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A codificação jurídica e seus desdobramentos

A codificação jurídica e seus desdobramentos

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A segurança jurídica significa maior previsibilidade e menor arbitrariedade nas decisões judiciais. Uma segurança jurídica garantida pela codificação também contribui para o aperfeiçoamento da coerência do sistema, haja vista que garante seu controle.

1. Prolegômenos

O processo de resolução, isto é, a produção da decisão, não ocorre de forma aleatória, mas, ao contrário, obedece, ou – pelo menos –, deve obedecer a critérios mínimos de organização. Afinal, se assim não fosse, não se trataria de uma experiência jurídica. De modo sintético, é possível afirmar que a problemática não se encontra na resolução ou não dos conflitos em si, mas, sim, no modo como eles são resolvidos. No fundo, toda a discussão se assenta sobre o seguinte questionamento filosófico: qual a melhor maneira de concretizar o direito?  Esta questão está intimamente ligada à outra, de questões sociais misturadas às jurídicas: como resolver um conflito da forma mais eficaz possível? Ora, para alguns, deve prevalecer a confiança na prudência do magistrado; para outros, a criação de procedimentos formais é o melhor caminho.

Com este texto, embasado na concepção teórica de Winfred Hassemer, temos por objetivo a elucidação de um fenômeno jurídico que, a princípio, significou imposição de maior rigor metodológico e processual no momento da resolução de casos concretos; a saber, a criação de códigos jurídicos.


2. Primeiras considerações

O direito pode ser entendido como um conjunto específico de regras utilizado para resolver conflitos humanos, originados a partir de interesses divergentes e discordantes. Dentro desse entendimento, podemos destacar três grupos gerais de elementos, os quais podem ser designados a partir de ênfase dada, primeiro, ao “conjunto específico de regras”, isto é, uma ordenação; segundo, à resolução de conflitos; e, por último, aos interesses, não necessariamente antagônicos, mas discordantes.

Com ênfase na ordem, pode-se aludir à figura de Hans Kelsen, ao dizer que a organização do direito é caracterizada, principalmente, pelo seu caráter coercitivo, para rebater o sociologismo jurídico de Eugen Erlich:

O que distingue a ordem jurídica de todas as outras ordens sociais é o fato de que ela regula as condutas humanas de uma técnica específica. Se ignorarmos esse elemento específico do Direito, se não concebemos o Direito como uma técnica social específica, se definirmos o Direito simplesmente como ordem ou organização, e não como ordem coercitiva, então perdemos a possibilidade de diferenciar o Direito de outros fenômenos sociais; identificamos o Direito com a sociedade e a sociologia do Direito com a sociologia geral.[1]

Ademais, sintetizando a concepção kelsianana, o que diferencia as normas jurídicas de outras (morais, religiosas, de etiqueta) é o fato de estas terem o Estado como assegurador de seu adimplemento. Para Kelsen, o cerne do direito está na sanção legítima e organizada imposta pelo Estado. Toda norma jurídica possui sanção, mesmo as que não possuem explicitamente (normas secundárias), ligar-se-iam a normas primárias (são as que contêm a sanção). Assim, as verdadeiras normas jurídicas são as primárias, e o direito é caracterizado essencialmente do ponto de vista coercitivo e sancianatório.[2]

 Quanto à resolução de conflitos, este é o escopo máximo da dogmática jurídica, que, ao final da atividade jurídica, é a materialização do mais importante aspecto jurídico, a dirimição de conflitos e a proibição do non liquet (o juiz não pode se escusar, tendo a obrigatoriedade de decidir diante da querela) [3]. No que concerne à dogmática jurídica, vem à baila a asserção de João Maurício Adeodato:

[...] a dogmática precisa decidir sempre a respeito dos fatos que ela mesma tenha considerado relevantes para a esfera jurídica; não pode eximir-se da decisão sob qualquer que seja a alegação, como a falta de elementos para decidir tanto pró quanto contra determinado réu.[4]           

Já agora tratando, por último, da divergência de interesses, a qual origina o conflito tratado, geralmente, em última instância – no sentido de esgotamento dos outros artifícios dirimentes de conflitos espalhados pela sociedade, como o bom senso, por exemplo –, pelo direito, trazemos à tona a contribuição de Imannuel Kant, quem, apesar parte de sua obra possuir viés jusnaturalista, contribui grandemente para o positivismo ao considerar a disparidade de arbítrios próprios de cada indivíduo, isto é, “o direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode entrar em acordo com o arbítrio de outro[...]” [5]. Pois bem, tal acordo, para fins atuais, não deve ser encarado com concordância voluntária, mas sim como conformação, sendo sempre, em maior ou menor grau, forçada.

A grande questão que permeia tal trabalho aqui exposto é: de onde vêm a ordem, a resolução de conflitos e conformação de arbítrios divergentes? Ou melhor, de que forma o direito se organizou para que pudesse abarcar tais elementos? A era das grandes codificações muito contribuiu para nortear e organizar o procedimentalismo da decisão.


2. Função da codificação no sistema jurídico

Iniciemos com uma breve contextualização histórica e filosófica. Com a derrocada da Idade Média e surgimento da Idade Moderna, há uma recrudescimento da crença, quase cega, na razão, na ciência e na técnica, que possibilitariam o domínio da natureza pelo homem. O período moderno se caracteriza pela crise do teocentrismo medieval, e a ascensão do antropocentrismo. Tudo relativo ao homem é enaltecido, principalmente o que o diferencia do resto dos animais, a saber, a razão. Ilustra bem este culto ao racionalismo a máxima atribuída a Descartes: “penso, logo existo.” Ou seja, eu existo por mim mesmo, na medida em que penso (tenho o dom da razão), e não por vontade divina.

