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O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego

O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego

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Do embate entre a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, carecerá de força normativa aquela disposição que, embora conste no texto constitucional, não esteja arraigada na consciência coletiva. No caso, reconhece-se a prevalência da livre iniciativa, como corolário maior do capitalismo neoliberal.

“Daquilo que sabes conhecer e medir, é preciso que te despeças, pelo menos por um tempo. Somente depois de teres deixado a cidade verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.”

Friedrich Nietzsche

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade a realização de uma análise acerca das chamadas colisões principiológicas, em especial, sobre a possível ocorrência desse fenômeno entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego. Assim, partindo de um exame teórico relativo à natureza das normas estudadas, buscar-se-á delimitar seu grau de vinculação prático. Ou seja, perquirir acerca de sua efetividade fática, tendo por base não apenas sua estrutura formal dentro de nosso sistema constitucional, mas principalmente no que concerne ao seu teor axiológico, o qual poderá determinar um conflito principiológico imanente à nossa Lei Fundamental, impossibilitando sua plena efetivação.

Palavras-chave: Constituição. Efetividade. Conflito. Princípios.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA . 1.1 Livre Iniciativa. 1.2 Busca do Pleno Emprego. 1.3 Recepção em nosso Ordenamento Jurídico . 2 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ..2.1 Métodos de Interpretação Constitucional. 2.2 Princípios da Interpretação Constitucional. 2.3 O Metaprincípio da Hierarquização Axiológica. 3 DO CONFLITO NORMATIVO. 3.1 Fundamentos da Colisão Principiológica. 3.1 Do Conflito Hierárquico-Formal . 3.2 Do Conflito Axiológico-Material. 4 DA SUPERAÇÃO DA APORIA. 4.1 A Constituição Dirigente. 4.2 A Força Normativa da Constituição. CONCLUSÃO .


INTRODUÇÃO

O presente texto tem por escopo primordial analisar, de forma expositivo-argumentativa, o fenômeno jurídico do conflito normativo, em especial, o conflito entre princípios constitucionais. Destarte, investigaremos a ocorrência de conflito de ordem hierárquica e/ou axiológica (formal e/ou material) decorrente da assunção dos princípios da Livre Iniciativa e da busca pelo Pleno Emprego em nosso ordenamento jurídico, perquirindo acerca da real possibilidade de sua coexistência efetiva, haja vista sua aparente incongruência material.

Para a consecução de tal desiderato, utilizaremos predominantemente o pensamento de autores da lavra de Joaquim José Gomes Canotilho, Konrad Hesse, Eros Roberto Grau e José Afonso da Silva, entre outros. Assim, buscar-se-á desenvolver a temática proposta, sempre que possível, conciliando os entendimentos doutrinários e confluindo para uma conclusão pacificadora.

No primeiro capítulo, intitulado Análise Principiológica, ressaltaremos os aspectos intróitos ao iminente estudo da colisão principiológica aventada. De modo que, seus dois primeiros subtítulos – Livre Iniciativa e Busca do Pleno Emprego – terão o mister de fornecer os subsídios materiais preliminares acerca dos dois princípios em comento, mormente explicitando suas origens históricas, bem como sua carga conceitual, vale dizer, no campo valorativo.

Deveras, em um segundo momento desse primeiro capítulo, no desenvolvimento do terceiro subtítulo (Recepção em nosso Ordenamento Jurídico) tratar-se-á de fundamentar os moldes através dos quais foram estruturados ambos os princípios cotejados, explicitando suas funções eminentes dentro do esqueleto de nossa Constituição Federal, possibilitando posteriormente uma visão acerca da importância de um e outro princípio sob análise.

No segundo capítulo, denominado de Interpretação Constitucional, traremos à lume aquilo que entendemos como sendo a atividade hermenêutica par excellence. Ou seja, intentaremos distanciar-nos de conceitos anacrônicos de interpretação constitucional nos moldes pretéritos da vontade ou espírito da lei, acentuando nosso entendimento acerca da atualidade dessa nobre atividade. Tal mister será desenvolvido no escopo de contribuir em nosso discurso, mormente explicitando os fundamentos teórico-doutrinários utilizados em nossa discussão principiológica.

Destarte, subdividir-se-á o segundo capítulo em três tópicos (Métodos de Interpretação Constitucional, Princípios da Interpretação Constitucional e O Metaprincípio da Hierarquização Axiológica). Desse modo, terá, esse capítulo, o condão de elucidar a metódica adotada para a investigação do fenômeno jurídico da colisão principiológica, vale dizer, adotando a classificação empreendida pelo mestre português José Joaquim Gomes Canotilho e, subsidiariamente, também o esforço de sistematização hermenêutica empreendido pelo jurista brasileiro Juarez Freitas.

O terceiro capítulo do presente texto, assentado já com as bases teóricas supracitadas - necessárias à sua ideal consecução - adentrará propriamente na celeuma jurídica que acreditamos legitimar esse trabalho. Assim, Do Conflito Normativo nos guiará desde a definição e exploração do conceito daquilo que venha a ser um conflito principiológico, até a análise própria à configuração do referido fenômeno jurídico entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Para tanto, partiremos em um primeiro momento – em Fundamentos da Colisão Principiológica – de diferenciar os conflitos principiológicos das antinomias normativas, distinguir, também, oposição de contradição normativa, bem como outras propriedades terminológicas que acreditamos serem de imprescindível intelecção para o correto entendimento da temática trabalhada. Nesse sentido, no segundo subtítulo desse capítulo – Do Conflito Hierárquico-Formal – examinaremos a ocorrência (ou não) de conflito de ordem hierárquica entre os princípios estudados. De igual sorte, analisaremos na terceira subdivisão desse capítulo (Do Conflito Axiológico-Material) o ponto nevrálgico desse discurso hermenêutico, ou seja, inferir acerca da configuração do conflito de ordem axiológica entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Derradeiramente, o quarto (e último) capítulo do presente texto – Da Superação da Aporia - trará considerações finais acerca das reais razões pelas quais cremos estar constituída a aporia jurídico-social exposta no capítulo anterior. Ademais, intentaremos apontar, na medida do possível, meios para a superação da referida contradição axiológica. Nesse escopo, e conclusivamente, desenvolveremos dois caminhos: A Constituição Dirigente e a A Força Normativa da Constituição, respectivamente, fazendo-nos valer dos ensinamentos colhidos nas obras de Canotilho e Konrad Hesse.

Desse modo, entendemos que, hodiernamente, com o exsurgimento de um direito de cunho eminentemente solidário, faz-se mister repensar certos dogmas e postulados que vêm norteando a sociedade desde, pelo menos, a eclosão da Revolução Industrial. Destarte, perquirir acerca da legitimidade dos corolários axiológicos aos quais está submetida nossa sociedade, discernindo quais deles prestam efetivamente ao desiderato do bem coletivo, manifesta-se como uma das funções precípuas do operário do direito contemporâneo.

Sendo assim, ainda que de forma propedêutica e, em absoluto, exaurindo o amplo espectro de discussões acerca do tema proposto, intentaremos, indiretamente, propor uma reflexão acerca do modelo estrutural principiológico contido em nossa Carta Magna, mormente nos casos em que sua leviana configuração acaba por deflagrar efeitos perniciosos no campo social. De sorte que, indagar sobre tais questões, indubitavelmente, configurar-se-á como empresa árdua, mas também, o sabemos, coerente com o múnus público intrínseco à pesquisa acadêmica.


1 ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA

 

 

1.1 Livre Iniciativa

Para que adentremos à iminente questão da problemática colisão principiológica ora em estudo, é mister que iniciemos a explanação conceituando o princípio da Livre Iniciativa, consagrado expressamente em nossa Carta Magna nos seguintes dispositivos:

Art.1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (…)

Art.170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,(...)

Nessa esteira, cumpre que analisemos em que termos e condições originou-se o referido princípio, já no distante século XVIII. Para tanto, buscamos auxílio na zelosa reconstituição histórica empreendida por Eros Roberto Grau (2003, p. 183):

O princípio da liberdade de iniciativa econômica – originalmente postulado no édito de Turgot, de 09 de fevereiro de 1776 – inscreve-se plenamente no decreto d’Allarde, de 2-17 de março de 1791, cujo art. 7° determinava que, a partir de 1° de abril daquele ano, seria livre a qualquer pessoa a realização de qualquer negócio ou exercício de qualquer profissão, arte ou ofício que lhe aprouvesse, sendo contudo ela obrigada a se munir preventivamente de uma ‘patente’ (imposto direto), a pagar as taxas exigíveis e a se sujeitar aos regulamentos de polícia aplicáveis. (...) Meses após, na chamada Lei Chapelier – decreto de 14-17 de junho de 1791 – que proíbe todas as espécies de corporações, o princípio é reiterado.

Portanto, fica claro que desde seu surgimento o princípio estudado já assumia característica semelhante à hodierna, qual seja, a de subsidiar a liberdade de iniciativa - mormente na seara econômica - aos cidadãos que pretendam desenvolver atividade empresarial ou comercial, com fito principal no auferimento de vantagem financeira. Ademais, nota-se também da análise do conceito primevo da liberdade de iniciativa, a recorrente preocupação estatal em regulamentar estas atividades ditas “livres”, recolhendo impostos e exercendo o poder de polícia.

Contemporaneamente, a Livre Iniciativa constitui pedra angular do modelo capitalista neoliberal, peculiar à maioria das democracias ocidentais. Estando presente – expressa ou tacitamente – em quase todas as constituições desses países, sintetiza a liberdade de mercado e subsidia a transnacionalização das economias estatais desencorajando a intervenção do Estado nas relações econômicas privadas, além de buscar, no plano teórico, a democratização da participação no meio econômico fomentando, também, o desenvolvimento social.

De outro lado, acentuando a impotência do Estado em regulamentar as relações econômicas privadas que se valem dos preceitos da livre iniciativa, adiantando preocupações posteriormente aludidas no presente trabalho, posiciona-se o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p.790):

Isto significa que a Administração Pública não tem título jurídico para aspirar a reter em suas mãos o poder de outorgar aos particulares o direito ao desempenho da atividade econômica tal ou qual; evidentemente, também lhe faleceria o poder de fixar o montante da produção ou comercialização que os empresários porventura intentem efetuar. De acordo com os termos constitucionais, a eleição da atividade que será empreendida assim como o quantum a ser produzido ou comercializado resultam de uma decisão livre dos agentes econômicos. O direito de fazê-lo lhes advém diretamente do Texto Constitucional e descende, mesmo, da própria acolhida do regime capitalista, para não se falar dos dispositivos constitucionais supramencionados.

No escopo de darmos maior explicitação à carga conceitual do princípio da livre iniciativa expomos a concepção elucidativa de José Afonso da Silva (2006, p. 793):

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei. É certamente o princípio básico do liberalismo econômico. Surgiu como um aspecto da luta dos agentes econômicos para libertar-se dos vínculos que sobre eles recaiam por herança, seja do período feudal, seja dos princípios do mercantilismo. No início, e durante o século passado até a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a liberdade de iniciativa econômica significava garantia aos proprietários da possibilidade de usar e trocar seus bens; garantia, portanto, do caráter absoluto da propriedade; garantia de autonomia jurídica e, por isso, garantia aos sujeitos da possibilidade de regular suas relações do modo que tivessem por mais conveniente; garantia a cada um para desenvolver livremente a atividade escolhida. (...) a evolução das relações de produção e a necessidade de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, bem como o mau uso dessa liberdade e a falácia da ‘harmonia natural dos interesses’ do Estado liberal, fizeram surgir mecanismos de condicionamento da iniciativa privada, em busca da realização de justiça social, de sorte que o texto supratranscrito do art. 170, parágrafo único, sujeito aos ditames da lei, há de ser entendido no contexto de uma Constituição preocupada com a justiça social e com o bem-estar coletivo.

