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Querela nullitatis e coisa julgada inconstitucional no Direito brasileiro.

Uma proposta de adequação à teoria dos princípios jurídicos

Querela nullitatis e coisa julgada inconstitucional no Direito brasileiro. Uma proposta de adequação à teoria dos princípios jurídicos

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Por meio da querela nullitatis, a desconstituição da coisa julgada taxada de inconstitucional deve estar orientada pelos critérios estabelecidos para a ponderação entre valores constitucionais, bem como deve atentar para os efeitos da desconstituição sobre o sistema jurídico como um todo.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os principais aspectos processuais envolvendo a chamada ação de querela nullitatis (ação de nulidade de sentença), e sua recepção e aplicação pela jurisprudência brasileira. A partir dessa análise, pretende-se buscar subsídios para compor uma estrutura teórica capaz de lidar com o problema da chamada “coisa julgada inconstitucional”. Para tanto, serão utilizados os postulados da teoria dos princípios jurídicos – sobretudo a partir de textos de Ronald Dworkin e Humberto Ávila – bem como elementos processuais referentes ao sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.

Palavras-chave: Querela nullitatis; coisa julgada inconstitucional; sistema de controle de constitucionalidade; teoria dos princípios jurídicos. 

Sumário: Considerações Iniciais; I. Conceito, Natureza Jurídica e Objeto da Querela Nullitatis; II. O Sistema de Nulidades Processuais e o Instituto da Querela Nullitatis; III. A Ação Rescisória e a Querela Nullitatis; IV. Coisa Julgada Inconstitucional; IV. 1. O Sistema de Controle de Constitucionalidade Brasileiro e sua Repercussão sobre o Momento de Constituição da Coisa Julgada; IV. 2. Desconstituição da coisa julgada: a querela nullitatis como instrumento para afirmação de valores constitucionais; Considerações Finais; Bibliografia.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal estabelece que a “lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, erigindo estes institutos à qualidade de direitos fundamentais. Com efeito, a coisa julgada é um direito fundamental relacionado à segurança jurídica e a previsibilidade característica do Estado de Direito. Sem o fenômeno da coisa julgada a jurisdição perde força, uma vez que impossibilitada a afirmação de forma definitiva do direito do cidadão[1]. Por outro lado, assim como qualquer direito fundamental, a coisa julgada não tem caráter absoluto. Alguns instrumentos permitem a sua relativização em casos excepcionais, tais como a ação rescisória, a impugnação de sentença inconstitucional (artigo 475-L, §1º e artigo 741, parágrafo único do CPC[2]) e a chamada querela nullitatis (ação de nulidade de sentença). O que autoriza a relativização desse direito fundamental é a gravidade de uma eventual nulidade processual, que poderia até mesmo macular a própria existência do devido processo legal no caso concreto. Em uma ponderação de princípios fundamentais, o ordenamento jurídico optou por afastar a coisa julgada em detrimento da segurança jurídica em determinadas situações. Cada um dos instrumentos mencionados abarca uma situação específica de impugnação. A ação de nulidade da sentença visa atacar a decisão judicial dotada de vícios transrescisórios[3], como a ausência de citação ou citação defeituosa do réu. Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade no ordenamento pátrio em se ajuizar a querela nullitatis para desconstituir a coisa julgada inconstitucional.


I. CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E OBJETO DA QUERELA NULLITATIS

Sobre a definição da querela nullitatis a doutrina processual brasileira ainda encontra campo fértil para divergências. Em linhas gerais, os seus principais característicos podem ser assim elencados: é o remédio adequado para impugnar os vícios de atividades (errores in procedendo) mais graves, relacionados com os pressupostos de existência do processo, que não são acobertados pela coisa julgada. 

A natureza jurídica da querela nullitatis é de ação autônoma de impugnação da decisão judicial. É uma ação de natureza constitutiva que busca invalidar uma decisão judicial. Para Teresa Arruda Alvim Wambier, é uma ação de natureza declaratória, que busca declarar a inexistência de uma sentença.

Conforme lição de Alexander dos Santos Macedo, a chamada querela nullitatis constitui gênero dos remédios utilizáveis para impugnação de sentença eivada de vício de nulidade ou falta de citação do réu. Comentando essa questão ainda com base nos dispositivos do CPC anteriores à reforma promovida pela Lei Federal n. 11.232 de 2005, as espécies seriam:

“a) os embargos do executado do art. 741, inciso I, do CPC, nos quais a querela está inserta; e b) a ação declaratória da nulidade do processo, ou seja, a actio nullitatis, que consubstancia propriamente a querela nullitatis. Na hipótese mencionada por Pontes de Miranda e acima referida, entendemos que a exceptio nullitatis, de que se fala, há de ser arguida, não como defesa apenas, mas sob a forma de actio nullitatis incidental. Por seu pedido de declaração incidente formulada pelo autor, ela assumirá a feição de ação conexa.” [4][5]

Nesse sentido, caso se entenda correta a posição assumida por Pontes de Miranda, a querella nullitatis deverá ser compreendida como um instituto processual destinado a impugnar a formação da coisa julgada em uma relação processual que se desenvolveu de forma irregular, sem a citação do réu para apresentação de defesa.[6] Nesse sentido, em uma situação em que o réu está sendo executado com base em sentença condenatória proferida em processo no qual não foi citado, poderá impugnar a execução com base no art. 475-L, I do CPC. Essa impugnação exercerá, então, o papel da querela nullitatis, e poderá desconstituir a decisão ainda durante o prazo da ação rescisória:

“Mesmo se ainda estiver em curso o biênio relativo à ação rescisória, entendemos que esta deixa de ser necessária diante do ajuizamento da ação de embargos do executado; esta ação propicia ao devedor o mesmo resultado prático e algo mais. Propicia o mesmo resultado, porque faz cair a relação processual a partir da citação, que terá de ser renovada, e com ela, obviamente, a sentença.” [7]

Com relação ao seu objeto, a doutrina diverge com relação às hipóteses de cabimento da chamada querela nullitatis, ou ação declaratória de inexistência ou de nulidade do processo.

Alguns autores entendem ser a querela nullitatis uma modalidade de ação declaratória, voltada precisamente para a impugnação de sentenças inexistentes. Nesse sentido, Humberto Theodoro Jr. afirma sua tradicional posição no sentido de que “cabe, então, a ação comum declaratória de nulidade, se o caso for de sentença nula ipso iure ou inexistente, e cabe ação rescisória se a sentença válida como ato processual tiver incorrido em uma das hipóteses que a tornam desconstituível”[8].  

Para Teresa Arruda Wambier, as sentenças inexistentes são fruto de processos inexistentes, e não podem transitar em julgado, razão pela qual contra elas não seria cabível a ação rescisória. Para a autora, as hipóteses de cabimento da ação de nulidade ou de inexistência abrangem[9]: (a) sentenças com ausência de decisório; (b) sentenças proferidas em processo instaurado com a falta de uma das condições da ação; (c) sentenças proferidas em processos aos quais tenha faltado pressuposto processual de existência: citação, petição inicial, jurisdição e capacidade postulatória; (d) sentenças em processo formado com citação nula aliada à revelia; (e) sentença em que não tenha sido citado um litisconsórcio necessário; (f) sentença que não contenha assinatura do juiz ou não esteja escrita.

Para outros autores, como Roque Komatsu[10] e Vicente Greco Filho[11], as sentenças tidas por inexistentes não são convalidadas pela coisa julgada, e, com isso, não precisam ser impugnadas via ação de nulidade específica. Para esses autores, o âmbito de incidência da querela nullitatis se restringe aos casos de sentença proferida por quem não é magistrado, quando há falta de procuração do advogado e, em regra, quando não houve citação.

Em um dos trabalhos pioneiros sobre o tema na literatura brasileira, Adroaldo Fabrício Furtado[12] restringe ainda mais o cabimento da querela nullitatis. Para o autor, somente serão impugnadas por essa ação aquelas sentenças em cujo processo não tenha havido citação da parte contrária ou em que essa seja nula. Esse também o entendimento de Alexander dos Santos Macedo, conforme acima exposto, e de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha[13] [14].