O racionalismo, o empirismo e o cientificismo, no século XIX, tomaram tamanho vulto que influenciaram em muito a literatura, em especial o movimento Realista e Naturalista[6], na prosa e, principalmente, o Parnasianismo, no verso. Em alguns poemas[7] de Olavo Billac e Alberto de Oliveira (parnasianos), a poesia se reduz excessivamente ao apego à forma e à simetria, ao descrever objetos com o máximo de objetividade, desprezando o lado subjetivo e emotivo. Objetividade esta tão exigida pelo cientificismo.

Sem maiores delongas, agora adentrando na seara jurídica, no século XIX, a ciência do direito é dominada pela concepção racional, empirista, legalista da Escola da Exegese francesa. A Escola da Exegese considerava que a totalidade do direito positivo se resume à lei escrita. Destarte, a função do jurista seria se ater tão somente ao texto legal e revelar precisamente seu sentido.Assim, o estudo do direito deveria reduzir-se a mera exegese dos códigos.Nas palavras de Maria Helena Diniz:

A lei e o direito constituem uma mesma realidade, pois a única fonte do direito é a lei e tudo o que estiver estabelecido na lei é direito.[...]Durante a época da codificação do direito civil francês e[...] da promulgação do Código de Napoleão, os juristas entenderam que deviam fazer apenas a exegese do texto legal,ficando, assim a ciência do direito reduzida a mera tarefa de exegetas.[8]

Na época, as grandes codificações eram recentes, e por isso, houve uma crença cega na lei, idolatrada (fetichismo da lei) e tida como completa e acabada[9]·. ”O racionalismo buscava a simetria, a construção lógica perfeita, o que o levou à utopia. [...] Daí o reinado, em França, do dogma absoluto da ominisciência, da ominicompreensão e da onipotência das leis.” [10] Os códigos nada deixavam ao arbítrio dos intérpretes, pois o direito está feito e não há mais incerteza. Os juízes e juristas são títeres da lei e devem tão somente explicar a vontade do legislador. Destarte, só havia a interpretação literal.

O final do século XIX e o início do século XX correspondem a um momento de grande efervescência discursiva acerca das problemáticas metodológicas do Direito, dentre as quais ganharam destaque aquelas referentes à atividade judicial. Nesse período, iniciou-se um processo de ruptura com concepções teóricas então vigentes, que já se demonstravam defasadas e incapazes, em termos de eficácia prática do Poder Judiciário, de satisfazer às novas exigências oriundas de uma crescente complexidade sócio-cognitiva.

Na origem da codificação, no sentido moderno, está uma polêmica entre dois grandes juristas: Thibaut e Savigny. Aquele dizia que a Alemanha precisava centralizar sua codificação civil em torno de um único documento imediatamente, pois seus estatutos civis apenas tinham alcance local e não serviam aos fins da Federação[11]. Já o professor da Universade de Berlim atreveu-se a contradizer o senso patriótico comum. Ele primeiro refutou a ideia de ser a lei única fonte do direito, e que é impossível livrar a produção legislativa da história do seu povo, a qual é responsável pelas peculiaridades jurídicas de cada comunidade. Então, antes de haver uma codificação, dizia Savigny, é necessária uma ciência jurídica unificada e voltada a identificar o direito da nação, pois, já dizia no Da Vocação de Nosso Tempo para Legislação e Jurisprudência:

Esforçaremo-nos para mostrar determinados traços gerais desse período no qual o direito, bem como a linguagem, existe na consciência das pessoas.[12]

O mérito de Savigny foi o de isolar a ciência do direito (jurisprudência) das demais, através da identificação de três elementos: o formal e necessário (norma), o material e contingente (as relações de fato) e outro inédito, a valoração jurídica (valores) [13].

Oitenta anos depois dessa polêmica, após a Guerra Franco-prussiana e a unificação do Império, entra em vigor o Código Civil alemão em 1º de Janeiro de 1900, provando a imposição da tese de Savigny sobre a Thibaut. A partir daí, a obra de Savigny teve grandes continuadores, o mais famoso deles é Georg Friedrich Puchta, cuja contribuição mais importante foi objetivar o “espírito do povo” ­­– conceito introduzido por Savigny – e separá-lo do consciente das pessoas. Mas, por outro lado, na França, a ciência jurídica se constituiu posteriormente e de outra forma, com a prevalência da lei na Escola da Exegese, cuja metodologia mais tarde iria ser aperfeiçoada pela Jurisprudência dos Conceitos[14].

No âmbito judicial, uma das heranças teóricas deixadas pelo Legalismo jurídico foi a ideologia da subsunção, uma aplicação jurídica do silogismo apofântico aristotélico. Até a consolidação do processo de revisão e questionamento de métodos, mencionado nos parágrafos anteriores, predominava entre os juristas a ideia de que a sentença seria uma dedução lógico-linguística de uma norma legal, ou seja, acreditava-se que a resposta para resolução de qualquer caso concreto encontraria - ainda que, muitas vezes, de forma obscura e não aparente -, sempre potencialmente subsumida em uma norma integrante do ordenamento. Ainda segundo esse pensamento, a finalidade da sentença é, unicamente, a concretização do conteúdo intrínseco às leis, através da verificação, por parte do juiz, de sua pertinência ao caso particular e da consequente concretização concentrada de conteúdo normativo. A codificação jurídica ganhou, assim, grande relevância frente à eficácia do Direito, porquanto passou a ser tida como a origem de toda fonte do direito – afinal, para essa concepção teórica, a extensão do conceito de fonte jurídica restringe-se, apenas, à lei, cuja origem é estatal, e não há que se falar em separação entre texto legal e norma jurídica.