Destarte, explicita-se o notável vulto que assume o princípio estudado em nosso ordenamento jurídico, coordenando e informando as bases de todo o sistema econômico estruturado em nossa Constituição federal.

Outrossim, considerando o entendimento daquilo em que propriamente consiste a liberdade de iniciativa, urge que se conceitue, ainda, a chamada Livre Concorrência, a qual, ainda que se situe como um desdobramento lógico da livre-iniciativa, com ela não se confunde. Ademais, tem sua previsão constitucional no inciso IV do retrocitado art. 170, que introduz a chamada Ordem Econômica em nosso ordenamento jurídico, sendo tratada, portanto, como princípio econômico.

Destarte, buscamos a origem desse instituto jurídico também no famigerado Decreto de Allarde, de 1791. Desse modo, para melhor compreendermos sua profundidade teórica, explicitamos aqui o entendimento do estudioso do direito econômico, Leonardo Vizeu Figueiredo (2006, p. 42) acerca da Livre-Concorrência:

É um dos alicerces da economia liberal, sendo corolário da livre-iniciativa, isto é, só existirá a livre-concorrência onde o Estado garante a livre-iniciativa. (...) Concorrência é a ação competitiva desenvolvida por agentes que atuam no mercado de forma livre e racional. Assim, deve o Estado intervir de forma a garantir que a competição entre os concorrentes de um mesmo mercado ocorra de forma justa e sem abusos (monopólio, oligopólio, truste, cartel, etc.), garantindo-se, assim, o equilíbrio entre a oferta e a procura. (...).

Sendo assim, a priori, determinamos a relevância do princípio em exame a partir da inferência de sua afinidade com o modelo capitalista neoliberal vigente em nosso país. De modo que, enquanto principal corolário de nosso sistema econômico, devemos investigar doravante até que ponto o seu desenvolvimento pleno é benéfico para a consecução dos fins notadamente sociais insculpidos solidamente em nossa Constituição.

1.2 Busca do Pleno Emprego

A assunção de um princípio de busca do pleno emprego em nossa constituição remonta ao ideário teórico de John Maynard Keynes, economista britânico que na primeira parte do século XX promoveu uma verdadeira revolução no pensamento econômico. Formulando teorias que explicitavam a necessidade de intervenção do Estado na economia, como principal meio de promover o efetivo desenvolvimento sócio-econômico, foi considerado o fundador da chamada concepção macroeconômica.

Destarte, Keynes, buscando aprimorar o sistema capitalista - que entendia ser o mais eficiente – cunhou teorias que elucidavam a impotência do mercado em se auto-regular, desenvolvendo princípios econômicos que reivindicavam a utilização plena de todos os fatores da produção, advindo daí, portanto, a conceituação da busca do pleno emprego.

No Brasil, o referido princípio entra em nosso sistema jurídico com a Constituição Federal de 1967, através da Emenda Constitucional 1/69, com a grafia diversa de expansão das oportunidades de emprego produtivo, no inciso VI, do art. 160. Hodiernamente, está consagrado em nossa Carta Política no inciso VII, do art. 170, enquanto princípio geral da atividade econômica, denotando a importância que assume em nosso sistema normativo.

Considerando-o enquanto princípio de natureza sócio-econômica, expomos o amplo conceito acerca do princípio da busca do pleno emprego elaborado por Leonardo Vizeu Figueiredo (2006, p.43):

Trata-se da expansão das oportunidades de emprego produtivo, conforme positivado na Carta Política de 1967, que tem por fim garantir que a população economicamente ativa esteja exercendo atividades geradoras de renda, tanto para si, quanto para o país. (...) Ressalte-se que, quanto maior o número de cidadãos economicamente ativos laborando de forma rentável, maior será a renda per capita do País, maior será o volume de arrecadação com tributos, diminuindo-se os gastos com despesas oriundas da seguridade social, notadamente previdência e assistência, que poderá focar seus esforços e recursos, tão-somente, no notadamente necessitado. (...) Observe-se que, para tanto, o Estado deve adotar políticas anti-inflacionárias, com o fito de preservar o real valor dos rendimentos dos trabalhadores, mantendo seu poder aquisitivo, atuando, ainda, no sentido de garantir condições dignas de trabalho.

No que tange à conceituação propriamente dita, entendemos que deva haver uma interpretação restritiva no que concerne à significação do referido princípio em nosso ordenamento jurídico, mormente para os fins a que se destina esse trabalho. Ou seja, não entendemos haver, em nossa Constituição, um desenvolvimento tão amplo e pormenorizado, quanto se dá na seara econômica; tampouco são abrangidos em nosso campo normativo os reflexos das preocupações de cunho técnico que modernas teorias desenvolvem considerando a aplicação ampla do princípio da busca do pleno emprego em um dado país.

Destarte, para os fins a que nos propomos no presente trabalho, doravante compreenderemos sua carga normativa associada diretamente à criação de postos de trabalho bastantes para todo o contingente populacional apto a desenvolver atividade laboral, notadamente de forma remunerada.

Desse modo, contemplamos o princípio em estudo intimamente relacionado com o direito social ao trabalho (art. 6°, caput, CF), que cuida não apenas da democratização das oportunidades de trabalho mediante a efetivação do pleno emprego, mas também da melhoria de condições de saúde e segurança no trabalho.

Nessa toada, considerando a da busca do pleno emprego, principalmente enquanto um princípio garantidor de oportunidade de trabalho a toda população ativa, colacionamos reflexão deveras atual acerca do papel do princípio em comento, engendrada pelo professor José Eustáquio Diniz Alves (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística:

O conceito de 'pleno emprego', em economia, tem como base o estado de equilíbrio entre a oferta e a demanda dos fatores de produção em sua plena capacidade instalada. Em uma situação de pleno emprego não existe desperdício, em qualquer de suas formas, nem do capital e nem do trabalho. O pleno emprego significa a utilização da capacidade máxima de produção de uma sociedade e, evidentemente, deve ser utilizada para elevar a qualidade de vida da população, com respeito ao meio ambiente.

A população tem direito ao pleno emprego e cabe à sociedade estabelecer as leis e as normas que possibilitem a utilização integral da oferta de trabalho e cabe ao Estado implementar políticas micro e macroeconômicas direcionadas para a criação de oportunidades e para o aumento geral da produtividade dos fatores de produção. (...)

O pleno emprego é um pré-requisito para a dignidade dos trabalhadores e uma condição essencial para a estabilidade e o progresso da sociedade. Todo ser humano tem direito a um emprego e a um trabalho decente. O pleno emprego é a forma de se garantir este direito e uma forma de melhorar as condições econômicas do país, aproveitando o seu “capital humano”. Também poderá ser uma forma de ajudar a preservar o meio ambiente se houver investimento na ampliação na capacidade de geração de energias renováveis, no aumento da eficiência energética, no processo de reciclagem de materiais e na criação de empregos verdes.

Mediante a análise das reflexões empreendidas acima pelo Prof° José Eustáquio Diniz Alves auferimos a importância não apenas do oferecimento de postos de emprego bastantes a tantos quantos puderem participar da atividade laboral, mas também a preocupação de que tais empregos sejam decentes, ou seja, efetivamente coadunem-se com o corolário da dignidade da pessoa humana, promovendo o mister da cidadania.

Destarte, novamente reportando-nos ao trabalho do Prof° José Eustáquio Diniz Alves em “O Direito ao Pleno Emprego e ao Trabalho Decente” (2010), bem como ao esforço de conceituação identificado na resolução da OIT de 1999 que definiu o que seria trabalho decente - expondo algumas de suas principais características e efeitos - citaremos aqueles entendidos como os mais importantes a esse respeito presentes no artigo mencionado, oferecendo subsídios para a compreensão da possível amplitude e os reflexos da efetivação de um princípio constitucional como o da busca do pleno emprego.

•Oportunidades para encontrar um emprego que seja produtivo e proporcione um rendimento justo, que garanta aos trabalhadores e suas famílias poderem desfrutam de uma qualidade de vida decente;

•Liberdade para escolher o trabalho e a livre participação em atividades sindicais;

•Condições para que os trabalhadores possam ser tratados de forma justa, sem discriminação e sejam capazes de conciliar trabalho e responsabilidades familiares;

•Condições de segurança para proteger a saúde dos trabalhadores e proporcionar-lhes a proteção social adequada;

•Condições de dignidade humana para que todos os trabalhadores sejam tratadas com respeito e possam participar na tomada de decisão sobre suas condições de trabalho;

Ainda nesse sentido, mormente conciliando o teor econômico com o predominante cunho social do princípio estudado, salientamos a abalizada compreensão do constitucionalista José Afonso da Silva (2006, p. 797) acerca do princípio em comento:

Pleno emprego é expressão abrangente da utilização, ao máximo grau, de todos os recursos produtivos. Mas aparece, no art. 170, VIII, especialmente no sentido de propiciar trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade produtiva. Trata-se do pleno emprego da força de trabalho capaz. Ele se harmoniza, assim, com a regra de que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano. Isso impede que o princípio seja considerado apenas como mera busca quantitativa, em que a economia absorva a força do trabalho disponível, como o consumo absorve mercadorias. Quer-se que o trabalho seja a base do sistema econômico, receba o tratamento de principal fator de produção e participe do produto da riqueza e da renda em proporção de sua posição na ordem econômica.

De outro lado, também com grande valor elucidativo relativamente à conceituação do princípio da busca do pleno emprego, expomos o entendimento de Roseli Rego dos Santos (2010, p. 5254), plasmado em seu artigo “O Princípio da Busca do Pleno Emprego como Aplicação da Função Social da Empresa na Lei de Falências e Recuperação de Empresas”, o qual já denota uma outra faceta de atuação do princípio em comento:

Numa sociedade fundada em valores sociais, o direito ao trabalho remunerado e digno relaciona-se intrinsecamente com o direito à vida. Isso porque, para grande parte da população, da remuneração obtida pelo trabalho prestado é que se obtém os recursos suficientes para a aquisição dos bens indispensáveis à sobrevivência digna. Sendo assim, o direito ao trabalho é um direito de todos os cidadãos. O pleno emprego decorre de uma democratização das relações de trabalho e pode ser definido como uma condição do mercado onde todos os que são aptos a trabalhar, e estão dispostos a fazê-lo, encontram trabalho remunerado. (...)

A conformação do pleno emprego como um direito é uma expressão do Estado Social, que tem como pressuposto a intervenção estatal na ordem econômica que pode definir a função e até mesmo do conteúdo de determinados direitos. Sendo assim, a noção de direito ao trabalho remunerado ou o pleno emprego nasce a partir da conformação desses direitos sociais, como direitos fundamentais de segunda dimensão. Dessa feita, o poder público tem o compromisso de promover as condições para que a liberdade e a igualdade na obtenção de um trabalho digno e remunerado sejam real e efetivamente reconhecidas aos indivíduos, devendo para isso remover os obstáculos que impedirem ou dificultarem sua plenitude.

Tendo em vista a delimitação semântica do princípio da busca do pleno emprego acima engendrada acreditamos ter sido deslindado seu caráter sócio-econômico e, propedeuticamente, explicitados os efeitos benéficos passíveis de serem atingidos com a sua plena efetivação.

1.3 Recepção em nosso Ordenamento Jurídico

No intuito de determinar o grau de efetivação dos institutos jurídicos estudados, assim como as possíveis razões que a determinam, é imperativo que analisemos de que modo se dá a sua intronização em nosso sistema normativo; ou seja, perquirir de que maneira são recebidos e dispostos na estrutura organizacional de nossa constituição os conceitos examinados, como meio de inferir acerca de sua exigibilidade no plano fático.

