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Da (in)constitucionalidade da pena mínima cominada ao crime de estupro

Da (in)constitucionalidade da pena mínima cominada ao crime de estupro

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A pena mínima do crime do ato libidinoso configurado por um beijo lascivo não deveria ser a mesma prevista para o crime de estupro propriamente dito, que se perfaz somente com a prática de conjunção carnal.

A força do direito deve superar o direito da força.

Rui Barbosa

Palavras-chave: Direito Penal. Nova Lei de Estupro. (In)constitucionalidade. Penalidade.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1CRIME DE ESTUPRO. 1.1A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CRIME DE ESTUPRO. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. CONCEITO1.2ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E ABOLITIO CRIMINIS1.3ELEMENTOS DO TIPO1.3.1O verbo Constranger. 1.3.2Violência ou Grave Ameaça. 1.3.3   Sujeito Ativo e Sujeito Passivo. 1.3.4Objeto Material e Bem Juridicamente Protegido. 1.3.5   Consumação e Tentativa. 1.3.5.1Conjunção carnal1.3.5.2Ato libidinoso1.3.5.2.1 Beijo lascivo1.4FORMAS1.5O QUANTUM DA PENA APÓS O ADVENTO DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS2O IUS PUNIENDI DO ESTADO. 2.1TEORIA GERAL DA PENA2.2PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NORTEADORES DA PENA2.2.1Princípio da Ofensividade Como Limite Do Ius Puniendi. 2.2.2Princípio da Necessidade da Pena ou da Intervenção Mínima. 2.2.3Princípio da Culpabilidade. 2.2.4Princípio da Individualização da Pena. 2.2.5Princípio da Pessoalidade da Pena. 2.2.6Princípio da Proporcionalidade. 3APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 3.1DEMONSTRAÇÃO DA DESPROPORCIONALIDADE DA PENA MÍNIMA DO CRIME DE ESTUPRO. 3.2DISTINÇÃO ENTRE ESTUPRO E A CONTRAVENÇÃO DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. 3.3DISTINÇÃO ENTRE ESTUPRO E A CONTRAVENÇÃO DE PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE. 3.4POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA QUANTO À APLICAÇÃO DA PENA MÍNIMA COMINADA AO CRIME DE ESTUPRO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS

INTRODUÇÃO

A constatação do recrudescimento da violência nos grandes centros é ponto pacífico entre os diversos segmentos que constituem a sociedade, leigos ou não, o mesmo não se pode dizer das medidas apontadas como necessárias ao seu enfrentamento.

Com efeito, diante de uma conjuntura de onipresença da violência, não são poucos os exemplos em que o Direito Penal é invocado como prima ratio, como a solução primeira para a satisfação dos anseios da população e da mídia a partir, sobretudo, do incremento de tipos delitivos e do aumento de penas com a conseqüente redução das garantias constitucionais.

Nada obstante, embora seja mais simples para o legislador a criação de novos tipos legais e a majoração das respectivas respostas penais, a ciência criminológica vem demonstrando que o combate à ascensão da violência, exatamente por ser esta decorrente de diversos fatores, carece de ações governamentais bem mais complexas, tais como políticas públicas de inserção social, programas educacionais de massa, eliminação da corrupção policial e judicial; nunca, com o agravamento das penas dos crimes por si só.

O presente estudo versará, assim, sobre os critérios utilizados pelo legislador quando da cominação das penas, sobre a sua relação de pertinência com a gravidade das condutas tipificadas e, notadamente, sobre a necessária observância da proporcionalidade entre as várias espécies delitivas constantes do arcabouço legal incriminador.

Esse estudo versará, também, acerca da pena cominada e de sua relação de pertinência com a gravidade das condutas praticadas pelo agente. Tentará demonstrar se é constitucional ou não, a pena mínima cominada ao crime previsto no artigo 213 do Código Penal, apresentando uma grande problemática acerca de sua relação com o princípio da proporcionalidade.

O presente tema, no entanto, será aprofundado a partir da análise da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072, de 25 de julho de 1990), maior exemplo pátrio do movimento denominado Law and Order- cujos pilares são exatamente os que acima foram sintetizamos, vale dizer, ampliação dos crimes, agravamento das penas, restrição das garantias individuais.

Fixadas tais premissas, demonstrar-se-á a seguir a metodologia empregada.

O método de procedimento a ser aplicado será inicialmente o histórico, a partir de uma abordagem do contexto no qual se inserem os fatos relevantes ao tema em comento. Logo em seguida, será utilizado o método monográfico ou estudo de caso, consistindo num estudo aprofundado e exaustivo sobre o assunto, coletando bibliografias de diversos autores, a fim de demonstrar a solução do problema apresentado.

O método de abordagem a ser utilizado no presente estudo será o indutivo, que se caracteriza por um estudo partindo de premissas particulares a gerais. Será feito um estudo empírico do tema, fazendo uma abordagem a partir de princípios constitucionais, que deverão ser obedecidos na aplicação da pena, afinal, a pena deve ser justa e necessária à prevenção e à reprovação do crime.

Por sua vez, o método de interpretação jurídica a ser utilizado será o exegético, buscando o verdadeiro sentido e alcance da lei, a integração do Direito e a criação do mesmo. Tendo em vista que a interpretação jurídica implica em uma definição política, a qual exige a assunção de certa postura em relação à função do Direito, o método exegético a ser utilizado neste trabalho de pesquisa buscará descobrir a verdadeira linguagem textual da lei, in casu, do artigo 213 do Código Penal, a fim de demonstrar a violação do princípio da proporcionalidade.

No que diz respeito ao procedimento técnico, foi eleito o levantamento bibliográfico, adotando a documentação indireta como técnica de pesquisa, tendo em vista a utilização de livros, artigos científicos, legislações e entendimentos jurisprudenciais que versem acerca da problemática do trabalho.

Em face de tais considerações, discorrer-se-á sobre o conteúdo encontrado em cada capítulo. O primeiro capítulo exporá um breve histórico do crime de estupro tanto na legislação pátria quanto na estrangeira. Tratará do conceito do delito em voga, os elementos do tipo, bem como o quantum da pena após a Lei 8072/90.

Por sua vez, o segundo capítulo versará sobre o direito de punir do Estado e da necessidade de atribuir uma pena ao violador de um bem jurídico alheio, trazendo os mais importantes princípios norteadores da sanção penal.

O terceiro capítulo trata especificamente da aplicação do princípio da proporcionalidade, implícito na Constituição Federal de 1988, comparando a pena mínima do atual crime de estupro com a pena de outros delitos. Abordar-se-á, também, a distinção do crime previsto no artigo 213 do Código Penal das Contravenções Penais de perturbação da tranquilidade e importunação ofensiva ao pudor, o quantum da pena mínima para esse delito, jurisprudências, bem como será abordado como a mesma ação pode caracterizar as vezes um crime hediondo e, em outros casos, apenas um delito de menor potencial ofensivo.

Este, em síntese, será o tema que esmiuçará este trabalho, que se desenvolverá a partir da análise da evolução histórica do pensamento penal, e de sua repercussão no trabalho do legislador e do aplicador do direito pátrio.  


CAPÍTULO I  CRIME DE ESTUPRO

1.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CRIME DE ESTUPRO. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. CONCEITO

Em incursão histórica sobre o termo estupro, é de bom alvitre destacar as considerações a seguir, tendo em vista que desde os tempos mais remotos e entre quase todos os povos, a conjunção carnal violenta foi reprimida como grave malefício (HUNGRIA, 1983). O estudo do crime de estupro é de extrema relevância, porquanto está ligado a toda uma estrutura social que a cada dia está mais direcionada a combater relações sexuais violentas, que ferem princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana que, in casu, decorre da violação da “liberdade de disposição do próprio corpo no tocante aos fins sexuais” (HUGRIA, 1983, p. 100).

Entre os hebreus, se a moça vítima do crime de estupro era prometida a casamento, o inculpado era condenado à pena de morte: “Sin autem in agro repererit vir puellam, quae desponsta est, et apprehendens concubuerit cum ea, ipse morietur solus (Deuteronômio, capítulo XXII, 28)” (HUNGRIA, 1983, p. 103). Todavia, se a moça não era desposada, a pena era o pagamento de 50 ciclos de prata ao pai da moça e reparação do mal pelo casamento.

No Egito, o violentador recebia como pena a multilação. Na Grécia Antiga, a pena iniciou-se com o pagamento de multa e, posteriormente, foi atribuída ao agente a pena de morte, invariável, uma vez que não mais se admitia a pena alternativa entre ela e o casamento sem dote (HUNGRIA, 1983).

No Direito Romano, tanto o homem quanto a mulher poderia ser sujeito passivo do crime de estupro. Quando era praticado com mulher confundia-se com o rapto que exigia além da conjunção carnal, ser a mulher virgem ou viúva honesta. As leis romanas se referiam à violência e ao engano como requisitos necessários a configurar o estupro, todavia, a tese de Garraud, douto exegeta francês, é a mais coerente, por fundar-se em que apenas a violência é suficiente para caracterização do delito de estupro (GUSMÃO, 2001).

Analisando os textos romanos, verifica-se que o delito era decorrente do dever imposto à mulher honrada de manter a sua integridade fora do casamento, sendo que, quando havia o emprego da violência, o crime entrava no campo da Lex Julia de vi publica.

É interessante destacar que nessa época, os escravos não podiam ser considerados sujeito passivo do stuprum. Quando praticado por terceiro que não fosse o patrão, aquele podia lançar mão do instituto da actio lege Aquillia ou servu corrupto (GUSMÃO, 2001).

No direito alemão, o estupro era considerado crime contra a honra da mulher (notnunft), e exigia a honestidade da vítima, ao passo que as mulheres viajantes deviam suportar as carícias mesmo que violentas (LISZT, 1899).

Como é sabido, para que seja analisado o crime de estupro no nosso Direito antes do Código Criminal de 1830, é necessário recorrer ao Direito português, como por exemplo, Ordenações Filipinas, que foram aplicadas por decreto real ao Reino de Portugal. Elas puniam o congresso carnal mediante o uso da força, com a pena de morte, que era aplicada ao criminoso mesmo que esse se casasse com a vítima.“Todo homem, de qualquer estado e condição que seja, que forçosamente dormir com qualquer mulher, posto que ganhe dinheiro per seu corpo (meretriz), ou seja, escrava, morra por ello” (GUSMÃO, 2001, p. 82). E acrescenta: “E posto que o forçador depois do malefício feito case com a mulher forçada, e ainda que o casamento seja feito por vontade dela, não será relevado da dita pena, mas morrerá, assim como se com ela não houvesse casado”.

Detendo-se na história do Direito Brasileiro, observa-se que o Código Criminal do Império (1830) definiu o crime de estupro no artigo 222 com a seguinte redação: “Ter cópula carnal, por meio de violência ou ameaça com qualquer mulher honesta. Penas – de prisão por três anos a doze anos e dotar a ofendida” (GUSMÃO, 2001, p. 82). Porém, “se a violada for prostituta. Penas – de prisão por um mês a dois anos”. (GUSMÃO, 2001, p. 82). No artigo 225, havia previsão de extinção da punibilidade se o agressor se casasse com a moça violentada. O código de 1830 incluía sob a rubrica estupro vários crimes sexuais, tais como: cópula violenta, atentado violento ao pudor, sedução (HUNGRIA, 1983).

O Código Penal de 1890, o primeiro código republicano, reservou o nome estupro para designar a cópula violenta, e inovou a legislação abrandando a pena do estupro no artigo 268: “Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta [...]” (GUSMÃO, 2001, p. 82), pena: prisão celular por um a seis anos, aumentada de quarta parte, se havia concurso de duas ou mais pessoas (HUNGRIA, 1983). E logo no artigo seguinte, 269, trouxe a definição de que estupro ”é o ato pelo qual o homem abusa de uma mulher, seja virgem ou não” (GUSMÃO, 2001, p. 82). Mostra-se claro que, diferentemente do anterior diploma penal, houve reserva do nome estupro para  designar o ato pelo qual o homem abusa violentamente de uma mulher, seja virgem ou não.