II. O SISTEMA DE NULIDADES PROCESSUAIS E O INSTITUTO DA QUERELA NULLITATIS

O estudo sobre a função da chamada querela nullitatis no sistema processual civil brasileiro perpassa pela compreensão das nulidades processuais[15]. Duas modalidades de vícios podem ocorrer no processo civil: os vícios in iudicando e os vícios in procedendo. Os primeiros estão relacionados com o conteúdo da decisão judicial, ou seja, decorrem de um julgamento em que houve a má apreciação da prova ou da aplicação equivocada da lei ao caso concreto. Os vícios ou errores in procedendo, por sua vez, são identificados por uma falha no procedimento de julgamento. Essa segunda categoria é também conhecida sob a denominação de vícios de atividade, por estar relacionada com a forma ou o modo como se opera um julgamento.

A ação de querela nullitatis está voltada para a correção de vícios de atividade. Estes podem ser agrupados conforme a intensidade com que geram seus efeitos sobre a relação processual. Segundo Alexander Macedo, esses vícios estão divididos em quatro grupos[16]:

(a) Os vícios de peso 1: aqueles caracterizados pela nulidade relativa, e se tornam sanados pela simples ocorrência da preclusão temporal, como dispõe o artigo 245 c/c os artigos 183 e 473, todos do CPC. Caso não tenham sido alegados tempestivamente pela parte interessada, não podem mais ser rediscutidos, quer no mesmo processo, ou em qualquer outro. São exemplos a incompetência relativa, que deve ser arguida pela parte, em apartado, no prazo de quinze dias (artigos 112 e 305 do CPC) ; assim também o compromisso arbitral, que será renunciado na medida em que o autor ajuíza a ação e o réu, deixa de arguir a questão em preliminar de contestação.

(b) Os vícios de peso 2: são mais graves e subsistem ao efeito sanatório da simples preclusão temporal, mas não resistem à eficácia preclusiva da coisa julgada material, caso não sejam arguidos em recurso. Exemplo dessa modalidade de vício consiste na omissão de ponto sobre que deveria se manifestar a sentença (omissão de decisão sobre um dos capítulos do pedido), que deve ser alegada em embargos de declaração ou apelação.

(c) Vícios de peso 3: são aqueles vícios de extrema gravidade que podem ser conhecidos de ofício pelo juiz e subsistem ao efeito sanatório da coisa julgada, podendo servir como causa de pedir da ação rescisória, como faculta o artigo 485 do CPC. Estão nesta classe, por exemplo, a incompetência absoluta (inciso II), a ofensa à coisa julgada (inciso IV), a violação de literal disposição de lei processual. São vícios que podem e devem ser reconhecidos de ofício pelo juiz; em relação a eles não se aplica a preclusão pro iudicato[17], podendo ser alegados em recurso ou mesmo em ação rescisória.

(d) Vícios de peso 4: podem ser impugnados mesmo após a perda do prazo da ação rescisória. José Carlos Barbosa Moreira agrupa-os na classe dos vícios que, dispensando o exercício da rescisória, são alegáveis como óbices à execução, através de embargos. Encontra-se nessa classe aquele que é considerado o mais grave vício de atividade: a falta ou nulidade de citação do réu, no processo de conhecimento, se a ação lhe correu à revelia.

A ausência ou a irregularidade na citação do réu é o mais grave erro de atividade que pode acometer a relação processual. No CPC, em relação ao processo de conhecimento, estatui o artigo 214 que “para a validade do processo é indispensável a citação inicial do réu”; no artigo 485, que “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: V - violar literal disposição de lei”; no artigo 475-L que “a impugnação somente versará sobre: I – falta ou nulidade de citação, se o processo correu à revelia”; e no artigo 741, que “na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: I - falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia”. Caso o vício ocorra em execução, o CPC determina que ela será nula (artigo 618, II).

Alguns autores consideram que a sentença proferida em processo de cognição no qual tenha ocorrido o vício na citação é inexistente. Essa é a posição de Liebman, Moniz de Aragão e Vicente Greco Filho. Dessa posição diverge Cândido Rangel Dinamarco, para quem a citação não pode ser vista como um pressuposto de existência do processo, porquanto no momento em que é realizada já existe processo. Segundo esse autor, a citação seria apenas condição de eficácia do processo em relação ao réu, e requisito de validade dos atos praticados no processo que lhe seguirem.

A questão que deve ser colocada, portanto, diz respeito ao réu que não foi citado para o processo de conhecimento, que correu à sua revelia, e que somente veio a tomar conhecimento do processo de execução contra si após mais de dois anos do trânsito em julgado da sentença. Moniz de Aragão coloca o problema da seguinte maneira:

“Suponha-se, no entanto, que o autor, maliciosamente, usa de um ardil para evitar a citação do réu e com isso, por não ter sido feita ou ser nula, obtenha, ante a revelia, sentença favorável. Contra esta também cabe, é natural, ação rescisória, para ser decretada a nulidade da sentença, como a de todo o processo. Admita-se que o vencido, todavia, não a proponha e, decorridos dois anos, a autor execute a sentença; pois bem, nessa ocasião, em embargos (art. 741, I), opor-lhe-á o vencido – independentemente de se haver escoado o prazo para a ação rescisória – que a sentença e bem assim o processo todo, é juridicamente inexistente, podendo o juiz, se acolher a alegação, decretar-lhe a invalidade.” [18]

Na situação cogitada, o réu já não teria qualquer recurso, bem como já lhe teria escoado o prazo da rescisória e, caso também não tenha sido citado em processo de execução, não poderia oferecer embargos. A solução para tais casos está somente no manejo da querela nullitatis[19][20]


III. A AÇÃO RESCISÓRIA E A QUERELA NULLITATIS

Para uma melhor compreensão acerca do cabimento da ação rescisória e da querela nullitatis convém, antes, anotar os traços que as diferenciam: (i) a ação rescisória possui um rol taxativo de causas de pedir, mais amplo, que está exposto no artigo 485, e deve ser proposta perante o tribunal; (ii) a ação rescisória permite a rescisão da sentença por motivos relacionados à sua validade e à sua justiça, enquanto a querela nullitatis restringe-se à invalidação da sentença; (iii) a ação rescisória deve ser interposta dentro do prazo de dois anos após o trânsito em julgado da decisão, conforme o art. 495 do CPC. A querela nullitatis, por sua vez, não possui prazo predeterminado para o seu ajuizamento. Com relação ao segundo ponto de diferenciação, a doutrina estabelece uma divisão entre os atos processuais inexistentes e os inválidos[21]. Para Pontes de Miranda, as decisões inexistentes são válidas, mas atacáveis por ação rescisória, enquanto as nulas são aquelas que, embora existentes, não valem e são atacáveis a qualquer tempo.