Para a consecução de tal desiderato, adotaremos como linha-mestra em nosso projeto a interpretação constitucional sistemática do mestre português J.J. Gomes Canotilho, que concebe o modelo constitucional de Portugal (que acreditamos guardar grande semelhança com o nosso) enquanto um sistema aberto de regras e princípios. Nesse sentido, ele sistematiza a referida estrutura constitucional (2008, p. 1159):

(...) o sistema jurídico do Estado de direito democrático português é um sistema normativo aberto de regras e princípios. Este ponto de partida carece de <descodificação>: (1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e <capacidade de aprendizagem> das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da <verdade> e da <justiça>; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas; (4) é um sistema de regras e princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a sua forma de regras.

Destarte, filiamo-nos ao entendimento de que nosso ordenamento jurídico constitui um verdadeiro sistema normativo aberto de regras e princípios, justamente pelo viés democrático que determina a natureza de nosso Estado de Direito. Ainda, temos que se tratam, a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, de princípios constitucionais, tendo em vista, também, o criterioso método interpretativo desenvolvido pelo constitucionalista lusitano, abaixo explicitado.

Nesse toada, temos que analisando o grau de abstração da norma (gênero) que, no caso, em ambos os institutos é relativamente elevado, infere-se que sejam princípios. Caso fossem regras, forçosamente teriam grau de abstração reduzida, mormente pela sua necessidade de determinação cogente.

Tendo por parâmetro o grau de determinabilidade no plano fático, novamente concluímos pela sua identidade com os princípios, haja vista a necessidade de chamadas mediações concretizadoras (seja por parte do legislador ou do juiz), enquanto as regras ordinariamente têm aplicação direta.

Considerando, ainda, o caráter de fundamentabilidade, assumimos que se coadunam ambos com o modelo principiológico, visto que coordenam e estruturam o sistema normativo no qual estão inseridos – no caso da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, têm o condão de informar e organizar principalmente a chamada ordem econômica.

Ainda, levando em consideração a proximidade da idéia de direito, identificamos em ambos um conteúdo predominantemente de natureza material, harmonizando-se com os ideários da justiça (Dworkin) e, mesmo, da idéia de direito (Larenz), diferentemente das regras que, habitualmente, são apenas formalmente vinculativas. (CANOTILHO, 2008, p.1159)

Por fim, temos ainda o critério que Canotilho chama de natureza normogenética dos princípios, que determina que estes fundamentam regras, constituindo sua base material; nos princípios estudados, como veremos no seguimento do trabalho, dá-se o mesmo, ainda que sem uma proporção razoável no que concerne à incidência de um e outro em nosso plano legislativo (CANOTILHO, 2008, p.1159).

Mais do que determinar a livre iniciativa e a busca do pleno emprego enquanto princípios constitucionais devemos, nesse momento, investigar sua natureza. Para tanto, perfilhando entendimentos doutrinários como sustentáculo teórico, buscaremos construir uma ideia sólida daquilo que corresponda à essência de ambos os princípios.

Ressaltamos aqui o entendimento de Paulo Bonavides, com o qual assentimos, de que a norma constitucional - genericamente considerada - é eminentemente uma norma política. Não obstante, na tarefa de compreender o motivo pelo qual alguns princípios insertos em nossa Carta Magna são aplicados – tanto na seara legislativa, como na jurisprudencial - em larga escala, enquanto outros são quase que totalmente olvidados no plano de efetividade, urge que analisemos com maior minúcia a questão própria da natureza dos dois princípios aqui examinados.

Desse modo, cumpre que examinemos separadamente, o modo como um e outro princípio estudado foi absorvido em nossa estrutura constitucional, no escopo de determinarmos as idiossincrasias que possam determinar a suposta tensão entre ambos.

José Afonso da Silva, examinando a obra de José Joaquim Gomes Canotilho, posicionou-se pela existência de duas principais classes de princípios constitucionais, os princípios político-constitucionais e os princípios jurídico-constitucionais.

Os primeiros dizem respeito aos princípios que expressam decisões políticas fundamentais que conformam e orientam todo o sistema constitucional positivado. Determinam o modo de organização do Estado, sendo também chamados de normas-princípio, ou seja, normas gerais das quais derivam hierarquicamente todas as outras normas em nossa Constituição dispostas.

De acordo com o próprio Canotilho (2008, p. 1166), que os denomina princípios politicamente conformadores, são eles:

[…] os princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição. Expressando as concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembléia constituinte, os princípios político-constitucionais são o cerne político de uma constituição política, não admirando que: (1) sejam reconhecidos como limites do poder de revisão; (2) se revelem os princípios mais directamente visados no caso de alteração profunda do regime político. Nesta sede situar-se-ão os princípios definidores da forma de Estado: princípios da organização econômico-social, como, por ex:, o princípio da subordinação do poder econômico ao poder político democrático, o princípio da coexistência dos diversos sectores da propriedade – público, privado e cooperativo; os princípios definidores da estrutura do Estado (unitário, com descentralização local ou com autonomia local e regional), os princípios estruturantes do regime político (princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio republicano, princípio republicano, princípio pluralista) e os princípios caracterizadores da forma de governo e da organização e da organização política em geral como o princípio da separação e interdependência de poderes e os princípios eleitorais.

Perante tal definição teórica, não nos escusamos de inferir estar aí circunscrita a dimensão própria que fundamenta a livre iniciativa que, disposta inicialmente no primeiro artigo de nosso texto constitucional informa o teor geral de nosso modelo econômico, conformando todos os demais dispositivos da Carta Magna a esta realidade consolidada. Assim procedendo, filiamo-nos ao douto entendimento de juristas brasileiros como Eros Roberto Grau e José Afonso da Silva que acentuam o caráter preeminente da livre iniciativa em nosso ordenamento jurídico.

De outro lado, os princípios jurídico-constitucionais são positivados observando as disposições materiais daqueles ditos conformadores, constituindo, assim, um desdobramento lógico e consentâneo com as preocupações lá manifestadas pelo legislador constituinte. Aqui também, cabe a menção á nomenclatura utilizada por Canotilho, bem como seu entendimento abalizado acerca dessa natureza de princípios. Assevera o jurista português que (2008, p. 1167):

Nos princípios constitucionais impositivos subsumem-se todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas. São, portanto, princípios dinâmicos, prospectivamente orientados. Estes princípios designam-se, muitas vezes, por <preceitos definidores dos fins do Estado>, princípios directivos fundamentais, ou <normas programáticas, definidoras de fins ou tarefas. Como exemplo de princípios constitucionais impositivos podem apontar-se o princípio da independência nacional e o princípio da correcção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento (arts. 9.°/d e 81.°/b). Traçam, sobretudo para o legislador, linhas rectrizes da sua actividade política e legislativa.

Nesse sentido, nos é possível identificar a natureza do princípio da busca do pleno emprego enquanto uma norma (gênero) de caráter impositivo, mais propriamente determinando uma conduta imperativa aos legisladores e governantes. Nessa toada é que José Afonso da Silva considera a busca do pleno emprego também como um princípio diretivo, contrapondo-se material e formalmente, por exemplo, a medidas políticas de caráter recessivo.

Por derradeiro, inferimos – lastreados também na compreensão de Canotilho - que o princípio da busca do pleno emprego determina uma tarefa ou um fim a ser concretizado mediante, principalmente, a aplicação zelosa das disposições constitucionais, o que também acreditamos acontecer na determinação da redução das desigualdades regionais e sociais e, mesmo, na exaltação da livre-concorrência, objetivos estes também insculpidos no art. 170 de nosso Texto Fundamental.

Destarte, doravante investigaremos a problemática genuína que legitima o presente texto, qual seja, delimitar em que termos ocorre o enfrentamento dos dois princípios sob exame, investigando acerca da possibilidade efetiva de sua coexistência harmônica dentro de nosso ordenamento jurídico ou de seu inconciliável antagonismo de ordem axiológica.


2 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

 

 

2.1 Métodos Interpretativos

Operada uma conceituação preliminar acerca da carga valorativa imanente dos princípios que nos guiarão pela iminente investigação exegética, quais sejam, a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, é mister que explicitemos o método de interpretação a ser utilizado predominantemente nessa empresa.

Nesse sentido, importante mencionar que o foco de nosso trabalho interpretativo será o próprio texto constitucional o que, in limine, dispensa uma explicação maior acerca da importância de utilização de uma interpretação criteriosa e consentânea com a relevância da norma analisada.

Destarte, distanciando-nos de uma interpretação voltada somente à vontade do legislador ou ao espírito da lei e, como forma de elucidar o entendimento aqui perfilhado acerca da real importância da interpretação constitucional, explicitamos o pensamento de Juarez Freitas (1995, p. 50) sobre o papel do interprete normativo:

A faceta de instrumentalidade do Direito como um todo significa que o intérprete é concitado a dialogar com a vontade da lei, objetivamente considerada, fazendo-o de modo não subserviente, pois é preciso descobrir os seus fins, expressos ou ocultos e, mais do que isso, descobrir os fins essenciais do sistema jurídico a serem concretizados através desta ou daquela norma. Assim, ao se interpretar e aplicar uma norma individual, não há como deixar de julgá-la também, sem que tal julgamento redunde num sociologismo usurpador de competências constitucionais e sem adentrar no mérito histórico e legislativo específico, quanto à conveniência ou oportunidade do seu surgimento. É que ao intérprete incumbe – convém frisar enfaticamente – dar sistematicidade à norma, vale dizer, colocá-la, formal e substancialmente, em harmonia com o sistema jurídico, concepcionado e pressuposto como garantidor da coexistência das liberdades e igualdades e igualdades no presente vivo em que se dá a operação hermenêutica.

De modo semelhante, adiantaremos o entendimento acerca da interpretação constitucional preocupada com a mobilidade das relações sociais de Konrad Hesse (1991, p. 23), autor que utilizaremos e exploraremos com maior minudência no fechamento desse trabalho.

Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situação. Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito. Uma interpretação construtiva é sempre possível e necessária dentro desses limites. A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação vigente.

Ainda, valendo-nos de concepções erigidas pelo constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho em seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição, traçaremos um breve perfil dos cinco principais métodos interpretativos hodiernamente utilizados na atividade hermenêutica constitucional.

O primeiro deles é o método jurídico, que traduz os ideais hermenêuticos clássicos, mormente por tratar a interpretação constitucional de forma indiferente, considerando a interpretação de uma Lei Fundamental de modo semelhante àquela interpretação dada a uma lei ordinária. Nesse método, privilegia-se a utilização das chamadas regras tradicionais da hermenêutica.

Destarte, o método jurídico de interpretação aproxima-se do sentido efetivo do texto interpretado mediante a utilização dos elementos interpretativos: filológicos – tais como o literal, o gramatical e o textual -, lógicos – como o elemento sistemático -, históricos, teleológicos e o elemento genético da norma. Destarte, coadunando tais elementos ao princípio norte da legalidade, buscar-se-á tão somente o descobrimento do sentido do texto interpretado, sem afastar-se dele.

De outro lado, o método tópico-problemático reduz a tarefa hermenêutica a, no nosso entender, um subjetivismo desmedido e, por isso mesmo, prejudicial à benquista segurança jurídica. De modo que, parte-se de uma premissa interpretativa considerando uma norma contida em um sistema aberto, possibilitando a discussão da questão prática e evidenciando, primordialmente, a argumentação de vários intérpretes na tentativa de adaptação do texto normativo à realidade do caso concreto.