Esse pensamento reducionista ignorava o caráter axiológico da interpretação do direito, defendendo que a produção de uma sentença resumir-se-ia a um silogismo: a norma legal (premissa maior) e o relato dos fatos (premissa menor, na qual as singularidades do caso concreto estão contidas) determinam, de modo inequívoco, a norma de decisão(conclusão)[15].

Nas palavras de Maria Helena Diniz:

A lei deve ser a única fonte das decisões jurídicas, logo toda solução jurídica não pode ser mais do que a conclusão de um silogismo, em que a premissa maior é a lei e a menor, o enunciado de um fato concreto[16], sendo a decisão a conclusão.

Destarte, até o final do século XIX, predominava a ideia de que a codificação jurídica e a aplicabilidade de uma rigorosa metodologia judicial, capaz de estabelecer regras precisas de transferência de conteúdos normativos para a sentença, seriam fatores suficientes para a garantia de uma jurisprudência “correta”, regular, uniforme e, consequentemente, previsível. O ideal da segurança e certeza jurídica estaria, assim, supostamente garantido.

Neste sentido, criticando a estrutura legalista do direito, no Brasil moderno, o grande historiador brasileiro Caio Prado Júnior assevera, com pertinência ainda atual:

Como resultado, as leis não só eram uniformemente aplicadas no tempo e no espaço, como frequentemente se desprezavam inteiramente, havendo sempre, caso fosse necessário, um ou outro motivo justificado para a desobediência. E daí, a relação que encontramos entre aquilo que lemos nos textos legais e o que efetivamente se pratica é muitas vezes remota e vaga, se não redondamente contraditória.[17]

Apesar de as desconfianças e as descrenças por parte de juristas em relação a tal concepção teórica de cunho legalista serem bastante antigas, apenas, no século XX, consolidou-se a tendência segundo a qual a norma codificada é, necessariamente, incapaz de promover respostas adequadas, em absoluto, aos casos concretos únicos, singulares irrepetíveis. Em outras palavras, a norma codificada é por si só incompatível com o conflito real, pleno em detalhes únicos, de maneira que sua complementação deve ser efetivada pelo juiz por meio de uma adequação interpretativa (hermenêutica).

A tendência juspositivista responsável pela consolidação dessa nova concepção foi o Normativismo ou Racionalismo Dogmático, sucessor do Legalismo. O auge teórico desse pensamento foi atingido pelo seu principal representante, Hans Kelsen, segundo o qual o ato de aplicação do direito significa a produção de uma norma de escalão inferior a partir de outra de escalão superior. Esse processo sempre apresenta certo grau de indeterminação entre a limitação abstrata imposta pela norma geral (moldura) e as várias possíveis escolhas de soluções corretas percebidas somente diante do caso concreto. O preenchimento da moldura, portanto, deve ser efetivado através de um ato de execução, responsável pela escolha de uma dessas decisões e pela concretização/aplicação do direito[18].

Segundo a teoria kelseniana, o conteúdo do direito não importa. Isto porque, segundo Machado Neto[19], essa teoria, fruto da época denominada “racionalização do poder”, deveria reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político, diverso do liberal ou social-democrata, existente nos povos europeus ocidentais. Deveria erigir uma teoria do direito que tivesse, conceitualmente, condições para admitir a existência, ao lado do direito democrático-liberal, um direito soviético, fascista, nazista. Outrossim, sua vocação de mais absoluta neutralidade, em face do conteúdo político, ético, religioso, das normas jurídica[20].

A letra da norma codificada passou a ser vista como um instrumento de limitação do processo interpretativo. O texto normativo constitui o núcleo conceitual da norma jurídica, ao passo que a auréola conceitual é abstrata e só pode ser obtida pelo ato interpretativo. Uma teoria da atividade jurisprudencial deve, portanto, desenvolver regras de interpretação e mecanismos de argumentação para embasar, justificar, identificar o liame conceitual plausível.

 Ademais, a codificação do direito passou a ser tida, por diversas escolas jurídicas, como insuficiente para a promoção da univocidade interpretativa, o que, aliás, mostrou-se, por meio dos estudos da Semiótica e da Semiologia, uma utopia. Essa insatisfação surgiu no momento de transição em que a concepção da interpretação literal ou exegética (in claris non fit interpretatio) perdia força e novos métodos hermenêuticos eram criados.  A imprecisão da linguagem está entre os motivos pelos quais Robert Alexy acredita haver, na atualidade, uma unanimidade entre os juristas a respeito da impossibilidade da simples subsunção das normas individuais (caso concreto) às premissas maiores previamente positivadas[21].

Para a obtenção desse consenso, muito contribuíram as teorias filosóficas da linguagem, dentre as quais se destaca a Semiologia de Ferdinand Saussure. Para esse pensador, a linguagem constitui um sistema de múltiplos signos articulados, sendo o signo, por sua vez, um elemento cultural de natureza bifásica (composto por um plano conceitual concreto ou material e outro abstrato, de conteúdo) [22]. Ora, palavras são uma das formas assumidas pelos signos e, portanto, por mais claras que sejam, sempre são passíveis de serem interpretadas, pois representam elementos cognitivos, apreendidos pela mente.

É importante observar, entretanto, que ambas as tendências – Normativismo e Legalismo – admitiam uma relação entre lei e decisão jurídica. Esta é, enfim, a função pela qual um sistema codificado se presta: a criação de vínculos entre o juiz e a norma codificada. A estrutura funcional desse sistema é dotada de reciprocidade vinculativa complexa, na qual a existência de codificações interfere de forma decisiva na atividade jurisprudencial.


