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A má-fé do poder público perante o cidadão-concursando.

O caso do RMS 27.389/PB

A má-fé do poder público perante o cidadão-concursando. O caso do RMS 27.389/PB

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Analisa-se o caso em que a Administração deixou expirar o prazo de validade de concurso e menos de seis meses depois promoveu novo certame para o preenchimento de várias vagas nos mesmos cargos para os quais havia candidatos habilitados.

1. A Constituição da República de 1988, em seu art. 37, caput, enuncia a moralidade como um dos princípios que deve orientar e presidir a relação do Poder Público perante os cidadãos, tendo em vista que a ratio essendi do primeiro é atender as necessidades individuais e sociais dos segundos, a permitir a coexistência com o mínimo de segurança e paz em sociedade.

De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, pp. 119-120), o princípio da moralidade revela que

a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os princípios da lealdade e boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Perez em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos.

Por seu turno, Inocêncio Mártires Coelho aduz (2009, p. 883)

pode-se dizer que a reverência que o direito positivo presta ao princípio da moralidade decorre da necessidade de pôr em destaque que, em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável. Sendo o direito o mínimo ético indispensável à convivência humana, a obediência ao princípio da moralidade, em relação a determinados atos, significa que eles só serão considerados válidos se forem duplamente considerados à eticidade, ou seja, se forem adequados não apenas às exigências jurídicas, mas também às de natureza moral.

Ainda nessa senda, o Ministro Celso de Mello (AP 470/MG in Informativo STF 677) leciona que

os membros do poder, quando atuassem em transgressão às exigências éticas que deveriam pautar e condicionar a atividade política, ofenderiam o princípio da moralidade, que traduziria valor constitucional de observância necessária na esfera institucional de qualquer dos Poderes da República. 

À luz do exposto, o Poder Público age de má-fé quando, inobservando o princípio da moralidade, comporta-se e conduz-se de maneira contrária a regras e valores éticos ao atuar de maneira arbitrária, dissimulada, maliciosa, não transparente e antitética, não raras vezes travestida de legalidade, a lesar legítimas expectativas e direitos do cidadão.


2. Pois bem, o art. 37, II, da CF, preconiza, como regra, a prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos para a investidura em cargo ou emprego público, de maneira a observar os princípios da igualdade, da república e da participação política entre todos aqueles que almejam participar da Administração Pública como seus agentes. Princípio da igualdade, porque todos, nos limites da lei, têm direito a trabalhar na Administração Pública. Princípio da república, pois o Estado gere e administra coisas públicas (res publica) de titularidade de todos os cidadãos. E o princípio da participação política, porque todos os cidadãos que se acham aptos e capacitados podem participar da formação da vontade estatal e da gerência da coisa pública.  

Quando se promove concurso para o provimento de cargos ou empregos públicos vagos, a Administração Pública tem o dever de preencher todas as vagas previstas no edital, segundo a ordem de classificação dos aprovados, porquanto, ao prever vagas, a Administração Pública, implicitamente, revela a necessidade de recursos humanos e disponibilidade orçamentário-financeira para realizar as contratações. Os concursandos habilitados (aprovados) dentro desse número de vagas (classificados) possuem direito subjetivo à nomeação dentro do prazo de validade que pode ser de até dois anos prorrogáveis pelo mesmo período (CF, art. 37, III), enquanto os que estão habilitados depois do número de vagas possuem mera expectativa de direito à nomeação. Desta forma entendeu o STF, à unanimidade, em recente aresto – RE 598.099/MS, DJe 3/10/2011.

Os concursandos que têm mera expectativa de direito à nomeação passam a ter direito subjetivo (1) quando não se respeita a ordem de classificação, preterindo-se candidato mais bem colocado em relação ao que é nomeado (Enunciado 15 da Súmula do STF); (2) quando são nomeados candidatos de concurso posterior em detrimento de candidatos de concurso anterior ainda em vigor (CF, art. 37, IV); e (3) quando se realiza contratação por tempo determinado para cargos e empregos públicos para os quais há candidatos habilitados de concurso ainda em vigor, pois esse tipo de contração buscaria atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, a qual não comportaria, sob pena de perecimento, aguardar a realização de certame público (CF, art. 37, IX).

Todas as vagas, ressalta-se, previstas no edital de abertura do concurso público devem ser preenchidas até o final do prazo de validade, independente de prorrogação, de modo que o Poder Público deve se empenhar em chamar tantos candidatos habilitados quantos forem necessários, conforme a ordem de classificação, até preencher as referidas vagas. Chama-se a atenção para este ponto porque na prática é muito comum o Poder Público se preocupar em chamar os candidatos classificados e se esquecer dos que estão no cadastro de reserva, os quais eventualmente passam a ter direito a uma das vagas na hipótese de desistência de algum dos classificados. Por isso que não é de bom alvitre e razoável iniciar a nomeação no final do prazo de validade do certame, porquanto, na eventualidade de ocorrerem desistências nas primeiras nomeações, haver ainda tempo para se nomear os que estão no cadastro de reserva. Aqui se mostra relevante uma advocacia pública atuante no sentido de orientar, advertir e sugerir ao gestor público o comportamento e as condutas que melhor se coadunam com a ordem jurídica, prevenindo-se futuros litígios contra o Poder Público.