Desse modo, no método tópico-problemático, são construídos tópicos de discussão que problematizam a questão por diversas óticas interpretativas, buscando a confluência consensual dos intérpretes a uma decisão para o caso em tela. Tal método, aduz Canotilho, demonstra-se pernicioso por inventar um direito eminentemente casuístico, não considerando a interpretação constitucional uma atividade normativamente vinculada.

O método hermenêutico-concretizador, segundo Canotilho teorizado principalmente por Konrad Hesse, constrói a interpretação normativa a partir da pré-compreensão do intérprete acerca daquilo que analisa. A partir desse método admite-se o eminente papel de criação do intérprete; buscando o sentido do texto historicamente e executando tarefa prático-normativa, ele concretiza o direito através da contextualização criativa entre aquilo que está positivado na norma sob exame e o caso no qual pretende-se a subsunção normativa.

Destarte, o método hermenêutico-concretizador é um método que, diferentemente do tópico-problemático que assume o problema diante da norma, prima por desvelar o sentido da norma enquanto referência contextual para a concreção normativa em face dos problemas oriundos do caso concreto.

O método científico-espiritual, também conhecido como sociológico e valorativo, pauta-se pela adequação da interpretação da norma constitucional com as bases de valoração intrínsecas ao texto constitucional, buscando coadunar o exercício interpretativo com uma dada ordem de valores presentes na própria Lei Fundamental. Dessa necessidade de inferência de quais valores seriam mais caros à Carta Política analisada é que se depreende o esforço de captação espiritual do intérprete; não apenas dessa vontade positivada, mas dos anseios reais da comunidade e do Estado onde está vigente.

Assim, é que relativamente ao método científico-espiritual, principalmente pelo teor notadamente subjetivista e, mesmo, descriterioso de sua metódica interpretativa, assentimos com Canotilho no sentido de sua inviabilidade prática de utilização de uma forma mais ampla, tal como é aquela necessária à consecução da empresa exegética aqui intentada.

Por último, referenciamos o método de interpretação normativo-estruturante, que tem como postulados principais a determinação de uma metódica jurídica investigativa que tenha por fim perscrutar as várias funções de realização do direito constitucional, como a da legislação, da jurisdição e da administração. Nesse sentido, adaptando a lei e conformando suas transformações no escopo de buscar a decisão das diversas questões práticas, tal metódica cuida, eminentemente, de investigar a estrutura própria às normas positivadas, com o objetivo de compreender em que domínio normativo estão circunscritas.

Destarte, a partir do método normativo-estruturante, entende-se que dentro de um texto constitucional estão inseridos diferentes sistemas jurídicos, como a ordem social e a ordem econômica, sempre conformados pelo ideário maior da unidade da constituição. Assim, cremos que, mediante a utilização desse método, plasmado nos ensinamentos de Canotilho com fulcro no pensamento do jurista alemão Friedrich Müller que, ainda segundo Eros Grau, também informa o conteúdo do método lógico-sistemático, nos é possível desvendar a carga valorativa e vinculativa, verbi gratia, de um princípio como o da livre iniciativa em nosso ordenamento jurídico, o que possibilita o iminente exame concernente a sua adequada efetivação no plano fático.

Procedendo dessa forma - adotando tanto quanto possível o método normativo-estruturante, por entendermos guardar mais afinidade com a tarefa a ser desempenhada ao longo desse expediente, mormente por nos propiciar uma análise mais atenta da questão principiológica - não estamos, em absoluto, desacreditando totalmente os demais métodos interpretativos.

Ocorre que a Constituição, entendida como um sistema complexo, não pode ser interpretada topicamente, mas apenas através de uma visão sistêmica e em seu todo. De modo que, assim como o moderno pensamento hermenêutico renega a utilização estanque de métodos de interpretação constitucional, igualmente assentimos.

Todavia, carecemos aqui da adoção de um sistema interpretativo norteador que nos forneça caminhos, tanto quanto possível, isentos de caprichos pessoais na atividade hermenêutica, motivo pelo qual inclinamo-nos predominantemente a esses cânones interpretativos, sem olvidar, contudo, da necessidade de captação do sentido de completude na interpretação da Lei Fundamental, o qual só pode ser apreendido mediante o desprendimento de convicções e sistemas fechados.

Por derradeiro, colaciono o entendimento elucidativo do jurista brasileiro Juarez Freitas (1995, p.p. 55-56) acerca dos benefícios de se proceder a uma tal interpretação constitucional de matiz sistemática, bem como no que concerne ao destacado papel dos princípios nessa atividade de natureza hermenêutica:

(a) oriente a interpretação, assim concebida, no intuito de vencer antinomias, inclusive as de valoração, para o plano principiológico; (b) evidencia que há uma dentre os princípios, daí impor-se uma interpretação conforme a Constituição, subordinando-se sempre a matéria examinada aos princípios superiores da igualdade e da justiça, dentre outros; (c) aviva a noção de que os valores fundamentais, especialmente os elevados à condição de supremos por força normativa da Constituição, têm de servir como critério de permanente avaliação, estando à base da aplicação judicial, fundamentando-a sempre, consciente ou inconscientemente; (d) permite uma aplicação mais elástica do Direito, seja por adaptar-se à modificação dos próprios valores, seja por contribuir para eliminar as chamadas ‘quebras sistemáticas’, geradoras das chamadas nulidades de normas contrárias ao sistema; (e) conduz á constatação de que a lógica jurídica há de ser necessariamente dialética, diversamente do sustentado pelo normativismo fragmentário, porquanto evidentes as incomensuráveis possibilidades hermenêuticas conferidas ao intérprete, também aplicador em sentido amplo, já que a hierarquização axiológica presente em toda interpretação jurídica nunca é somente jurídica, nem poderia sê-lo, por mais que se force a distinção entre exegese como ciência e o ato de criação do Direito como arte, uma vez que a interpretação é descoberta intersubjetiva da sistematicidade de princípios, norma e valores, devidamente hierarquizados; (f) permite ver que a maneira correta de compreender o Direito, metodologicamente, a par e além de técnica de pensar a partir de problemas – ou seja, uma ‘ars inveniendi”, como uma verdadeira arte de sistematização, eis que o mister do intérprete consiste em integrar – para além das distinções e autonomias didáticas – a totalidade sistemática, transcendendo o pensamento aporético, quando compreendido e exercido unilateralmente; (g) reforça a idéia de que a interpretação não deve ocupar jamais um papel secundário, já que a interpretação sistemática, bem entendida, é método não exterior ao objeto de sua apreensão, de tal sorte que somente é jurista aquele capaz desta visão aberta, transdogmática e dinâmica do direito, plena e maduramente receptiva aos apelos da vida em suas exigências de relação e de movimento.

2.2 Princípios da Interpretação Constitucional

Corroborando com a metódica interpretativa acima aludida, bem como também fundamentados no método hermenêutico-concretizador - igualmente desenvolvido supra – estão os chamados princípios da interpretação constitucional. No escopo de desenvolvê-los propriamente adotaremos novamente o enfoque dado por Canotilho. Nessa toada, alicerçamos adequadamente o discurso racional que nos conduzirá a uma análise propedêutica, mas ampla do fenômeno do conflito normativo principiológico, vale dizer, entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Sendo assim, antes de adentrarmos à explicitação do rol de princípios afetos à interpretação constitucional, plasmamos o entendimento do próprio Canotilho (2008, p. 1223) acerca da necessidade de tais fundamentos interpretativos:

A elaboração (indutiva) de um catálogo de tópicos relevantes para a interpretação constitucional está relacionada com a necessidade sentida pela doutrina e práxis jurídicas de encontrar princípios tópicos auxiliares da tarefa interpretativa: (1) relevantes para a decisão (=resolução) do problema prático (princípio da relevância); (2) metodicamente operativos no campo do direito constitucional, articulando direito constitucional formal e material, princípios jurídico-funcionais (ex.: princípio da interpretação conforme a constituição) e princípios jurídico-materiais (ex.:princípio da unidade da constituição, princípio da efectividade dos direitos fundamentais); (3) constitucionalmente praticáveis, isto é, susceptíveis de ser esgrimidos na discussão de problemas constitucionais dentro da <base de compromisso> cristalizada nas normas constitucionais (princípio da praticabilidade).

O princípio da unidade da constituição, ao qual nos reportaremos mais propriamente no seguimento desse trabalho, desvela um sentido interpretativo do texto constitucional tendente a amenizar e evitar as contradições normativas de todo o gênero (antinomias,conflitos, antagonismos,...). Destarte, informa ser dever do intérprete proceder a uma análise que prime pelo sentido de completude e globalidade do texto normativo constitucional. Deveras, realizar a exegese constitucional considerando as normas não de forma dispersa e/ou isolada, mas enquanto preceitos integrados em um sistema unitário de normas e princípios (CANOTILHO, 2008, p.1224).

De outro lado, fazemos menção também ao chamado princípio do efeito integrador. Em que pese seu caráter eminentemente subjetivo, seu teor informa uma condição interpretativa norteada por soluções capazes de subsidiar a integração política e social, reforçando principalmente a unidade política do Estado. Assim, tal princípio - longe de propiciar soluções que levem a reducionismos, autoritarismos e/ou fundamentalismos de qualquer ordem - busca em decisões políticas pluralísticas o escopo primordial da integração social (CANOTILHO, 2008, p.1224).

Em outra esteira, o princípio da máxima efetividade - que acreditamos ser um cânone interpretativo bastante interessante à nossa empresa de mostrar os efeitos nefastos de colisões principiológicas com efeitos sociais – denota um caráter operativo relativamente às demais normas constitucionais. Ou seja, informa uma prerrogativa de preeminência à efetividade daquelas normas subsidiadas por princípios com características de direito fundamental, relativamente a outras sem tal relevo axiológico. Tal princípio foi erigido com o objetivo de tornar atuais, vale dizer concretizadas faticamente, muitas das chamadas normas-programa, que ordinariamente carecem de mecanismos mais adequados à sua efetivação (CANOTILHO, 2008, p.1224).

Outro princípio mencionado por Canotilho como útil a uma interpretação constitucional adequada é o da justeza ou conformidade funcional. Tal princípio revela um caráter mais propriamente ligado à repartição de competências. Assim, em que pese estar inserido nessa parte do discurso, cremos estar ele menos ligado à interpretação do que à segurança jurídica em si, haja vista que cuida principalmente de manter intactas as competências e funções de cada órgão e poder, tal qual estabelecidas no texto constitucional, assegurando a mantença do esquema organizatório-funcional preconizado na Constituição Federal.

Em ordem valorativa diversa encontra-se o princípio da concordância prática ou da harmonização. Neste cânone interpretativo, além de ser possível encontrar desdobramentos lógicos dos demais princípios aludidos, reside a necessária imperatividade da coordenação e combinação de bens jurídicos em conflito, vale dizer, a proibição de sacrifício total de um bem constitucional em detrimento de outro. Ou seja, a ponderação de suas cargas valorativas próprias buscando a concordância prática, em especial, quando se tratarem os bens jurídicos sob exame, de direitos fundamentais, situação na qual deverá ser feito o sopesamento adequado visando a imposição de limites e condicionamentos recíprocos buscando sempre a harmonia jurídica e social.

Por derradeiro, aludimos ao princípio da força normativa da constituição, o qual será desenvolvido com maior minudência na conclusão de nosso trabalho, haja vista seu eminente relevo no mister da interpretação constitucional, mormente nos moldes em que pretendemos aqui traçá-la. Desse modo, em caráter preliminar adiantamos ser um princípio desenvolvido a partir dos ensinamentos do jurista alemão Konrad Hesse, preceituando a utilização de pressupostos normativos otimizantes da Lei Fundamental, principalmente em face de problemas jurídico-constitucionais. Assim, adequando a solução hermenêutica à historicidade da estrutura constitucional sob exame, deverá ser procedida a atualização constitucional, quer dizer, a concreção do direito de forma atenta aos anseios hodiernos de natureza jurídico-social, primando por um direito que seja, ao mesmo tempo efetivo e permanente.