3. Consequências da codificação jurídica

A segurança jurídica tem basicamente dois sentidos, um amplo e outro estrito. Este consiste na garantia de estabilidade e certeza das relações jurídica, o que permite que as pessoas, de certo modo, prevejam as consequências de suas condutas, as quais não poderão ser atingidas por futura mudança legislativa. A segurança jurídica em sentido amplo está ligada à garantia geral de direitos consagrados constitucionalmente[23]. Já a segurança jurídica em sentido estrito é  mais focada no aspecto formal, típico do Estado de Direito Liberal e característico dos sistemas jurídicos positivados, nos quais pode-se detectar o momento exato da entrada em vigor de uma lei e da revogação daquela que a antecedia.[24]

Na jurisprudência, a palavra “segurança” assume uma conotação distinta daquela verificada no uso cotidiano, a saber, significa singularidade metodológica e processual na produção de normas individuais. A decomposição do direito em áreas específicas, tais como o Direito Civil e Penal, e o desenvolvimento de códigos estruturados para cada uma delas contribuíram para a diminuição da subjetividade na construção do ato sentencial, visto que a codificação, em si mesma, oferece critérios comuns de análise do conflito real.

Dessa forma, a segurança jurídica significa maior previsibilidade e menor arbitrariedade nas decisões judiciais. Além disso, uma segurança jurídica garantida pela codificação também contribui para o aperfeiçoamento da coerência do sistema, pois garante uma correção avaliativa mais exata e suscetível a controle.

Outro efeito do fenômeno da codificação do direito é, evidentemente, a sistematização do conhecimento jurídico. Ora, a própria codificação traduz-se pela ideia da concretização de medidas estruturais e de organização, tais como a divisão da matéria jurídica em setores de conteúdos semelhantes, cujas subdivisões, por sua vez, implicam o surgimento de áreas gnoseológicas de especificidade crescente. Os tipos legais relativos ao Direito Penal, por exemplo, encontram-se compilados na forma de um código – o código penal –, bipartido em uma parte geral e outra especial, cada uma delas subdivididas em títulos (um exemplo na parte geral seria “da pena”); capítulos (exemplo: “espécies de pena”); e seções (exemplo: “da pena de multa”). Toda essa organização permite maior acessibilidade, assim como facilita a realização de consultas e estudos especializados.

A sistematização do conhecimento jurídico promove, dessa forma, melhores critérios de diferenciação para a escolha e aplicação de normas na resolução de conflitos reais. A noção de direito diferenciado – não no sentido de destaque, mas na conotação referente à organização da estrutura interna –, quando incorporada pela sociedade em geral, afeta a própria eficácia individual das normas, pois contribui, por meio de agentes da comunicação, para a generalização da ideia de coercitividade. A previsibilidade inserida no conceito de segurança jurídica, portanto, é novamente acentuada, já que casos concretos semelhantes passam a ser decididos de forma semelhante, de modo a intensificar o processo de redução de expectativas[25].

Aspecto interessante se dá na Constituição. Hans Kelsen divide as normas constitucionais em dois tipos: matérias – as mais importantes, que somente versam sobre a (re)produção e modificação de outras normas inferiores – e formais –, normas constitucionais que possuem conteúdo jurídico e podem ser modificadas[26]. Kelsen diz que ainda pode haver Constituição se só existirem normas constitucionais materiais. Há de se concordar que se isso acontecesse, atingir-se-ia um patamar de segurança jurídica invejável, pois para a existirem os estatutos (Códigos Penal, Civil, Eleitoral, Tributário etc), as normas materiais da Constituição teriam que ser observadas. Todavia, por outro lado, observa-se que há normas constitucionais formais, ou seja, que têm conteúdo jurídico de vários ramos do direito, e que estão na Constituição para fins de segurança jurídica. Os dois caminhos seguem em direções opostas, mas objetivam algo em comum: a segurança jurídica. A mensagem que tal problema passa é a de que, numa sociedade complexa, existem certos conteúdos jurídicos formais que são mais importantes do que o restante presente naquele ramo do direito. Por exemplo, há muitas leis complementares e ordinárias em matéria de direito financeiro e tributário, mas a tributação e o orçamento são objeto de normas da Constituição Federal de 1988.

A diferenciação no direito promovida pela codificação foi um dos recursos utilizados pelos Estados modernos para a sustentação de duas de suas características fundamentais: a inegabilidade dos pontos de partida e a obrigatoriedade de decidir[27]. A crescente complexidade social tornou necessária uma maior diferenciação e sistematicidade entre as normas, visto que somente estas são capazes de prover significação jurídica a uma ação fática[28].

Também o direito codificado influencia o processo de legitimação da decisão jurídica. Ora, o uso de normas codificadas torna desnecessária a fundamentação por meio dos princípios de decisão, pois um sistema codificado pressupõe a incorporação dos princípios jurídicos fundamentais à estrutura da norma codificada. Ou seja, ao utilizar-se de uma norma do sistema, o intérprete já está fazendo uso de um princípio jurídico consentido e internalizado. Quanto ao conteúdo, a correção de uma decisão é facilitada devido ao fato de não mais ser necessária a análise das normas e seus princípios intrínsecos, faz-se necessária, apenas, a avaliação dos princípios jurídicos fundamentais que foram invocados, sem uma relação explícita com uma norma codificada específica. Na atualidade, sentenças fundamentadas exclusivamente em princípios jurídicos, sem referência a uma norma do sistema codificado, são rapidamente invalidadas.

Todavia, a avaliação do conteúdo inerente à norma de decisão é, ainda assim, bastante complexa. Isso porque mesmo os princípios formais abrangem conteúdos diversos. O Princípio da Igualdade, por exemplo, dentre as inúmeras conotações, pode significar a admissão de normas diferentes para contextos diferentes – ou seja, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais – o que, muitas vezes, pela abstração e generalidade, pode funcionar como um mecanismo retórico de manipulação[29]. A legitimidade do direito, portanto, é construída pela autorreferência do Direito dogmaticamente organizado, a qual é sempre suscetível às relações de poder.

