o art. 6º de nossa Constituição, uma vez que erige o trabalho e a proteção à infância, a status de direitos sociais.[22] Porém, é o art. 7º, XXXIII, da CRFB, que dispõe expressamente acerca da vedação ao trabalho infantil, estabelecendo, inclusive, os parâmetros de idade e de quais atividades são vedadas às crianças e aos adolescentes.

A norma supra consubstancia o que alguns estudiosos denominam de “direito ao não trabalho”, o qual também consiste em proteção à criança e ao adolescente, a fim de que se dediquem ao estudo e vivam a fase da infância e adolescência, tão importante para o desenvolvimento psíquico e emocional do ser humano e à sua formação.

Por derradeiro, consolidando a doutrina da proteção integral, o art. 227 da Magna Carta dispensa proteção especial à criança e ao adolescente, assegurando-os absoluta prioridade à efetivação dos direitos por ele elencados e pondo-os a salvos de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Para tanto, atribui a família, a sociedade e ao Estado este mister, formando-se, pois, o tripé garantidor da proteção a que fazem jus crianças e adolescentes.

É imperioso salientar que a proteção especial dispensada aos pequenos é quantitativa e qualitativamente melhor que a proteção dispensada aos adultos, o que significa dizer que crianças e adolescentes possuem mais e melhores direitos do que adultos, em razão de seu estado de ser humano em desenvolvimento.

Com alteração implementada pela Emenda à Constituição de nº. 20/98, deve-se ler o §3º do art. 227, da CRFB, à luz da nova redação do inciso XXXIII, do art.7º, do texto constitucional. Aliás, o próprio inciso I, do mencionado parágrafo, já aduz a necessidade de observância ao art. 7º, XXXIII. Dessa forma, onde se lê “idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho”, leia-se idade mínima de dezesseis anos. De resto o dispositivo abaixo transcrito segue em perfeita consonância aos demais dispositivos constitucionais.

Ventiladas as principais normas constitucionais que trazem lastro à proibição do trabalho infantil, cumpre agora analisarmos as demais normas reguladoras da proteção do infante contra o trabalho precoce.

Como a questão envolve intrinsecamente o Direito do Trabalho, natural começarmos pelas normas albergadas na Consolidação das Leis do Trabalho. Sendo assim, passemos aos dispositivos pertinentes ao assunto em tela.

A CLT trata da proteção do trabalhador menor[23] em seu Capítulo IV, iniciado pelo art. 402, o qual estabelece que “considera-se menor para efeitos desta Consolidação o trabalhador de quatorze até dezoito anos”. É de se registrar que o mencionado artigo encontra-se parcialmente revogado, eis que com a alteração constitucional ao texto do art. 7º, XXXIII, passou-se a ser proibido qualquer trabalho ao menor de dezesseis anos. Destarte, é forçoso concluir que o menor entre quatorze e dezesseis anos não pode ser trabalhador.

O parágrafo único do sobredito dispositivo (art.402, da CLT) excetua de sua proteção o menor que trabalhe em oficinas familiares, sob direção do pai, mãe ou tutor, observando-se, entretanto, as normas relativas ao trabalho noturno e em locais insalubres ou perigosos. Em nossa humilde percepção, o dispositivo em comento deve ser interpretado à luz do comando constitucional, ou seja, ainda que trabalhe em oficinas junto à família deve se observar a idade mínima para o trabalho e/ou aprendizado.

A Lei nº. 10.097/00 concedeu nova redação ao art. 403 consolidado, a fim de que o mesmo se adequasse a alteração constitucional do art. 7º, XXXIII. Nesse passo, restou reproduzida em parte a norma constitucional. Todavia, foi além do texto constitucional em seu parágrafo único, visto que elasteceu os locais de trabalho proibidos aos menores.

Sem embargo da norma constitucional que se limitou a proibir o trabalho noturno, perigoso e insalubre, o texto celetista inovou ao se preocupar com o desenvolvimento psíquico, moral e social do infante, assim como dispensou atenção especial ao processo de formação escolar do mesmo. Trata-se em verdade de mais um dispositivo de cunho humanitário em nosso ordenamento jurídico.

A norma contida no art. 404 da CLT veda o trabalho noturno ao menor de 18 anos, tal como a Constituição da República, contudo, diferente desta, tratou de delimitar o que se compreende por período noturno, estabelecendo como tal o horário de 22 horas às 5 horas.

 A CLT traz, ainda, como norma proibitiva da atividade laboral do infante o art. 405 e seus parágrafos, que vedou o trabalho insalubre e/ou perigoso ao menor – frise-se que se trata do jovem entre 16 e 18 anos – sendo tais locais previstos em quadro aprovado por autoridade de segurança e higiene no trabalho. Outrossim, foi além ao estabelecer o que se considera trabalho prejudicial à moralidade do menor trabalhador.

Eis os principais dispositivos celetistas relativos à proibição de trabalho infantil. Passemos às normas albergadas no ECA.

Logo de início o ECA traz dispositivos (arts. 3º, 4º e 5º) que dão suporte a proteção infantil contra o trabalho, consoante se infere dos artigos a seguir transcritos.

Pelos comandos legais acima, já se pode ter em mente a relevância social que o ECA possui em nosso ordenamento jurídico, porquanto vai ao encontro dos comandos constitucionais que priorizam o desenvolvimento hígido de nossas crianças, para que possamos obter uma nação justa, livre e solidária, como prescreve o inciso I, do art. 3º, da CRFB, que estabelece os objetivos fundamentais de nossa pátria.

Outrossim, é direito assegurado também pelo ECA a saúde da criança[24], razão porque o trabalho nessa faixa etária deve ser evitado, vez que expõe a criança a diversos riscos físicos, mentais e biológicos.

Há ainda o direito à liberdade, insculpido nos arts. 15 e 16 do Estatuto, que dá à criança o direito de brincar, praticar esportes, divertir-se, participar da vida familiar e comunitária. E por falar neste último direito, o ECA também o assegura expressamente em seu art. 19, de modo que o trabalho realizado pela criança constitui óbice à efetivação de tais direitos, devendo-se, pois, ser evitado a todo custo.

O art. 53 do ECA prevê o direito de educação, inclusive, norteando as finalidades educacionais dos jovens, dentre as quais se destacam o pleno desenvolvimento de sua pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho[25]. Ora, também, nesse aspecto não é possível a concepção do trabalho infantil, pois retira da criança este direito, na medida em que impossibilita que a mesma prepare-se adequadamente para o mercado de trabalho – cada vez mais exigente –, e constitui óbice as atividades escolares; quando não, é responsável pela diminuição do rendimento escolar da criança.