O Código de 1940 previu o estupro no artigo 213 como o ato de constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Todavia, esse dispositivo foi alterado pela Lei 12015, de 07 de agosto de 2009, que apesar de ter introduzido modificações significativas, inclusive benéficas para o réu, não solucionou uma questão extremamente relevante, qual seja, a exacerbação e, por conseguinte, a desproporcionalidade da pena relativa ao ato libidinoso em relação àquela imposta em decorrência da prática de coito vagínico. Em outras palavras, o novel diploma, afora manter a mesma resposta penal para condutas tão diversas, eis que o ato libidinoso abrange até mesmo o beijo lascivo, houve por bem em reunir em um só tipo o que antigamente era disciplinado em tipos penais diversos, artigo 213 e 214 do Código Penal.

Com efeito, atualmente, o conceito de estupro para o Direito Penal é o introduzido com a Lei 12015/09 que unificou o antigo delito de atentado violento ao pudor e o de estupro propriamente dito em um só dispositivo, optando pela rubrica estupro. De acordo com essa lei, configura-se o crime de estupro sempre que o agente constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (CAPEZ, 2010).

1.2  ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E ABOLITIO CRIMINIS

 A edição da Lei 12015/09 gerou a incorporação da conduta de atentado violento ao pudor previsto no artigo 214 do Código Penal, atualmente revogado, pelo artigo 213 do mesmo diploma repressivo.

Embora revogado o artigo 214, não se pode afirmar que houve abolição do crime de atentado violento ao pudor (abolitio criminis) mas, sim, uma transferência dos elementos que integravam o artigo referido para o artigo 213 do Código Penal, caracterizando o fenômeno descrito naquilo que a doutrina denomina princípio da continuidade normativo – típica ou descontinuidade normativo - típica (GRECO, 2010 e DELMANTO, 2010).

A expressa revogação do artigo 214 trouxe benefícios práticos para o réu, implicando em caso de retroatividade da lei penal em razão da novatio legis in mellius, pois, com a condensação dos tipos há quem entenda que não há mais concurso, formal ou material, mas sim crime único, podendo o agente praticar numa mesma conduta atos libidinosos e conjunção carnal, desde que sejam praticados em um mesmo contexto fático.

Nesse sentido, vale destacar o seguinte julgado:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.015/09. LEI PENAL MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. CONDUTAS PRATICADAS CONTRA A MESMA VÍTIMA E NO MESMO CONTEXTO. CRIME ÚNICO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A Sexta Turma desta Corte, no julgamento do HC nº 144.870/DF, da relatoria do eminente Ministro Og Fernandes, firmou compreensão no sentido de que, com a superveniência da Lei nº 12.015/2009, a conduta do crime de atentado violento ao pudor, anteriormente prevista no artigo 214 do Código Penal, foi inserida àquela do art. 213, constituindo, assim, quando praticadas contra a mesma vítima e num mesmo contexto fático, crime único de estupro.

2. Tendo em vista que o paciente foi condenado por ter praticado, mediante grave ameaça, conjunção carnal e coito anal contra a mesma vítima e no mesmo contexto, é de rigor, pelo princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, o afastamento da condenação pelo atentado violento ao pudor.

3. Habeas corpus concedido para determinar que o Juízo das Execuções proceda à nova dosimetria da pena, nos termos da Lei nº 12.015/2009,destacando que deverá ser refeita a análise das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal (STJ- HC 167517/SP Habeas Corpus 2010/0057558-8. Min Relator: Haroldo Rodrigues. 6 TURMA. DJ. 17/08/2010. Publicação Dje. 06/09/2010).

Conforme se observa, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça já sufragou o entendimento no sentido de que o artigo 213 do Código Penal é um tipo misto alternativo, podendo o agente praticar qualquer das condutas que lá estão descritas e responderá por um mesmo crime.

Por sua vez, manifestando-se em sentido contrário, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, até meados de fevereiro do ano de 2011, mantinha a posição de que o artigo 213 do Código Penal - mesmo com o advento da Lei 12015/09 -, ainda se tratava de um tipo misto cumulativo, ou seja, que as condutas ali previstas constituíam crimes autônomos e, dessa forma, não se aplicava a continuidade delitiva. A propósito:

PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. LEI Nº 12.015/2009. ARTS. 213 E 217-A DO CP. TIPO MISTO ACUMULADO. CONJUNÇÃO CARNAL. DEMAIS ATOS DE PENETRAÇÃO. DISTINÇÃO. CRIMES AUTÔNOMOS. SITUAÇÃO DIVERSA DOS ATOS DENOMINADOS DE PRAELUDIA COITI. CRIME CONTINUADO. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE.

I - A reforma introduzida pela Lei nº 12.015/2009 unificou, em um só tipo penal, as figuras delitivas antes previstas nos tipos autônomos de estupro e atentado violento ao pudor. Contudo, o novel tipo de injusto é misto acumulado e não misto alternativo.

II - Desse modo, a realização de diversos atos de penetração distintos da conjunção carnal implica o reconhecimento de diversas condutas delitivas, não havendo que se falar na existência de crime único, haja vista que cada ato - seja conjunção carnal ou outra forma de penetração - esgota, de per se, a forma mais reprovável da incriminação.

III - Sem embargo, remanesce o entendimento de que os atos classificados como praeludia coiti são absorvidos pelas condutas mais graves alcançadas no tipo.

IV - Em razão da impossibilidade de homogeneidade na forma de execução entre a prática de conjunção carnal e atos diversos de penetração, não há como reconhecer a continuidade delitiva entre referidas figuras. Ordem denegada (STJ- HC 87960/SP 2007/0177230-8. Min. Relator: Arnaldo Esteves Lima. Órgão Julg: Quinta turma. Dj. 22/06/2010. Publicação DJ. 27/09/2010).

HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDENAÇÃO PELOS CRIMES EM CONCURSO MATERIAL. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N.º 12.015/2009. REUNIÃO DE AMBAS FIGURAS DELITIVAS EM UM ÚNICO CRIME.

TIPO MISTO CUMULATIVO. CUMULAÇÃO DAS PENAS. INOCORRÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PLEITO DE AFASTAMENTO DA MAJORANTE DO ART. 226, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. ALEGAÇÃO DE FALTA DE DESCRIÇÃO DOS TIPOS PENAIS NA DENÚNCIA E AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DOS FATOS PARA A CONFIGURAÇÃO DA RESPECTIVA CAUSA DE AUMENTO. DENÚNCIA QUE NARRA O FATO E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS. NECESSIDADE DE PROVA DOCUMENTAL.PRESCINDIBILIDADE. VÍNCULO DE PARENTESCO DEMONSTRADO POR MEIO DE OUTRAS PROVAS. ORDEM DENEGADA.

1. Antes da edição da Lei n.º 12.015/2009 havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art.213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo, uma vez que as condutas previstas no tipo têm, cada uma, "autonomia funcional e respondem a distintas espécies valorativas, com o que o delito se faz plural" (DE ASÚA, Jimenez, Tratado de Derecho Penal,Tomo  III, Buenos Aires, Editorial Losada, 1963, p. 916).

2. Tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o Legislador tê-las inserido num só artigo de lei.

3. Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal. Ou seja, a nova redação do art. 213 do Código Penal absorve o ato libidinoso em progressão ao estupro – classificável como praeludia coiti – e não o ato libidinoso autônomo.

[...]

7. Ordem denegada (STJ – HC 105533/PR HABEAS CORPUS 2008/0094885-0. Min. Rel.: Laurita Vaz. Org Julg.: Quinta Turma. Julg: 16/12/2010. Dje: 07/02/2011).

Contudo, tal entendimento resta superado com o julgamento do REsp n.970.127 e, com a decisão de tal julgado, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça passa a reconhecer a figura do crime continuado entre estupro e atentado violento ao pudor, tipos penais tratados separadamente até 2009 e, dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça passa a ter um entendimento unificado sobre o tema, isto é, que é possível a continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor.

A Primeira e a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, já havia pacificado o entendimento, sustentando que com a edição da Lei 12015/09 tornou-se possível a aplicação da continuidade delitiva prevista no artigo 71 do Código Penal, in verbis:

Art  71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma epécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuição do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (CÓDIGO PENAL, 1940).

Nesse sentido, vale conferir o seguinte excerto jurisprudencial da lavra do eminente Ministro Relator Carlos Ayres Britto:

HABEAS CORPUS. CRIMES DE ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONCURSO MATERIAL. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ALTERAÇÃO DOS ARTS. 213 E 214 DO CÓDIGO PENAL, NOS TERMOS DA LEI 12.015/2009. REITERAÇÃO DE PEDIDO JÁ DENEGADO PELA PRIMEIRA TURMA DO STF. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. SÚMULA 611/STF. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. A decisão impugnada deu pela ocorrência de concurso material entre os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, nos termos da reiterada jurisprudência do STJ e do STF. 2. Na concreta situação dos autos, o impetrante reitera o pedido de reconhecimento da continuidade entre os delitos pelos quais se acha definitivamente condenado. Pedido já rechaçado pela Primeira Turma deste STF, no julgamento do HC 93.981, também de minha relatoria.

 3. Sucede que, após o julgamento, a Lei 12.015/2009, editada em 07 de agosto de 2009, alterou substancialmente a disciplina dos crimes pelos quais o acionante foi condenado (arts. 213 e 214 do Código Penal). Alteração que fez cessar o óbice ao reconhecimento da continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor, cometidos antes da vigência da Lei 12.015/2009. Precedentes. 4. Habeas corpus não conhecido, mas deferido de ofício para determinar ao Juiz das Execuções Penais que proceda, nos termos da Súmula 611 deste Supremo Tribunal Federal, à “aplicação de lei mais benigna”. Juízo que há de observar, pena de reformatio in pejus, os limites fixados no Agravo de Execução nº 70006882997/TJ/RS. (Habeas Corpus n° 99544. Min Rel. Ayres Britto Julgamento:  26/10/2010. Dj. 01/02/2011. Órgão Julgador: Segunda Turma).

É de se concluir que, com a nova redação do tipo legal descrito no artigo 213 do Código Penal, o agente só responderá por crime único quando houver absorção do ato libidinoso em progressão ao estupro, desde que, só tenham ocorridos os chamados atos praeludia coiti - antes do coito - e não o ato libidinoso autônomo, como o coito anal e o sexo oral, pois nesse caso o agente poderia estar incorrendo no artigo 213 c/c artigo 71 do Código Penal.

1.3 ELEMENTOS DO TIPO

1.3.1 O verbo Constranger

O núcleo do tipo é o verbo constranger alguém, que está no sentido de coagir, obrigar, compelir alguém a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (CAPEZ, 2010 e DELMANTO, 2010).

Abeberando-se do Direito Comparado, Liszt já dizia (1899, p. 101) que constrangimento é “a coacção exercida mediante violencia ou ameaça de um crime ou delicto para obrigar alguém a praticar ou a deixar de praticar uma determinada acção, ou a tolerar que tal acção seja praticada”.

1.3.2 Violência ou Grave Ameaça

O constrangimento deve ser mediante violência ou grave ameaça. A violência diz respeito à força física, ou seja, à vis corporalis (vis absoluta). O agente utiliza da força física obrigando a vítima a ter conjunção carnal ou permitindo que com ela se pratique outro ato libidinoso (CAPEZ, 2010 e JESUS, 2008).

A grave ameaça moral, vis compulsiva, se configura com ameaças sérias dirigidas à vítima, a pessoas ou a coisas que lhe são próximas. A ameaça deve ser um mal maior do que a conjunção carnal, que não possa ser evitado de outro modo. Deve acarretar temor, gerando efeitos psicológicos na vítima, ou seja, a vítima cai nas armadilhas do agente e cede as suas ameaças com receio de que alguma desgraça aconteça consigo ou com pessoas que lhe são próximas (JESUS, 2008 e HUNGRIA, 1983).

É inerente ao crime de estupro o dissenso da vítima, de modo que não queira realizar o ato libidinoso ou a conjunção carnal com o agente. No mesmo sentido, Nélson Hungria (1983, p. 107):

O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito, não há estupro.

Com exceção do estupro de vulnerável previsto no artigo 217- A do Código Penal, a permissão da vítima, livre de coação, seja moral ou física, desconfigura o crime de estupro (CAPEZ, 2010).