Parte da doutrina, orientada pelos trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira, entende que a ação rescisória é cabível contra decisão que violou literal disposição de lei processual, com base no artigo 485, V, do CPC. Nesse sentido, em hipótese de processo no qual o réu não tenha sido citado para oferecer contestação, poderia este desconstituir a decisão rescindenda dentro do prazo bienal, mas o tribunal competente para a rescisória não poderá passar ao iudicium rescissorium:

“Após o julgamento de procedência no iudicium rescindens, que produz a invalidação da sentença, a regra é que, reaberto o litígio por esta julgado, caiba desde logo ao próprio tribunal emitir sobre ele novo pronunciamento, que de ordinário poderá favorecer ou não o autor vitorioso no iudicium rescindens. Em certas hipóteses, porém, não é assim que se passam as coisas. Com efeito, pode acontecer: a) que a rescisão da sentença, por si só, esgote toda a atividade jurisdicional concebível - por exemplo, se o pedido se fundou em ofensa à coisa julgada de decisão anterior sobre a mesma lide... b) que, embora insuficiente a rescisão, o remédio adequado à correção do que erradamente se fizera não consista na imediata reapreciação da causa pelo próprio tribunal que rescinde a sentença, tornando-se necessária a remessa a outro órgão - v. g., quando tiver ocorrido incompetência absoluta (art. 485, nº II, fine), hipótese em que a cognição deve ser devolvida ao juízo competente...; ou, ainda, quando a invalidade da sentença houver sido mera consequência de vício que afetara o processo anterior, de tal sorte que este precisará ser refeito, na medida em que aquele o haja comprometido (exemplos: a citação fora nula, sem convalidação; deixara de intimar-se o Ministério Público, apesar de obrigatória a sua intervenção).” [22]

Ultrapassada a análise sobre a natureza jurídica da querela nullitatis, podemos verificar que sua hipótese de cabimento mais aceita pela doutrina brasileira consiste na desconstituição da coisa julgada nas causas em que não houve citação do réu ou essa se deu de forma defeituosa. Nessa hipótese, a ação de nulidade de sentença se mostra como um instrumento essencial para assegurar garantias fundamentais do processo, como o contraditório, a ampla defesa e a isonomia entre as partes. Isso porque, a ausência da participação do réu em razão de defeitos no procedimento citatório leva à conclusão de que a relação processual não foi integralizada. Nada mais natural, que a decisão definitiva sobre essas causas possam ser revistas em sede de querela, com o objetivo de garantir a plena participação do réu – parte até então ausente – no curso do procedimento. O exame da querela nullitatis não pode se restringir, contudo, a essa única hipótese de cabimento. Precisamos, agora, avançar sobre a análise de um dos aspectos mais controvertidos na doutrina acerca do tema: a possibilidade de desconstituição da chamada coisa julgada inconstitucional.


IV. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

1. O Sistema de Controle de Constitucionalidade Brasileiro e sua Repercussão sobre o Momento de Constituição da Coisa Julgada

O controle de constitucionalidade no Brasil pode ocorrer de forma difusa cujo meio de impugnação do ato inconstitucional se dá incidentalmente no curso do processo, ou de forma concentrada diretamente no Supremo Tribunal Federal, por meio dos seguintes instrumentos processuais: a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual[23]; a ação direta de inconstitucionalidade por omissão[24]; a ação declaratória de constitucionalidade[25]; a ação direta interventiva[26]; e a arguição de descumprimento de preceito fundamental[27] [28].

Em regra, a declaração de inconstitucionalidade da lei no controle difuso alcança apenas as partes e torna a lei nula de pleno direito, produzindo efeitos retroativos à sua edição[29] [30]. Para que a decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso tenha efeitos erga omnes, ela deve ser definitiva, tomada pela maioria absoluta do pleno do tribunal, e o Senado, com base no artigo 52, X, da Constituição, deve suspender a sua execução por resolução[31]. Nesse caso, os efeitos da resolução do Senado são erga omnes e ex nunc, sem retroação.

Com relação ao controle concentrado de constitucionalidade, de uma maneira geral, os efeitos da decisão recaem contra todos e são retroativos, ou seja, trata-se de ato nulo. O artigo 27 da Lei 9.868/99, contudo, estabelece a exceção ao facultar ao Supremo Tribunal Federal, em caso de segurança jurídica ou excepcional interesse social, por maioria qualificada de dois terços de seus membros, restringir no tempo os efeitos da decisão, que terá sua eficácia determinada a partir do momento que os ministros fixarem. Ou seja, o referido dispositivo pretende conceder à corte a capacidade de restringir e limitar o campo temporal pretérito sobre o qual os efeitos da decisão de inconstitucionalidade recairão. Dessa forma, os ministros podem determinar uma data específica a partir da qual a decisão começará a produzir efeitos, com o objetivo de preservar atos jurídicos que eventualmente tenham sido celebrados ainda sob a vigência da lei impugnada[32].

Dessa forma, em linhas gerais, temos as seguintes possibilidades com relação aos efeitos das decisões em controle de constitucionalidade: (a) no controle difuso, os efeitos são produzidos entre as partes e retroativos à edição da lei inconstitucional; (b) no controle difuso com resolução do Senado (artigo 52, X da Constituição), os efeitos atingem todos (erga omnes) a partir da resolução; (c) no controle concentrado, os efeitos da decisão são também para todos e retroativos à edição da lei inconstitucional; (d) no controle concentrado com modulação no tempo (artigo 27 da Lei 9.868/99), os efeitos para todos passam a contar da data fixada pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, podemos observar a hipótese de uma demanda em que a sentença já com trânsito em julgado teve como fundamento lei posteriormente declarada inconstitucional pelo STF com efeitos erga omnes.

Com relação à situação acima configurada não surgem maiores problemas uma vez que a decisão ainda pode ser impugnada quando do cumprimento da sentença com base no artigo 475-L ou em sede de embargos à execução contra a Fazenda Pública nos termos do artigo 741, todos do Código de Processo Civil.

Cabe, contudo, analisar mais detidamente aquelas situações em que não há mecanismo jurídico predeterminado para impugnação da coisa julgada inconstitucional. Mais precisamente, essas situações podem ser classificadas da seguinte forma: (a) lei declarada inconstitucional antes de passados dois anos do trânsito em julgado de sentença declaratória; (b) lei declarada inconstitucional após o cumprimento da sentença, mas antes de passados dois anos do trânsito em julgado; (c) lei declarada inconstitucional após o cumprimento da sentença e depois de passados dois anos do trânsito em julgado.

A falta de instrumento literalmente previsto para impugnação da coisa julgada inconstitucional nas hipóteses acima é, em parte, aparente, uma vez que é assente na doutrina e na jurisprudência que o artigo 485, V, do Código de Processo Civil[33], deve ser lido de forma abrangente para contemplar tanto a norma infraconstitucional como a constitucional[34]. Nesse sentido, as sentenças proferidas com base em lei posteriormente declarada inconstitucional podem ser objeto de ação rescisória na hipótese do inciso V do artigo 485 do CPC, desde que atendido o requisito temporal referente ao prazo bienal, uma vez que tal dispositivo abrange também os casos de violação da própria norma constitucional[35]. Dito isso, é de se concluir que a única hipótese em que não se afigura possível relativizar a coisa julgada inconstitucional é a aquela em que houve o transcurso de mais de dois anos do trânsito em julgado.

A questão controvertida, então, é a de saber em que medida uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado ou controle difuso seguido de resolução do Senado Federal, declarando a inconstitucionalidade de uma norma, pode atingir aquelas decisões pretéritas tomadas com base na lei ora impugnada e já acobertadas pela coisa julgada. Vale lembrar que a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em controle concentrado – em ação direta – produz, em regra, efeitos retroativos (ex tunc), alcançando todas as relações jurídicas constituídas sob a vigência da lei ou ato normativo.

Essa questão deve ser desdobrada de acordo com as modalidades de situações jurídicas que foram definidas e reguladas sob a égide da lei ou ato normativo inconstitucional: (I) as relações jurídicas continuadas estendem os efeitos produzidos no tempo, e podem perfeitamente sofrer as repercussões geradas pela mudança do estado de constitucionalidade das leis ou atos normativos que as regem, que incidirão sobre os efeitos futuros da relação jurídica de trato continuado[36]; (II) as relações jurídicas definitivas com sentença transitada em julgado.

2. Desconstituição da coisa julgada: a querela nullitatis como instrumento para afirmação de valores constitucionais

Com efeito, para se afastar uma regra constitucional que protege o direito fundamental à inviolabilidade da coisa julgada devemos verificar se é possível a não aplicação da regra constitucional em determinados casos, quando uma ponderação entre os princípios constitucionais em jogo permitir que se afaste a tutela da segurança jurídica em prol de outro princípio não menos importante dentro da sistemática axiológica constitucional. Nessa medida, ao se adotar esse posicionamento, seria perfeitamente plausível o uso da querela nullitatis como forma de garantir o equilíbrio entre os valores constitucionais, quando uma decisão judicial tenha se pautado em lei declarada inconstitucional em momento posterior ao biênio previsto para a propositura da rescisória.