O Capítulo V do ECA estabelece o direito à profissionalização e a proteção ao trabalho do infante. Em virtude da famigerada alteração constitucional introduzida pela Emenda Constitucional nº. 20/98, o art. 60 do Estatuto passou a ser inconstitucional, não tendo mais aplicabilidade.

Wilson Donizeti Liberati[26] comentando o art. 60 do ECA indaga-se acerca da proteção ao trabalho infantil e conclui com maestria a respeito, nas seguintes palavras:

Por que a legislação é tão enfática ao disciplinar e proteger o trabalho da criança e do adolescente?

A indagação mereceu uma resposta completa do eminente Ministro Mozart Victor Russomano ao analisar assim o problema: “o menor de hoje será o trabalhador adulto de amanhã. Por sua idade, por seu incipiente desenvolvimento mental e orgânico, a lei trabalhista lança mão de todos os meios ao seu alcance a fim de evitar desgastes exagerados em seu corpo. É igualmente necessário que o trabalho executado pelo menor, por força das contigências da vida moderna, não prejudique a aquisição, através do estudo, dos conhecimentos mínimos indispensáveis à participação ativa do homem na vida do País”. E continua: “Só dando ao menor o que ele merece, defendendo a formação de seu espírito e a constituição de seu corpo, é que a sociedade poderá contar com homens úteis a si mesmos e à comunidade” (Russomano, M. V., p. 501).

Assim, ao analisar o art. 60 (c/c o art. 69 do ECA), nota-se o direito à profissionalização do adolescente e à sua proteção no trabalho, observados o respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua capacitação profissional adequada. Aí está a chave de toda a estrutura para salvaguardar a idade mínima para o início da atividade laboral.

Enfim, eis as principais normas internas relativas à proibição e à proteção do trabalho infantil.

1.3.2 No mundo

A mão de obra infantil se dá por variados fatores a depender da região ou do país, entretanto, em sua grande maioria, o trabalho infantil ocorre devido à pobreza. Nessa esteira, consoante assinalado pelo eminente Ives Gandra Martins Filho[27], pode-se medir o nível de desenvolvimento de uma nação a partir de sua população infantil trabalhadora ativa, haja vista que quanto maior o percentual de trabalhadores com menor idade de um país, mais evidente o seu subdesenvolvimento, na medida em que se está retirando a juventude do estudo, com o conseqüente óbice à formação da intelectualidade do país, gerando uma dependência externa em termos de avanço tecnológico. Assim, o recurso ao trabalho infantil pode ser uma solução a curto prazo para a concorrência comercial, mas impede o efetivo desenvolvimento do país.

Em que pese a OIT estabelecer em sua Convenção nº 138 a idade mínima de 15 anos para o trabalho, a fim de que o jovem garanta sua formação escolar básica, como condição de cidadania, há diversos países membros da OIT que não adotam este patamar mínimo.

Países como o Egito e o Sudão adotam a idade mínima de 12 anos. Já na Alemanha é proibido qualquer trabalho aos menores de 13 anos, porém a partir dessa idade só poderão trabalhar 2 horas por dia, exceto se o menor de 18 anos não esteja na escola, caso em que poderá trabalhar 35 horas por semana[28].

Tendo como patamar mínimo a idade de 14 anos, estão países como Bangladesh, Benin, Burkina, Camarões, Congo, Namíbia, Nepal, Nicarágua, Niger, Venezuela e Mongólia. Sendo que neste último, o limite de carga horária para trabalhadores de 14 a 16 anos é de 30 horas semanais e, para os trabalhadores de 16 a 18 anos, de 36 horas semanais (Código do Trabalho, de 1991)[29].

A Constituição do México, em seu art. 123, veda o trabalho ao menor de 14 anos, e o trabalho insalubre e/ou perigoso aos menores de 16 anos, estabelecendo para os trabalhadores entre 14 e 16 anos uma jornada de trabalho máxima de 6 horas diárias, além de necessitarem de autorização dos pais ou, na falta destes, do sindicato a que pertencem, da junta de conciliação e arbitragem, do inspetor do trabalho ou da autoridade pública.

O mexicano José Dávalos[30], em artigo intitulado Los menores trabajadores em el derecho laboral mexicano, comenta acerca da sobredita vedação mexicana, asseverando que:

Es necesario precisar que la prohibición impuesta para la no utilización del trabajo de los menores de catorce años no plantea una cuestión de incapacidad física, sino que es una medida de protección a la niñez. Se trata de asegurar la plenitud del desarrollo de las facultades físicas y mentales de los trabajadores, y la posibilidad de la conclusión normal de los estudios obligatorios. La Nación necesita salvaguardar el desarrollo de los menores.

Albânia, Cambodja, Letônia, Noruega, Polônia e Yemen adotam a idade mínima de 15 anos para o trabalho. No entanto no Yemen o menor de 15 anos só pode trabalhar 7 horas por dia, num total de 42 horas semanais (Código do Trabalho, de 1995)[31].

Na mesma esteira do Brasil, adotando o critério mínimo de 16 anos para o trabalho, estão países como El Salvador, Espanha, Gabão, Portugal e Russia[32].

Em vários dos países supramencionados, a permissão de trabalho ao menor de 15 anos é dada com ressalvas quanto à carga horária e às circunstâncias em que se dará a prestação de serviços. Destarte, verifica-se a tendência de se elevar a idade mínima para o trabalho, como fez o Brasil com a Emenda Constitucional nº 20/98, preservando a formação básica do jovem e o período de aproveitamento de uma fase da vida caracterizada pela diversão e aprendizado ameno, como no caso das crianças[33].


2. TRABALHO INFANTIL NO LIXO COMO UMA DAS PIORES FORMAS DE TRABALHO (CONVENÇÃO nº 182 DA OIT)

Malgrado os diversos diplomas jurídicos legais acerca dos direitos das crianças e adolescentes analisados alhures, dentre eles o da vedação ao trabalho, constata-se nos grandes centros urbanos um número assustador de menores trabalhadores, mormente nos serviços informais cuja precariedade de condições mínimas para o trabalho salta aos olhos e estarrece a sociedade que presencia tudo e age com parcimônia à violação dos direitos destes pequeninos.

Como já foi dito alhures, a OIT preocupada com a questão do trabalho infantil, em especial com algumas formas de trabalho que se mostram mais prejudiciais às crianças, editou a Convenção nº 182, que trata das piores formas de trabalho infantil, a qual foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 178, de 14 de dezembro de 1999 e regulamentada pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000.

Com o fito de priorizar o combate às formas de trabalho por ela listadas, uma vez que aviltam a dignidade da pessoa humana e destroem o que há de mais precioso entre as crianças - a esperança -, a OIT listou os seguintes trabalhos como sendo os piores desenvolvidos por crianças e que por isso merecem especial atenção por parte do poder público dos países signatários da referida Convenção, são eles: o trabalho infantil doméstico; o trabalho em milícias armadas; a exploração sexual comercial; o trabalho de cunho forçado; o trabalho em atividades ilícitas, em especial o voltado ao tráfico de drogas; e os trabalhos que por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar à saúde, a segurança e a moral da criança (art. 3º, da Convenção nº 182, da OIT).