É interessante levantar a questão da possibilidade de haver estupro quando o marido constrange a mulher, ou vice-versa, mediante violência ou grave ameaça a praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

Perdurou durante muitos anos a discussão na doutrina, se o próprio marido da vítima poderia ser sujeito ativo do crime de estupro. Nélson Hungria (1983, p. 114) entendia que não configurava o tipo penal previsto no artigo 213 do Código Penal, pois a cópula intra matrimonium é dever recíproco dos cônjuges:

Questiona-se muito se o marido pode ser, ou não, considerado réu de estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula vagínica ilícita (fora do casamento).

Entretanto, essa discussão resta superada, e a posição mais coerente aos dias atuais é a de Fernando Capez (2010), a qual sustenta que muito embora a cópula vagínica seja obrigação recíproca entre os cônjuges, decorrente do matrimônio, a lei civil não autoriza o uso de violência sexual entre o casal, pois interpretação diversa fere o princípio da dignidade da pessoa humana. Porém, se um dos cônjuges se recusa continuadamente ao congresso carnal, o outro poderá lançar mão do instituto da separação judicial previsto na Lei Civil.

Vale registrar que, embora a Lei Maria da Penha não traga previsão do estupro, a mesma poderá ser utilizada pelo aplicador do direito no momento da prolação da sentença.

1.3.3 Sujeito Ativo e Sujeito Passivo

O crime de estupro sofreu algumas modificações consideráveis em relação ao sujeito passivo do crime. Antes da entrada em vigor da Lei 12015/09, somente a mulher poderia ser vítima do crime em estudo, conforme a antiga redação do artigo 213 do Código Penal: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (CÓDIGO PENAL, 1940).

O legislador atendendo ao princípio constitucional da isonomia entre homens e mulheres previsto na Constituição Federal de 1988, e influenciado pelo contexto histórico em que se vive atualmente, achou por bem tornar o crime de estupro em crime comum. Sendo assim, o estupro, que sempre representou a principal expressão de violência contra as mulheres, uma vez que representava um crime praticado por homens contra as mulheres, acabou por ganhar uma nova roupagem, visto que com as alterações introduzidas pela Lei 12015/09, o homem passa, também, a ser sujeito passivo do crime de estupro, assim como a mulher que já era  sujeito ativo do mesmo delito. O sujeito passivo agora não se restringe somente a mulher, pois qualquer pessoa poderá ser vítima de estupro, conforme nova redação dada ao artigo 213 do Código Penal:

Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (CÓDIGO PENAL, 1940).

Com a nova epígrafe do delito de estupro, qualquer pessoa poderá ser sujeito ativo ou passivo do delito em questão. Todavia, para a prática da conjunção carnal, deverá existir a presença de duas pessoas de sexos diferentes, pois para que haja a prática da cópula vagínica é necessário um homem e uma mulher (GRECO, 2010).

Na antiga redação do artigo 213, como se tratava somente de conjunção carnal, a mulher não podia ser autora imediata do estupro, ante a sua impossibilidade de manter coito comissivamente. A mulher podia atuar como autora mediata, quando, por exemplo, se servia de pessoa sem discernimento para praticar o que pretendia. Atualmente, como o delito de estupro passou a abarcar também atos libidinosos, a mulher pode ser autora imediata, coautora e partícipe (CAPEZ, 2010).

1.3.4 Objeto Material e Bem Juridicamente Protegido

A tutela legal do crime de estupro se restringia apenas à liberdade sexual da mulher. A nova redação do Título VI do Código Penal, especificamente o artigo 213, ampliou sua proteção e hoje, observa-se como bens juridicamente protegidos a liberdade e a dignidade sexual, tanto do homem quanto da mulher (GRECO, 2010).

A liberdade sexual diz respeito à faculdade que cada indivíduo possui de dispor de seu próprio corpo da forma que melhor lhe aprouver. Acerca do conceito de liberdade sexual, Jimenéz (s.d, apud GRECO, 2010, p. 452-456) traz a imediata definição:

Autodeterminação no marco das relações sexuais de uma pessoa, como uma faceta a mais da capacidade de atuar. Liberdade sexual significa que o titular da mesma determina seu comportamento sexual conforme motivos  que lhe são próprios no sentido de que é ele quem decide sobre sua sexualidade, sobre como, quando ou com quem mantém relações sexuais.

Destarte, o objeto material é a pessoa contra a qual foi direcionada a ação, ou seja, o homem ou a mulher (GRECO, 2010).

1.3.5 Consumação e Tentativa

Art  213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso (CÓDIGO PENAL, 1940).

Em relação à primeira parte do dispositivo 213 do estatuto repressivo, configura o crime de estupro quando da introdução do pênis na cavidade vaginal, não sendo necessário que haja a penetração integral do membro viril, tampouco a ejaculação (GRECO, 2010).

A segunda parte do dispositivo retro citado consuma-se quando após o constrangimento, mediante violência física ou moral, o agente obriga a vítima a praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso. Resta configurada a consumação no instante em que o agente atua sobre o corpo da vítima, obrigando-a a praticar um ato libidinoso diverso da conjunção carnal, como atos de masturbação, em si, no agente ou em terceiro assistido pelo agente (GRECO, 2010).

Como se trata de crime plurissubsistente, que por sua vez, é composto de vários atos que integram a mesma conduta, ou seja, existem fases que podem ser separadas, fracionando-se o crime, é perfeitamente possível a tentativa. Imagine, pois, o agente ser surpreendido e interrompido no momento em que está retirando suas vestes e se preparando para a penetração (GRECO, 2010).

1.3.5.1 Conjunção carnal

O conceito de conjunção carnal é bem restritivo, referindo-se apenas ao ato de penetração do pênis na vagina. Damásio de Jesus (2008) entende que conjunção carnal é a cópula normal realizada entre homem e mulher, com a penetração, total ou parcial, do órgão genital masculino na cavidade vaginal.

Para Fernando Capez (2010, p. 25), “a conjunção carnal é a cópula vagínica, ou seja, a penetração efetiva do membro viril na vagina”.

Nélson Hungria (s.d, apud GRECO, 2010, p. 451) traz um conceito de conjunção carnal dizendo ser “a cópula secundum naturam, o ajuntamento do órgão genital do homem com o da mulher, a intromissão do pênis na cavidade vaginal”.

Cezar Roberto Bitencourt (2009, p. 806) entende que “conjunção carnal é a cópula vagínica. A conjunção carnal está excluída dos atos libidinosos que podem caracterizar o crime de atentado violento ao pudor […]”.

E para concluir, Rogério Greco (2010, p. 451) acrescenta com suas lições que “a conjunção carnal também é considerada um ato libidinoso, isto é, aquele em que o agente deixa aflorar a sua libido, razão pela qual a parte final constante do caput do artigo 213 do Código Penal se utiliza da expressão outro ato libidinoso”.

1.3.5.2 Ato libidinoso

Ato libidinoso envolve uma diversidade de condutas que satisfaça a lascívia de alguém, que tenha por finalidade a satisfação da libido do agente. Trata-se de um conceito abrangente que exige uma valoração por parte do magistrado. De fato, há de se reconhecer que o ato que configura a conjunção carnal não gera qualquer dúvida, pois como dito anteriormente, trata-se da cópula vagínica. No entanto, não há um conceito preciso do que venha a configurar um ato libidinoso, de forma que pode vir a configurar uma enormidade de condutas.

Diante de tantas diversidades de condutas, quais seriam os atos libidinosos, se a própria lei não os define? Há uma inquietação na doutrina sobre tal definição.

Inicialmente é importante destacar, que “se o ato, embora materialmente indecoroso, não traduz, da parte do agente, uma expansão de luxúria, deixará de ter cunho libidinoso’’(HUNGRIA, 1983, p.122). Pois, não pode existir ato libidinoso sem libidinosidade.

Ato libidinoso segundo Damásio de Jesus (2009, p. 747), “é o que visa ao prazer sexual. É todo aquele que serve de desafogo à concupiscência. É o ato lascivo, voluptuoso, dirigido para a satisfação do instinto sexual.”

 Ato libidinoso trata-se de ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado à concupiscência. São os atos equivalentes ou sucedâneos da conjunção carnal, quais sejam, o coito anal, coito oral, inter-femora, cunnilingue, anilingue e todos aqueles que contrariem a moralidade sexual. Diverso, pois, da conjunção carnal, que se resume à introdução do pênis no corpo da vítima, por meio da vagina (MIRABETE, 2009).

Nas lições de Rogério Greco (2010, p. 451), “na expressão outro ato libidinoso estão contidos todos os atos de natureza sexual, que não a conjunção carnal, que tenham por finalidade satisfazer a libido do agente”

O magistério de Fernando Capez (2010, p.25-26) prega que “ato libidinoso compreende outras formas de realização do ato sexual, que não a conjunção carnal. São os coitos anormais (por exemplo, a cópula oral e anal), os quais constituíam o crime autônomo de atentado violento ao pudor (CP, antigo art. 214)”.  E Rogério Greco (2010, p. 26), a propósito, compreende que:

Ato libidinoso é todo aquele destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante abrangente, na medida em que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que tenha por finalidade a satisfação da libido. Não se incluem nesse conceito as palavras, os escritos com conteúdo erótico, pois a lei se refere a ato, realização física concreta (GRECO, 2010, p. 26).

A felação (sexo oral), coito anal, toques íntimos nas regiões pudendas são exemplos mais comuns de atos libidinosos diversos na conjunção carnal. Configura ato libidinoso até mesmo sem o contato de órgãos sexuais, quando o agente introduz, por exemplo, instrumento postiço na vítima (CAPEZ, 2010).

Analisando os conceitos retro citados e partindo do raciocínio que ato libidinoso é aquele diverso da conjunção carnal, pode-se afirmar que se não houver a conjunção carnal, ou seja, o estupro propriamente dito, ocorrerá o antigo atentado violento ao pudor, que é caracterizado por inúmeras formas de conduta, se perfazendo desde o beijo lascivo até o coito anal (que é tão grave quanto o coito vagínico), desde que praticados mediante violência.

1.3.5.2.1 Beijo lascivo

Nesse assunto a doutrina também não é pacífica. A questão é se um beijo lascivo pode ou não vir a configurar ato libidinoso. Se é correto classificar o beijo lascivo ou com fim erótico como ato libidinoso, implica em dizer que a aplicação da pena mínima de seis anos fere substancialmente o princípio da proporcionalidade das penas. O beijo lascivo, quando roubado, ou seja, quando expressa a manifestação de um sentimento, e não de um prazer sexual não pode vir a configurar um ato libidinoso. Entretanto, é muito difícil saber qual o sentimento que levou o agente a dar na vítima um beijo lascivo.

É considerado ato libidinoso o beijo aplicado de modo lascivo ou com fim erótico (MIRABETE, 2009, p. 384).

A posição de Damásio de Jesus (2008) é que o beijo lascivo constitui atentado violento ao pudor. Porém, faz a distinção.

Há que se distinguir entre as várias formas de beijo. Evidentemente, não se pode considerar como ato libidinoso o beijo casto e respeitoso aplicado nas faces, ou mesmo o “beijo roubado”, furtiva e rapidamente dado na pessoa admirada ou desejada. Diversa, porém, é a questão quando se trata do beijo lascivo nos lábios, aplicado à força, que revela luxúria e desejo incontido, ou quando se trata do beijo aplicado nas partes pudendas.

Para Cezar Roberto Bitencourt (2009, p.806) o “beijo lascivo, tradicionais amassos, toques nas regiões pudendas, “apalpadelas” sempre integraram os chamados atos libidinosos diversos da conjunção carnal”. No entanto, compreende que com a Lei dos Crimes Hediondos, com pena mínima de seis anos de reclusão, falta-lhe a danosidade proporcional, que até se pode encontrar no sexo anal ou oral violento (BITENCOURT, 2009).

Segundo Rógerio Greco (2010, p. 483 - 484) atualmente, com a edição da Lei 12015/09 não pode ser considerado estupro o beijo dado mediante violência ou grave ameça, pois:

Por pior que seja o beijo e por mais feia que seja a pessoa que o forçou, não podemos condenar alguém por esse fato a cumprir uma pena de, pelo menos, 6 (seis) anos de reclusão, isto é, com a mesma pena gravidade de que se pune um homicida.