Por fim, o fenômeno da codificação jurídica proporciona recursos essenciais à positivação organizada do direito. O direito positivo é aquele posto e capaz de fazer predominar suas convicções éticas intrínsecas através de alguma forma de poder ou estrutura social. O direito positivo, dessa forma, pode ser verificado em sociedades primitivas – até mesmo em sociedades ágrafas –, o que faz com que a codificação não seja uma condição necessária à sua existência. Portanto, a chamada “positivação do direito” (positivo no sentido de comunicavelmente “posto”) de Luhmann – pelo menos no contexto no qual é mencionada por Hassemer – não corresponde ao fenômeno do qual o direito positivo surge, mas sim ao processo pelo qual o direito positivo torna-se materialmente fixado e, justamente por isso, mais facilmente manipulável.

Um dos mecanismos capazes de efetivar tal processo é a fixação, por meio da legislação, presente desde as culturas da Antiguidade. A ideia é que somente um sistema composto por normas legisladas e sistematicamente codificadas é capaz de integrar novas normas à ordem jurídica por meio de critérios intrajurídicos[30]. Em outras palavras, regras preestabelecidas determinam a realidade do caráter jurídico de uma norma, a qual passa a servir como objeto recursivo para processos jurídicos, tais como a decisão.


4. Função do direito codificado na decisão dos casos

A discussão acerca do vínculo do juiz a um sistema pouco flexível de regras é bastante antiga, anterior até mesmo, à codificação jurídica. Ao longo desse período, tal debate sempre significou uma tentativa de desenvolvimento de mecanismos cerceadores da liberdade de ação dos juízes. A atividade judicial pode ser tida como restrita em dois sentidos: um deles é o número limitado, embora grande, de decisões possíveis a serem tomadas para a resolução do caso concreto; o outro é a pré-existência de formas argumentativas a serem selecionadas para a fundamentação da própria alternativa de decisão escolhida.

Uma consequência evidente da prática de imposição de limitações à liberdade dos juízes é a maior previsibilidade, por parte não só dos juristas, mas também da população leiga – em relação à sentença final. Trata-se de um efeito óbvio, visto que, dada as peculiaridades de um caso concreto, as possibilidades de decisão tornam-se inexoravelmente restritas ao campo de liberdade interpretativa dos juízes, de modo que o comportamento desses passa a ser menos inexato. A efetividade das regras jurídicas pré-estabelecidas norteadoras da atividade judicial, todavia, depende da submissão a elas pelos próprios operadores.

Desse modo, na atual conjuntura do debate acerca do ativismo judicial, o sistema jurídico codificado surge, então, como um meio de intensificar e deixar mais explícito o vínculo dos juízes com a lei. O objetivo último é, no fundo, a conquista de um sistema jurídico mais hierarquizado, através de uma administração eficiente e bem organizada em suas competências.

Assim como os tribunais do Judiciário, os juízes encontram-se sujeitos apenas às leis e, por isso mesmo, são tidos como independentes. É possível, assim, afirmar que as normas do direito são autorreferentes, no sentido de que preveem e garantem a independência do juiz na forma de uma lei e, ao mesmo tempo, desenvolvem dispositivos legais limitadores delas mesmas. Um desses dispositivos seriam as normas vinculadoras dos juízes às leis, que, dessa maneira, acabam por cercear a “independência” da atividade judicial. No caso de uma condenação penal, por exemplo, um desses vínculos restritivos é a proibição da analogia, prática por meio da qual os juízes extraem mesmas consequências jurídicas de um caso regulado para um caso não regulado semelhante[31].

Os postulados de vinculação do juiz ao sistema codificado foram exaltados na modernidade e consolidados na ideia de Estado de Direito. Na atualidade, entretanto, diversas são as criticas feitas aos sistemas jurídicos cuja dinâmica interna é norteada por rígidos vínculos judiciais. Isso porque nem sempre maior similitude e regularidade entre as decisões é indício de uma vivência em um sistema jurídico mais justo. Pelo contrário, muitos veem na criação excessiva de regras regulamentadoras da atividade dos juízes um estímulo para que estes se preocupem apenas com o cumprimento formal da lei em detrimento da apreciação de aspectos mais relevantes à concretização da justiça, embora mais subjetivos e menos aferíveis.  A proibição do uso de analogias para o estabelecimento de penas, por exemplo, foi tida, por muitos, como insatisfatória, devido à impossibilidade, para alguns, de se extrair os limites exatos da punibilidade a partir, apenas, do texto normativo. Predomina, na atualidade, a concepção segundo a qual a analogia constitui um recurso prestativo à resolução de casos concretos.

Medidas como essas, típicas do Estado de Direito, pretendem, ao criarem fortes vínculos norteadores da atividade judicial, impedir o processo de mutabilidade funcional do sistema jurídico por meio de uma estática artificial. O Direito como um todo, mesmo quando dogmaticamente organizado, é, necessariamente, dinâmico e poroso, pois é um produto complexo da cultura humana e, por conseguinte, dotado de historicidade.

É o problema que se traduz no duelo tópico entre dura Lex sed Lex (a lei é dura, mas é a lei) e summum ius summa injuria (o direito sumo é suma injustiça).


5. Formas vinculativas

Vários são os elementos através dos quais a atuação judiciária se liga com as leis. Talvez a forma mais explícita seja a prescrição segundo a qual o juiz é obrigado a não só conhecer e observar os tipos legais codificados, mas usá-los em seu embasamento argumentativo. Por outro lado, o próprio modo como essa classe de intérpretes lida com a seleção dessas leis é assunto da hermenêutica jurídica, que teoriza sobre os modos, meios e funções do interpretar os textos legais.