Pela análise dos trabalhos elencados na Convenção nº 182 da OIT, constata-se que se trata de mero rol exemplificativo, mormente em função da cláusula genérica prevista na letra d, de seu art. 3º, combinado com o seu art. 4º, o qual dispõe ser da competência da legislação nacional dos países signatários, definirem o seu alcance.

Esta incumbência já foi cumprida por nosso país por meio do Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000, o qual elencou quais seriam as atividades prejudiciais à saúde, segurança e à moral da criança, nos termos da Convenção nº 182 da OIT, consoante se infere do quadro constante no referido Decreto.

Dentre diversas atividades tidas como de alto risco às crianças, o item 70 da denominada Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), taxou expressamente o trabalho infantil na coleta, seleção e beneficiamento de lixo como sendo uma atividade altamente prejudicial aos menores, dadas as circunstâncias nocivas à saúde desenvolvidas naquele ambiente laboral.

 Destarte, não restam dúvidas de que o trabalho de cata do lixo realizado por crianças nos depósitos de lixo de Maceió é considerado uma das piores formas de trabalho infantil do mundo por lei, a demandar prioridade no seu combate, porquanto evidenciados os malefícios biopsicossociais a estas crianças. Pois como se infere do quadro anexo ao Decreto nº 3.597/00, o trabalho de coleta do lixo expõe a criança a esforços físicos intensos; exposição aos riscos físicos, químicos e biológicos; exposição a poeiras tóxicas, calor; movimentos repetitivos; posições antiergonômicas. Tais riscos propiciam a estes menores trabalhadores a aquisição de afecções músculo-esqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites, tenossinovites); ferimentos; lacerações; intermações; resfriados; DORT/LER; deformidades da coluna vertebral; infecções respiratórias; piodermites; desidratação; dermatoses ocupacionais; dermatites de contato; alcoolismo e disfunções olfativas.

Não se olvide do malefício social que decorre diretamente do trabalho de catação de lixo, que exclui completamente as crianças da sociedade e do exercício do mínimo de cidadania, pois além de afastar as crianças da escola e da profissionalização, degrada sua aparência física devido ao desgaste intenso dessa atividade, afastando ainda mais estas crianças de um futuro digno, haja vista que além de desqualificados para o desempenho de qualquer profissão formal, estes infantes são aparentemente indesejáveis ao mercado de trabalho, o que perpetua o odioso ciclo de pobreza em nosso país.


3. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

3.1 Aplicabilidade e exigibilidade dos direitos fundamentais das crianças

Como já foi exposto anteriormente, há uma teia de direitos conferidos às crianças e aos adolescentes, bem como de mecanismos com vistas a garantir a eficaz aplicabilidade destes direitos. Contudo, observamos, também, que a realidade constatada destoa do imenso manancial de direitos e garantias assegurados pela ordem jurídica nacional, de sorte que às crianças trabalhadoras são olvidados o exercício dos mais basilares direitos, mormente em função do descaso do Poder Público a quem compete, primariamente, possibilitar o acesso destas pessoas aos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição da República.

Nessa esteira, cumpre analisarmos a partir deste momento até que ponto os direitos fundamentais das crianças que vivem e trabalham em meio ao lixo de nossas cidades são aplicáveis e exigíveis. Pois, é cediço que constitui uma característica comum ao direito objetivo a sua aplicabilidade e ao direito subjetivo a possibilidade de ser exigido por seu titular.

Pois bem, nas palavras do emérito professor constitucionalista José Afonso da Silva[34]: “Aplicabilidade significa qualidade do que é aplicável. No sentido jurídico, diz-se da norma que tem possibilidade de ser aplicada, isto é, da norma que tem capacidade de produzir efeitos jurídicos.”. Não se confunde com efetividade, que por sua vez estar ligada a idéia de eficácia social, ou seja, a aproximação do campo do dever-ser normativo ao campo do ser da realidade social[35].    

Toda norma jurídica, por si só, já tem a característica de ser aplicável, de modo que o direito surge para ser utilizado pelas pessoas em suas relações sociais. Disso não há controvérsia em nenhum momento entre os pensadores, desde Ferdinand Lassalle, passando por Carl Schmitt e chegando ao positivista Hans Kelsen, os principais responsáveis pelo entendimento do que seria uma constituição.

Lassalle entendeu ser uma constituição a soma dos fatores reais de poder, dando-a um sentido sociológico, consoante depreende-se do trecho a seguir transcrito:

Os fatores reais de poder convertem-se em fatores jurídicos quando, observados certos procedimentos, são transportados para “uma folha de papel”, recebem expressão escrita; então, desde esse momento, incorporados a um papel, já não são simples fatores reais de poder, mas transmudam-se em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei, e será castigado. Desse modo, segundo Lassalle, relacionam-se as duas constituições de um país: a real e efetiva, formada pela soma dos fatores reais e efetivos que regem na sociedade, e a escrita, a que, para distinguir daquela, ele denomina folha de papel. Esta – a constituição escrita – só é boa e durável quando corresponde à constituição real, àquela que tem suas raízes nos fatores reais de poder que regem no país. Onde a constituição escrita não corresponde à real, estala inevitavelmente um conflito que não há maneira de eludir e, cedo ou tarde, a constituição escrita, a “folha de papel”, tem necessariamente que sucumbir ante o empuxo da constituição real, das verdadeiras forças vigentes no país[36].

Nessa perspectiva, ou a constituição se modifica para ajustar-se aos fatores reais de poder, ou então, haveria de transformá-los para que não houvesse um constante descumprimento e desrespeito à norma constitucional[37]. Porém, o que é importante perceber nesse ponto, é que determinado fator uma vez incorporado ao mundo jurídico, transformasse em direito e, portanto, é passível de aplicação e, mais ainda, de exigibilidade, sob pena de se perder a própria essência e efetividade do texto legal.

E tanto isso é verdadeiro que Hans Kelsen viu-se na contingência de reconhecer que uma ordem jurídica como um todo, assim como uma norma jurídica singular, perde a validade quando deixa de ser eficaz[38].

Já na visão de Carl Schmitt, a constituição nada mais é do que uma decisão política de um determinado povo na democracia, ou de um monarca na monarquia, a qual estabelece quais decisões fundamentais irão nortear as demais leis[39], onde dentre estas decisões encontraremos a declaração dos direitos democráticos e fundamentais do homem. Destarte, de igual modo a aplicabilidade de tais direitos decorre diretamente do poder soberano do povo, sendo incoerente este mesmo povo titular do poder não fazer valer a norma que ele mesmo decidiu seguir como fundamento para este poder.