E ainda descreve:

Imagine-se a situação de um agente ao entrar na carceragem em virtude de sua condenação pelo delito de estupro, por ter forçado alguém a um beijo lascivo, excessivamente prolongado. Quando for indagado pelos demais presos sobre sua infração penal e responder que está ali para cumprir uma pena de seis anos por ter forçado um beijo em alguém, certamente não faltará naquele local, quem queria beijá-lo todos os dias, mas o Direito Penal não poderá agir desse modo com um sujeito que praticou um comportamento que, a nosso ver, não tem a importância exigida pelo tipo penal do art. 213 do diploma repressivo (GRECO, 2010. p. 48 3- 484).

Nesse mesmo sentido, vale ressaltar a posição do Superior Tribunal de Justiça :

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. DESCLASSIFICAÇÃO. EXAME MINUCIOSO DE PROVA. IMPROPRIEDADE DO WRIT. PENAL. CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO. PROGRESSÃO DE REGIME. POSSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 2º DA LEI Nº 8.072/90 DECLARADA PELO STF.

I - Em nosso sistema, atentado violento ao pudor engloba atos libidinosos de diferentes níveis, inclusive os contatos voluptuosos e os beijos lascivos.

[…].

( STJ-HC 85437 / SP. Min. Rel. Félix Fischer. Quinta Turma. Dj 04/09/2007. Publicado no DJ em 05/11/2007, p. 336).

RECURSO ESPECIAL. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VALORAÇÃO DA PROVA. RECURSO PROVIDO.

1. "Referindo-se a lei a ato libidinoso diverso da conjunção carnal, inclui no tipo toda ação atentatória ao pudor praticada com o propósito lascivo, seja sucedâneos da conjunção carnal ou não. É considerado libidinoso o beijo aplicado de modo lascivo ou com fim erótico." (Júlio Fabbrini Mirabete, in Código Penal Interpretado,Ed. Atlas, 1999, pág. 1.262).

[...]

(STJ- REsp 578169 / RS. Min. Rel: Hamilton Carvalhido. Órgão Julgador: Sexta turma. Dj. 26/05/2204. Publicado em 02/08/2002, p. 603).

Conforme se observa nos julgados acima citados, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona em considerar o beijo lascivo como ato libidinoso.

1.4 FORMAS

A Lei 12.015/09 acrescentou os §§ 1°e 2° ao artigo 213. Assim, o estupro simples é aquele que está caracterizado no caput do artigo 213 do Codex:

Art 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos (CÓDIGO PENAL, 1940).

Conforme modificações operadas pela lei retro mencionada foram criadas duas formas qualificadas pra o crime de estupro, conforme vejamos:

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (CÓDIGO PENAL, 1940).

É imperioso ressaltar que antes as qualificadoras estavam previstas no artigo 223 do Código Penal. No caso no § 1º não se trata de abolitio criminis, visto que tal situação já se achava presente no artigo 223 do CP, atualmente revogado. Tanto é que a pena que era prevista anteriormente manteve-se presente, qual seja, de 8 a 12 anos de reclusão. Na qualificadora do § 2° houve a ampliação da pena máxima, que antes era de 12 a 25 anos e hoje, passou a ser de 12 a 30 anos.

1.5 O QUANTUM DA PENA APÓS O ADVENTO DA LEI DOS CRIMES  HEDIONDOS

Dentro desse contexto, afigura-se emblemática a Lei 8.072 (Lei dos Crimes Hediondos), promulgada em 25 de julho de 1990, sob a influência do movimento Law and Order, e sob a pressão dos meios de comunicação de massa, após grande onda de violência experimentada no Brasil, da qual se extrai os casos de extorsão mediante seqüestro dos empresários Paulo Medina e Abílio Diniz. A pressão era tamanha que o Deputado Plínio de Arruda Sampaio, pronunciando-se sobre uma proposição de adiamento da votação do novel diploma, assim se manifestou na tribuna da Câmara:

Tenho todo interesse em votar a proposição, mas não quero fazê-lo sob a ameaça de, hoje à noite, na TV GLOBO, ser acusado de estar a favor do seqüestro. Isso certamente acontecerá, se eu pedir o adiamento da votação. Todos me conhecem e sabem que não sou a favor disso (FRANCO, 2000, p. 91).

A referida Lei é de se dizer, para além de apenas rotular como hediondas condutas já previstas na legislação penal (o crime é hediondo porque faz parte do elenco enumerado na lei, e não porque apresenta características próprias, devidamente explicitadas), majorou as penas de diversos crimes, dentre os quais o de atentado violento ao pudor, que restou equiparada à pena do crime de estupro.

Assim, a pena mínima do crime de atentado violento ao pudor passou de 2 anos para 6 anos, e a pena máxima saltou de 7 anos para 10 anos, tudo exatamente igual à resposta penal cominada ao crime de estupro, como se fossem delitos eqüipolentes, como se a ofensa à liberdade sexual de uma mulher e um beijo lascivo tivessem igual gravidade objetiva ou dimensão social equivalente.

Esse aumento foi imoderado, haja vista que a pena do crime de estupro e atentado violento ao pudor, quando cometido em qualquer de suas formas, coaduna-se perfeitamente na definição de crime hediondo (artigo 1° da Lei 8072/90). Vide jurisprudência sobre o tema:

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. ESTUPRO FICTO (ART. 213, CAPUT, C.C. O ART. 224, ALÍNEA "a", AMBOS DO CP). DELITO CONSIDERADO HEDIONDO. IMPOSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO DE REGIME.

Consoante entendimento recentemente pacificado pelo Col. STF, secundado por julgados desta Corte, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando cometidos em quaisquer de suas modalidades, enquadram-se na definição legal de crimes hediondos (art. 1º, da Lei 8.072/90).

Hipótese dos autos em que incide a regra proibitiva da progressão de regime inserta no § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90. (STJ- HC n. 20.032/SC Min. Rel. José Arnaldo da Fonseca – j. 21-05-02- DJU 24-06-02 p.32).

Ora, deixando-se de lado a questão da nova Lei 12.015/2009 - que, para piorar a situação, agrupou num só tipo penal as condutas antes definidas separadamente -, como se punir igualmente condutas penais tão diversas, vale dizer o coito vagínico (estupro propriamente dito) e o atentado violento ao pudor, que se perfaz com o coito anal e também com o mero beijo lascivo?

Alberto Silva Franco (2000, p. 233), analisando a problemática, sustenta que “Estabelecer, no âmbito da punição, um estrito paralelismo entre o estupro e o atentado violento ao pudor constitui, sem dúvida, um absurdo jurídico.” E prossegue o renomado jurista:

Enquanto o estupro apresenta uma área de significado devidamente delimitada (ataque, mediante violência ou grave ameaça, à liberdade sexual de uma mulher), o atentado violento ao pudor apresenta características de difícil apreensão, não apenas em face da pluralidade de manifestações com que a conduta libidinosa pode ter expressão, mas também em razão, não raro, da ambigüidade dessas manifestações. O beijo pode ser o desaguadouro de um processo de profunda lascívia ou a manifestação tenra de um afeto. O toque corporal tanto pode significar um gesto tendente a satisfazer o impulso sexual do agente como uma forma de transmitir sentimentos mais íntimos. Dessa forma, condenar, no mínimo a seis anos de reclusão, tanto o agente que constrangeu a mulher à prática da conjunção carnal como aquele que, mediante violência ou grave ameaça, deu-lhe um beijo lúbrico é desconhecer a diferença de estrutura existente entre o estupro e o atentado violento ao pudor, nivelando-os em sua gravidade social (FRANCO, 2000, p.233).

Destarte, com as modificações trazidas pela Lei 12015/09 o artigo 213 passou a abarcar as condutas do artigo 214, hoje revogado, e foi inserido o inciso V no artigo 1° da Lei 8072/90, a qual considera estupro, tanto na sua forma simples, quanto na qualificada, como crime hediondo.


CAPÍTULO II

O IUS PUNIENDI DO ESTADO

2.1 TEORIA GERAL DA PENA

A partir do momento em que o Estado assumiu a função de punir, de retribuir com pena os indivíduos que praticassem uma conduta contrária àquela tida como socialmente adequada, inúmeros foram os avanços experimentados pela Ciência Penal, que não mais se conformava com a mera vingança privada.

Séculos se passaram, inocentes sucumbiram para que a sociedade moderna desfrutasse da evolução do Direito Penal, cujo princípio da legalidade, talvez seja, hodiernamente, sua maior expressão. Já dizia Cesare Beccaria (1999, p. 27), que as leis “são condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservá-la”. E ainda acrescenta:

Homem algum entregou gratuitamente parte da própria liberdade, visando ao bem público, quimera esta que só existe nos romances. Se isso fosse possível, cada um de nós desejaria que os pactos que ligam os outros não nos ligassem. Cada homem faz de si o centro de todas as combinações do globo. A multiplicação do gênero humano, pequena por si só, mas muito superior aos meios que a estéril e abandonada natureza oferecia para satisfazer as necessidades que cada vez mais se entrecruzavam, é que reuniu os primeiros selvagens. As primeiras uniões necessariamente formaram outras para resistir àquelas e, assim, o estado de guerra transportou-se do indivíduo para as nações. Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade. É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível, apenas o suficiente para induzir os outros a defendê-lo. (BECCARIA, 1999, p. 28-29).

O Estado, através da sua função ético-social, visa garantir segurança a sociedade mediante a proteção dos bens jurídicos essenciais e a prevenção das condutas ofensivas. Os homens socialmente organizados, ao renunciarem parte de sua liberdade em prol de sua tranqüilidade, atribuíram ao Estado o monopólio da função de punir - ius puniendi - com uma sanção todos aqueles que praticassem um ato penalmente ilícito.  Através da regra sancionadora, o Estado passou a garantir  obediência aos imperativos presentes no preceito primário da norma (MARQUES, 2000).

A sanção é o elemento distintivo do Direito Penal dos demais ramos do Direito. Tamanha é a distinção que o Direito Penal é o único ramo do direito cuja nomenclatura é dada pelo tipo de sanção, e não pela natureza das relações que ali estabeleceram. A propósito, são oportunas as lições de José Frederico quando diz que “o direito de punir descansa, agora, no preceito sancionador e seu objetivo é o de impor uma diminuição na esfera dos direitos do réu, submetendo-o à coação em que se formaliza a regra secundária da norma penal” (MARQUES, 2000, p. 132).

O mandamento primário da norma jurídica traz a definição do ato ilícito, enquanto que o secundário, os efeitos da violação da norma jurídica. Uma vez violada a norma penal - com a prática de fato típico - nasce para o Estado o direito de punir, e para o réu a obrigação de se sujeitar as sanções impostas decorrentes da prática do mal cometido (MARQUES, 2000).

É necessário esclarecer que pena é uma espécie de sanção que é imposta pelo Estado, como retribuição ao cometimento de determinado ato ilícito e que deve obedecer ao princípio do devido processo legal insculpido na Constituição Federal de 1988. Trata-se de sanção, pois a pena é devida a uma conseqüência de violação de um imperativo jurídico descrito no preceito primário da norma penal incriminadora (MARQUES, 2000). Rogério Greco (2007, p. 4) ressalta que, “a pena é simplesmente o instrumento de coerção de que se vale o Direito Penal para a proteção dos bens, valores e interesses mais significativos da sociedade”.

A necessidade de uma definição - clara e prévia, pode-se acrescentar - do tipo penal incriminador, no entanto, não mais satisfazia aos anseios da sociedade. O Estado, para bem se desincumbir do seu dever de exercer o ius puniendi, deveria se preocupar com que a sanção a ser imposta atingisse a sua finalidade retributiva/ intimidativa, e na exata medida da sua necessidade. Nesse sentido, as lições de José Frederico Marques (2000, p. 136):

A pena é um conceito ético e por isso não pode contribuir para o aviltamento da personalidade humana. As sanções que, a título de castigo, rebaixam e diminuem o homem, degradam o seu caráter e atentam contra a consciência moral, não podem ser acolhidas pelo direito penal de Estados democráticos onde os direitos fundamentais do ser humano constituem valores reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica. O castigo e o sofrimento inerentes à pena, além de proporcionados ao mal cometido, estão limitados pelas exigências éticas que o direito assegura, de respeito à  dignidade da pessoa humana.

Montesquieu, com efeito, há muito já dizia que toda pena que não derive da absoluta necessidade, é tirânica. Todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico (BECCARIA, 1999).