2.3 O Metaprincípio da Hierarquização Axiológica

Derradeiramente, explicitaremos o conceito do princípio da hierarquização axiológica que determina um modo de interpretação sistemática do direito, o qual entendemos como determinante na tarefa aqui empreendida, justamente por considerar o critério da carga valorativa axiológica como primordial na definição de saídas jurídicas para conflitos normativos. Tal cânone interpretativo é detalhado na obra de Juarez Freitas, que realiza profícua e original empresa no tratamento das questões atinentes à interpretação normativa.

Mais do que um princípio interpretativo, a hierarquização axiológica determina um critério que, longe de se distanciar dos demais métodos e princípios da hermenêutica constitucional, com eles se coaduna, vale dizer, complementando-os. Ou seja, é um imperativo principiológico capaz de conferir unidade ao sistema jurídico. Juarez Freitas (1995, p. 81) o conceitua da seguinte forma:

(...) é o metacritério que ordena, diante inclusive de antinomias no plano de critérios, a prevalência do princípio axiologicamente superior, ou da norma axiologicamente superior em relação às demais, visando-se a uma exegese que impeça a autocontradição do sistema conforme a Constituição e que resguarde a unidade sintética dos seus múltiplos comandos.

Destarte, tal hierarquização principiológica que tenha por critério o escalonamento normativo consoante o valor axiológico, será de grande valia em nosso trabalho, haja vista a natureza de conflito sob enfoque. De modo que, mediante a utilização desse metacritério interpretativo, cremos auferir valiosos subsídios teóricos para a abordagem adequada da temática proposta, mormente se restar comprovado ao longo da explanação o conflito axiológico entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Sendo assim, outro viés importante identificado através da utilização preponderante do metacritério da hierarquização axiológica é a sua coadunação e preocupação com a temática da justiça, o que nos parece essencial, haja vista o reflexo de natureza social concernente a um conflito normativo como o estudado. Nesse sentido é também o entendimento de Juarez Freitas (1995, p. 91):

(...) nos lindes e nas fronteiras inerentes ao sistema e no manejo adequado do metacritério da hierarquização axiológica, é deveras evidente que a justiça se apresenta como um dos elementos essenciais e juridicamente indispensáveis à legitimidade e à continuidade mesma do Direito positivo. Deve, pois, a interpretação sistemática, à base substancial do sistema objetivo, visar a suplantação das antinomias de avaliação ou injustiças, sem que o exegeta se sobreponha autoritariamente ao sistema jurídico , pressuposta sua razoabilidade mínima no Estado Democrático.

Por fim, salientamos a lúcida lição de Juarez Freitas (1995, p. 115) acerca deste metaprincípio, evidenciando o modo como nos será útil posteriormente, guiando-nos sob o terreno irregular da interpretação constitucional:

(...) à guisa de conclusão, sempre haverá, mesmo no conflito entre os princípios ou subprincípios hermenêuticos, a dominância de um ou a relativização mútua, ditada por um princípio tido como superior ou mais elevado. Tal princípio, dotado de imperatividade jurídica, sem ser uma mera espécie do gênero das normas, outro não é senão o princípio da hierarquização axiológica, que mais se evidencia no tratamento dos conflitos entre os princípios ou subprincípios necessários à sua concretização.


3 DO CONFLITO NORMATIVO

 

 

3.1 Fundamentos da Colisão Principiológica

Para se fazer uma correta intelecção de um texto normativo de complexidade tão elevada como a própria à nossa Constituição Federal é indispensável que se tenha em mente a conjuntura que determinou sua promulgação. Deveras, o hermeneuta deve considerar ser ela fruto de um momento político indubitavelmente conturbado, revelando em seu bojo manifestações e anseios de diferentes classes sociais - muitas vezes com interesses, aspirações e ideologias antagônicos entre si.

Destarte, considerando essa pluralidade política peculiar a um Estado Democrático de Direito como o nosso e, levando em conta sua inegável assunção no teor do texto de nossa Carta Magna, é natural que sejam identificadas tensões, inclusive, em seu conteúdo dispositivo.

Em certos casos, quando uma determinada regra – verbi gratia, uma lei – preceitua uma dada conduta como regular e outra dispõe como tendo a mesma conduta natureza ilícita, encontramos configurado o fenômeno da antinomia. Para tais casos, Norberto Bobbio aduz à existência de três critérios principais que tendem à sua solução; o critério cronológico (Lex posterior derogat priori) em que a lei posterior derroga a lei anterior, o critério hierárquico (Lex superior derogat inferiori) em que a lei superior derroga a lei inferior e o critério da especialidade (Lex expecialis derogat generali) em que a lei especial derroga a lei geral. A partir da análise desses critérios, uma lei terá validade na solução do caso concreto, enquanto que a outra será desconsiderada.

Todavia, ao se entrar no campo da interpretação de princípios constitucionais não há que se falar em ocorrência de antinomia, nos moldes acima descritos. Ou seja, não pode haver derrogação de um princípio constitucional em sua totalidade por outro. A mantença da carga de eficácia de um desses princípios em detrimento do esvaziamento total de validade de outro vai de encontro à sólida concepção de harmonia sistêmica do arcabouço jurídico.

Desse modo, não obstante o valor da teoria kelseniana da construção escalonada das normas jurídicas, bem como a provável maior importância de certos princípios constitucionais relativamente a outros em nossa Carta Política, no que concerne à análise dessa natureza de colisões principiológicas deve-se afastar prontamente a utilização dos critérios próprios à solução de antinomias previamente referidos. Sendo assim, é indicada a ponderação prática como meio de conformar a incidência parcial de um e outro princípio.

No mesmo sentido, assentando a pluralidade social plasmada em um texto constitucional e, asseverando a peculiaridade dos conflitos entre princípios constitucionais, assevera Canotilho (2008, p. 1182) que:

O fato de a constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir fenômenos de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar, como é óbvio, o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador.

A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem , em caso de conflito, a uma <lógica do tudo ou nada>, antes podem ser objectos de ponderação e concordância prática, consoante o seu <peso> e as circunstância do caso.

Ainda, no escopo de estudar a natureza própria da tensão entre dois princípios constitucionais, convém diferenciarmos oposição de contradição, no que concerne ao fenômeno do conflito principiológico. Para tanto, filiamo-nos ao entendimento do jurista alemão Claus-Wilhelm Canaris, citado pelo brasileiro Juarez Freitas.

Mencionando as chamadas “quebras no sistema”, Canaris diferencia cabalmente meras oposições entre princípios constitucionais de contradições. Para ele, as oposições são naturais dentro de um sistema aberto onde estão plasmados, notadamente diferentes anseios jurídico-sociais. De modo que, não devem ser suprimidas tais oposições, haja vista que constituem a própria essência de uma ordem jurídica, ajustando entre si as cargas valorativas de seus princípios, buscando sempre uma via intermediária e harmonizadora das disposições constitucionais. Assim, tal tensão não restaria suprimida, mas superada e mantida no sistema, enquanto baliza.

Em contrapartida, enxerga Canaris, as contradições atinentes a princípios constitucionais como vis a um sistema aberto de princípios e regras, como o próprio a uma constituição democrática, devendo estas, acaso existentes, serem suprimidas. Assevera o jurista alemão que “(...) contradições de valores perturbam a adequação interior e a unidade da ordem jurídica e sua harmonia e que, por isso, devem basicamente ser evitadas ou eliminadas” (apud FREITAS, 1995, p.60).

Destarte, contradições devem ser sempre vistas como um desacordo interno ao sistema capazes de prejudicar a eficácia dispositiva de um texto constitucional. Nesta toada, acreditamos ser mais comum do que deveria a presença das referidas contradições principiológicas, mormente em casos de constituições erigidas em momentos de atroz ruptura com um dado modelo anterior.

Nesse sentido, destacamos o caso emblemático da nossa Constituição Federal de 1988 que, notadamente, teve a auspiciosa missão de romper com o ideário autoritário oriundo do Golpe de 1964 configurando, no nosso entendimento, empresa demasiado penosa para um texto jurídico.

Sendo assim, justamente no que tange à identificação de contradições em um texto constitucional, haja vista sua propriedade desarmonizadora, deslinda-se a tarefa de investigar se a coexistência entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego se dá nesses moldes vis.

3.2 Do Conflito Hierárquico-Formal

Nesse primeiro momento de análise da ocorrência de conflito normativo entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, restringiremo-nos ao exame dos aspectos formais de configuração de um conflito principiológico. Assim, cumpre que investiguemos a curiosa situação da possibilidade de conflito hierárquico entre princípios de natureza constitucional.

Ora, no caso do cotejo de um princípio constitucional e um princípio infraconstitucional aparentemente conflitantes, simples seria admitir que aquele está hierarquicamente acima desse, portanto, ainda que se configurasse algum conflito, haveria uma resolução lógica e facilitada do mesmo. Todavia, mais penosa é a investigação da ocorrência de conflitos hierárquicos entre princípios, a priori, de mesma natureza, como aqueles ora em comento.

Situamos o princípio da livre iniciativa em nossa Constituição como um fundamento de nossa república (art. 1°) e também como fundamento da Ordem Econômica (art.170), constituindo, indubitavelmente, princípio constitucional expresso. Por outro lado, de igual sorte, a busca do pleno emprego, enquanto princípio geral da atividade econômica expresso (art.170) tem a mesma natureza constitucional. Destarte, permanece dificultosa a identificação de um conflito de natureza hierárquica entre ambos.

No escopo de dirimirmos a questão, buscamos a compreensão do chamado princípio da unidade da constituição. Tal princípio considera a idéia de uma unidade hierárquico-normativa, ou seja, todas as normas e princípios contidos em uma Constituição formal têm valor e dignidade iguais.

A partir de tal concepção, acreditamos nos distanciar significativamente da teoria da construção escalonada das normas jurídicas (Stufenbautheorie) de Hans Kelsen, que apregoa valores diferentes às normas e princípios constitucionais, em que pese que o famigerado jurista alemão não considerava normas os princípios. Ainda assim, aduzia que: “uma norma para ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa” (KELSEN, 1995, p. 248.)

Nesse sentido, utilizando o princípio da unidade hierárquico-normativa da constituição como norte, Canotilho (2008, p. 1184) assevera:

A consideração da constituição como sistema aberto de regras e princípios deixa ainda um sentido útil ao princípio da unidade da constituição: o de unidade hierárquico-normativa. O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional). (...) o princípio da unidade da constituição é uma exigência de <coerência narrativa> do sistema jurídico. O princípio da unidade, como princípio de decisão, dirige-se aos juízes e a todas as autoridades encarregadas de aplicar as regras e princípios jurídicos, no sentido de as <lerem> e <compreenderem>, na medida do possível, como se fossem obra de um só autor, exprimindo uma concepção correcta do direito e da justiça (Dworkin). Neste sentido, embora a constituição possa ser uma <unidade dividida> (P. Badura) dada a diferente configuração e significado material das suas normas, isso em nada altera a igualdade hierárquica de todas as suas regras e princípios quanto à sua validade, prevalência normativa e rigidez.

Contrariamente, seguindo ainda os ensinamentos do mestre alemão, concebia, entre nós, o saudoso Geraldo Ataliba apud George Marmelstein Lima que: “O sistema jurídico se estabelece mediante uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios que,de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os princípios menores.” (In A Hierarquia entre Princípios e a Colisão de Normas Constitucionais).