“É que o princípio da segurança jurídica, como os princípios em geral, não têm caráter absoluto. É possível cogitar, portanto, da necessidade de fazer sua ponderação com outros princípios de igual estatura, como o da justiça ou da moralidade, mediante a utilização do princípio instrumental da razoabilidade-proporcionalidade.”[37]

Todavia, ainda que haja entendimento no sentido de ser cabível a querela nullitatis para as situações referidas, a posição majoritária na doutrina processual e constitucional brasileira admite a relativização da coisa julgada tem caráter excepcional. E não poderia ser de outro modo. A regra geral está no sentido de que se deve preservar a estabilidade da jurisdição e, consequentemente, a proteção estabelecida pela coisa julgada.

Com relação á não aplicação da regra constitucional – protetora da coisa julgada –, vale consignar que o próprio ordenamento já autoriza a sua relativização nos casos já mencionados, além da hipótese da revisão criminal[38], o que já mostra a relatividade do direito fundamental em questão. Apesar de os exemplos servirem para mostrar tal possibilidade, não é suficiente para justificar o afastamento da coisa julgada por meio de ação da querela nullitatis.

Contudo, o fundamento para se defender a relativização da coisa julgada encontra campo fértil na teoria dos princípios jurídicos[39] [40]. Na teoria do direito norte-americana, Ronald Dworkin traçou aquela que pode ser considerada uma das mais importantes viradas teóricas: a distinção entre regras e princípios jurídicos. Os princípios diferem das regras, segundo Dworkin, em alguns aspectos: (I) os princípios não funcionam de acordo com o modelo tudo ou nada, que constitui o modelo de aplicação das regras.  Segundo esse modelo, uma regra deve prever exatamente todas as suas possibilidades de aplicação, incluindo, portanto, as possíveis exceções para o seu comando[41]. De outra forma, os princípios não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente, sob determinadas condições, uma vez que possuem uma textura normativa aberta. Um princípio pode regular um caso concreto no sentido de uma decisão, ao mesmo tempo em que afasta outro princípio, não menos válido, que produziria decisões contrárias caso fosse aplicado; (II) o primeiro aspecto caracterizador dos princípios revela seu segundo ponto de distinção em relação às regras, que consiste na característica de que os princípios não são mutuamente excluídos quando aplicados em um caso concreto. Quando um juiz se defronta com uma questão controvertida, em que dois ou mais princípios estão aparentemente em contraste, a sua opção por um deles não significa que o outro deve ser automaticamente excluído do sistema do direito. Pelo contrário, a operação hermenêutica nesses casos, em que princípios estão em conflito, envolve uma técnica conhecida como sopesamento[42]; (III) a técnica do sopesamento pressupõe que os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm: a dimensão de peso ou importância. As regras são funcionalmente importantes ou desimportantes, quer dizer, podem desempenhar um papel maior ou menor na regulação do comportamento. Uma regra que estabelece o sistema eleitoral majoritário ou proporcional tem maior importância do que a regra que define o critério de distribuição do tempo gratuito de cada partido nos meios de comunicação. As regras possuem maior ou menor importância na regulação do comportamento, mas do ponto de vista do sistema formal de regras, não se pode dizer que uma tem maior importância do que outra a ponto de suplantá-la. De outro modo, os princípios podem ser valorados, ou seja, indicam pesos normativos diferentes que devem ser ponderados de tal forma que, se dois princípios estão em conflito, um possa superar o outro em função de sua maior importância para o sistema, e não para a regulação do caso em concreto.

Na literatura brasileira, Humberto Ávila, em sua “Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos”, desconstrói a ideia de que as regras devem necessariamente ser aplicadas quando da sua hipótese de incidência, sem o cotejo das demais circunstâncias[43]. Ao tratar das regras, o autor dedica uma parte do tema para demonstrar a possibilidade da sua superação. O tema é introduzido pela justificativa da obediência a regras. Nesse ponto Humberto Ávila explica que as regras não devem ser obedecidas somente pelo simples fato de serem regras e por serem editadas por uma autoridade, mas também pelo aspecto moral positivo da sua obediência e sobretudo por prestigiar valores protegidos pelo ordenamento como a segurança e a igualdade. Ocorre que as regras envolveriam também valores que careceriam de ponderação, o que permitiria serem superadas em situações excepcionais, em razão de eventuais conflitos sobre valores de fundo.

Para se compreender o pensamento de Ávila acerca da possibilidade de superação das regras em situações específicas, é preciso analisar, antes, os tipos de valores que, segundo o autor, compõem a estrutura axiológica de uma regra: o valor substancial e o valor formal. O valor formal subjacente às regras pode ser sempre encontrado, segundo Ávila, na promoção da segurança. Nesse sentido, é característica comum às regras o fato de trazerem certo grau de previsibilidade para um sistema jurídico, uma vez que comportam uma descrição pormenorizada da hipótese fática sobre a qual pretendem incidir. Diferentemente dos princípios, as regras já trazem em sua própria estrutura, como um verdadeiro pressuposto para a sua normatividade, uma ponderação anterior sobre um conflito de razões que pretendem decidir de forma previsível para o futuro. Nesse sentido, Ávila explica que as regras são preliminarmente decisivas, ou seja, têm a pretensão de gerar uma solução específica, a priori, para o conflito entre razões que concorrem como diretrizes para a solução de casos concretos[44]. De forma distinta, os princípios estabelecem diretrizes valorativas gerais a serem atingidas, sem descrever preliminarmente qual o comportamento adequado para a sua realização. Diante disso, os princípios necessitam de alguma medida de complementação entre si, de um entrelaçamento entre eles que possa produzir uma ponderação necessária para a solução de cada caso individual. Assim, segundo Ávila, são normas com pretensão de complementaridade. As regras, por sua vez, possuem pretensão terminativa, uma vez que pretendem abranger todos os aspectos relevantes para a solução de situações conflituosas específicas e, dessa, forma, garantem maior previsibilidade para a decisão[45]. É essencial que seja destacado um elemento importante na estrutura sistêmica das regras de Ávila. A despeito de serem preliminarmente decisivas, as regras podem ter sua condição de aplicabilidade preenchida, mas ainda assim não serem aplicadas em determinados casos em razão de circunstâncias excepcionais. São circunstâncias que superam a razão que sustenta a aplicação normal da regra. As regras, portanto, são superáveis, ainda que somente em casos excepcionais. E como condições de superabilidade, Ávila propõe requisitos de ordem material e procedimental.

No que diz respeito aos requisitos materiais, a superação de uma regra – quando ela normalmente seria aplicada – está interligada aos valores que a compõem. Em primeiro lugar, qualquer hipótese de superação deve ter em conta o valor substancial que a regra busca promover, ou seja, a sua finalidade subjacente. Toda regra possui, como pando de fundo, a tentativa de promover uma finalidade específica que constitui a sua própria razão de ser. Nesse sentido, os casos excepcionais de superação não podem fugir ao complexo finalístico da regra, de maneira que o afastamento de uma regra não pode comprometer a sua finalidade subjacente. Em segundo lugar, toda regra tem como valor formal a segurança e, dessa forma, pretende garantir certo grau de previsibilidade para a decisão de conflitos futuros. Em virtude dessa necessidade de segurança formal, qualquer afastamento de uma regra deve mostrar o reduzido grau de probabilidade com que situações similares venham a ocorrer no futuro. Ou seja, a criação de uma exceção à aplicação normal da regra para um conflito específico deve mostra ser o menos prejudicial possível para a estabilidade do sistema jurídico como um todo[46]. Assim, Ávila propõe uma equação inversamente proporcional no sentido de que as regras, por serem instrumentos de solução previsível, eficiente e geralmente equânime de conflitos, a sua superação seria tanto mais flexível na medida em que sua aplicação as tornasse mais imprevisíveis, ineficientes e provocasse maior desigualdade geral.