A punição tem evoluído no sentido da brandura e proporção, e hoje a idéia é que a pena não deve ser considerada como um castigo, compensação, pois esses termos nos levam ao sentimento de vingança, embutido no talião primitivo, em que o mal cometido deveria ser retribuído na mesma proporção, olho por olho, dente por dente. Afinal, um direito adequado à civilização moderna, não pode tomar como base a lei da compensação como seu critério inspirador (BETTIOL, 2003, e MARQUES, 2000).

A pena como justa recompensa de dar a cada indivíduo o que merece é um meio indispensável para manutenção de uma sociedade juridicamente organizada. A partir do instante em que um bem ou valor tenha relevância para a sociedade, como condição de progresso, desenvolvimento e conservação da vida em comunhão, tutela mais enérgica é exigida para colocá-la sob o amparo seguro (MARQUES, 2000). Se não houvesse interesse da sociedade no tocante a punição do violador do ordenamento jurídico, não havia razão de o Direito Penal tutelar valores necessários à comunhão em detrimento da dignidade da pessoa humana.

A reação do Estado ao fenômeno delituoso deve guardar consonância com os fins da pena, quais sejam: retributivo e intimidativo. O primeiro constitui o núcleo da pena, pelo qual é atribuída uma justa recompensa ao autor do delito, de modo que a violência bruta não dissolva as bases morais da sociedade, uma vez que o Estado só deve punir em nome das necessidades sociais e nos limites condizentes com o mal praticado pelo delinqüente. O fim intimidativo da pena corresponde à intenção de abstenção da realização de novos crimes. É de caráter preventivo, à medida que com a aplicação de uma pena justa ao delinqüente, esse castigo possa servir de corretivo, como bem enfatiza o ideário popular (MARQUES, 2000).

Nélson Hungria (s.d, apud MARQUES, 2000, p.146) traz uma interpretação relevantemente propícia:

A pena por isso transfunde na consciência do malfeitor como um mais forte motivo de inibição e o sofrimento, que lhe é inerente, representa, incontestavelmente, do ponto de vista relativo, um meio de emenda, um instrumento de regeneração.

Diante das considerações expostas, fica evidente que a pena só deve ser utilizada quando os demais meios coercitivos falharem - ultima ratio -, como resposta a conduta do ofensor e como reparação pela inobservância da norma, não devendo ficar além ou aquém da reprovação que lhe embasa e ademais, não deve cingir-se ao seu caráter aflitivo, devendo servir como meio de evitar a prática novos delitos e demover os outros de agir dessa forma. Para concluir, é oportuno citar o magistério de Cesare Beccaria (1999, p. 52):

É, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicá-las, de tal modo que, conservadas as proporções, causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu.

2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NORTEADORES DA PENA

A Filosofia e a Teoria Geral do Direito teve sua parcela de contribuição na construção doutrinária da normatividade dos princípios, cujo objetivo era superar a oposição clássica entre Direito Natural/ Direito Positivo (BONAVIDES, 2008).

Paulo Bonavides diz que a teoria dos princípios deve estar enraizada no coração das Constituições. Na visão de Dworkin:

As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada (na all nothing). Se ocorrerrem os fatos por elas estipulados, averba ele, então a regra será válida e, nesse caso, a resposta que der deverá ser aceita; se tal, porém não acontecer, aí a regra nada contribuirá para a decisão” (DWORKIN, apud BONAVIDES, 2008, p.282).

Nos dizeres de Elpídio Donizetti (2009), ispirado na visão de Dworkin, as normas processuais se desdobram em regras e princípios.

Enquanto as regras se exaurem por si mesmas, ditando o que se deve e o que não se deve fazer, o que se pode e o que não se pode, os princípios são diretrizes de otimização, ou seja, são normas que ordenam que algo seja cumprido na maior medida possível e dentro das possibilidades jurídicas e fáticas de cada caso concreto (DONIZETTI, 2009).

 Nesse diapasão, Paulo Bonavides (2008, p.257) acrescenta que “a idéia de princípio deriva da geometria, onde se designa as verdades primeiras”, possuindo as seguintes funções: interpretativa, diretiva, limitativa e fundamentadora (2008).

Corroborando com tal entendimento José Afonso da Silva (2009) afirma que os princípios são verdadeiras ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, ou seja, são núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais. Princípios e regras são espécies de normas, sendo os primeiros as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico (ou de parte dele). Seu espectro de incidência é muito mais amplo que o das regras. Assim, os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípios e constituindo preceitos básicos da organização constitucional (SILVA, 2009).

A ideia de peso ou valor só se aplica aos princípios, e isso é o que se distingue das demais normas ao passo que, havendo um conflito entre aqueles deve prevalecer o que mais se identifica como válido ao caso em questão (BONAVIDES, 2008).

Com efeito, é de se enfatizar que os princípios gerais são provenientes das antigas Constituições da segunda metade do século XX, se tornando fonte primária de normatividade, de forma que já se solidificaram no ordenamento jurídico como valores supremos ao redor do que gravitam os direitos, bem como as garantias e as competências de uma sociedade constitucional (BONAVIDES, 2008).

 Os princípios penais ganharam grande importância com a Constituição de 1988 e, sem dúvidas, ganharam status de protetores das garantias individuais ligadas à pessoa humana. Os chamados princípios constitucionais penais embasadores da ordem jurídica penal foram ganhando uma importância cada vez maior para os juristas da atualidade, quando perceberam ali dimensões nunca antes imaginadas.

 Atualmente, é de suma importância que o legislador, responsável pela elaboração da disciplina punitiva paute-se nos direitos fundamentais consagrados na Carta Magna, mas como a Constituição não previu expressamente todos os princípios norteadores da pena é com base em construções de política criminal, doutrinárias e jurisprudenciais que o legislador, intérprete e juiz devem se nortear ao analisar o caso concreto, afinal, como dizia Nilo Batista (2002, p.86):

Se o fim da pena é fazer justiça, toda e qualquer ofensa ao bem jurídico deve ser castigada; se o fim da pena é evitar o crime, cabe indagar da necessidade. Da eficiência e da oportunidade de cominá-la para tal ou qual ofensa.

Vale acrescentar que como vivemos uma verdadeira renovação do Direito Constitucional Brasileiro, que também repercute no Direito Penal e Processual Penal, predomina nos dias atuais que a Carta Magna tem força normativa, tendo os direitos e garantias fundamentais aplicação imediata. Em razão disso, é dever do legislador e aplicador do Direito obedecer às diretrizes que ordenam o Direito Penal.

Em suma, sob a influência dos pensamentos iluministas, as Constituições trazem em seu conteúdo princípios fundamentais, ou postulados constitucionais penais. Como é sabido, estes são aqueles relacionados à matéria penal, com características garantidoras, podendo ser divididos em explícitos, que estão elencados de forma expressa no texto constitucional, e implícitos, que estão contidos em normas constitucionais e delas são extraídas.

Neste contexto analisar-se-á alguns princípios norteadores da pena: princípios da ofensividade, necessidade ou intervenção mínima, culpabilidade, individualização, pessoalidade da pena e proporcionalidade, como limites ao legislador e aplicador dos postulados penais.

2.2.1 Princípio da Ofensividade Como Limite Do Ius Puniendi

O princípio da ofensividade ou lesividade é também conhecido pelo brocardo latino nulla necessitas sine injuria, que significa que não haverá necessidade sem ofensa. Surgiu no período iluminista com o objetivo de desfazer a confusão até então existente entre o direito e a moral (GRECO, 2010). Tem como principal objetivo punir condutas que representem ofensas a bens jurídicos, quais sejam, aquelas condutas graves que lesionam ou colocam em perigo de lesão bem jurídico socialmente relevante (GOMES, 2007).

O princípio em voga serve de orientação tanto para o legislador, que fica vinculado a elaborar a norma penal incriminadora - somente se necessária à proteção de determinado bem jurídico -, como para o juiz e intérprete, como critério de interpretação. Essa dupla função é demonstrada através da função político criminal - momento em que se decide pela criminalização da conduta – e, função interpretativa - momento em que se interpreta e aplica-se a lei penal (GOMES, 2007). 

A atividade legiferante e o magistrado devem respeitar o princípio da ofensividade, uma vez que este princípio tem como escopo limitar o direito de punir do Estado (ius puniendi) e limitar o próprio Direito Penal (ius poenale). Essas funções são complementares e subsidiárias, pois quando o legislador não cumpre seu papel, surge o dever do juiz e intérprete atuarem. Luís Flávio Gomes (2007, p.478) categoricamente afirma:

O Direito Penal já não é obra exclusiva do Poder Legislativo. É fruto de um trabalho intenso e complexo que envolve a letra da lei (os enunciados legais), assim como sua confomação com os textos constitucionais. De tudo isso emana o novo Direito Penal (de cunho garantista e naturalmente constitucional). Enganam-se os que estudam e ensinam o Direito Penal visto e lido exclusivamente na literalidade dos dispositivos legais. A letra da lei é tão-somente o ponto de partida (é mera expressão do ius puniendi). Pode também ser o ponto de chegada (pode constituir o próprio ius poenale), porém quando no caminho se descobre que a lei ordinária se choca com o Texto Maior, este há de prevalecer. E quem diz isso? Os intépretes e aplicadores do texto legal, com a diferença que os intérpretes fazem doutrina, enquanto os juízes fazem o “Direito”.

O princípio da ofensividade impõe uma separação entre o direito, a moral e a religião. Uma conduta que contraria ideia religiosa ou moral não pode ser considerada como criminosa, eis que só podem ser castigados os comportamentos que tenham resultado jurídico, ou seja, que resultem em lesão ou perigo concreto de lesão. Embora não esteja previsto expressamente no texto constitucional, o princípio em tela detém base constitucional e legal. A propósito, o artigo 13 do Código Penal preleciona: “O resultado de que dependa a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa [...]” (CÓDIGO PENAL, 1940).

Não basta que a conduta extrapole o âmbito pessoal e atinja o social, mas que ela esteja tipificada como ilícita no ordenamento penal. Seja qual for a perspectiva, a Teoria do Direito do Autor não mais prepondera, pois não se pune mais o ser de uma pessoa, mas somente o agir, já que o Direito Penal é formado pelo um conjunto de normas que regem as relações entre os humanos (GRECO, 2007). Dito de outro modo, sempre que houver conflito entre a moralidade e legalidade, esta deve prevalecer.

É importante destacar que o juízo de tipicidade já não se esgota na mera constatação da subsunção formal da conduta à letra da lei, uma vez que ainda se faz imprescindível indagar sobre o bem jurídico e sua necessária afetação. A tipicidade como elemento integrante do conceito tripartide de crime criado por Hans Welsel e adotado pelo Direito Penal, se desdobra em tipicidade formal e tipicidade material. Para que haja a presença desta é necessário que haja o desvalor da conduta e o resultado de modo a afetar um bem jurídico relevante de terceiro (GOMES, 2007).

Tais considerações levam a crer que o Direito Penal só deve atuar caso um bem jurídico esteja realmente sendo atacado, pois uma vez violada a esfera privada de uma pessoa, surge para o Estado o dever de punir aqueles infratores que se enquadram em determina conduta tipificada em lei (tipicidade formal).

2.2.2 Princípio da Necessidade da Pena ou da Intervenção Mínima

Na atual civilização faz-se necessário invocar o Direito Penal para que ele possa proteger os direitos fundamentais da pessoa humana, de forma a reprimir todas aquelas condutas que causem lesões a bens jurídico-penais. Podemos conceituar bens jurídicos como sendo aqueles que se perfazem das relações sociais positivamente valoradas. Isto é, “bem jurídico penal, por conseguinte, é uma relação social valorada positivamente por uma norma penal” (GOMES, 2007, p. 488).

Tendo em vista que a proteção penal não é exclusiva, tampouco, absoluta, faz-se necessário selecionar aqueles comportamentos que interessem a tutela penal. Logo, surge o princípio da necessidade apontado desde a Revolução Francesa e o Iluminismo como limitador do poder criativo do crime. Já preceituava o artigo 8° da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que a lei apenas deveria estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias (LUISI, 2003).

Na esteira de tais considerações é forçoso concluir que o objetivo primordial do princípio da necessidade é selecionar proporcionalmente qual o bem jurídico mais importante, e qual merece a devida proteção penal, pois, se assim não fosse, estaríamos diante de punições desnecessárias e inúteis e a pena, evidentemente, não é atormentar, muito menos aflingir ou desfazer o delito já cometido, ao contrário, os fins da pena se resumem em causar impressões mais eficazes e duradouras no espírito dos homens (BECCARIA, 1999).