Decorreria, portanto, a unidade da constituição de uma necessidade, intrínseca ao sistema jurídico, de harmonização e conformação, mormente principiológica. Desse entendimento compartilhamos, pelo menos no que tange ao caráter hierárquico-formal das colisões principiológicas. Assim, posicionamo-nos tendo em vista também a impossibilidade de contemplar em uma constituição aberta formada por princípios e regras uma ordem hierárquica pré-existente que determine, independentemente do caso concreto que se apresente, a prevalência de um ou outro princípio constitucional.

Destarte, propugnamos pela inexistência de conflito de natureza hierárquica entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, haja vista que, conforme se pode inferir das linhas anteriores, fazem ambos parte desse complexo e, aparentemente, harmônico sistema aberto de princípios e regras que constitui o ideário de nossa Constituição Federal.

3.3 Do Conflito Axiológico-Material

Nesse ponto do trabalho, onde já nos é possível identificar os alicerces da construção teórica proposta, deve ser verticalizada a investigação de modo a podermos perscrutar no interior de nosso ordenamento jurídico aquelas tensões, no nosso sentir, mais nevrálgicas. Para tal empresa, mister que interpretemos de forma arguta e consciente as disposições de nossa Carta Magna. Nesse sentido, expomos o ensinamento de Eros Grau (1995, p. 142) acerca do papel do intérprete na ciência jurídica:

Em síntese: a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não, pois, meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar / aplicar é dar concreção [=concretizar] ao direito. Nesse sentido, a interpretação / aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida. A interpretação / aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [=do direito] no mundo do ser [=mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o particular.

Deveras, entendemos que, no plano fático, ordinariamente e, não sem pesar, substituem-se os critérios hermenêuticos de interpretação normativa pelas convicções pessoais do intérprete. Ademais, considerando a multiplicidade de aplicadores do direito, temos como muito frágil a manutenção prática de um ideário constitucional tal como aquele pensado pelo legislador constituinte.

Nesse sentido, importante o ensinamento de Konrad Hesse sobre a impossibilidade da norma constitucional atuar de forma autônoma à realidade social onde está circunscrita. Assim, adicionar à Constituição Jurídica de um país – o texto constitucional – anseios e desejos de mudança consideravelmente apartados da natureza atual daquela sociedade, apenas faz com que careça de eficácia aquela Carta, dando espaço para a chamada Constituição Real – ordem cultural vigente. Nessa toada, cremos padecer nosso Texto Fundamental desse malfadado vício, ou seja, ser permeado por declarações e intenções, senão inaplicáveis, carecedoras de fundamentação para que possam ter qualquer eficácia real.

Desse modo, adentrando à discussão acerca do conflito entre os princípios em estudo, explicitamos que pelo teor de nossa constituição toda e qualquer ação estatal na seara econômica deve ser pautada pela conformação entre as chamadas ordem econômica e ordem social. Assim, a livre iniciativa deveria ser desenvolvida respeitando e em benefício da valorização do trabalho humano, da justiça social, da redução das desigualdades sociais, buscando a construção de uma sociedade justa, a erradicação da pobreza e a marginalização, além da busca do pleno emprego (art. 170, Constituição Federal).

Contudo, como realizar tais fins sociais colimados, mediante o exercício de práticas econômicas próprias a um regime capitalista de inclinação neoliberal como aquele que determina a natureza da livre iniciativa? Ainda, tendo em vista a falta de dispositivos práticos – não meramente declaratórios - capazes de frear seus desígnios econômicos desatentos às questões sociais, de que modo poder-se-ia inverter tal conjuntura?

Tal raciocínio pesaroso encontra guarida em dispositivos constitucionais que preconizam a manifesta prevalência da livre iniciativa sobre aqueles princípios ditos sociais, como o da busca do pleno emprego.

Tomemos como exemplo o art. 174 de nossa Constituição que preceitua o seguinte: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.” (grifo nosso)

Ora, se no próprio bojo de nossa constituição, o Estado coloca-se meramente como agente indicativo para o setor privado, deslinda-se a dificuldade própria à imposição de limites sociais ao pleno desenvolvimento de uma nefasta economia de mercado regida pela livre iniciativa. Com a mesma preocupação, manifesta-se Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 791):

No passado ainda poderiam prosperar dúvidas quanto a isto; porém, com o advento da constituição de 1988 tornou-se enfaticamente explícito que nem mesmo o planejamento econômico feito pelo poder público para algum setor de atividade ou para o conjunto deles pode impor-se como obrigatório para o setor privado. (...) Em suma: a dicção categórica do artigo deixa explícito que, a título de planejar, o Estado não pode impor aos particulares nem mesmo o atendimento às diretrizes ou intenções pretendidas, mas apenas incentivar, atrair os particulares, mediante planejamento indicativo que se apresente como sedutor para condicionar a atuação da iniciativa privada.

Sendo assim, à possibilidade de imposição de limites sociais à livre iniciativa opõe-se relevante óbice; ainda, o que fazer quando dispositivos constitucionais de mesma hierarquia normativa da livre iniciativa, como o princípio da busca do pleno emprego, é aposto em nossa Lei Fundamental apartado de qualquer mecanismo regulatório ou determinador de eficácia prática ?

Outrossim, no parágrafo único do art. 170 de nossa constituição lê-se: “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

Poder-se-ia, da intelecção do dispositivo supracitado encontrar algum alento regulatório ao livre exercício da livre iniciativa. Contudo, segundo Celso de Mello, atual membro do Supremo Tribunal Federal (órgão guardião da Constituição), deve-se interpretar restritivamente tal colocação. Ou seja, não está aí excepcionada a regra da exacerbada liberdade de iniciativa na seara econômica, mas tão somente a prescindência de autorização para o referido exercício da liberdade, que poderá ser determinada por lei.

Outro importante fator a ser considerado na investigação da ocorrência de conflito entre os princípios ora estudados está propriamente no cotejo de suas cargas semânticas, vale dizer, em campo valorativo.

Cabe lembrar nesse momento um dos pilares indispensáveis para o desenvolvimento do modelo econômico capitalista - norteado pela livre iniciativa - qual seja, a existência do chamado por Karl Marx, exército de reserva. Ou seja, quis dizer o sociólogo alemão que para o sucesso do capitalismo é vital que haja desemprego; mão-de-obra ociosa que garanta a manutenção dos salários baixos e o controle dos níveis de inflação, além do consequente aumento na acumulação de capital.

Sendo assim, ainda que considerássemos que não ocorre aqui um desenvolvimento pleno de todos os cânones capitalistas, forçoso é admitir que o abordado exército de reserva constitui parte vital do mitigado capitalismo neoliberal hoje vigente. Nessa toada, em que termos poderia se dar a conciliação entre a livre iniciativa - que propugna acintosamente pela manutenção do paradigma capitalista - e a busca do pleno emprego que, assentamos alhures, está configurado em nossa Constituição, minimamente enquanto objetivo de proporcionar postos de trabalho bastantes a todos aqueles que estiverem aptos a desenvolver atividade laboral?

Outro sucedâneo lógico à assunção da livre iniciativa em nosso modelo constitucional, é a irrestrita liberdade de contratar na seara privada. Deveras, daí decorre também a liberdade de demitir, dispensar o trabalhador. Uma tal liberdade não se mostra, em absoluto, consentânea com o objetivo de se atingir um nível de pleno emprego. Ademais, em que pese existirem disposições normativas esparsas em nosso ordenamento jurídico - como aquelas que visam a desencorajar a demissão sem justa causa - entendemos serem ainda demasiado brandos tais preceitos normativos.

Ainda, reportando-nos ao modo como foi introduzido em nossa constituição o princípio da busca do pleno emprego, vale lembrar, enquanto princípio jurídico-constitucional de natureza impositiva, perquirimos ainda: como poderia tornar-se efetivo tal princípio considerando seu natural antagonismo relativamente a um princípio jurídico-político de natureza conformadora como o da livre iniciativa?

A essas indagações não vislumbramos respostas que desvirtuem nossa inferência atinente à configuração de conflito de ordem axiológica em nossa constituição Federal entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Ademais, acentuamos que tal ocorrência diverge de outras colisões principiológicas ordinárias. De modo que, não cuidamos da análise de colisão principiológica quando da tentativa de concretização de normas infraconstitucionais cotejadas com um ou outro princípio constitucional. Antes, identificamos na estrutura interna de nossa Carta Política uma contradição entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego.

Aludimos, destarte, que a própria carga valorativa do princípio da livre iniciativa, nos moldes em que foi positivada, finda por inibir qualquer possibilidade de concreção do ideário atinente ao princípio da busca do pleno emprego.

Sendo assim, não obstante as diversas declarações de conteúdo social inseridas em nossa Constituição, entendemos que pela falta de mecanismos adequados lá previstos para arrefecer o teor de princípios econômicos como o da livre iniciativa, deflagra-se uma desarmonia normativa, em absoluto vil à consecução dos objetivos sociais lá plasmados legitimamente.


4 DA SUPERAÇÃO DA APORIA

 

 

4.1 A Constituição Dirigente

Não obstante a inferência aduzida anteriormente, qual seja, a do entendimento positivo concernente à configuração de conflito axiológico na estrutura própria de nosso texto constitucional, vale dizer, neutralizando a efetivação do conteúdo relativo ao teor ao princípio da busca do pleno emprego, doravante empreenderemos esforços no sentido de identificar precisamente quais seriam as condicionantes que determinam tal idiossincrasia, bem como intentar traçar caminhos que superem essa contradição em termos.

Nesse sentido, é que pensamos ser imprescindível a intelecção do conceito desenvolvido pelo professor Canotilho relativamente ao dirigismo constitucional. Todavia, em que pese o famigerado e discutido falecimento desse modelo além-mar, entre nós ainda não vislumbramos possibilidade de nos desvencilharmos facilmente dele, motivo pelo qual urge que o explicitemos e demonstremos em que termos seu entendimento pode nos ser útil para a empresa ora desenvolvida.

Relativamente à atualidade do modelo constitucional dirigente em nosso país, colhemos posição jovem e hodierna (GARCIA, 2010, p.4 ):

A obra Constituição Dirigente e vinculação do Legislador em Portugal já alcançou seus objetivos, devido a muitos fatores, dentre eles as já comentadas reformas na constituição portuguesa. Diferentemente do que ocorre em nosso país, onde o âmbito normativo-programático da Constituição ainda enfrenta severa resistência conservadora. A leitura Constitucional em países de modernidade tardia como o Brasil ainda devem estar pautados na luta pela efetivação dos valores consagrados na Constituição. As democracias de países como o nosso ainda não amadureceram a ponto de abandonar a tese de uma Constituição Dirigente. No Brasil a discussão acerca do papel da justiça constitucional deve levar em conta as nossas peculiaridades, onde as promessas trazidas pela Constituição de 1988 estão longe de serem efetivadas. O Estado brasileiro deve trabalhar na defesa dos compromissos expressos na Constituição, dando continuidade ao seu perfil dirigente e compromissário. As normas constitucionais não podem constar em segundo plano, principalmente em um país onde o texto constitucional carece de efetividade.

Destarte, Eros Grau assevera ser a nossa Constituição Federal de 1988 um modelo de Constituição Dirigente: “Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição Dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade” (GRAU, 1995, p.153.).

Nesse diapasão, em outro ponto de seu A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Eros Grau (1995, p. 67) retoma a ideia acima disposta conceituando e delimitando o que seria uma Constituição de matizes dirigentes, tornando clara a afinidade com nosso modelo constitucional e antevendo seus efeitos na seara econômica do país.