Quanto ao aspecto procedimental, Humberto Ávila destaca que a superação da regra deve ter uma justificação condizente, que demonstre a incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente, bem como que demonstre que o afastamento da regra não acarretará expressiva insegurança jurídica[47]. Dessa forma, conclui Ávila que a superação da regra não é a uma questão apenas de ponderação entre o princípio da segurança jurídica com outro princípio constitucional, como acontece na ponderação entre princípios constitucionais:

“(...) a superação de uma regra não se circunscreve à solução de um caso, como ocorre na ponderação horizontal entre princípios mediante uma solução de um caso mediante a análise da sua repercussão para a maioria dos casos. A decisão individualizante de superar uma regra deve sempre levar em conta seu impacto para a aplicação das regras em geral. A superação de uma regra depende da aplicabilidade geral das regras e do equilíbrio pretendido pelo sistema jurídico entre justiça geral e justiça individual.”[48]

Com relação ao tema ora tratado, o da coisa julgada inconstitucional, vale destacar, preliminarmente, que a sua previsão normativa na Carta Constitucional brasileira está expressa no artigo 5º, XXXVI, com a seguinte redação: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.  A regra contida nesse dispositivo pode ser concebida como uma ponderação entre o valor da segurança jurídica e o valor da autonomia legislativa para a criação de novas leis. As razões que poderiam ser atribuídas a cada lado da disputa entre a proteção da segurança jurídica e da autonomia legislativa já estão dadas de forma preliminar com o conteúdo da regra, e levam à conclusão de que a proteção da coisa julgada tem prioridade sobre as novas leis produzidas de forma democrática pelo corpo legislativo.

Retomando os critérios de superação de regras estabelecidos por Humberto Ávila, a coisa julgada inconstitucional não resguarda o complexo finalístico da regra uma vez que, no caso, o valor formal trazido consiste na segurança jurídica, e o não afastamento da coisa julgada inconstitucional traz a insegurança consistente na manutenção no ordenamento de valores não conformados com a Constituição. Não atende a previsibilidade, uma vez que não se espera que o ordenamento vá sustentar uma decisão que contrarie a Constituição. É ineficiente na medida em que a norma privilegiada com a decisão transitada em julgado já teria sido extirpada do ordenamento a partir de decisão de inconstitucionalidade que gera efeitos retroativos, e acabaria por promover a desigualdade geral, uma vez que seria aplicada somente naquele caso concreto e não se aplicaria em abstrato em casos futuros. Em outras palavras, os princípios da segurança jurídica e da autoridade do poder judiciário cedem para o princípio da força normativa da Constituição, princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e para o princípio da isonomia, este último na medida em que a aplicação assimétrica da norma viola o referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema.

No caso da regra que estabelece a inviolabilidade da coisa julgada, a finalidade subjacente da regra é justamente a segurança jurídica. Nesse sentido, é um contrassenso pensar que a coisa julgada inconstitucional privilegia a segurança jurídica, sendo certo que não há maior insegurança para o ordenamento do que a manutenção no sistema dos efeitos de uma decisão judicial inconstitucional. O autor destaca também que a superação de uma regra deve ter uma fundamentação racional e transparente de modo a possibilitar seu controle, além de uma comprovação condizente.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A querela nullitatis (ação de nulidade de sentença) é um daqueles institutos jurídicos que não possui previsão expressa no ordenamento jurídico-positivo brasileiro. A despeito da ausência de um marco normativo, alguns dos tribunais pátrios têm recepcionado a utilização dessa via processual para desconstituição de decisões judiciais transitadas em julgado. Os casos mais comuns envolvem decisões judiciais proferidas em processos que transcorreram sem a citação do réu ou que esta se deu de forma defeituosa, impossibilitando a formação da relação processual. Nesses casos, a querela funciona como instrumento para garantir que a parte ré possa ser ouvida naqueles casos em que a sua ausência no processo decorreu de uma falha no procedimento citatório.

O ponto de divergência na doutrina acerca da querela nullitatis envolve aqueles casos em que se pretende por meio desta ação a desconstituição da coisa julgada formada com base em lei declarada inconstitucional em momento posterior. Ou seja, nos casos em que se tem a chamada coisa julgada inconstitucional. O ponto conflituoso aqui consiste em estreitar as relações entre a proteção da coisa julgada – garantia constitucional – com o sistema de controle de constitucionalidade. Como visto, esse conflito pode ser desdobrado nos seguintes pontos: (a) lei declarada inconstitucional antes de passados dois anos do trânsito em julgado de sentença declaratória; (b) lei declarada inconstitucional após o cumprimento da sentença, mas antes de passados dois anos do trânsito em julgado; (c) lei declarada inconstitucional após o cumprimento da sentença e depois de passados dois anos do trânsito em julgado.

A questão controvertida, então, é a de saber em que medida uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado ou controle difuso seguido de resolução do Senado Federal, declarando a inconstitucionalidade de uma norma, pode atingir aquelas decisões pretéritas tomadas com base na lei ora impugnada e já acobertadas pela coisa julgada. Vale lembrar que a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em controle concentrado – em ação direta – produz, em regra, efeitos retroativos (ex tunc), alcançando todas as relações jurídicas constituídas sob a vigência da lei ou ato normativo.

Em sede teórica, buscamos com este trabalho abordar a tese da desconstituição da coisa julgada inconstitucional com ponto de apoio na teoria dos princípios jurídicos e na possibilidade de superação das regras por meio do processo de ponderação entre valores constitucionais. Com base em estudos de Ronald Dworkin e Humberto Ávila, verifica-se que o procedimento de superação de regras é perfeitamente possível desde que atendidos determinados critérios formais e materiais. Para Ávila, o valor substancial das regras é o marco delimitador das situações em que a mesma pode ser superada. Nesse sentido, a regra constitucional que protege a coisa julgada tem como valor substancial, ou finalidade subjacente, a promoção da segurança jurídica. Eventual desconstituição da coisa julgada deve levar em consideração, em cada caso, os efeitos produzidos sobre o valor segurança jurídica, bem como a repercussão dessa desconstituição sobre casos futuros similares.

Por meio da querela nullitatis, a desconstituição da coisa julgada taxada de inconstitucional deve estar orientada pelos critérios estabelecidos para a ponderação entre valores constitucionais, bem como deve atentar para os efeitos da desconstituição sobre o sistema jurídico como um todo.


 Referências Bibliográficas

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Notas

[1] O conceito jurídico de coisa julgada é comumente trabalhado na doutrina em duas vertentes: a coisa julgada formal e a coisa julgada material. Nesse sentido: “A autoridade da coisa julgada, de que se tenha revestido uma decisão judicial, cria para o juiz um vínculo consistente na impossibilidade de emitir novo pronunciamento sobre a matéria já decidida. Essa impossibilidade às vezes só prevalece no mesmo processo em que se proferiu a decisão (coisa julgada formal), e noutros casos em qualquer processo (coisa julgada material).” BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. V. 5, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 122. Leonardo Greco destaca que a coisa julgada possui dois fundamentos no âmbito de um Estado de Direito: “(...) um político e outro jurídico. Este se baseia no princípio da unidade da jurisdição, segundo o qual o exercício da jurisdição exterioriza a vontade única do Estado acerca da postulação que lhe foi encaminhada. É o que está consagrado como regra geral no artigo 471 do Código de Processo Civil: ‘nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide’. (...) O fundamento político da coisa julgada é a necessidade de estabilidade das decisões, que evita que os litígios se eternizem. (...) Isso porque a coisa julgada é uma garantia não somente da segurança jurídica (Constituição, artigo 5º, caput e inc. XXXVI), mas também da própria tutela jurisdicional efetiva (Constituição, artigo 5º, XXXV). Sem coisa julgada não há Estado Democrático de Direito.” GRECO, Leonardo Instituições de Processo Civil. Processo de Conhecimento. Vol. II, São Paulo: Forense, 2010, pp. 355-356.