Do princípio da necessidade se desencadeiam o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, princípio da ofensividade - já comentado anteriormente - e o princípio da intervenção mínima (LUISI, 2003). 

Como é sabido, o Direito Penal não é o ramo do direito destinado a intervir na vida das pessoas. Ao contrário, ele tem como missão preservar os bens jurídicos elencados pelo legislador como mais importantes ao harmonioso convívio social. Dessa forma, sua intervenção deve ser excepcional, ou mínima, ultima ratio, ou seja, ele só deve agir quando os demais ramos do direito se mostrarem ineficientes para solucionar o caso concreto. Considerando-se a intervenção mínima do Estado, este não deve ser acionado para reprimir condutas que não sejam significativas.  O princípio da intervenção mínima estatal tem como escopo orientar e limitar o legislador, preconizando pela criminalização de uma conduta quando se constituir meio necessário para a proteção jurídica. Nesse sentido, Rogério Greco (2007, p. 51):

As vertentes do princípio da intervenção mínima são, portanto, como que duas faces de uma mesma moeda. De um lado, orientando o legislador na seleção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade; de outro, também servindo de norte ao legislador para retirar a proteção do Direito Penal sobre aqueles bens que, no passado, gozavam de especial importância, mas que hoje, com a evolução da sociedade, já podem ser satisfatoriamente protegidos pelos demais ramos do ordenamento jurídico.

Oportunamente, Luiz Regis Prado (1999, p. 84) acrescenta que:

O princípio da intervenção mínima ou subsidiariedade estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só deverá intervir quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio.

O Estado de Direito só deve utilizar a lei penal como seu último recurso, devendo atuar, somente, quando estritamente necessário, mantendo-se subsidiário e fragmentário. Embora o princípio da intervenção mínima não esteja previsto constitucionalmente, integra a política criminal impondo-se ao legislador e ao intérprete do direito (BATISTA, 2002). Dessa forma, compreende-se que o Direito Penal deve aguardar a ineficácia dos demais ramos do direito e, somente, quando fracassarem as demais barreiras protetoras do bem jurídico deverá intervir a fim de disciplinar a conduta do indivíduo.

A subsidiariedade e a fragmentariedade são desdobramentos do princípio da intervenção mínima, pois norteia a intervenção em abstrato do Direito Penal. Segundo Nilo Batista (2002) a fragmentariedade surgiu pela primeira vez na parte especial do Tratado de Direito Penal Alemão de 1896 e desde então se faz presente no Direito Brasileiro.

 No postulado da fragmentariedade tem-se que a função maior atribuída à lei penal não é absoluta, o que dá entender que somente as agressões significativas devem ser levadas em consideração, pois o uso excessivo da sanção criminal condena o sistema penal a uma função meramente simbólica e negativa, não alcançando o Direito Penal seu objetivo maior que é a proteção de bens jurídicos relevantes. Por sua vez, a subsidiariedade do Direito Penal já pressupõe uma fragmentariedade, consistindo, pois, num remédio que só deve ser ministrado em casos de extrema necessidade.

2.2.3 Princípio da Culpabilidade

Durante muito tempo na história das civilizações perdurou a responsabilidade objetiva. O agente que cometia um delito obrigatoriamente respondia pelas suas conseqüências, sendo irrelevante se o resultado era produto de sua vontade. Era punido pelo que era, e não pela ofensa que tinha causado a bem jurídico de terceiro (LUISI, 2003).

 Todavia, desde os primórdios, Roma já analisava a vontade do agente como fundamento da pena, exigindo a Lei das Doze Tábuas a figura do dolo (LUISI, 2003).

Os romanos já diferenciavam dollus bonus do dollus malus. Aquele consistia na astúcia utilizada pelo agente para se defender do seu inimigo. Já o  dollus malus se caracterizava pela astúcia de engano com o fim de prejudicar alguém, sendo um ato voluntário pelo qual estava presente a consciência da injustiça (LUISI, 2003).

Mesmo com o surgimento das idéias iluministas, a responsabilidade objetiva não havia sido superada, de modo que só em meados do século XX surgiu uma visão científica acentuando o entendimento da relação do agente como responsável pelo fato criminoso (LUISI, 2003).

Luiz Luisi (2003) em sua obra Os Princípios Constitucionais Penais afirma que a Teoria Causalista enfocada por Franz Von Liszt teve grande destaque na criação do conceito de culpabilidade, eis que reduziu esse elemento ao dolo e a culpa, e daí em diante vários estudiosos, como Hans Welsel, começaram a desbravar tal conceito, findando na Teoria Normativa Pura da Culpabilidade, traduzida no juízo de reprovação que tem como objeto um fato injusto e subjetivamente típico.

Com a Teoria Normativa Pura da Culpabilidade passou-se a analisar a conduta do indivíduo a fim de verificar se ele havia agido com consciência da ilicitude ou não. Dessa forma, o dolo e a culpa passaram a integrar o tipo e a culpabilidade passou a adquirir uma fisionomia exclusivamente normativa (LUISI, 2003).

Com o finalismo de Welsel, a culpabilidade assumiu uma postura puramente normativa, passando a ser o juízo de reprovação ao agente do fato delitivo. Dolo e culpa passou a integrar a tipicidade. Esta se desdobra atualmente em conduta, resultado, nexo de causalidade, tipicidade formal e tipicidade material. A culpabilidade tem como requisitos: a imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Portanto, a partir da teoria tripartide de Welsel não se confunde mais culpabilidade com responsabilidade subjetiva, pois para que haja a prática de um crime são necessários que estejam presentes os seguintes elementos: fato típico, antijurídico e culpável (GOMES, 2007).

O princípio da culpabilidade, indiscutivelmente, ao lado de todos já comentados aqui, também cumpre sua função limitadora do ius puniendi, porém, não pode ser confundido com o conceito de culpabilidade decorrente de Política Criminal, que é aquele pelo qual isenta de pena determinados sujeitos que não tenham capacidade de se motivar no sentido da norma.

Da análise crítica proposta por Nilo Batista (2002, p. 103) se extrai:

O principio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, como repúdio a qualquer espécie de responsabilidade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido como exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito, mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável.

 A Constituição Federal de 1988 no seu inciso LVII dá a culpabilidade um gabarito constitucional no artigo 5°, dizendo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CONSTITUIÇÃO FEDERAL,1988). No artigo retro citado é notório que nossa Carta Magna exigiu que fosse provada e declarada a culpabilidade do agente, seja autor ou partícipe de um fato típico e antijurídico.

A culpabilidade também está presente no artigo 29 do Código Penal, presente, neste caso, como limitador máximo da pena, pois diz que cada um deve ser punido na medida de sua culpabilidade (CÓDIGO PENAL, 1940).

 Acrescentando, o artigo 59 do Código Penal diz que o juiz no momento da aplicação da pena deve levar em consideração a culpabilidade do agente, funcionando neste caso como graduação da pena, devendo ser levado em consideração no momento da análise das circunstâncias judiciais a reprovação da conduta do indivíduo (GOMES, 2007).

Numa primeira acepção, o termo culpabilidade se contrapõe ao da inocência, cuja raiz é constitucional. Quando se afirma que a pessoa é culpada é porque já foram derrubadas todas as provas contundentes e válidas no processo.

Nilo Batista (2002, p.104) conclui:

O princípio da culpabilidade impõe a subjetividade da responsabilidade penal. Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão só de uma associação causal entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. É indispensável a culpabilidade. No nível do processo penal, a exigência de provas quanto a esse aspecto ao aforisma “cupabilidade não se presume”. A responsabilidade penal é sempre subjetiva.

Resumindo, em primeiro lugar, a culpabilidade, como fundamento da pena, refere-se ao fato de ser possível a aplicação de uma pena ao agente de um fato típico e antijurídico. Para isso, se faz necessária a presença da capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. A ausência de qualquer desses elementos específicos do conceito dogmático da culpabilidade é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal. Em segundo lugar, a culpabilidade funciona como fundamento da pena, limitando-a e impedindo-a que seja imposta aquém ou além da medida prevista para proteger determinada lesão a um bem jurídico.

Pelo princípio em estudo, conclui-se, que não haverá pena sem culpabilidade, decorrendo daí três conseqüências materiais: não há responsabilidade objetiva pelo simples resultado; a responsabilidade é pelo fato e não pelo autor e a culpabilidade é a medida da pena.

2.2.4 Princípio da Individualização da Pena

Nos dizeres do mestre Nélson Hungria (s.d, apud LUISI, 2003, p. 52), a individualização da pena deve ser entendida como “retribuir o mal concreto do crime com o mal concreto da pena, na concreta personalidade do criminoso”.

A legislação constitucional pátria trouxe o dito princípio no seu artigo 5°, XLVII, dispondo que: “a lei regulará a individualização da pena [...]” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). 

Registre-se que a individualização da pena necessariamente possui três fases distintas: a legislativa (momento da cominação), a judicial (momento da aplicação) e a executória ou administrativa (momento da execução). O primeiro momento a lei delimita para cada tipo penal uma ou mais penas proporcionais com a importância do bem jurídico defendido e conforme o grau de lesividade da conduta. Nesta fase, ainda se estabelece as espécies de penas que podem ser aplicadas, exclusiva, cumulativa ou alternativamente. Além disso, estabelecem as regras que possibilitam ulteriores individualizações (LUISI, 2003).

 Com efeito, todos os três momentos fazem parte do princípio da proporcionalidade que será explanado logo a seguir.

O segundo momento é o da individualização da pena pelos magistrados que diante do caso concreto vão decidir o quantum que será aplicado, dentro dos limites estabelecidos pelo preceito secundário, determinando, inclusive, o modo de execução.

As regras básicas da individualização da pena estão previstas no artigo 59 do Código Penal, ou seja, na primeira fase da aplicação da pena, e não podem deixar de ser observadas pelo juiz. Embora estejam na lei, enseja certa discricionariedade ao magistrado, mas sempre dentro dos limites do preceito primário e secundário trazido pelo tipo penal, pois o juiz está preso aos parâmetros que a lei estabelece. Assevera Luiz Luisi (2003, p.54):

É forçoso reconhecer estar habitualmente presente nesta atividade do julgador um coeficiente criador, e no mesmo irracional, em que, inclusive inconscientemente, se projetam a personalidade e as concepções da vida e do mundo do juiz.

A terceira e última fase ocorre com a execução ou individualização administrativa. Poderíamos afirmar que é nessa fase que a sanção começa a atuar, de fato, sobre o delinqüente.

Relativamente a essa etapa a Lei Maior prevê no seu artigo 5°, XLIX: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Já o inciso XLVIII do mesmo dispositivo impõe que o cumprimento da pena se dará em estabelecimentos que atendam a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.

Por conseguinte, é de suma importância as finalidades almejadas com a individualização da pena, devendo-se sempre ter em mente seu caráter ressocializador e retributivo.

2.2.5 Princípio da Pessoalidade da Pena

O princípio da pessoalidade da pena está previsto no artigo 5°, XLV da Constituição Federal, que assim dispõe:

Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido (CONSTITUIÇÃO, 1988).

Desta feita, vislumbra-se que o princípio em discussão tem correlação com o princípio da responsabilidade pessoal, que proíbe a imposição de pena por fato de outrem. A responsabilidade deve ser individual, posto que ninguém responderá criminalmente além dos limites da própria culpabilidade (GOMES, 2007).

 Já é pacífico tal entendimento nas nações civilizadas que a pena só atingirá o condenado, pois como não é uma forma de reparação econômica do dano, mas, sim, um castigo, só poderá responder por ela àquele que cometeu o delito, com a privação de sua liberdade de forma que seja suficiente para sua ressocialização (LUIZI, 2003).

No entanto, não se pode olvidar que a pena pode gerar danos e sofrimentos a terceiros, em especial a família da vítima. Assim, é por isso que determinadas legislações vêm disciplinado a criação de institutos que auxiliam tanto a família do sentenciado, como a vítima do delito.

Corroborando com tal entendimento, o artigo 22, XVI da Lei 7210/84 assim dispõe: “A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade” (LEI DAS EXECUÇÕES PENAIS, 1984). Ainda no artigo 29, § 1°, b, impõe-se que o produto da remuneração do trabalho do preso deverá atender “à indenização dos danos causados pelo crime, desde que judicialmente e não reparados por outros meios”.