Constituições diretivas ou programáticas – doutrinais – são concebidas as que não bastam em conceber-se como mero ‘instrumento de governo’, mas, além disso, enunciam diretrizes, programas e fins a serem pelo Estado e pela sociedade realizados. Elas, pois, as que se transformam em um ‘plano normativo-material-global, que determina tarefas, estabelece programas e define fins’’, não compreendem tão somente um ‘estatuto jurídico do político‘, mas sim um ‘plano global normativo’ do Estado e da sociedade. A Constituição Econômica que nelas se encerra compreende a enunciação dos fins da política econômica, postulando, na sua conformação, a implantação de uma nova ordem econômica.

Sendo assim, não cremos incorrer em erro pensando a nossa Constituição Federal de 1988, enquanto paradigma de Constituição Dirigente, nos termos próprios desenvolvidos pelo constitucionalista português. Deveras, cumpre que a partir dessa constatação problematizemos tal condição, como meio de explicitar as razões pelas quais configuram-se aporias de efetivação, mormente ao se proceder ao cotejo dos preceitos do texto constitucional escrito e aquilo que dele extrai-se no plano da efetividade normativa.

Considerando, então, a nossa constituição como um modelo de constituição dirigente, devemos ter em mente que em tal paradigma normativo o legislador infraconstitucional, o administrador e o magistrados não exercem seus misteres de forma livre e descompromissada. Ou seja, devem desenvolver os anseios, desejos e compromissos plasmados no texto constitucional, não podendo agir contrariamente às expectativas lá consignadas.

Nesse sentido, apontando para a vinculação dos operadores do direito ao teor compromissário expresso em nossa Lei Fundamental, bem como relativamente à dificuldade de se operacionalizar uniformemente tal obrigação, expomos o pensamento do jurista brasileiro André Karam Trindade (p. 37):

Visto que as tarefas e fins do Estado inseridos no texto constitucional são propostas de legitimação material da Constituição de um país, que a compreensão material da Constituição passa pela materialização dos fins e tarefas constitucionais e que o Estado constitucional de direito não se identifica mais com o Estado de direito formal, mas quer legitimar-se como Estado social, aparece o problema do papel da Constituição dirigente na transformação da realidade social, mormente se se considerar que uma Constituição programática – que deixa de ser apenas do Estado, passando a ser também da sociedade – torna mais transparente a vinculação dos órgãos de direção política na medida em que lhes fornece as linhas de direção.

De tal pensamento, extraímos que uma constituição dirigente como a brasileira deve direcionar a ação política, fornecendo nortes materiais para sua atuação conformada aos ditames constitucionais e não ser utilizada como objeto de concretização de interesses de minorias políticas. Destarte, já nos é possível antever a dificuldade própria à fiscalização da atuação dos agentes políticos de acordo com os compromissos programáticos firmados em nossa Carta Magna.

Nesse sentido, analisando a dicotômica e, por vezes vil, relação entre o Direito e a Política, bem como refletindo sobre os ensinamentos do jurista Paulo Bonavides, Trindade (2010, p. 46) tece o esclarecedor comentário:

Neste contexto, conforme ensina Bonavides, o atual problema constitucional torna-se a ausência de uma fórmula que venha a combinar as dimensões jurídica e política da Constituição, pois, sempre que uma delas ocupa todo o espaço da reflexão e da análise, os danos e as insuficiências de compreensão do fenômeno constitucional tornam-se evidentes. Aliás, parece indiscutível que, no Estado democrático de direito, a relação entre o direito e a política configura-se como uma das mais tensas, mormente quando se debate sobre o papel da jurisdição constitucional – através do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis – na garantia da supremacia e da efetivação da Constituição. Se o Estado liberal tem como protagonista o poder Legislativo, em face da institucionalização do triunfo da burguesia; e o Estado social exige a intervenção do poder Executivo, em razão da necessidade de realização de políticas públicas; é necessário reconhecer, como já referido, que o Estado democrático de direito deposita, sobretudo, no poder Judiciário os mecanismos capazes de assegurar as promessas incorporadas pelos novos textos constitucionais.

No que tange à exigibilidade e vinculação dos agentes políticos às normas programáticas enunciadas em uma constituição de matizes dirigentes, Canotilho (2008, p. 1177) declara o seguinte:

Existem, é certo, normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que <impõe uma actividade> e <dirigem> materialmente a concretização constitucional. O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: <simples programas>, <exortações morais>, <declarações>, <sentenças políticas>, <aforismos políticos>, <promessas>, <apelos ao legislador>, <programas futuros>, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às <normas programáticas> é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político (Crisafuli). Mais do que isso: a eventual mediação concretizadora, pela instância legiferante, das normas programáticas, não significa que este tipo de normas careça de positividade jurídica autônoma, isto é, que a sua normatividade seja apenas gerada pela interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãos legiferantes. Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.

Destarte, no caso de cotejarmos tal conjuntura constitucional com a questão do conflito axiológico em estudo, veremos que ambos os princípios (livre iniciativa e busca do pleno emprego) estão expressamente enunciados em nossa Constituição enquanto normas programáticas, ou seja, são standards de otimização constitucional aplicados mediante, principalmente, a ação política. Assim, temos que ambos os princípios deveriam ter sua carga valorativa refletida quando da ação legiferante e da atuação política e administrativa.

Contudo, em especial, nos reportamos ao princípio da busca do pleno emprego que, como temos demonstrado ao longo dessa explanação, tem sido constantemente olvidado e mesmo contrariado, justamente pelos efeitos de uma aplicação extremada e irrestrita de princípios econômicos como o da livre iniciativa que, no nosso sentir, conforme já exposto, inviabiliza a consecução prática do teor do referido princípio social.

Sendo assim, assumindo-nos como operadores de um direito constituído sobre um modelo constitucional dirigente e, considerando que normas programáticas em uma tal Constituição plasmadas devam ter vinculatividade até mesmo independente da ação legiferante e/ou política, lato sensu, acreditamos incorrer em uma problemática de controle de constitucionalidade das ações governamentais. Ou seja, em nosso entendimento, a falta de efetividade de princípios como o da busca do pleno emprego, em nosso paradigma constitucional, acaba sendo muito mais um problema político do que jurídico, em que pese as incongruências também de ordem jurídica previamente aludidas.

Não desmerecemos aqui, em absoluto, a necessidade política de ruptura com o regime anterior que guiou a consolidação de uma constituição dirigente e compromissada com ideais sociais como aquela promulgada em 1988. Todavia, acreditamos que em nossa jovem democracia tem sido de difícil separação as ideias de Estado e Governo, o que tem levado a uma interpretação constitucional em tiras, consequentemente propiciando uma concreção apenas parcial de seu teor dispositivo.

Nesse sentido, entendemos que seria mais interessante, do ponto de vista da efetivação de preceitos constitucionais, que houvesse uma menor quantidade de disposições normativas de caráter conformador e programático e um maior volume de princípios impositivos calcados em mecanismos suficientes á sua auto-aplicação.

No que concerne à atual adequação de nosso modelo dirigente à consecução dos fins colimados em nossa Constituição Cidadã, colacionamos o elucidativo posicionamento de André Karam Trindade (p. 56):

Por fim, cumpre referir que a manutenção da tese de dirigismo constitucional encontra-se indissociavelmente ligada a uma postura substancialista, no que diz respeito ao papel da Constituição e da jurisdição constitucional. Assim sendo, mostra-se necessário fortalecer a legitimidade da jurisdição constitucional, mormente nos países de modernidade tardia, como o Brasil. Dito de outro modo, impõe-se uma análise profunda acerca da capacidade de se transformar a realidade social através da atividade exercida pelos tribunais. Todavia, não se pode olvidar que a ampliação do raio de ação do poder Judiciário não pode representar qualquer incompatibilidade com os ideais democráticos. Para que o surgimento deste novo espaço da esfera pública – construído em torno do direito – e o redimensionamento do clássico princípio da separação dos poderes não impliquem concorrência com o sistema de representação política, mas complemente os novos regimes democráticos, deve-se, além de estabelecer o sentido e o alcance da jurisdição constitucional em países como o Brasil, fixar os seus limites, a fim de que a judicialização da política não se transforme em uma espécie de ditadura do poder Judiciário, ao qual simplesmente se transfira as discricionariedades legislativa e administrativa aqui combatidas.

Outrossim, asseveramos entendimento semelhante ao acima explicitado de que para mantença de um tal modelo constitucional dirigente e, mesmo para seu desenvolvimento – que acreditamos possível – deve ser incrementado o papel do Poder Judiciário enquanto agente fiscalizador atuante na legitimação das condutas administrativas e legislativas. Desse modo, cremos ser possível amenizar as perniciosas idiossincrasias jurídico-políticas que determinam conflitos axiológicos -como o configurado entre os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego - e, mesmo, superar suas aporias de efetivação.

4.2 A Força Normativa da Constituição

Nesse momento da explanação, em que já diagnosticamos o conflito axiológico entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, bem como os motivos que cremos o determinarem, cumpre que passemos ao mais importante e árduo mister desse texto, qual seja, aventar meios passíveis de superação da aporia constituída.

Nesse desiderato, utilizaremos como linha-mestra o arguto e atual trabalho desenvolvido por Konrad Hesse no já distante ano de 1959, quando proferiu uma aula inaugural na Universidade de Freiburg, exaltando a ideia da força normativa da constituição, marcando os rumos do direito constitucional vindouro.

Na oportunidade, Hesse empenhou-se em desenvolver uma teoria que se contrapusesse às ideias de Ferdinand Lassale, assentando a importância ímpar de se ter um texto constitucional vivo, forte e capaz de reger as relações sociais, mormente – entendemos - concretando definitivamente no ideário jurídico a dimensão do Estado Democrático de Direito em detrimento de um estado meramente político concebido por Lassale.

Destarte, inicialmente ressaltamos que Hesse entendia não ser de bom-tom buscar a efetivação de uma norma constitucional que não guarde afinidade com a realidade social em que está inserida. A esse respeito, já assentamos nossas reservas quanto à real intenção de nossa Constituição de efetivar um princípio como o da busca do pleno emprego, quando sabemos que sua carga valorativa contrapõe-se diametralmente ao modelo econômico por ela adotado e fielmente consubstanciado na natureza do princípio da livre iniciativa.

Desse modo, explicitamos o entendimento do jurista alemão Konrad Hesse (1991, p. 15) no que tange à necessidade da norma jurídica coadunar-se com a realidade social:

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.

Destarte, daí já nos é possível entender por que uma constituição como a nossa, originada em um momento ímpar de ruptura com o modelo autoritário até então vigente, peca por estabelecer - no nosso entendimento, quase que verborragicamente - princípios, anseios e desejos pouco consentâneos com a realidade social e cultural de seu povo e, principalmente, sem a previsão de meios jurídicos adequados e eficazes à sua concreção.

Nesse sentido, lembramos o ensinamento de Hans Kelsen, para quem uma norma jurídica acaba por perder a sua validade quando não encontra na prática a eficácia que lhe seria própria. Por tais motivos concernentes à dificuldade de efetivação de normas constitucionais de natureza social imprescindíveis ao desenvolvimento igualitário de um país e, para que não nos enveredemos por questões político-ideológicas no momento de tornar concretas as disposições constitucionais legitimamente incrustadas em nosso ordenamento jurídico é que cremos ser sadia uma certa dose do já desgastado positivismo jurídico.