A primeira metodologia consolidada, chamada de Tradição dos Brocardos, é a que parte dos brocardos interpretativos, cunhados desde a antiguidade, cujo uso recorrente os transformou num repertório de formulações enxutas que traduzem certo ponto de vista frente a uma querela interpretativa. Podem ser chamados de topoi jurídico-interpretativos, tais como in claris cessat interpratatio (na clareza cessa a interpretação, para ressaltar a literalidade) ou acessorium sequitur principale (o acessório segue o principal), para enfatizar uma dedução do tipo “quem pode o mais, pode o menos”.

Outra é a metodologia positivista clássica hermeneuta, a qual contém os chamados cânones interpretativos. O mais formal deles – e, por isso mesmo, o mais simples – é o método gramatical, cuja efetivação depende de uma rigorosa análise lógico-lexical de acordo com as normas da linguagem padrão.

O método sistemático busca a extração do significado normativo por meio do estudo analítico do contexto no qual a norma em questão está inserida. O intérprete, então, utiliza-se de uma técnica comparativa, através da qual agrega à sua abordagem conteúdos novos, até mesmo de outros sistemas jurídicos positivos. Assim, a interpretação não deve ser restringida ao texto normativo por si só, mas ampliada para a apreciação do sistema jurídico como um todo[32].

Com o método histórico o juiz aprecia o contexto sócio-cultural no qual a norma foi legislada e passou a integrar, de fato, o ordenamento jurídico. Neste caso, o intérprete faz uso de técnicas investigativas, pelas quais procura descobrir a intenção ou vontade de uma figura fictícia do passado: o legislador da norma, um recurso puramente retórico[33].

Pelo método teleológico, o intérprete busca a percepção da finalidade última ou razão de ser da lei (ratio iuris). Atende, assim, às exigências finalísticas da sociabilidade. Nesse caso, as interpretações devem ser compatíveis e harmônicas com a noção de bem comum, que pode ser, de maneira sintética e simplória, entendido como o conjunto de elementos do contexto da vida humana responsáveis pelo aperfeiçoamento da personalidade comum e individual[34].

Os métodos gramatical, sistemático, histórico e teleológico apresentam, nessa ordem, subjetividade processual crescente, ou seja, à medida que existe maior complexidade na metodologia analítica, maior é a individualidade no processo de decisão. O mais curioso é entender que maior subjetividade não implica, necessariamente, maior parcialidade – usada, aqui, no seu sentido pejorativo.

Os métodos hermenêuticos são, em si mesmos, passíveis de interpretação. A complexidade de processos interpretativos contínuos e superpostos sucessivamente torna impossível o conhecimento prévio da base argumentativa fundamentadora da norma de decisão. Apesar de o juiz comumente utilizar-se de mais de um método, sempre um deles predominará para o desfecho da resolução do caso, o que dificulta, ainda mais, a previsão de resultados. Para Robert Alexy, a formulação de critérios para a ordenação hierárquica dos cânones é uma alternativa para fundamentações mais seguras das interpretações[35].

Outra forma vinculativa é o direito jurisprudencial. Tal vínculo pressupõe, antes de tudo, um consentimento generalizado e oficial de que os juízes são capazes de produzir direito. Essa “prerrogativa” faz com que essa classe de juristas se vincule aos próprios resultados decisórios por eles produzidos. O caráter fático desse efeito vinculativo torna-o verificável até mesmo em sistemas jurídicos pouco ou não codificados, visto que é consequência do ato judicial.

Quando uma norma de decisão é incorporada ao direito jurisprudencial, transforma-se em princípio jurídico consentido e passa a ser tida, assim, como uma norma correta, justa e válida, como referência ou premissa para embasamento argumentativo de outra sentença. O intérprete, é claro, não está constrangido de modo determinante pelo direito jurisprudencial, caso opte por não segui-lo, terá, apenas, de melhor fundamentar sua decisão, com base em outros recursos vinculativos.

O vínculo através da dogmática jurídica é o mais evidente e já foi referido indiretamente no primeiro parágrafo deste tópico. Ora, o juiz é, por lei, obrigado a fazer uso dos recursos oferecidos pela dogmática jurídica para a devida aplicação de uma lei. Além disso, a dogmática, quando vista como a Ciência do Direito, é responsável pela formalização de todos os outros vínculos.

Além das regras de interpretação, do direito jurisprudencial e da dogmática jurídica, o juiz também pode vincular-se à lei através de formas menos explícitas e concretas, as quais podem ser agrupadas sob a designação “programas informais”. Geralmente, a decisão do caso não decorre apenas da subsunção dos processos analíticos a métodos meramente formais e objetivos, devendo o intérprete agregar ao processo de produção de normas de decisão noções e saberes práticos, afinal, interpretação e aplicação do direito não são ações de caráter cientifico, mas, sim, uma única operação de prudência[36].

Os programas informais mostram-se úteis, por exemplo, na apreciação de provas relacionadas ao caso concreto. O ato da aprovação jurídica pressupõe certo sentimento de simpatia ou confiança, o que evidencia seu caráter valorativo, ético[37]. Vitais para a atividade decisória, os processos informais também são passíveis de observância e controle, embora seja uma verificação menos precisa.


6. Vinculação fática e princípio da vinculação

A partir de um ponto de vista mais prático e sintético, é possível, enfim, conceber o postulado da vinculação sob dois aspectos: a fundamentação e a determinação decisórias. O primeiro consiste na oferta finita de elementos justificadores da sentença, os quais são levados em consideração pelo intérprete somente para a legitimação e exposição do conteúdo normativo intrínseco à sentença. A ocorrência fática de tal aspecto vinculativo é verificada através da análise formal dos elementos que fundamentam a decisão. O segundo corresponde aos possíveis fatores legais – aos quais o juiz está teoricamente “preso” –, condicionantes do desfecho para a solução do conflito. A observância da facticidade desse aspecto do postulado da vinculação é, no fundo, irrealizável, já que não se pode saber ou avaliar os verdadeiros motivos que inspiraram o juiz na escolha de determinadas fontes em detrimento de outras, o que acaba por resultar em um desfecho compatível com sua vontade.