2.2.6 Princípio da Proporcionalidade

Com a evolução do pensamento penal, um jovem milanês percebeu, nos idos do século XVIII, que a ideia da necessidade da resposta penal estatal estava estritamente ligada ao pensamento de que a pena correta é a pena justa, adequada, proporcional. Com efeito, aos 24 anos de idade, Cesare Beccaria bradou ao mundo que as penas somente têm legitimidade se proporcionais à conduta tida como criminosa, na medida de suas gravidades. Estavam lançadas as sementes do princípio da proporcionalidade do Direito Penal, princípio este cuja importância vem cada vez mais se acentuando, de modo a demandar reflexões e estudos por toda a comunidade jurídica (BECCARIA, 1999).

Embora não esteja expressamente previsto no texto constitucional é encontradiço de forma implícita primeiramente na Constituição Federal de 1988 que em seu artigo 1°, III vem previsto como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, como também no artigo 2°, I que objetiva construir uma sociedade justa (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Ademais, a doutrina garante ao princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade como prefere chamar os norte - americanos, ou proibição do excesso como denominado pelos alemães) força normativa, de modo que sua aparição se dá como garantia especial, traduzida na exigência de que toda e qualquer atividade estatal se der somente por motivos de necessidade, de forma adequada e na justa medida com o fim de obter uma máxima e eficácia otimização dos direitos e garantias individuais ligadas à pessoa humana (BARROS, 2003).

Alude Suzana Toledo de Barros (2003):

A expressão proporcionalidade tem um sentido literal limitado, pois a representação mental que lhe corresponde é a de equilíbrio: há nela, a idéia implícita de relação harmônica entre duas grandezas. Mas a proporcionalidade em sentido amplo é mais do que isso, pois envolve também considerações sobre a adequação entre meios e fins e a utilidade de um ato para a proteção de um determinado direito. A sua utilização esbarra no inconveniente de ter-se de distinguir a proporcionalidade em sentido estrito da proporcionalidade tomada em sentido lato e que designa o princípio constitucional.

Além de pautar a atividade do legislador, o princípio ora em comento serve também de norte para o aplicador do direito que a partir do caso concreto deverá fazer uma técnica de ponderação entre a violação do bem jurídico e garantias constitucionais.

Já dizia Flávio Gomes (2007, p. 553) que:

O princípio da proporcionalidade conta com interconexão com praticamente todos os demais princípios (intervenção mínima, culpabilidade, etc). Em certo sentido é um princípio complementar, mas necessário, de todos eles, porque os demais não asseguram a indispensável proporção entre o delito e a pena, a exigência de proporção se determina mediante um juízo de ponderação entre a “carga coativa” da pena e o fim perseguido pela cominação legal.

A essência da proporcionalidade guarda relação com as exigências da retribuição, bem como da prevenção, pois é uma idéia de justiça imanente do Direito uma vez que visa a dar a cada qual o que é seu, proporcional à sua conduta. Nesse sentido, vale a seguinte citação: “Não há pena mais efetiva que a pena justa e proporcional: a pena exorbitante pode chegar a ser criminógena” (GOMES, p. 556, 2007).

Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade tem aplicação na aferição da constitucionalidade das leis, quando nos deparamos com a colisão de direitos e garantias constitucionais. Pois, o legislador mesmo perseguindo fins estabelecidos pela Carta Magna, poderá editar leis incompatíveis com a mesma, ou seja, inconstitucionais. A proporcionalidade, como uma das facetas da razoabilidade demonstra que nem todos os meios justificam os fins (BARROS, 2003).

O que se quer demonstrar, pois, com o presente estudo, é que a individualização da pena, notadamente se considerada em sua primeira fase, que é a da cominação abstrata, da fixação pelo legislador do seu quantum, deve guardar estrita observância ao princípio da proporcionalidade.

Citando mais uma vez Beccaria, o legislador deve estabelecer as penas abstratas de acordo com a gravidade de cada crime, eis que:

Se o prazer e a dor são a força motriz dos seres sensíveis, se entre os motivos que impelem os homens para ações mais sublimes foram colocados, pelo invisível legislador, o prêmio e o castigo, a distribuição inexata destes produzirá a contradição, tanto menos observada, quanto mais comum, de que as penas castigam os delitos a que deram origem. Se pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade, os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior, se disso resultar maior vantagem (1999, p. 39).

A pena, além de só poder ser legítima quando constitui o meio necessário para efetiva proteção de um bem jurídico, há de ser proporcional à importância do bem, à gravidade da ofensa e à intensidade de culpabilidade do agente. O princípio em tela deve estar presente na norma penal incriminadora ao fixar em abstrato a medida da pena.

O momento de aplicação do princípio da proporcionalidade é, assim, o do estabelecimento em abstrato das penas.

Em suma, o princípio da proporcionalidade – que obriga em primeiro lugar o legislador – exige a concretização de um juízo de adequada ponderação entre o bem ou interesse que se lesa ou que se coloca em perigo (gravidade do delito) e o bem que se restringe ou que se priva por meio da pena.

Transportando tais considerações para o nosso direito positivo, basta um exame superficial para se perceber quão corriqueira é a violação do princípio da proporcionalidade, princípio este que, na jurisprudência do Pretório Excelso, tem fundamento constitucional na medida em que representa o aspecto substancial do devido processo legal, que vem expressamente contemplado no art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988. Logo, é um princípio constitucional geral do Direito (GOMES, 2007).

O que se depreende é que a aplicação da proporcionalidade repousa na necessidade de construir um Direito pela utilização da norma cogente positivada de forma coerente, harmonizando, sempre que possível, os interesses contrários que formam uma mesma relação jurídica. E quando ocorrerem colisão entre conflitos é preciso que haja ponderação, de modo que se verifique qual deles possui o maior peso diante do caso concreto.

Desta forma, o princípio da proporcionalidade como limitador da atividade estatal representa a exata medida em que deve agir o Estado, não significando que deva agir de forma demasiada, tampouco, insuficiente na realização de seus objetivos. Além da força limitadora, o princípio em tela está relacionado à proteção da pessoa humana e partindo desse pressuposto, toda vez que for desrespeitado, haverá violação imediata ao princípio da dignidade da pessoa humana, elencado pela Constituição Federal como um dos seus fundamentos. Ocorrerá a violação do princípio da proporcionalidade sempre que o legislador e aplicador do Direito, diante de dois valores legítimos a sopesar, priorizar um a partir do sacrifício exagerado de outro.


CAPÍTULO III

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

3.1 DEMONSTRAÇÃO DA DESPROPORCIONALIDADE DA PENA MÍNIMA DO CRIME DE ESTUPRO

Desde a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), a doutrina e a jurisprudência vêm se mostrando omissas no que tange a cominação da pena mínima prevista para o crime do antigo atentado violento ao pudor que, com a Lei 12015/09 recebeu a denominação de estupro.

Analisando ipsi litteris a nova redação do artigo 213 do Código Penal percebe - se claramente que ato libidinoso é todo aquele diverso da conjunção carnal que, como diria Fernando Capez, pode variar de um beijo lascivo até o coito anal (CAPEZ, 2010).

Essa interpretação leva a concluir que considerando o beijo lascivo ou um simples toque nas regiões pudendas como ato libidinoso há uma nítida violação ao princípio da proporcionalidade, pois embora o juiz possa dosar a pena entre o mínimo e o máximo, de seis a dez anos, na hipótese do artigo 213 do Código Penal, a sua discricionariedade encontra-se vinculada aos parâmetros legais de aplicação da pena (artigo 68 do CP), que são insuficientes no caso do estupro, de atribuir uma pena justa e proporcional aos que se situam em dois extremos, como o beijo lascivo e o coito anal ou conjunção carnal.

Com efeito, ainda que se aplique a pena mínima, ou seja, seis anos para um beijo lascivo, é uma pena muito desconforme com a conduta gerada pelo agente, equivalendo à mesma pena mínima de um homicídio simples, qual seja 6 (seis) anos, e com uma gravidade ainda maior na execução da pena, por ser considerado o estupro, mesmo na sua forma simples, crime hediondo (GOMES, 2007).

E considerando crime hediondo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já é uníssona no sentido de considerar o crime de estupro como hediondo, seja qual for a modalidade, simples ou qualificado, o que vem a trazer reflexos sobre os institutos da liberdade provisória, livramento condicional e substituição da pena. A propósito, o seguinte excerto jurisprudencial:

EMENTA: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DE DEFENSOR DATIVO PARA APRESENTAÇÃO DE CONTRARRAZÕES. ART. 370, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO TEMPUS REGIT ACTUM. ESTUPRO. CRIME HEDIONDO. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. APLICAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA NO ART. 9º DA LEI 8.072/1990. ORDEM DENEGADA. [...]

II - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o crime de estupro, tanto na sua forma simples como na qualificada é crime hediondo. Precedentes.

[...] (STF- HC 97788/SP Habeas Corpus. Min Rel: Ricardo Lewandowski. Org. Julgador: Primeira Turma. Julgamento: 25/05/2010. Dje: 24/06/2010).

É também manifesta a violação do princípio da proporcionalidade quando comparado a alguns tipos penais previstos no artigo 129, § 3° do Código Penal -lesão corporal seguida de morte - que tem uma pena mínima de 4 (quatro) anos e o crime de tortura previsto na Lei 9455/97, que tem uma pena mínima de 2 (dois anos).

Analisando a redação do artigo 213 do Código Penal, observa-se que é punido com a mesma sanção aquele que dar um beijo no seio da vítima e aquele que realiza uma conjunção carnal violenta.

Todavia, em se tratando de um coito anal ou de felação praticados mediante violência ou grave ameaça, não há ofensa ao princípio da proporcionalidade a fixação de uma pena mínima de seis anos para o agente que comete tais condutas, pois não há dúvidas que estas podem gerar traumas psicológicos na vítima mais graves que a própria conjunção carnal.

Através da leitura do artigo abaixo citado, observa-se que o termo ato libidinoso é bastante amplo, incluindo, a própria conjunção carnal, veja-se:

Art 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena: reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos (CODIGO PENAL, 1940).

Esse conceito demasiadamente aberto gera uma instabilidade jurídica, dando ampla discricionariedade aos promotores e magistrados, que não encontram limites jurídicos para definir e classificar ato libidinoso e, dessa forma, interpretam o caso concreto dentro de um contexto eminentemente moral. Contudo, este não seria o maior problema, não fosse o elevado patamar mínimo em que foi estabelecida a pena para o crime de estupro.

Atualmente, a ampla possibilidade de condutas passíveis de subsunção ao tipo do artigo 213 do Código Penal traz à tona a desproporcionalidade da sanção mínima fixada aos agentes que cometem o delito em comento, engessando juízes e tribunais no que concerne à individualização da reprimenda a partir da lesividade da ação apurada. Com isso, o espaço se abre para construções jurídicas injustas, em que se iguala um indivíduo que constrangeu outrem à prática de coito anal àquele que deu um beijo considerado lascivo na boca de alguém, podendo este, receber uma sanção maior que o primeiro (COSTA, OLIVEIRA, 2006).

Como já comentado nos tópicos anteriores, o primeiro momento da aplicação do princípio da proporcionalidade é o da fixação da pena em abstrato pelo legislador. Neste ponto se encontra o cerne da questão ventilada nesse trabalho monográfico. Vale destacar a citação do renomado jurista Rogério Greco (2005, apud COSTA, OLIVEIRA, 2006):

Prima facie, deverá o legislador ponderar a importância do bem jurídico atacado pelo comportamento do agente para, em um raciocínio seguinte, tentar encontrar a pena que possua efeito dissuasório, isto é, que seja capaz de inibir a prática daquela conduta ofensiva. Após o raciocínio correspondente à importância do bem jurídico-penal, que deverá merecer a proteção por meio de uma pena que, mesmo imperfeita, seja a mais proporcional possível, no sentido de dissuadir aqueles que pretendem violar o ordenamento jurídico com ataques aos bens por ele protegidos, o legislador deverá proceder a um estudo comparativo entre as figuras típicas, para que, mais uma vez, seja realizado o raciocínio da proporcionalidade sob um enfoque de comparação entre diversos tipos que protegem bens jurídicos diferentes.