As vagas porventura surgidas durante o prazo de validade do certame e, portanto, não previstas inicialmente no edital de abertura, não são de preenchimento obrigatório, segundo intelecção do STF no RE 598.099/MS, salvo (1) se no edital estiver consignado que o concurso objetiva, além do preenchimento de vagas existentes, daquelas que surgirem ao longo do prazo de validade, consoante entendimento do STJ no RMS 27.389/PB, pois com esta singela previsão editalícia a Administração Pública acaba por se obrigar, por se vincular a nomear, não por acaso, diz-se que o edital é a lei do concurso público, sem olvidar que o mesmo deve se harmonizar com as normas jurídicas que lhe são hierarquicamente superiores; e (2) se a Administração Pública demonstrar inequivocamente seu interesse em preenchê-las (TST, RO 102000-17.2009.5.01.000, j. 3/9/2012 in Informativo 20), como por exemplo: nomeia-se candidato do cadastro de reserva para ocupar vaga surgida durante o prazo de validade, mas ele desiste, isto ocorrendo, a Administração Pública tem o dever de chamar tantos candidatos do cadastro de reserva quantos forem necessários para o preenchimento da indigitada vaga.

Mesmo o candidato tendo direito subjetivo à nomeação, seja porque foi aprovado dentro do número de vagas previstas, ou foi indevidamente preterido por candidato em posição classificatória inferior, ou se nomeou candidato de certame posterior a concurso ainda em vigor, ou se realizou contratação temporária para cargo ou emprego público que possua candidatos habilitados, ou surgiram vagas ao longo do prazo de validade do certame e a Administração Pública comprometeu-se em preenchê-las ou demonstra interesse inequívoco disto, ou ainda porque agiu de má-fé, excepcionalmente pode não ocorrer  

por causa superveniente, imprevisível, grave e necessária que impossibilite e impeça a Administração Pública de realizá-la, contanto que o ato de não nomeação seja devidamente justificado e demonstrado, sem prejuízo de se levar ao controle judicial.

Causa superveniente é aquela ocorrente após a divulgação do instrumento editalício. Imprevisível é a que se caracteriza pela extraordinariedade, singularidade, anormalidade. Grave é a que revela onerosidade excessiva, incapacidade e impossibilidade de assimilá-la e absorvê-la. Necessária é a que não possibilita, proporciona outra solução senão a de não nomear.

Daí falar-se que os aprovados e classificados em concurso público detêm direito subjetivo à nomeação e não direito adquirido, pois neste não há como não fazer a nomeação, apenas postergá-la, mesmo diante de situações excepcionais, como guerras e calamidades públicas de enormes proporções. (PINHEIRO, 2012, p. 11)


3. Em interessantíssimo julgado do STJ – RMS 27.389/PB, j. 14/8/2012 in Informativo 502 – deu-se ganho de causa a candidatos que lograram êxito em demonstrar a má-fé do Poder Público ao promover novo certame público pouquíssimo tempo depois de expirado certame anterior para os mesmos cargos com a previsão de vagas, sendo que os indigitados candidatos não foram nomeados justamente ao argumento de inexistência dessas vagas.

No caso, o edital do concurso deixou claro que a seleção foi destinada ao preenchimento de sete vagas oferecidas, bem como daquelas que viessem a existir durante o período em que tivesse validade o certame. Após a realização do concurso, foram convocados os cem candidatos aprovados para o curso de formação. Durante a validade do concurso, foram nomeados os sete mais bem classificados, mais 84 aprovados que não passaram dentro das vagas, restando nove candidatos na lista de espera. Após as mencionadas nomeações, o órgão deixou de nomear os candidatos remanescentes ao argumento de que não havia vagas. Menos de seis meses após o fim da validade do concurso, o órgão lançou novo concurso para o preenchimento de trinta vagas. Por não considerar crível a versão de que não havia vagas, visto que, seis meses depois, sem nenhum fato extraordinário, o órgão lançou novo certame, o Min. Relator entendeu que não houve motivação idônea para preterição dos nove candidatos remanescentes, pois a motivação apresentada foi rebatida pelas provas dos autos. (RMS 27.389/PB)