Por fim, até Kelsen, com seu extremo apego ao formalismo jurídico ligado ao Estado Liberal e ao racionalismo e que reduz a constituição a um sistema de normas, admitiu que a constituição é a garantia de certos princípios mais ou menos imutáveis, capazes de moldar, disciplinar, modificar a realidade social[40]. Em que pese as duras críticas ao modelo positivista jurídico, máxime porque o direito recebe influências da realidade social, política e ideológica, o fato é que Kelsen trouxe uma certa segurança ao ordenamento jurídico ainda que revelando a natureza do dever-ser da norma jurídica.

Estas três teorias não devem ser vistas de maneira isoladas e sim de forma conjunta, haja vista que se completam no entendimento do jurista acerca do que seja constituição e qual a sua força normativa. Em razão disso, José Afonso da Silva[41] assim conclui:

A constituição seria, pois, algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta motivada pelas realizações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc); como fim, a realização dos valores que apontam para existir da comunidade; e finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder.

Com efeito, os direitos fundamentais constitucionais, sociologicamente falando, só possuem aplicabilidade e eficácia se forem efetivamente observados e cumpridos[42]. Entretanto atualmente tais direitos têm sido constantemente sonegados às crianças catadoras de lixo, sendo, pois, inaplicáveis e ineficazes socialmente. Isso decorre em grande parte porque as normas constitucionais que prescrevem modelos e metas de atuação às pessoas que exercem o poder estatal são desprovidas de sanção, valendo-se tão somente de regras e princípios existentes no ordenamento jurídico para se impor.

As normas constitucionais que prevêem estes direitos foram chamadas por José Afonso da Silva de normas constitucionais de eficácia limitada e conteúdo programático e traduzem o conteúdo social da Constituição. Esta terminologia (conteúdo programático) passa a idéia de inexigibilidade e de programa para o futuro, sempre vinculada aos direitos econômicos, sociais e culturais, cuja natureza seria eminentemente diversa da dos direitos civis e políticos, por definirem obrigações futuras e sem formulação precisa[43].

Todavia, o autor assevera que o fato de depender da atuação do Estado não implica, de forma alguma, a inexistência de carga eficacial e tampouco o impedimento de constituírem direito subjetivo[44]. Isso porque apesar dessas normas conterem programas que devem ser cumpridos pelo Poder Público em geral e pelo Poder Legislativo, especificamente, o dever já está caracterizado a partir da vigência da norma constitucional.

Logo, a omissão no adimplemento da obrigação estatal pode ser questionada pelos credores titulares dos direitos subjetivos perante o Poder Judiciário, que deve proferir decisão apta à garantia de efetividade do direito.

Nesse esteira, Eros Grau[45] aduz que o artigo 5°, § 1° da Constituição brasileira impõe que tais normas devem ser imediatamente cumpridas, configurando-se, pois, sua eficácia jurídica perante o sistema.

Nesse passo, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, como se viu acima, reconhece a todas as crianças e adolescentes, com prioridade de atendimento, um rol de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n° 8.069/90, em seu art. 4°, parágrafo único, “c” e “d”, ratificando os Tratados Internacionais sobre o tema e esclarecendo o dispositivo constitucional, aduz que tal garantia abrange preferência na formulação e execução de políticas públicas e destinação privilegiada de recursos públicos.

Noutro giro, todas as normas constitucionais brasileiras que reconhecem direitos humanos, sejam as chamadas de “eficácia plena” ou “auto-executáveis”, ou “bastantes em si”, sejam as consideradas de “eficácia limitada”, carregam o mesmo grau político e jurídico de aplicabilidade e eficácia de normas em virtude do teor do artigo 5º, § 1º da CF/88[46]. Logo, todas devem ser reconhecidas como aptas a produzir direito subjetivo. Esta é a tendência natural da evolução dos direitos humanos.

Não foi diferente a posição do Egrégio STF em decisão extravasada pelo Ministro Celso de Melo quando Presidente em exercício daquela Corte, ao indeferir o pedido cautelar postulado pelo Instituto Nacional do Seguro Social, consolidando o entendimento firmado pela doutrina no sentido de dar total efetividade aos direitos sociais, constituindo dever do Poder Público implementá-los[47].

A decisão do decano de nosso Pretório Excelso revela bem o novo momento em que se encontra a ordem jurídica constitucional brasileira. Nossa mais alta Corte jurisdicional vem conferindo à Constituição da República a idéia de força normativa, assim como preconizado por Konrad Hesse, para quem a norma constitucional tem status de norma jurídica, sendo dotada de imperatividade, com as consequências de seu descumprimento, permitindo o seu cumprimento forçado[48].

Destarte, à luz da argumentação até então exposta, é forçoso concluir que os direitos fundamentais dos meninos e meninas que retiram seu sustento do lixo, assim como qualquer direito auto-aplicável, possui aplicação vinculada e exigibilidade imediata, demandando o esforço do Poder Público na concretização dos mesmos, sob pena de não o fazendo incorrer em grave lesão à ordem jurídica e, portanto, passível de ser acionado pelo Poder Judiciário, na esteira de garantidor da eficácia constitucional.

3.2 Omissão inconstitucional do administrador público

 Delineadas as premissas acerca da exigibilidade dos direitos fundamentais das crianças catadoras de lixo, em especial os direitos sociais, surge a questão acerca da omissão do gestor público na concretização destes direitos, ou simplesmente na implementação insuficiente de políticas públicas voltadas a efetividade das garantias constitucionais dos pequeninos que trabalham em meio ao lixo. Será que a inação do administrador municipal para com as questões relativas ao combate do trabalho infantil destas crianças socialmente vulneráveis constitui algum tipo de ilegalidade, ou quiçá, inconstitucionalidade?

É o que veremos adiante.

Em linhas acima concluímos que a Constituição – principal instrumento jurídico do qual derivam os direitos fundamentais – estabelece ora ao legislador, ora ao Poder Público e ora aos agentes da ordem econômica e social em geral, direções a serem seguidas na meta de se alcançar a almejada Justiça Social. Também se concluiu pela aplicabilidade imediata de tais normas, com fulcro no §1º, do art. 5º da CRFB.

Nessa quadra, José Afonso da Silva[49], citando as lições de Canotilho a respeito do tema, aponta a inversão da prestação jurídica fundada em direito subjetivo nesses casos:

Por isso o autor pôde dizer com tranqüilidade que “a força dirigente e determinante dos direitos a prestações (econômicos, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objectivo clássico da pretensão jurídica fundada num direito subjetivo: de uma pretensão de omissão dos Poderes Públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de interferir nos direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibição de omissão (direito a exigir que o Estado intervenha activamente no sentido de assegurar prestações aos cidadãos)”.