Na atualidade, o realismo, uma das tendências juspositivistas contemporâneas, tenta, então, esvaziar o conceito de legitimidade de qualquer conteúdo, defendendo que, nas decisões jurídicas o caráter indutivo é sempre predominante e que, por conseguinte, qualquer decisão é possível (sempre o juiz cria norma jurídica) [38].     Tal raciocínio condiciona o ativismo judicial, no qual se manipula o conteúdo referido pelos textos legais, fazendo-os dizer o que se quer que digam, seja escondendo determinadas premissas (silogismo entimemático ou retórico), seja tirando a conclusão de premissas falsas, mas que parecem prováveis (silogismo erístico) [39], a fim chegar a uma decisão do agrado do magistrado.

O defendido aqui é uma postura que adeque, por meio do convencimento, uma decisão feita com base em uma argumentação tópica, pois aquele que decide também argumenta em favor de sua decisão. Julga-se melhor uma postura retórica de argumentar, com conteúdo fornecido pela tópica, uma técnica de pensar a partir dos problemas[40], sem pretensão de verdade ou correção, mas sim de melhor exposição das dimensões do discurso, a saber, quem diz, o que é dito e como é dito[41].


8. Considerações finais

A realidade sociológica atual difere, e muito, daquela na qual a maior parte dos códigos foi formulada, entre o século XIX e metade do século XX. Na verdade, não apenas o mundo material, concreto, cultural - mas, também -, a mentalidade do homem sofreu transformações significativas. No âmbito jurídico, os estudos de Semiótica e de Semiologia estimularam a descrença na univocidade linguística e tornaram flagrante a imprecisão da linguagem, mudando a prática interpretativa na resolução de conflitos. Palavras são uma das formas assumidas pelos signos e, portanto, por mais claras que sejam, sempre são passíveis de serem interpretadas, porquanto representam elementos cognitivos, apreendidos pela mente.Destarte, a norma codificada é, necessariamente, incapaz de promover respostas adequadas, em absoluto, aos casos concretos únicos, singulares irrepetíveis. A incompatibilidade entre a realidade externa, extremamente mutável e humanamente inconcebível em sua totalidade de elementos abstratos, e uma estrutura linguística preconcebida – o texto normativo –, torna evidente a impossibilidade de se ter - até mesmo em sistemas Civil Law, tal como no Brasil – os códigos como fonte única do Direito. A crença cega na concepção da interpretação literal ou exegética (in claris non fit interpretatio), como única correta, perdeu força, e novos métodos interpretativos foram criados, todavia o método gramatical ainda é muito importante para a hermenêutica jurídica atual.

Apesar de todos os problemas e limitações do legalismo exacerbado, o tema da codificação jurídica ainda é de grande relevância para o progresso da Ciência do Direito. Segundo o brocardo muito do gosto dos historiadores: “vão-se os anéis e ficam os dedos”, ou seja, apesar da derrocada e crise da Escola da Exegese de cunho ultra-legalista, a era das grandes codificações deixou como legado para a posteridade a sistematização do conhecimento jurídico e a importância de decompor o direito em áreas específicas, com a divisão da matéria jurídica em setores de conteúdos semelhantes, tais como o Direito Civil e Penal. O desenvolvimento de códigos estruturados para cada área contribuiu para a diminuição da subjetividade na construção do ato sentencial, visto que a codificação, em si mesma, oferece melhores critérios de diferenciação para a escolha e aplicação de normas na resolução de conflitos reais.

Ademais, na atual conjuntura do debate acerca do ativismo judicial, o sistema jurídico codificado surge, então, como um meio de intensificar e deixar mais explícito o vínculo entre lei e decisão, mais especificamente, entre o juiz e a norma codificada. Com a criação dos códigos jurídicos, houve a imposição de maior rigor metodológico e processual no momento da resolução de casos concretos, chamando a atenção para a importância da segurança e certeza jurídica. Desse modo, a segurança jurídica significa maior previsibilidade e menor arbitrariedade nas decisões judiciais. Além disso, uma segurança jurídica garantida pela codificação também contribui para o aperfeiçoamento da coerência do sistema, haja vista que garante uma correção avaliativa mais exata e suscetível a controle. Portanto, a previsibilidade inserida no conceito de segurança jurídica é novamente acentuada, já que casos concretos semelhantes passam a ser decididos de forma semelhante, de modo a intensificar o processo de redução de expectativas.

Outrossim, a diferenciação no direito promovida pela codificação foi um dos recursos utilizados pelos estados modernos para a sustentação de duas de suas características fundamentais: a inegabilidade dos pontos de partida e a obrigatoriedade de decidir. A crescente complexidade social tornou necessária uma maior diferenciação e sistematicidade entre as normas, visto que somente estas são capazes de prover significação jurídica a uma ação fática. O direito codificado também influencia o processo de legitimação da decisão jurídica, uma vez que o uso de normas codificadas torna desnecessária a fundamentação por meio dos princípios de decisão, pois um sistema codificado pressupõe a incorporação dos princípios jurídicos fundamentais à estrutura da norma codificada. Isto é, ao utilizar-se de uma norma do sistema, o intérprete já está fazendo uso de um princípio jurídico consentido e internalizado. A legitimidade do direito, portanto, é construída pela autorreferência do Direito dogmaticamente organizado, a qual é sempre suscetível às relações de poder.