 A despeito da decisão não ter falado em má-fé do Poder Público, isto, a meu sentir, é clarividente, até porque o comportamento do Poder público no caso concreto, à primeira vista revestido de legalidade, pois nomeou muito mais candidatos do que o número de vagas previstas inicialmente, deixando de nomear os poucos candidatos remanescentes ao argumento de falta de vagas. Deixou expirar o prazo de validade do certame e menos de seis meses depois promoveu novo concurso para o preenchimento de várias vagas para os mesmos cargos que há pouco havia candidatos habilitados. Esta situação no mínimo causa espécie, porquanto a justificativa dada pela Administração aos concursandos para não nomeá-los não se encaixou com o seu comportamento posterior. Neste sentido, o princípio jurídico non venire contra factum proprium, veda o comportamento contraditório, antitético, a revelar que agiu sim de má-fé a Administração Pública ao não ser sincera, honesta, transparente e reta com os cidadãos-concursandos, infringindo, com efeito, o princípio da moralidade a ensejar e legitimar a intervenção do Judiciário com vistas a afastar lesão ao direito à nomeação para cargo efetivo.

Não se diga que houve inobservância do princípio da separação funcional dos poderes pelo Judiciário (CF, art. 2º), porquanto sua intervenção, para além de se legitimar no princípio da inafastabilidade jurisdicional ou da proteção judicial efetiva (CF, art. 5º, XXXV), lastrea-se também nesse princípio quando busca impedir e frear abusos e arbitrariedades cometidos por outro Poder contra o cidadão, cumprindo com independência, imparcialidade e retidão sua parcela de responsabilidade no checks and balances system como diria a doutrina jurídica americana. A propósito, assevera o Ministro Celso de Mello (HC 113.548 MC/DF in Informativo STF 676) que

A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado de tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.

Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta política, não pode constituir nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder público ou de qualquer instituição estatal.

O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.


4. Por derradeiro, se o cidadão-concursando reputa ter direito à nomeação, seja porque foi aprovado dentro do número de vagas previstas, ou foi indevidamente preterido por candidato em posição classificatória inferior, ou se nomeou candidato de certame posterior a concurso ainda em vigor, ou se realizou contratação temporária para cargo ou emprego público que possui candidatos habilitados, ou surgiram vagas ao longo do prazo de validade do certame e a Administração Pública comprometeu-se em preenchê-las ou demonstra interesse inequívoca disto ou ainda por agir de má-fé, pode manejar o mandado de segurança, writ constitucional (CF, art. 5º, LXIX e LXX) que busca tutelar direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus e habeas data, lesado ou ameaçado de lesão por conduta comissiva ou omissiva eivada de ilegalidade ou arbitrariedade de autoridade pública ou de quem tenha atribuições dessa natureza.

 Autoridade pública ou equivalente, para os fins da Lei 12.016/2009, art. 6º, §3º, é quem diretamente pratica o ato tido como ilegal ou abusivo ou de quem emana a ordem para terceiro subordinado realizá-lo. Direito líquido e certo “é aquele que não desperta dúvidas, que está isento de obscuridade, que não precisa ser aclarado com o exame de provas em dilações, que é de si mesmo concludente e inconcusso” – como uma vez asseverou Pontes de Miranda (apud NUCCI, 2010, p. 939). Em outras palavras, direito líquido e certo é aquele cujos elementos constitutivos e alcance estão bem definidos, demonstráveis de plano por prova pré-constituída, quer dizer, prova documentada (concretizada, consubstanciada em documentos) sem necessidade, pois, de produção probatória, sem prejuízo de se requerer ao juiz, no bojo da petição inicial, que requisite à autoridade coatora ou de quem de direito a prova sob seu poder, à luz da Lei 12.016/2009, art. 6º, §§ 1º e 2º, caso num primeiro momento seja negado ao paciente o acesso a essas provas.

Na hipótese de haver necessidade da realização de uma fase instrutória para a melhor demonstração e aclaramento do direito à nomeação, torna-se mais adequado se manusear ação ordinária, conforme as normas do Código de Processo Civil, arts. 282 e segs.


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível http://www2.planalto.gov.br.

_______. Lei 12.016. 2009. Disponível http://www.planalto.gov.br.

_______. Código de Processo Civil. 1973. Disponível http://www.planalto.gov.br.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 24ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO,  Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 6ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010.

PINHEIRO, Wecsley dos Santos. Nomeação por concurso público – direito subjetivo versus expectativa de direito – Recurso Extraordinário nº 598.099. in Revista Prática Jurídica. Brasília: Ed. Consulex, ano XI, nº 123 de 30/06/2012

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Informativo de Jurisprudência. Disponível http://www.stj.jus.br.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Jurisprudência. Disponível http://www.stf.jus.br.

________. Informativo STF. Disponível http://www.stf.jus.br.

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Informativo TST. Disponível http://www.tst.gov.br.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Wecsley dos Santos. A má-fé do poder público perante o cidadão-concursando. O caso do RMS 27.389/PB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3417, 8 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22963. Acesso em: 19 abr. 2024.