[2] Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre: (...);

II - inexigibilidade do título; (...);

§ 1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Art. 741 - Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: (...);

II - inexigibilidade do título; (...) Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

[3] O termo vícios transresciórios foi extraído da obra dos professores Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha: Curso de Direito Processual Civil. Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. Vol. 3, Salvador: Podivm, 2006, p. 477.

[4] MACEDO, Alexander dos Santos. Da Querela Nullitatis. Sua subsistência no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 70. 

[5] Teresa Arruda Alvim Wambier discorda parcialmente da posição sustentada acima. Para a autora, não há necessidade de se utilizar da via dos embargos do executado para impugnar a falta ou a nulidade da citação. Já que não há sentença condenatória, a sua execução é incompossível, perdendo o sentido a utilização dos embargos para impugnar uma sentença que já não existe. O magistrado poderá verificar o vício nos próprios autos do processo. WAMBIER, Teresa Arruda A. Nulidades do Processo e da Sentença, São Paulo: Revista dos Tribunais (RT), 1998.

[6] Dessa tese discordam Teresa Arruda Alvim Wambier e Roque Komatsu, para quem a querella nullitatis se volta para a impugnação de sentenças inexistentes, as quais não podem estar protegidas pela coisa julgada. Especificamente com relação às hipóteses de falta de citação, a autora defende que: “A solução adequada seria uma ação de declaração de inexistência da sentença proferida em processo a que esteve ausente o réu ou um dos réus por não ter sido citado. Basta, neste caso, declarar-se a inexistência. Desnecessário é desconstituir-se a coisa julgada, pois a sentença inexistente, à diferença da nula, não passa em julgado.” WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, op. cit., 1998, p. 369.

[7] MACEDO, Alexander dos Santos, op. cit., p. 39.

[8] THEODORO JR., Humberto. “Ação rescisória e o problema da superveniência do julgamento da questão constitucional.” RePro, 79/158, p. 159. 

[9] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, op. cit., 1998.

[10] KOMATSU, Roque. Da Invalidade no Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais (RT), 1991.

[11] GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2009.

[12] FURTADO, Adroaldo Fabrício Furtado. “Réu revel não citado, querela nullitatis e ação rescisória.” Ensaios de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

[13] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro, op. cit., 2012.

[14] Trataremos mais detidamente sobre o tema, mas cabe aqui mencionar que há também autores que incluem a chamada coisa julgada inconstitucional no rol das hipóteses de cabimento da querela nullitatis. É o caso de Carlos Valder do Nascimento, para quem a sentença inconstitucional é nula. Para o autor: “Se a sentença inconstitucional é nula, contra ela não cabe rescisória, por incabível lançar-se mão dos recursos previstos na legislação processual. Na espécie, pode-se valer, sem observância de lapso temporal, da ação declaratória de nulidade da sentença, tendo presente que ela não perfaz a relação processual, em face do grave vício que a contaminou, inviabilizando, assim, o seu trânsito em julgado.” NASCIMENTO, Carlos Valder do. Por Uma Teoria da Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 166.

[15] Uma análise bem perfilhada sobre a evolução histórica do instituto da querela nullitatis pode ser encontrada em Barbosa Moreira: “Foi no direito intermédio, nos estatutos italianos, por influência dos elementos germânicos misturados aos de origem romana, que se julgou necessário criar, para a denúncia dos errores in procedendo, um remédio especial, a querela nullitatis, exercitável de modo autônomo, não propriamente como ação, mas por simples imploratio officii iudicis. Esse remédio comportava duas modalidades: a querela nullitatis sanabilis e a querela nullitatis insanabilis. Na maioria dos ordenamentos europeus, a primeira foi pouco a pouco absorvida pela apelação, e a segunda acabou desaparecendo, de modo que os motivos de invalidação da sentença passaram a ter de alegar-se por meio de recurso, sob pena de ficarem preclusos com o esgotamento das vias recursais.” Comentários ao Código de Processo Civil. V. 5, Rio de Janeiro: Forense, 2005.

[16] MACEDO, Alexander dos Santos. Da Querela Nullitatis. Sua subsistência no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

[17] A preclusão pro iudicato opera sobre ato decisório irrevogável, de conteúdo processual, que já foi decido no curso do processo. Os juristas que defendem a inaplicabilidade da preclusão pro iudicato aos vícios dessa categoria, levantam os seguintes fundamentos: referidos vícios podem provocar a desconstituição da sentença de mérito, mediante ação rescisória; o juiz pode e deve deles conhecer de ofício; podem também ser analisados após a sentença de mérito de primeiro grau, quando devolvido o conhecimento do processo em grau de apelação, aplicando-se ao juízo ad quem o disposto no art. 267, §3 do CPC.

[18] ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. II, Rio de Janeiro: Forense, p. 275. 

[19] Importante destacar que há forte divergência na doutrina processualista sobre o cabimento da querela nullitatis. Assim como está exposto no Ponto I deste trabalho, para Alexander Macedo dos Santos, o seu cabimento se restringe às hipóteses em que o réu não foi citado ou a citação ocorreu de forma irregular. No entanto, como já foi exposto neste trabalho, outros autores defendem o cabimento da querela nullitatis em outras situações, comumente relacionadas com um grave vício acometido aos pressupostos de existência do processo.  

[20] Nesse sentido é a posição do STJ no RE 1.252.902-SP: “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. QUERELA NULLITATIS INSANABILIS. DESCABIMENTO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RECURSO IMPROVIDO. 1. Não configura ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, o fato de o C. Tribunal de origem, embora sem examinar individualmente cada um dos argumentos suscitados pela parte recorrente, adotar fundamentação contrária à pretensão da parte, suficiente para decidir integralmente a controvérsia. 2. O cabimento da querela nullitatis insanabilis é indiscutivelmente reconhecido em caso de defeito ou ausência de citação, se o processo correu à revelia (v.g., CPC, arts. 475-L, I, e 741, I). Todavia, a moderna doutrina e jurisprudência, considerando a possibilidade de relativização da coisa julgada quando o decisum transitado em julgado estiver eivado de vício insanável, capaz de torná-lo juridicamente inexistente, tem ampliado o rol de cabimento da querela nullitatis insanabilis. Assim, em hipóteses excepcionais vem sendo reconhecida a viabilidade de ajuizamento dessa ação, para além da tradicional ausência ou defeito de citação, por exemplo: (i) quando é proferida sentença de mérito a despeito de faltar condições da ação; (ii) a sentença de mérito é proferida em desconformidade com a coisa julgada anterior; (iii) a decisão está embasada em lei posteriormente declarada inconstitucional pelo eg. Supremo Tribunal Federal. 4. Entretanto, não é cabível, em virtude do instituto da preclusão, o ajuizamento de querela nullitatis insanabilis, com base em falta ou deficiência na fundamentação da decisão judicial. Não há falar, pois, em hipótese excepcional a viabilizar a relativização da coisa julgada, sobretudo porque aqui não se vislumbra nenhum vício insanável capaz de autorizar o ajuizamento de querela nullitatis insanabilis, pois bastaria à parte ter manejado oportunamente o recurso processual cabível, para ter analisada sua pretensão. 5. Recurso especial a que se nega provimento.” (grifo nosso). No mesmo sentido, acórdão do TRF-1ª Região: PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE. QUERELA NULLITATIS INSANABILIS. SUPOSTA ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. SENTENÇA MANTIDA. 1. A ação declaratória de nulidade insanável - querela nullitatis insanabilis, subsiste no direito processual brasileiro, como ação ordinária autônoma, para declarar a não oponibilidade dos efeitos da sentença proferida contra réu não citado para a ação, tornando inválido o processo contra prolatado contra ele (Art. 214, do CPC e Art. 5º, LIV e LV, da CF). 2. A apelante requer a desconstituição da sentença transitada em julgado no bojo da ação ordinária n. 96.00.02655-6 (execução n. 2002.36.00.007046-5) que julgou procedente o pedido e reconheceu o direito dos autores ao reajuste salarial de 28,86%, a partir de janeiro/93, condenando a União ao pagamento das diferenças salariais daí resultantes. Alega-se ilegitimidade passiva ad causam da União, dado que os autores eram servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, autarquia federal com representação própria. 3. Correta a sentença que extinguiu o processo por inadequação da via eleita, pois a ação declaratória de nulidade de sentença somente é admissível em relação ao réu revel no processo de conhecimento (art. 741, I, do CPC), qual seja, aquele que teve seus interesses atingidos sem que tenha recebido qualquer oportunidade de defesa, o que não restou caracterizado na lide em apreciação. 4. A parte ora requerente foi regularmente citada, contestou, apelou, agravou etc. Enfim, integrou e participou de modo ativo e efetivo da relação processual originária. Desta sorte, verdadeiramente não se vislumbra como, somente agora, uma vez ultrapassada a preclusão máxima (prazo da ação rescisória), pretender impugnar a validade da relação processual. 5. Apelação a que se nega provimento. (AC 200536000087963, JUIZ FEDERAL FRANCISCO HÉLIO CAMELO FERREIRA, TRF1 - 1ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 DATA:09/05/2012 PAGINA:637.) (grifo nosso).