O art. 227 da CRFB é enfático em determinar ao Poder Público com absoluta prioridade a efetivação de uma gama de direitos humanos que possam concretizar o princípio da proteção integral. De igual modo os artigos 86 e 87 do ECA já assinalam uma linha a ser seguida pelo gestor público em suas ações governamentais.

Destarte, não há que se falar em discricionariedade do administrador público municipal no implemento destas políticas públicas, uma vez que o arcabouço jurídico já impõe ao gestor público o dever de agir de determinada forma com vistas a assegurar determinado fim. Pertinentes são as palavras do professor Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do ato vinculado[50], in verbis:

A lei, todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta para o administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma  a ser implementada prefigura antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista. Nestes lanços diz-se que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser expedido é vinculado.

Com efeito, em se tratando de políticas públicas voltadas à garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, o administrador tem apenas a opção técnica a escolher e, a depender das restrições orçamentárias, a possibilidade de implementá-las progressivamente, o que não significa de forma alguma que o mesmo possa ao seu bel prazer escolher quando deverá implementar as políticas sociais e o fazendo desvirtue os caminhos traçados pela lei. Acaso isso ocorra, estaremos diante de uma inconstitucionalidade ou de uma ilegalidade, a depender do grau da norma violada, posto que o fato de dependerem de providências institucionais para sua realização não quer dizer que não tenham eficácia. Ao contrário, sua imperatividade direta é reconhecida, como imposição constitucional aos órgãos públicos.

Aliás, com propriedade Sérgio Cruz Arenhart[51] assim nos ensina:

De fato, o espaço de discricionariedade dado pela lei ao administrador apenas pode ser visto como espaço para, diante do caso concreto, eleger ele a solução mais adequada. Se a discricionariedade tem o papel de amoldar a exigência da lei à realidade do caso concreto, é evidente que sua existência somente se justifica na medida em que o administrador possa, diante das circunstâncias concretas, adotar a solução mais perfeita e correta para a realização da intenção da lei. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, "assim, a discricionariedade existe, por definição, única e tão-somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicanda. Não se trata, portanto, de uma liberdade para a Administração decidir a seu talante, mas para decidir-se de modo que torne possível o alcance perfeito do desiderato normativo".  

Ademais, o sentido de fundamentabilidade dos direitos assegurados às crianças – notadamente às crianças em situação de risco - representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas, impondo-se ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional[52].

Curial então destacar a importância da necessidade do cumprimento das normas constitucionais e das leis em geral, dada a cultura brasileira de inefetividade normativa, tanto por impossibilidade de execução ou por falta de empenho das autoridades responsáveis por seu adimplemento, quanto pela ausência de intenção ab initio dos governantes em realizar o conteúdo normativo[53].

A propósito, vem ao caso transcrever um trecho extraído de artigo publicado por Nicole Mazzoleni Facchini[54]:

Nesse discorrer, pergunta-se Bobbio se um direito ainda pode ser chamado “direito” quando o seu reconhecimento e sua efetiva proteção são adiados sine die, na medida em que é confiado “à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política.”

É fato público e notório que os governos tendem a procrastinar a implementação de políticas públicas voltadas à efetividade dos direitos sociais – aqui compreendido no aspecto amplo, a englobar os culturais e os econômicos -, enquanto formulam e implementam políticas com alto índice de popularidade imediata em setores que pouco contribuem para se alcançar o desiderato constitucional. Em agindo desta maneira, omitem-se no dever que lhes foi constitucionalmente imposto e, por conseguinte, cometem uma inconstitucionalidade por omissão, passível de ser declarada e corrigida pelo Poder Judiciário.

 A omissão injustificada da Administração em efetivar as políticas públicas essenciais para a promoção de dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, pois esse não é mero departamento do Poder Executivo, mas sim poder que detém parcela de soberania nacional[55].

Nessa esteira, verificada a imposição constitucional dirigida ao Poder Público na prestação positiva de determinadas ações com o fito de se alcançar a Justiça Social, mormente em se tratando de crianças carentes que se encontram em situação de risco social, razão pela qual o nosso ordenamento jurídico como um todo determina ao ente público o dever de agir com absoluta prioridade e urgência nas medidas tendentes a cessar o risco iminente e, a posteriori, a implementar as políticas voltadas à efetivação dos direitos destas crianças, é imperioso concluir que a omissão do gestor público acarreta em violação, ainda que por ato omissivo, aos ditames e preceitos fundamentais oriundos da Lex Fundamentalis.  

3.3 Reserva do possível x Mínimo existencial

Como vimos acima, o Poder Judiciário assume um papel primordial para fazer valer os direitos fundamentais pré-fixados na Constituição da República, em casos de inoperância do, a princípio, Poder competente. Não obstante esta conclusão, o fato é que existem certas limitações a esta ação jurisdicional, notadamente em se tratando do controle judicial de políticas públicas voltadas ao cumprimento forçado de ações positivas do Estado, dadas as limitações financeiras do Poder Público, o que se denominou de “reserva do possível” ou “reserva de cofres públicos”.

Ensina-nos Sérgio Cruz Arenhart[56] que:

A idéia da reserva do possível surge com Peter Häberle, na década de 70, tendo sido acolhida pela Corte Constitucional alemã. É sempre lembrada, no particular, a decisão do caso numerus clausus, a respeito do direito de acesso às vagas em universidades alemãs ("numerus-clausus Entscheidung", BverfGE n. 33, 303 (333)), em que aquele tribunal considerou que as prestações que o cidadão pode exigir do Estado estão condicionadas aos limites do razoável. Desde então, entende a Corte Constitucional Federal alemã que os direitos sociais de prestação positiva somente são exigíveis do Estado segundo os limites da possibilidade, ou seja, "daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade", correspondente, ao menos, ao "direito mínimo de existência" – evidente concreção do princípio da dignidade da pessoa humana.

Deveras, há de se admitir que a cláusula da reserva do possível constitui um limite – mas não um óbice – à atuação judicial  na seara das Políticas Públicas. Isso porque, estar-se-ia diante de uma decisão fadada à frustração, posto que de nada serviria o magistrado impor ao Estado determinada prestação fática, sem que este pudesse cumprir a decisão judicial por lhe carecer recursos financeiros para tanto[57].

É que a teoria da reserva do possível alicerça-se na constatação de que os direitos fundamentais, mormente aqueles de cunho social, exigem – para sua implementação – um conjunto de medidas positivas por parte do Poder Público. Tais medidas implicam custos orçamentários, dependendo, em última análise, de uma conjuntura econômica favorável para serem levados a efeito. Disso decorre que os órgãos jurisdicionais, quando submetidos à apreciação de demandas em que se postula do Estado direitos prestacionais, não podem ignorar a problemática da disponibilidade fática de recursos[58].