Corroborando com tal afirmativa e assinalando as dificuldades de se efetivar disposições constitucionais que divirjam substancialmente do ideário cultural de um povo, Hesse (1991, p. 16-17) analisa um arguto escrito político de autoria de Wilhelm Humboldt, com o qual anuímos:

Nenhuma Constituição política completamente fundada num plano racionalmente elaborado – afirma Humboldt num dos seus primeiros escritos – pode lograr êxito; somente aquela Constituição que resulta da luta do acaso poderoso com a racionalidade que se lhe opõe consegue desenvolver-se’. Em outros termos, somente a Constituição que se vincule a uma situação histórica concreta e suas condicionantes, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão, pode, efetivamente, desenvolver-se. (...) ‘Cuida-se de uma conseqüência – acrescenta ele – de natureza completamente singular do presente’ (aus der ganzen Beschaffenheit der Gegenwart). ‘Os projetos que a razão pretende concretizar recebem forma e modificação do objeto mesmo a que se dirigem. Assim, podem eles tornar-se duradouros e ganhar utilidade. Do contrário, ainda que sejam executados, permanecem eternamente estéreis... A razão possui capacidade para dar forma à matéria disponível. Ela não dispõe, todavia, de força para produzir substâncias novas. Essa força reside apenas na natureza das coisas; a razão verdadeiramente sábia empresta-lhe estímulo, procurando dirigi-la. Ela mesma permanece modestamente estagnada. As Constituições não podem ser impostas aos homens tal como se enxertam rebentos em árvores. Se o tempo e a natureza não atuaram previamente, é como se se pretendesse coser pétalas com linhas. O primeiro sol do meio-dia haveria de chamuscá-las.

Dos ensinamentos de Hesse, confrontando as ideias de Lassale, auferimos para incrementar nossa empresa, os conceitos de “Constituição Jurídica” e “Constituição Real” já referidos alhures. De modo que, temos em nossa Constituição Jurídica – aquela constante do texto promulgado em 1988 – a disposição de perseguirmos o ideal da busca do pleno emprego. Em contrapartida, encontramos tanto na Constituição Jurídica como na chamada Constituição Real – aquela que permeia o ideário cultural de um povo e determina, notadamente, o plano de efetividade – o cânone da livre iniciativa não apenas como anseio jurídico-social, mas enquanto efetivo fundamento de nosso estado de direito, desvelando a famigerada e perniciosa contradição a qual nos reportamos nesse trabalho.

De outro lado, considerando o texto constitucional um sistema complexo, tal como também o entendemos, Hesse explicita a necessidade de dialeticidade e contraposição argumentativa entre os princípios e valores plasmados em uma Constituição. Em tal configuração, entenderíamos ser possível alcançar uma coexistência pacífica e benéfica entre valores sociais aparentemente contrários presentes em uma mesma Carta política. Para elucidar as peculiaridade atinentes ao entendimento do jurista alemão (1991, p. 21), reproduzimos abaixo seu tratamento à questão.

Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração do poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa. A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os princípios que ela buscava concretizar estariam irremediavelmente derrogados.

Todavia, em que pese a possível sadia coexistência entre princípios de cargas valorativas divergentes, do embate principiológico entre a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, nos resta que - no dizer de Hesse - carecerá de força normativa aquela disposição que, embora conste no texto constitucional, não tenha passado por todo o processo de arraigamento na consciência coletiva, mormente quando em contradição com outra disposição que desse mal não padeça, como notadamente é o caso da livre iniciativa – corolário maior do capitalismo neoliberal.

Desse modo, que existam conflitos entre o teor daquilo expressamente disposto em nossa Lei Fundamental relativamente ao que ocorre no plano fático, nos é compreensível, haja vista, principalmente, a dificuldade de se efetivar todas as linhas de uma Constituição. Todavia, o objeto de nossa inquirição diz respeito à ocorrência de tensões e conflitos extremados internamente à estrutura de nossa Constituição, o que, diversamente, não entendemos como uma situação jurídica ordinária, mas como um vício legislativo de matizes jurídico-sociais quase inconciliáveis.

Por outro lado, entendemos que para tornar efetivo um princípio como o da busca do pleno emprego é necessário que, além de estar presente no ideário cultural de nosso povo – que o consideremos vital para um desenvolvimento social equânime - incorporemos força ativa - vale dizer, legiferante – que subsidie o desiderato de sua concreção. Avalizando tal exposição, Konrad Hesse (1991, p. 18-19) posiciona-se:

A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente. (...) Em outras palavras, a força vital e a eficácia da constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A Constituição converte-se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida. (...) Mas a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição Jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem.

Do trecho exposto acima podemos retirar outro conceito importantíssimo que pode nos conduzir a uma explicação mais convincente acerca dos motivos pelos quais muitas disposições constitucionais são olvidadas no momento de sua concreção, bem como subsídios para encontrarmos soluções a tal problemática.

A vontade de constituição nos parece ser o elemento diferencial para se ter uma Constituição Jurídica bastante diversa da Constituição Real. Ou seja, as disposições constitucionais, porquanto tenham a chamada pretensão de eficácia deveriam ser efetivadas. Todavia, ao analisar a argumentação de Hesse, entendemos que a Vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) é que, em última análise, determina se certa norma constitucional será aplicada no plano fático.

Assim, prescindirá a aplicação plena das normas constitucionais, inapelavelmente, de uma comunhão ideológica entre os diversos agentes partícipes da vida constitucional de um país. Em nosso caso, de um difícil consenso ativo entre os representantes das três esferas do poder (legislativo, executivo e judiciário).

Relativamente aos fundamentos teóricos determinantes da Vontade de Constituição, Konrad Hesse (1991, p. 20) os explicita:

Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem conseqüência por que a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele convocadas. Não perceber esse aspecto da vida do Estado representaria um perigoso empobrecimento de nosso pensamento. Não abarcaríamos a totalidade desse fenômeno e sua integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se não apenas como problema decorrente dessas circunstâncias inelutáveis, mas também como problema de determinado ordenamento, isto é, como um problema normativo.

Destarte, a intensidade da força normativa de uma Constituição é diretamente proporcional ao grau de Vontade de Constituição experimentado por seus agentes. Decorre daí, em nosso sentir, que a baixa Vontade de Constituição entre nós sentida, reflexo de um estado democrático de direito ainda jovem e prematuro, determina a incapacidade de tornar plenos e efetivos meros anseios e desejos sociais que, em que pese estarem plasmados no texto de nossa Carta Política, não foram participados e construídos gradativamente pela coletividade, mas importados de um direito alienígena diverso de nossa realidade.

Sendo assim, à luz dos argumentos expostos ao longo do texto, consideramos imprescindível tanto para o desenvolvimento econômico-social, quanto para a manutenção de nossa segurança jurídica que pugnemos pela efetividade das normas constitucionais, porquanto possuam, indubitavelmente, sua força normativa e, consequentemente, pretensão de eficácia. Destarte, devemos diligenciar para que a nossa Constituição Jurídica seja absorvida pelo ideário cultural coletivo e venha a refletir os anseios e desejos que permeiam a Constituição Real, como único meio de vislumbrarmos um futuro de progresso e desenvolvimento consentâneos com a grandeza de nosso país.


CONCLUSÃO

Em sede conclusiva, cumpre que inicialmente retomemos algumas das proposições discutidas ao longo do trabalho que entendemos terem pavimentado nosso caminho até esse momento derradeiro.

Destarte, reiteramos entendimento acerca da importância assumida pelo princípio da livre iniciativa em nosso modelo de Estado, mormente enquanto pedra angular de nosso sistema econômico, notadamente de matizes capitalistas neoliberais. Assim, enquanto vetor econômico, restou demonstrada sua inarredável predominância em nossa conjuntura jurídico-política, bem como sua configuração em nosso paradigma constitucional enquanto princípio político conformador de todo o sistema econômico, não olvidando seus visíveis reflexos na seara social.

De outro lado, assentamos também no começo de nossa explanação o conteúdo atinente à carga valorativa eminentemente social do princípio da busca do pleno emprego. Assim, não obstante o enfoque mais amplo que lhe é dado nas ciências econômicas, lastreamos sua utilização em nosso discurso enquanto princípio determinador de tarefas ao Estado, vale dizer, visando a criação e ocupação de postos de trabalho bastantes para todo o contingente populacional apto ao desenvolvimento de atividade laboral. Ademais, o concebemos – utilizando a classificação de Canotilho – enquanto princípio jurídico impositivo, definidor de diretrizes a serem seguidas.

Em um segundo momento de nosso discurso, tratamos de delimitar as bases teóricas que nos conduziriam ao exame do fenômeno jurídico estudado. De modo que, foi exposta a necessidade de se proceder a uma interpretação constitucional que se desvinculasse das anacrônicas noções hermenêuticas subordinadas à vontade do legislador ou ao espírito da lei.

Para tal desiderato, valendo-nos novamente dos ensinamentos de Canotilho, lançamos mão do método interpretativo normativo-estruturante com matizes sistemáticas bastante acentuadas, além da observação dos princípios de interpretação constitucional afetos a tal método, em especial, pautando-nos pelo metaprincípio da hierarquização axiológica, desenvolvido por Juarez Freitas.

Posteriormente, fundados os alicerces de nossa pesquisa, partimos para a análise propriamente dita da configuração do conflito normativo entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego. Destarte, diferenciamos antinomia (conflito normativo entre regras ou entre regras e princípios) de colisão principiológica, asseverando tratar-se da configuração dessa última categoria o ponto fulcral de nossa empresa exegética.

Nesse sentido, dividimos nossa análise em duas vertentes, relativamente à possibilidade de configuração do conflito normativo, quais sejam, no plano hierárquico-formal e no axiológico-material.

Desse modo, acentuamos a inocorrência de conflito de natureza hierárquico-formal entre os princípios estudados, haja vista o entendimento perfilhado de que ambos consolidam-se como componentes de igual valor inseridos em um mesmo sistema aberto de regras e princípios, isento de hierarquia e com aptidão para harmonizar-se.

Em contrapartida, no que concerne ao plano axiológico-material do conflito, foi necessário o desenvolvimento do maior espectro de considerações tendentes a analisar propriamente a celeuma instalada. Assim, firmamos entendimento positivo atinente à configuração de colisão principiológica de ordem material entre a livre iniciativa e a busca do pleno emprego. De modo que, entendermos que a busca do pleno emprego, nos moldes em que foi positivada em nossa Constituição - carecendo de mecanismos jurídicos que lhe conferissem efetividade prática - tem seu conteúdo axiológico completamente prejudicado pela incidência da carga valorativa de natureza capitalista própria à livre iniciativa que, conforme restou demonstrado, encontra apenas abjetos limites negativos à sua predominância em nosso ordenamento jurídico.

Sendo assim, derradeiramente perscrutamos acerca dos motivos determinantes de tal aporia, bem como acerca de sua possível superação. Nesse sentido, identificamos o momento histórico em que se deu a promulgação de nossa Constituição Federal - qual seja, de ruptura com um regime autoritário – como determinante para a elaboração de uma Carta Política de teor notadamente dirigente, definindo compromissos, tarefas e enunciando objetivos. Todavia, assim o entendemos, também legando grande parte da responsabilidade pela consecução desses fins à vontade política o que, no caso de uma jovem democracia, tem demonstrado as mais pesarosas consequências; desde a patente confusão entre Estado e Governo até as vicissitudes atinentes à intervenção estatal.

Por conseguinte, entendemos que para além da existência de conflitos normativos que dificultem a efetivação de princípios de natureza social como o da busca do pleno emprego, devemos afirmar os compromissos legitimamente plasmados em nossa Constituição Cidadã. Destarte, mediante não apenas a evocação de anseios e desejos político-sociais, mas principalmente através da observação da cogente força normativa da constituição, cuidemos de torná-la efetiva e eficaz, em todas suas linhas, mormente no escopo do desenvolvimento e progresso social.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PFARRIUS, William Daniel Silveira. O conflito axiológico entre os cânones constitucionais da livre iniciativa e da busca do pleno emprego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3422, 13 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23000. Acesso em: 27 abr. 2024.