[21] Roque Komatsu observa que: “A apontada ação [querela nullitatis] traz à baila a existência de dissenso, na doutrina, acerca da natureza do vício da falta ou nulidade da citação, no processo, onde o réu vem a tornar-se revel. Sustentam alguns tratar-se de inexistência da sentença, enquanto outros veem, no caso, nulidade ipso jure. Mas há consenso de que, dada a gravidade do defeito, este permanece imune a todas as decisões, inclusive à maior delas, correspondente à coisa julgada, ou defeito tão grave, idôneo a impedir que ela se constitua.” KOMATSU, Roque, op. cit., 1991, p. 161.

[22] MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., 2005.

[23] Constituição Federal, artigo 102, I, “a” (primeira parte).

[24] Constituição Federal, artigo 103, § 2º.

[25] Constituição Federal, artigo 102, I, “a” (segunda parte).

[26] Constituição Federal, artigo 36, III.

[27] Constituição Federal, artigo 102, §1º.

[28] Acerca do tema do controle de constitucionalidade no direito brasileiro, ver, por todos: CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; BITTENCOURT, Lúcio. O Controle Jurisdicional de Constitucionalidade das Leis. Reimp. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. Vale lembrar que a classificação entre controle difuso e concentrado diz respeito ao caráter subjetivo da jurisdição, ou seja, está relacionada com o(s) órgão(s) do Poder Judiciário que exerce(m) o controle. Dessa forma: “Diz-se que o controle é difuso quando se permite a todo e qualquer juiz ou tribunal o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma e, consequentemente, a sua não aplicação ao caso concreto levado ao conhecimento da corte. (...) No sistema concentrado, o controle de constitucionalidade é exercido por um único órgão ou por um número limitado de órgãos criados especificamente para esse fim ou tendo nessa atividade a sua função principal.” BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 69-70.

[29] Na Constituição Federal, o controle difuso é previsto

[30] Apesar de não ser a regra, o STF já conferiu efeitos ex nunc e para o futuro em controle difuso, cujo o leading case foi o julgamento do RE 197.917 em que a Suprema Corte decidiu por reduzir o número de vereadores de determinado município, mas somente a partir da legislatura seguinte: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIO. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, INCIDENTER TANTUM, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. (...) 8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. (grifo nosso).

[31] Art. 52 - Compete privativamente ao Senado Federal:

(...)

X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

[32] Sistematicamente, Luís Roberto Barroso indica as novas perspectivas trazidas pelo artigo 27 da Lei 9.868/99: “O dispositivo permite, portanto, que o Tribunal: a) restrinja os efeitos da decisão, excluindo de seu alcance, por exemplo, categoria de pessoas que sofreriam ônus ponderado como excessivo ou insuportável, ou ainda, impedindo a retroação sobre determinado tipo de situação; b) não atribua efeito retroativo a sua decisão, fazendo-a incidir apenas a partir de seu trânsito em julgado; e c) até mesmo fixe algum momento específico como marco inicial para a produção dos efeitos da decisão, no passado ou mesmo no futuro, dando à norma uma sobrevida.” BARROSO, Luís Roberto, op. cit., 2012, pp. 238-239. 

[33]Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

V - violar literal disposição de lei;”.  

[34] Com relação à doutrina, anotamos, por todos: LIMA, Arnaldo Esteves Lima e DYRLUND, Poul. Ação Rescisória. São Paulo: Forense, 2ª edição, 2003. No que toca à jurisprudência, cf.: Resp nº128.239/RS, Resp nº 36017/PE. Nesse sentido, vale destacar ementa de decisão do STJ: AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA. PROCESSUAL CIVIL. TUTELA ANTECIPADA. REQUISITOS. VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES E FUNDADO RECEIO DE DANO. PRESENÇA CUMULATIVA. DEFERIMENTO. ART. 489 DO CPC. CONDENAÇÃO À PUBLICAÇÃO DE SENTENÇA. LEI DE IMPRENSA. NÃO-RECEPÇÃO. STF. ADPF 130/DF. AUSÊNCIA DE DISPOSITIVO, SEJA LEGAL OU CONSTITUCIONAL, QUE AMPARE ESSA PRETENSÃO. PRECEDENTE DA TERCEIRA TURMA (REsp 885.248/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 21/05/2010). FUNDAMENTOS INSUFICIENTES PARA REFORMAR A DECISÃO AGRAVADA. 1. O agravante não trouxe argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada, razão que enseja a negativa do provimento ao agravo regimental. 2. A concessão da antecipação da tutela em ação rescisória é possível quando presentes cumulativamente os requisitos autorizadores do art. 273 do CPC (art. 489 do CPC). 3. De acordo com a jurisprudência desta Corte, é cabível a ação rescisória, com fulcro no art. 485, inciso V, do Código de Processo Civil, quando o acórdão rescindendo encontrar suporte em norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que, à época do julgado rescindendo, o dispositivo legal tivesse interpretação divergente. Precedentes. 4. Na hipótese, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, em 30.04.2009, julgou procedente, por maioria, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 130/DF, relator Ministro Carlos Britto, considerando não-recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67). 5. O direito à publicação de sentença, que não se confunde com o direito constitucional de resposta, não encontra fundamento direto na Constituição Federal, nem é abrangido pelo princípio da reparação integral do dano, que norteia a legislação civil. Precedente da Terceira Turma (REsp 885248/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 21/05/2010). 6. Dos elementos existentes nos autos, extrai-se que o acórdão rescindendo considerou devida a publicação da sentença civil condenatória nos mesmos moldes das notícias que ensejaram a ação de indenização, com base nos artigos 12, parágrafo único e 75 da Lei de Imprensa. 7. Destarte, em um exame perfunctório, próprio das liminares, constata-se a plausibilidade jurídica das alegações da autora, pelo menos no que tange à impossibilidade de condenação à publicação da sentença condenatória em periódico. 8. Agravo regimental a que se nega provimento.(AGRAR 201000844070, VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), STJ - SEGUNDA SEÇÃO, DJE DATA:01/09/2010 RSTJ VOL.:00220 PG:00343.) (grifo nosso).

[35] Importante ressaltar que a Súmula 343 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determina ser incabível a ação rescisória com base no artigo 485, V do CPC nos casos em que a interpretação da lei é divergente nos tribunais. Contudo, a despeito de tal súmula, o STF vem entendendo que cabe a rescisória ainda nos casos em que a decisão transitada em julgado tenha simplesmente divergido da interpretação constitucional fixada pela Corte, e mesmo que essa interpretação seja posterior ao julgado rescindendo. 