9. Referências

9.1. Primária

HASSEMER, Winfried. Sistema Jurídico e codificação: A vinculação do juiz à lei. In KAUFMANN, A. e Hassemer, W. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Revisão cientifica e coordenação de António Manuel Hespanha. Tradução de Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, cap. 4, p. 281-300.

9.2. Secundárias

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica - Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009;

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva;

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10. Notas

[1]KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 37.

[2]COELHO, Luiz Fernando. Aulas de Introdução ao Direito. São Paulo: Manole, 2004, p. 177.

[3]ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica - Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 218.

[4]Idem, ibidem, p. 147.

[5]KANT, Immanuel. In: BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 139.

[6]Cf. AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço.

[7]Cf. OLIVEIRA, Alberto de. O vaso chinês (poema).

[8]DINIZ, Maria Helena.Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.São Paulo: Saraiva, 2012, p. 66-67.

[9]GAMBOGI, Luís Carlos Balbíno. Direito: razão e sensibilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 123.

[10]DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 67.

[11]AFTALIÓN, Enrique R. e VILANOVA, José. Introduccion al derecho: conocimiento y conocimiento cientifico, historia de las ideias juridicas, teoria general del derecho, teoria general aplicada.Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1988, p. 262.

[12]Tradução livre de: “We shall endeavour to exhibit certain general traits of this period in which the law as well as the language exists in the consciousness of the people”. In SAVIGNY, K. F. . Of the Vocation of Our Age for Legislation and Jurisprudence, trans. Abraham Hayward. New York: Arno Press, 1975, p. 25.

[13]AFTALIÓN, Enrique R. e VILANOVA, José. Op. Cit, p. 261.

[14]PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 71 e 72.

[15]REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 297.

[16]DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 68.

[17]PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 319.

[18]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 388.

[19]MACHADO NETO, A. L. Teoria  da  Ciência  Jurídica. São Paulo, Editora Saraiva, 1975, p.135.

[20]DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 133.

[21]ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Editora Landy, 2005, p. 33.

[22]WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 25.

[23]SILVA, José Afonso da . Constituição e Segurança Jurídica. In Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Org. Cármen Lúcia Antunes Rocha. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 16.

[24]OLIVEIRA, Aline Lima de. A limitação dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade no Brasil: uma análise da influência dos modelos norte-americano, austríaco e alemão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 92.

[25]STAMFORD, Artur. A Decisão Judicial: dogmatismo e empirismo. Curitiba: Editora Juruá, 2000, p.101.

[26]KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos Borges.São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 182.

[27]ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica - Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p.176.

[28]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 4.

[29]ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 164.

[30]LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1983, p. 229.

[31]BOBBIO, Noberto. Teoria Geral do direito. São Paulo: Martins fontes, 2010, p.303.

[32]GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p. 44.

[33]BROCHADO, Maria. Apontamentos sobre hermenêutica jurídica. Revista Jurídica Virtual. Presidência da República (Cessou em 2005. Cont. 1808-2807 Revista Jurídica (Brasília. Online)), v. 13, p. 248.

[34]DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva 2011, p. 24.

[35]ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Editora Landy, 2005, p. 35.

[36]GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p. 39.

[37]FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 333.

[38]ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica - Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 87.

[39]SOBOTA, Katharina. Não Mencione a Norma! Trad. João Maurício Adeodato. In Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, n. 7. Recife: Universitária, 1995, p. 251-273.

[40]VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudênciaBimprensa Nacional: Editora Universidade de Brasília: Departam, 1979. p. 17.

[41]ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011, p. 294-300.


Autores

  • Eduardo Almeida Pellerin da Silva

    1. Formação acadêmica: graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR)/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (2016) e especialização em Processo Civil pela Faculdade Damásio (2018); 2. Atuação profissional: advogado proprietário do escritório Eduardo Pellerin Advocacia e Consultoria, o qual atuou com advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Consumidor e Administrativo (2020-2021), advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Administrativo e Processo Civil para Pequeno e Beltrão Advogados (2020-2021), assistente de Desembargador e servidor público federal do TRT6 (2021), assistente de Juíza e analista judiciário do TRT2 (2022-atual); 3. Concursos: aprovado em vários, com destaque para o TRF5, TRT6, TRT1, TRT2 e TRT15; 4. Pesquisa e produção: autor do livro "O ativismo judicial entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade: a racionalidade da melhor decisão judicial de controle de políticas públicas diante da ineficiência estatal na concretização de direitos fundamentais", pesquisador bolsista do PIBIC UFPE/CNPq - no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), linha de pesquisa: "A metafísica da doutrina do Direito em Kant: moral, ética e Direito" (2015-2016), publicou capítulo de livro, doze artigos científicos, em revistas jurídicas especializadas, jornais, anais de eventos e apresentou artigos, em congressos científicos; 5. Ensino: foi monitor das cadeiras de Introdução ao Estudo do Direito I, Direito das Coisas e Processo de Execução; 6. Extensão: Serviço de Apoio Jurídico-Universitário (SAJU) e Pesquisa-Ação em Direito (PAD): As relações entre a ficção jurídica e a ficção literária; 7. Formação complementar: fez vários cursos em Direito, Ciência Política, Português e Oratória; 8. Congressos: participou de mais de uma dezena.

    Currículo: http://lattes.cnpq.br/9336960491802994

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    Silvério Souto Maior

    Graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Centro de Ciências Jurídicas - CCJ, Faculdade de Direito do Recife – FDR.

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  • João Amadeus Alves dos Santos

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    graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Centro de Ciências Jurídicas - CCJ, Faculdade de Direito do Recife – FDR.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Eduardo Almeida Pellerin da; MAIOR, Silvério Souto et al. A codificação jurídica e seus desdobramentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3415, 6 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22957. Acesso em: 8 maio 2024.