 No entanto, em que pese as considerações importantes acima, é de se ter em vista que a limitação imposta pela cláusula da reserva do possível não se reveste de caráter absoluto, de sorte que o próprio Estado se comprometeu a concretizar os direitos e garantias fundamentais e, portanto, considerando que tais políticas muitas vezes revelam a efetivação de garantias previstas na Constituição da República, como direitos fundamentais, a falta de disponibilidade de caixa – ou, o que é mais usual, o uso dos recursos públicos para outro fim – não pode tornar "letra morta" a determinação constitucional, nem permite anular a vinculatividade dos preceitos consagradores de direitos fundamentais para o Poder Público (seja ele o Executivo, seja o Legislativo, seja mesmo o Judiciário)[59].

Ademais, ainda que, em princípio, constitua encargo do Poder Público a opção política sobre a aplicação dos recursos, é bem verdade que se deva questionar até que ponto esses aspectos têm o condão de efetivamente impedir a plena eficácia e realização destes direitos[60].

Nessa esteira, a cláusula da reserva do possível deve ser vista com os devidos cuidados, até porque tal teoria surgiu na Alemanha, país com um contexto jurídico e social totalmente distinto da realidade brasileira. Enquanto naquele país o padrão de bem-estar social já atingiu níveis bastante consideráveis, o Brasil ainda peca pelas extraordinárias desigualdades sociais. Aqui, a luta pela assistência nas áreas da educação, saúde e trabalho ainda persiste, de modo que as teorias desenvolvidas alhures sobre a interpretação dos direitos sociais não podem ser importadas pelos brasileiros sem algumas ressalvas.

Outrossim, impende asseverar que “dentro de uma realidade de Estado Social de Direito, estabelece-se um comportamento positivo para a implementação dos direitos sociais, irradiando essa orientação para a condução das políticas públicas”[61], impondo-se, ainda, a observância ao princípio da vedação ao retrocesso, segundo o qual, uma vez alcançados ou conquistados os direitos sociais, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo.

Destarte, ainda que constitua um real limite à atuação judicial sobre o Estado, a reserva do possível não pode se opor ao mínimo existencial dos indivíduos, razão pela qual é perfeitamente sindicável judicialmente os atos concernentes às políticas públicas voltadas à concretização dos direitos fundamentais, sempre que o Estado for omisso, total ou parcialmente, em implementá-las.

3.4 Possibilidade de judicialização de políticas públicas

Foi ventilado alhures muitas questões correlacionadas ao objeto central deste trabalho, resta, entretanto, analisar os empecilhos atravessados a esta possibilidade e contrapô-los aos argumentos favoráveis encontrados na doutrina e na jurisprudência.

Não foi sem razão que desenvolvemos os argumentos acerca da exigibilidade imediata dos direitos fundamentais e as conseqüências da omissão do gestor público em efetivá-los, posto que se tratam de temas preliminares à possibilidade judicial de se controlar as políticas públicas, sendo mister o enfrentamento daquelas questões para se ter o real alcance do objeto em estudo.

O exercício de um papel mais imponente no processo de afirmação dos direitos constitucionais por parte dos membros da magistratura encontra alguns óbices. Há entre nós argumentos vários no sentido de tolher este papel do Judiciário na realização de sua função típica de garantidor da efetividade das normas constitucionais.

Sem embargos das diversas teses levantadas, nenhuma delas é capaz de afastar o importante princípio democrático da inafastabilidade do Poder Judiciário em caso de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CRFB).

Como já dito linhas atrás, a reserva do possível não constitui óbice insuperável a efetivação do mínimo existencial. Além do mais, as políticas de transferência de dinheiro, como é o caso do bolsa família, garantem apenas uma renda mínima, o que por si só, não tem o condão de garantir o mínimo existencial, porquanto este compreende educação, saúde, alimentação, acesso à justiça, etc. Logo, é preciso que o gestor público atue em áreas que irão produzir diretamente – ainda que a médio ou longo prazo -  um resultado satisfatório no combate ao trabalho infantil das crianças nos lixões,  como por exemplo: definindo a escola integral e profissionalizando os pais destes menores.

No mesmo sentido não vinga o argumento de que as despesas resultantes de uma decisão judicial que imponha determinada política pública não pode ser cumprida por não estar prevista na Lei Orçamentária. É que a peça orçamentária é meramente indicativa e pode ser alterada durante o período de sua vigência. Outrossim, inexiste o aludido óbice, uma vez que a Lei Orçamentária não pode se impor ao art. 227 da Carta Magna e ao próprio ECA, que dizem quais prestações devem ser efetivadas pelo Município.

Argumento corriqueiro em demandas judiciais é o de que a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe limites intransponíveis à implementação das políticas públicas tendentes a efetivação dos direitos sociais, todavia inexiste esse óbice, porquanto a Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que não estão sujeitas a seu controle o repasse de verbas destinadas às obrigações constitucionais do Ente Público (art. 2º, IV, da Lei Complementar nº. 101/2000).  

Diz-se, ainda, que o juiz não detém legitimidade para decidir acerca das políticas públicas, porquanto não fora eleito pelo voto direto do povo. Esta idéia está jungida ao vetusto sistema democrático liberal, que não se coaduna com a nova vertente do Estado Democrático de Direito, cujo qual não se sustenta na mera configuração de uma democracia formal, em que apenas os representantes eleitos pelo povo servem como veículo das pretensões e necessidades daqueles que os elegeram. ”Ademais, ninguém garante que aqueles que receberam o voto popular realmente representem a vontade da maioria, ou – o que ainda se reveste de maior preocupação – a vontade da Lex Maior”[62].

Nesse passo, a participação popular é feita por meio de uma democracia participativa, onde instrumentos como a Ação Civil Pública constituem uma forma idônea de exercê-la, de requerer cidadania. Esta noção deve estar cumulada ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, segundo o qual o juiz não deve negar a prestação jurisdicional.

É ainda nessa perspectiva que é possível demonstrar que a atuação judicial não vai de encontro ao princípio da separação dos poderes, haja vista que há, em verdade, um trabalho em conjunto com vistas a concretizar a Constituição. Muito embora exista em parte da jurisprudência aqueles que resistam à idéia.

Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional[63].

A propósito, pertinente são as lições de Andreas Krell[64] (2002, p. 22/23), in verbis:

A Constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado 'livre espaço de conformação [...]. Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe, principalmente, aos governos e parlamentos. Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes [...]. Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. [...] Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais.