[36] No mesmo sentido já se pronunciou o STJ, decidindo questão tributária envolvendo a constitucionalidade de decretos-leis regulamentadores do recolhimento do PIS: “A quaestio juris está em saber em que medida a superveniente decisão do STF que reconhece, em controle difuso, a inconstitucionalidade de preceito normativo e a Resolução do Senado que suspende a execução desse comando afetam as sentenças em sentido contrário, ou seja, as que decidiram pela constitucionalidade da norma, e foram proferidas e transitaram em julgado em data anterior. In casu, a recorrente pleiteou, no mandado de segurança, em 1988, o reconhecimento do direito de continuar a obedecer rigorosamente aos procedimentos da LC n. 7/1970 (que instituiu o PIS), sendo a pretensão atendida em primeira instância, porém denegada no TRF, ao fundamento da constitucionalidade dos DLs ns. 2.445/1988 e 2.449/1988, transitada em julgado a referida decisão em 1991. Posteriormente, em 1998, ingressou com ação declaratória de pleito, substancialmente, idêntico ao do anterior mandado de segurança (ver reconhecido o direito de recolher o PIS com base naquela LC, bem como compensar os valores recolhidos a maior em função dos referidos DLs), uma vez que o STF declarou a inconstitucionalidade desses decretos-lei, cujas execuções foram suspensas com o advento da Res. n. 49/1995 do Senado Federal. O tribunal a quo extinguiu o processo sem julgamento do mérito, tendo em vista que a pretensão estava submetida à coisa julgada. Neste Superior Tribunal, a Turma entendeu que a sentença, afirmando a constitucionalidade da norma, reconhece a legitimidade da exação fiscal nos termos nela estabelecidos, fazendo juízo sobre situação jurídica de caráter permanente e com eficácia para o futuro, motivo pelo qual tem sua eficácia temporal submetida à cláusula rebus sic stantibus, ou seja, sua força mantém-se enquanto continuarem inalterados o estado do direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza, o que equivale a dizer que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. No entanto, a superveniente decisão do STF, em controle difuso, reconhecendo a inconstitucionalidade da norma, não representa, por si só, modificação no estado de direito apta a retirar a eficácia da sentença transitada em julgado em sentido contrário. A modificação do estado de direito perfaz-se a partir do advento da resolução do Senado Federal que suspende a execução do preceito normativo, universalizando, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a decisão do STF declarando a inconstitucionalidade. Embora não produza, automaticamente, a anulação ou a modificação dos efeitos já produzidos por sentenças em sentido contrário, a resolução do Senado faz prevalecer, a partir de seu advento, a sentença de inconstitucionalidade. A partir de então, ficam submetidas à decisão do STF as relações jurídicas futuras e os desdobramentos futuros de anteriores relações jurídicas de trato continuado. Na hipótese dos autos, ficou reconhecida, relativamente ao período anterior ao advento da Res. n. 49/1995 do Senado Federal, a eficácia da sentença anterior transitada em julgado que reconheceu a constitucionalidade dos DLs ns. 2.445/1988 e 2.449/1988; todavia, com a modificação do estado de direito decorrente da publicação dessa resolução, que suspendeu a execução dos mencionados decretos-lei declarados inconstitucionais pelo STF, cessou a eficácia temporal da sentença anterior em sentido contrário. Portanto, a eficácia temporal do acórdão proferido no primitivo mandado de segurança teve como termo final a data da publicação da resolução do Senado Federal, devendo ser mantido, em relação àquele período, o acórdão recorrido. Porém, no que se refere ao período posterior, é de se afastar a preliminar de coisa julgada, podendo a causa ser apreciada sem esse empecilho. Por outro lado, para desfazer as consequências produzidas por sentença anterior à resolução, faz-se mister a utilização da via rescisória. Diante disso, a Turma, ao prosseguir o julgamento, após o voto-vista do Min. Teori Albino Zavascki e a retificação do voto do Min. Relator, deu parcial provimento ao recurso e determinou que os autos retornem ao tribunal a quo, para que prossiga o julgamento como entender de direito. REsp 1.103.584-DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 18/5/2010.” Informativo 0435, 17 a 21 de maio de 2010.

[37] BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pp. 254-255.

[38] Revisão criminal é uma ação que permite rever uma sentença condenatória que já transitou em julgado. Ela, portanto, desfaz a coisa julgada. O Código de Processo Penal assim dispõe: Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.

[39] Acerca da função dos princípios jurídicos no ordenamento constitucional brasileiro, Luiz Guilherme Marinoni destaca que eles funcionam como ferramentas não somente para orientar substancialmente o modo de ser do ordenamento jurídico, mas também para: “i) a interpretação de acordo; ii) a não aplicação da lei inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade da lei; iii) se agregar conteúdo à lei, tornando-a conforme à Constituição (interpretação conforme); iv) o afastamento das interpretações inconstitucionais propostas para a norma (declaração parcial de nulidade sem redução de texto); v) geração da regra necessária para que o direito fundamental seja feito a valer (controle da omissão inconstitucional); e vi) a proteção de um direito fundamental diante de outro (aplicação da regra do balanceamento).” MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Teoria Geral do Processo. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 99-100.  

[40] Na literatura estrangeira, a teoria dos princípios teve grande repercussão a parti do último quarto do século XX com a publicação de Taking Rights Seriously (1977). A tese dworkiana pode ser explicada, em linhas gerais, a partir da ideia de direito como integridade. O direito não é constituído tão-somente como um sistema de regras jurídicas que podem ser identificadas a partir de um padrão formal de validade jurídica, como tradicionalmente afirmado pelo positivismo jurídico. Mais do que isso, o direito pressupõe um sistema integrado de princípios que compõem a cultura social de uma comunidade política e que constituem a razão de ser da normatividade jurídica. É com base nessa premissa que Dworkin estabelece uma divisão fundamental entre regras e princípios jurídicos. Cf. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1977.

[41] “The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances, but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which it contributes nothing to the decision.” DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 24.

[42] “When principles intersect, one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each. This cannot be, of course, an exact measure, and the judgment that a particular principle or policy is more important than another will often be a controversial one. Nevertheless, it is an integral part of the concept of a principle that it has this dimension that it makes sense to ask how important or how weighty it is.” DWORKIN, Ronald, op. cit., pp. 26-27.   

[43] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, São Paulo: Malheiros, 7ª edição, 2007.

[44] Um exemplo trazido por Ávila pode ajudar na compreensão dessa característica das regras: “(...) o dispositivo que exclui a competência das pessoas políticas para instituir impostos sobre livros, jornais e periódicos (art. 150, VI, ‘d’) predetermina quais são os objetos que são preliminarmente afastados do poder de tributar, podendo ser enquadrados, nesse aspecto relativo à exclusão de poder, na espécie de regras. Nesse sentido, possui a pretensão de determinar que somente os livros, os jornais e os periódicos não podem ser objeto de tributação, afastando, de antemão, quaisquer dúvidas quanto à inclusão de outros objetos, como quadros ou estátuas, no seu âmbito de aplicação. O mesmo não ocorreria se a Constituição Federal, ao invés de predeterminar os objetos abrangidos pela imunidade, apenas estabelecesse que ficariam excluídos da tributação todos os objetos que fossem necessários à manifestação da liberdade do pensamento ou da arte. Nesse caso a solução a respeito do conflito entre razões contra e a favor da inclusão de determinados objetos no âmbito normativo ficaria aberta.” ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 76-77.

[45] ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 77.

[46] ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 115-119.

[47] ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 119-120.

[48] ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 119.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GANEM, Fabricio Faroni; ZETTEL, Bernardo. Querela nullitatis e coisa julgada inconstitucional no Direito brasileiro. Uma proposta de adequação à teoria dos princípios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3416, 7 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22961. Acesso em: 28 mar. 2024.