Há, ainda, o argumento de que a complexidade da matéria ventilada nas políticas públicas impede o juiz de exercer tal controle, tendo em vista que o mesmo não teve uma formação administrativa e sim jurídica. Ocorre, porém, que tal argumentação não prospera, haja vista que tantas vezes são postas situações de igual ou maior complexidade, em questões cíveis e criminais, à analise do magistrado, até porque se não é complexo para  o administrador, também não o será para o juiz. Ademais, as políticas públicas são compostas por recursos materiais e humanos, que podem ser explicados e discutidos por experts da área, assim como em audiências públicas, a fim de subsidiar o juízo em sua decisão.

 Por derradeiro, cumpre salientar a posição assente do STF na possibilidade de controle judicial de políticas públicas, nos termos da decisão proferida na ADPF nº. 45, cujo relator Ministro Celso de Mello apresentou com maestria e precisão ser uma atribuição, apesar de extraordinária, do Poder Judiciário formular e implementar políticas públicas.

O Poder Judiciário está tão obrigado à realização dos direitos fundamentais quanto os Poderes Executivo e Legislativo, restando jungido a, uma vez diagnosticada a violação omissiva ou comissiva a um direito humano, promover a sua implementação, mesmo que, para tanto, tenha de inovar no ordenamento jurídico[65]. Aceitar o papel do Poder Judiciário no controle de políticas públicas é essencial para assegurar a máxima efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes, bem como estimular os governantes à realização dos objetivos constitucionais. 

Destarte, inarredável é a conclusão que aceita o Poder Judiciário como garantidor da efetividade constitucional e concretizador de políticas públicas constitucionalmente e legalmente delineadas, por constituir direito fundamental dos indivíduos, notadamente das crianças e adolescentes que vivem e trabalham em meio ao lixo, pois necessitam de urgente priorização de políticas tendentes à erradicação deste trabalho degradante que macula nossa sociedade e avilta a dignidade humana destes pequeninos.


CONCLUSÃO

O trabalho infantil acompanha a humanidade desde suas origens, passando por diversas mudanças relativas aos motivos que levam as crianças a exercerem atividades laborais, as formas como estes trabalhos são prestados e as finalidades apontadas para este trabalho. Embora pareça, a princípio, algo natural entre a história da humanidade, o fato é que com o passar dos anos o trabalho infantil foi sendo visto como um gravame, tanto ao menor como à sociedade, razão pela qual os Estados passaram, quase que em sua totalidade, a proibir o trabalho infantil em determinada faixa etária.

E o Brasil não foi diferente, vindo de um marcante modelo escravagista, passou a vedar o trabalho infantil em todas as suas constituições, cada uma com uma idade diferente. Só então com a influência dos organismos internacionais, passou a conferir maior proteção às crianças e aos adolescentes, ampliando os seus direitos e os priorizando, a ponto de majorar a idade mínima para o trabalho ao nível de país desenvolvido e compromissado com a justiça social.

Em que pese esta guinada jurídica histórica em nosso país, atualmente ainda encontramos crianças trabalhadoras, em especial em atividades degradantes do universo informal. Dentro desta realidade, encontram-se os menores trabalhadores que sobrevivem da catação do lixo nos terrenos destinados ao depósito de lixo urbano, comercial e industrial de nossas cidades. Tais crianças são carentes de todos os direitos fundamentais à dignidade humana, razão pela qual o combate a este tipo de trabalho não se restringe ao impedimento do acesso destas crianças ao local destinado ao lixo, uma vez que a ausência do Estado em suas vidas os impedem de desfrutarem de todos os direitos que lhes foram assegurados pela Constituição da República.

Nessa esteira, inexistindo escola, lazer, cultura, esporte, alimentação, dentre outros bens jurídicos essenciais, é notório a perpetuação da pobreza e da marginalidade naquela localidade. Sendo assim, incumbe ao gestor público municipal destinar atenção especial às crianças que trabalham nos “lixões” quando da elaboração de suas políticas públicas, mormente em razão das diretrizes traçadas pela Constituição da República e pelo próprio ECA, reduzindo a esfera de discricionariedade do administrador público, o qual se vê vinculado às metas e prioridades descritas no texto legal.

Com efeito, a presença do Estado para garantir os direitos mínimos destes pequeninos é essencial na luta contra o trabalho infantil, necessitando de uma atuação articulada entre os três níveis de governo e a sociedade civil para que possamos conferir efetividade às normas constitucionais e cumprirmos os compromissos firmados perante a ordem internacional por meio de assinatura de tratados internacionais, a exemplo das convenções da OIT ratificadas pelo Brasil.

É inadmissível encontrarmos crianças que não estudam e que desenvolvem atividades insalubres e prejudiciais a sua dignidade, como é o caso das crianças catadoras de lixo, sem que o ente público municipal nada faça para mudar esta realidade, em nítida afronta direta ao texto constitucional, impondo-se a atuação ativa e concretizadora do Poder Judiciário quando provocado à implementar as aludidas políticas em atenção ao comando constitucional, pois em um Estado Democrático de Direito todos devem obediência à lei e não é dado ao Estado escusasse de suas obrigações.

Ademais, toda ordem jurídica conspira em favor da efetividade integral dos direitos das crianças e dos adolescentes, de sorte que não é aceitável limitarmos o papel jurisdicional do Estado no exercício de sua soberania, quando instado a prestar jurisdição à sociedade impondo ao Estado gestor a obrigação de atuar em prol dos interesses sociais tutelados. Isso porque, como foi visto, o arcabouço jurídico como um todo aponta as diretrizes que o poder público deve seguir, rumo a efetividade dos direitos fundamentais.

Não obstante esta conclusão, devemos admitir que os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público possuem formação jurídica, e não administrativa, o que interfere, sobremaneira, na concretização dos direitos dos pequeninos. Todavia, este fato não deve jamais ser obstáculo à concretização do mínimo existencial destas crianças, devendo o profissional jurídico não se envergonhar acaso não entenda as técnicas da administração municipal e de outros ramos necessários à implementação das políticas públicas. Nesse caso deverá lançar mão de todo aparato necessário, tais como: esclarecimentos de experts, audiências públicas, laudos periciais, dentre outros. Sem, contudo, esquivar-se do dever que lhe foi atribuído pela Magna Carta de garantidor dos direitos.

Conclui-se, pois, pela possibilidade da judicialização dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes que trabalham em meio ao lixo, por meio da implementação de políticas públicas sociais pelo Poder Judiciário, a quem cabe socorrer, em última análise, toda lesão ou ameaça a direito, nos termos da Constituição da República. Logo, inexiste razão para que se impeça este tipo de atuação judicial, haja vista que o mesmo estará exercendo o papel que lhe foi constitucionalmente conferido.


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Notas

[1] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 24 ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 591.

[2] SÜSSEKIND, Arnaldo. et al. Instituições de direito do trabalho. Vol.2, 22. ed. São Paulo: Ltr, 2005, p. 1007.

[3] João de Lima Texeira Filho (2005, p.1007) relata que “na Grécia e em Roma, os filhos dos escravos pertenciam aos senhores destes e eram obrigados a trabalhar, quer diretamente para seus proprietários, quer a soldo de terceiros, em benefício dos seus donos”.

[4] MARTINS, Sérgio Pinto. Op. Cit., p. 4 e 5.

[5] Ibidem, p. 4 e 5.

[6] VILANI, Jane Araújo dos Santos. A questão do trabalho infantil: mitos e verdades. Disponível em <http://www.brapci.ufpr.br/download.php?dd0=10208>. Acesso em 15 de fev. 2010.

[7] Ibidem.

[8] MARTINS, Sérgio Pinto Op. Cit., p. 591.

[9]VILANI, Jane Araújo dos Santos. Op Cit.

[10] MARTINS, Sérgio Pinto.Op. Cit., p. 591

[11] VILANI, Jane Araújo dos Santos. Op Cit.

[12]Há quem discorde do benefício de tal alteração, como é o caso de João de Lima Teixeira Filho (2005, p. 1008), para quem a Emenda violentou o art. 60, §4º, IV, da CRFB, uma vez que suprimiu direito fundamental ao trabalho do menor entre 14 e 16 anos e do aprendiz entre os 12 e 14 anos, em um momento em que a delinqüência juvenil é crescente. Alerta o autor que a vedação do trabalho do menor de 16 anos adveio de uma Emenda destinada a reformular o sistema previdenciário.

[13] SAAD, Eduardo Gabriel. CLT Comentada. 39. ed. atual. e rev. e ampl. por José Eduardo Duarte Saad, Ana Maria Saad Castello Branco. São Paulo: Ltr, 2006, p. 345.

[14] DELGADO, Maurício Goudinho. Curso de Direito do Trabalho. 7. ed. São Paulo: Ltr, 2008, p. 785.

[15] Sabe-se que o princípio da igualdade, tal qual ocorre com o princípio do devido processo legal, se divide em duas formas, quais sejam, a igualdade formal e a material. Na primeira o que se busca é a igualdade perante a lei (art. 5º, I. CF), já na segunda se busca a igualdade concreta, ou seja, desiguala-se os desiguais na medida de suas desigualdades. Pertinente a leitura de Humberto Àvila, in Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, no qual o autor discorre acerca da isonomia como regra, princípio e postulado, tudo a depender do critério diferenciador e de um fim a ser alcançado.

[16] GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007, p. 421.

[17] SAAD, Eduardo Gabriel. Op. Cit., p. 345.

[18] SÜSSEKIND, Arnaldo. et al. Op. Cit., p. 1013 e 1014.

[19]Art.203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice.

[20]Tese adotada pelo STF em julgamento do RE 466.343-SP, onde se discutia a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, ante a proibição do Pacto de São José da Costa Rica. Julgamento que culminou com vitória da tese de status de supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, defendido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes.

[21]3. A idade mínima fixada nos termos do parágrafo 1º deste artigo não será inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos. 4. Não obstante o disposto no parágrafo 3º deste artigo, o Estado-membro, cuja economia e condições do ensino não estiverem suficientemente desenvolvidas, poderá, após consulta com as organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, se as houver, definir, inicialmente, uma idade mínima de 14 anos.

[22]Art.6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[23]Cumpre assinalar que a nomenclatura “menor” era usualmente correta à época da edição da CLT, o que atualmente é tecnicamente incorreto, em razão do advento do ECA e do tratamento constitucional. Vale à pena informar que mesmo assim o legislador ordinário não se atentou à questão, pois poderia corrigir a nomenclatura quando da alteração engendrada pela Lei n. 10.097, de 19.12.00, a qual alterou o caput do art. 402 da CLT e revogou outros artigos do Capítulo IV da referida lei.

[24]Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

[25]Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

[26] LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.57.

[27] FILHO, Ives Gandra Martins. Direito Comparado do Trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasilia, DF, ano IX, nº 17, p. 77, mar. 1999.

[28] Idem, p. 77.

[29] Idem, p.77.

[30] DÁVALOS, José. p. 85.

[31] FILHO, Ives Gandra Martins.

[32] Idem.

[33] Idem.

[34] SILVA, José Afonso da. P. 13.

[35] BARROSO, Luis Roberto. P. 79.

[36] SILVA, José Afonso da. P. 24.

[37] Idem, p. 24.

[38] COELHO, Inocêncio Martires. P. 50.

[39] SILVA, José Afonso da. Op Cit. P. 28-29.

[40] Idem, p. 29-30.

[41] Idem, p. 36.

[42] SILVA, José Afonso da. Op. Cit.  P. 52.

[43] Idem, p. 152-153.

[44] Idem, p. 163-164.

[45] GRAU, Eros Roberto. P. 341.

[46] Idem, p. 325.

[47] Rcl 2319 MC / RS. Presidente em exercício: Min. Celso de Mello. Rel. do processo: Min. Sydney Sanches. DJ 3/6/2003, p. 1. Julgamento 27/5/2003.

[48] LENZA, Pedro. P. 13.

[49] SILVA, José Afonso da. Op Cit, p. 145.

[50] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 774.

[51] ARENHART, Sérgio Cruz.

[52] STF, AI 396973 / RS, Rel. Min. Celso de Mello.

[53] BUCCI, Ana Paula Barcelos, p. 175.

[54] FACCHINI, Nicole Mazzoleni.

[55] STJ, REsp 1.041.197-MS, Rel. Min. Humberto Martins.

[56] ARENHART, Sérgio Cruz.

[57] Idem.

[58] FACCHINI, Nicole Mazzoleni.

[59] ARENHART, Sérgio Cruz.

[60] Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.  Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade (STF, ADPF nº 45, rel. Min. Celso de Melo).

[61] LENZA, Pedro. Op cit, p. 765-766.

[62] A legitimidade dos juízes, nesse sentido, tem sua fonte diretamente na Constituição. Trata-se de uma legitimação técnica, auferida através de concurso público acessível a qualquer bacharel em direito; e de uma legitimação substancial, qual seja, a de serem eles os guardiões da Constituição, zelando para que o horizonte ali traçado seja fielmente observando por todos os poderes (FACCHINI, Nicole Mazzoleni).

[63] STJ, Resp 753565/MS, 1ª Turma, Rel. Luiz Fux.

[64] KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fábris Editor, 2002, p. 22-23.

[65] GRAU, Eros Roberto, Op. Cit, p. 335.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Pedro Ivo Lima. O Poder Judiciário como implementador de políticas públicas no combate ao trabalho infantil no lixo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3414, 5 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22948. Acesso em: 26 abr. 2024.