A par de tais considerações, é patente a violação do princípio da proporcionalidade já na sua primeira fase, quando o legislador estabeleceu a pena mínima de seis anos, pois como vimos o ato libidinoso encerra uma variedade inominada de condutas, com diferentes graus de lesividade. Ademais, feriu também o princípio da isonomia, vez que iguala indivíduos que se encontram em situações diversas dificultando um julgamento justo.

3.2  DISTINÇÃO ENTRE ESTUPRO E A CONTRAVENÇÃO DE  IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR

O artigo 213 do Código Penal, conforme exaustivamente discutido nos tópicos anteriores, rotula como estupro aquele que constrange alguém, mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar qualquer outro ato libidinoso, podendo ser praticado na presença de várias pessoas ou não, pois o tipo penal em comento não exige a presença de público para sua configuração, sendo indiferente ter só a presença da vítima no ambiente da prática delituosa, ou de várias pessoas.

Por sua vez, o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais (Decreto - Lei 3688/41) diz que comete a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor quem “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”, recebendo uma pena de multa (LEI DAS CONTRAVENCÕES PENAIS, 1941).

O dispositivo em tela visa tutelar os bons costumes, possuindo como sujeito passivo qualquer pessoa. O legislador preocupou-se com o pudor que pode ser importunado (molestado, perturbado, incomodado) de modo ofensivo. E o que seria pudor? Segundo Nélson Hungria (s.d, apud SALLES JUNIOR, 1988, p. 288), pudor é o “sentimento de timidez ou de vergonha de que se sente possuída a pessoa normal diante de certos fatos ou atos que ferem a decência. Não se limita a vida ou a funções sexuais”.

Poderia, assim, dizer que pudor é aquele sentimento de respeito que nutre a sociedade, entretanto, o que pode ser pudico para alguns, pode não ser para outros, e é a partir daí que surgem controvérsias no caso concreto, pois é o juiz diante das circunstâncias variantes e de acordo com o local e costumes da sociedade quem definirá o que vem a ser pudor.

O modo ofensivo envolve a idéia de comportamento agressivo, que não foi definido na redação do artigo 61 da Lei das Contravenções Penais (SALLES JUNIOR, 1988).

Quanto ao lugar público ou acessível ao público, Costa Leite (s.d, apud SALLES JUNIOR, 1998, p. 288) entende que “deve ser considerado qualquer lugar onde haja pessoas em reunião, onde a vigilância da autoridade pública normalmente deve estar presente’’.

A simples leitura do disposto no artigo 61 da Lei das Contravenções Penais resta claro que a principal diferença entre a contravenção em discussão e o crime de estupro reside no fato de que a importunação ofensiva se caracteriza toda vez que a ofensa ao pudor resultar de simples impertinência e, desde que seja em local público, pois se assim não for, poderá o fato ser considerado atípico, por não se coadunar na descrição do artigo 61 da Lei das Contravenções Penais. Ao contrário, o estupro não necessita de público para a sua consumação.

A doutrina entende que o ato de importunação ofensiva ao pudor a que se refere o artigo em voga, pode consistir em palavras, gestos ou atitudes, tais como aproximação excessiva de certas partes do corpo, a bolinagem em ônibus apertado, perseguição de uma moça com gracejos e contatos ofensivos ao pudor, toques nas regiões pudendas, entre outras modalidades em que o espírito libidinoso é fecundo, ofendendo ao pudor (NOGUEIRA, apud SALLES JUNIOR, 1998, p. 289).

Guilherme se Souza Nucci (s.d, apud GRECO, 2010) corrobora com o entendimento de que como o atentado violento ao pudor propriamente dito é um crime hediondo, sujeito a uma pena mínima de 6 (seis) anos e dessa forma não se pode dar uma interpretação muito aberta ao tipo, eis que atos ofensivos ao pudor, como passar a mão nas pernas da vítima, nos seios, devem ser considerados contravenção penal. Diferentemente do sujeito que se detém das carícias, ameaçando a vítima com um revólver, por exemplo, pois neste último caso, trata-se do crime de atentado violento ao pudor propriamente dito.

Ainda nas postulações de Guilherme de Souza Nucci (2007) o mesmo comenta que diante da variedade de atos ofensivos ao pudor, o ideal seria transformar a contravenção do artigo 61, com redação mais clara, respeitando-se a taxatividade em modalidade privilegiada de estupro (artigo 213, CP). Logo, havendo violência ou grave ameaça, o agente incorreria, sem dúvidas, nas penas do artigo 213 do Código Penal. Porém, sem violência ou grave ameaça, mas consistindo ato atentatório à dignidade sexual e liberdade da pessoa humana, aplicar-se-ia a contravenção do artigo 61, o qual possui uma pena menor (NUCCI, 2010).

Acrescenta, ainda, que diante do absurdo e incongruência da lei, restaria ao juiz desclassificar o delito para a contravenção de importunação ofensiva ao pudor, ou caso o local não seja público ou acessível ao público, considerar o fato como atípico.

Para Celso Delmanto (2010) o ato de passar as mãos nas partes íntimas da vítima deve ser considerado contravenção penal, mantendo as críticas referentes à redação do antigo artigo 214 do Código Penal, pois considera que o legislador não inseriu um conceito concreto de ato libidinoso, fazendo uma graduação e, consequentemente, apenação diferenciada dos diversos tipos de atos, punindo com a mesma pena um sexo anal e um toque nas regiões íntimas. Dessa forma, entende que diante da omissão da atividade legiferante, restaria ao aplicador do direito no momento da dosimetria da pena, desclassificar o delito para a contravenção do artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, se cometida em local público, ou desclassificar para a contravenção contida no artigo 65 - perturbação da tranqüilidade – quando cometida em local não público ou não acessível a este. E em último caso, até considerar o fato penalmente atípico. 

3.3 DISTINÇÃO ENTRE ESTUPRO E A CONTRAVENÇÃO DE PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE

Considera-se perturbação da tranqüilidade segundo o artigo 65 da Lei das Contravenções Penais, o ato de molestar (incomodar, ofender, importunar, melindrar) alguém ou perturbar- lhe (embaraçar, agitar, desassossegar, fazer perder a serenidade de espírito) a tranqüilidade, por acidente ou por motivo reprovável, e a pena neste caso é prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa (LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS, 1941).

O objeto jurídico tutelado pelo artigo 65 é a tranquilidade da pessoa. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independente de sua condição (SALLES JUNIOR, 1998).

 Costa Leite (s.d, apud SALLES JÚNIOR, 1998, p. 310) já dizia que a expressão molestar ou perturbar pode abarcar diversas condutas, tais como, ligações telefônicas acompanhadas de desaforos e palavrões, atirar detritos próximos à residência de outrem.

Para que ocorra a contravenção em exame é necessário que o ato de molestar ou perturbar venham acompanhados do acinte ou motivo reprovável. Acinte é quando o agente atua premeditadamente, ou seja, propositadamente, com intuito de desgostar alguém. Por sua vez, o motivo reprovável é aquele considerado como condenado ou reprovável (SALLES JÚNIOR, 1998).

A principal diferença entre a contravenção de importunação ofensiva ao pudor prevista no artigo 61 e a contravenção de perturbação da tranqüilidade prevista no artigo 65 é que aquela deve ser cometida em local público ou pelo menos acessível ao público, circunstância esta não mencionada na perturbação da tranquilidade. A doutrina também destaca que a diferença estaria no objetivo específico do agente, quando da prática de ato capaz de importunar alguém de modo ofensivo ao pudor (SALLES JUNIOR, 1998).

Apesar de ter havido a revogação do artigo 214 do Código Penal, é necessário frisar mais uma vez que como não houve abolitio criminis, as condutas lá descritas passaram a integrar a figura delitiva do crime de estupro previsto no artigo 213 do Código Penal.

 Nesse sentido, vale destacar as postulações de Damásio de Jesus (s.d, apud SALLES JÚNIOR, 1998), no qual comenta que a distinção entre perturbação da tranqüilidade (artigo 65) e o antigo atentado violento ao pudor (artigo 214, hoje revogado) reside no fato de que neste crime o agente pretende constranger a vítima, empregando violência ou grave ameaça a fim de praticar ou permitir que com ela se pratique ato de libidinagem diverso da conjunção carnal, além de ser considerado como hediondo. Neste caso, através de uma simples leitura comparativa entre o artigo 213 do Código Penal e o artigo 65 da Lei das Contravenções Penais, observa-se que naquele o dolo da ação é dirigido a satisfazer a lascívia de alguém. Já na contravenção do artigo 65, o dolo se dirige simplesmente a molestar ou perturbar o sujeito passivo por acinte ou razão reprovável.

Desde a festejada obra de Cesare Beccaria, é pacífico no sistema jurídico que as penas devem ser proporcionais ao mal social causado pelos crimes, e, consequentemente, sanções de igual monta devem corresponder a lesões jurídicas de mesma intensidade (BECCARIA, 1998). Dessa forma, na falta de dispositivo legal que melhor traduza a conduta perpetrada pelo agente, não pode o judiciário valer-se de uma pena desmesurada e desproporcional, sob pena de provocar injustiça e insegurança maiores do que a decorrente do próprio delito.

Muita embora as condutas previstas no artigo 65 da Lei das Contravenções Penais e artigo 213 do Código Penal (em relação a atos libidinosos diversos da conjunção carnal) sejam ilícitas e tenham em comum um ato do agente dirigido contra a vontade do ofendido, a conduta, os fins almejados pelo transgressor da norma e  o quantum das sanções  penais se mostram completamente diferentes.

Ademais, a forma de agir descrita no crime de estupro demanda o uso de violência ou grave ameaça, o que não ocorre na contravenção penal comentada nesse tópico, eis que esta consiste apenas numa perturbação da tranqüilidade decorrente de melindre, mágoa, desgosto ou ofensa a vítima.

Por fim, vislumbra-se, ainda, uma diferença em relação aos fins almejados pelo sujeito ativo, pois no crime do artigo 213 do Código Penal é visada a concupiscência do deliquente, enquanto que na contravenção do artigo 65, o sujeito age por acinte ou motivo reprovável que magoa a vítima.

3.4 POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA QUANTO À APLICAÇÃO DA PENA MÍNIMA COMINADA AO CRIME DE ESTUPRO

Sensíveis a tais considerações, doutrina e jurisprudência divergem acerca das soluções a serem dadas à hipótese, alguns aplicando a força da Lei dos Crimes Hediondos, com todas as suas conseqüências, outros, sustentando a desclassificação das formas mais brandas do ato libidinoso diverso da conjunção carnal para espécies de Contravenções Penais como a perturbação da tranqüilidade (artigo 65 da Lei das Contravenções Penais) e importunação ofensiva ao pudor (artigo 61 da mesma lei).

Com a previsão da pena mínima para seis anos, o juiz no momento da aplicação da sanção penal fica diante de uma situação difícil, uma vez que não é qualquer ato libidinoso que pode ser enquadrado como crime hediondo, mas, sim, aqueles que despertem a libido de alguém e sejam obtidos mediante violência ou grave ameaça. Sendo assim, caberá ao magistrado aplicar 6 (seis) anos para o agente que deu um beijo no seio ou um beijo lascivo em alguém, e assim tratar como  crime hediondo ou, desclassificar para a contravenção do artigo 61 ou 65 da Lei das Contravenções Penais, mesmo sabendo não ser uma contravenção, para evitar uma pena cruel e desproporcional.

O Superior Tribunal de Justiça, por diversas vezes, já vinha enfrentando a questão - antes da unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor – sempre entendendo que o antigo atentado violento ao pudor se caracterizava a partir de qualquer ato libidinoso, incluindo desde o beijo lascivo à conjunção carnal. Nesse mesmo sentido, vale destacar os seguintes julgados:

PENAL. HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR (ANTIGA REDAÇÃO, ANTERIOR À LEI 12.015/09). PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO OU,

ALTERNATIVAMENTE, DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INADMISSIBILIDADE. EXAME MINUCIOSO DE PROVA. IMPROPRIEDADE DO WRIT.

I - Em nosso sistema, o atentado violento ao pudor engloba atos libidinosos de diferentes níveis, inclusive os toques, os contatos voluptuosos e os beijos lascivos.

II - Se, tanto em primeiro como em segundo grau, restou entendido que o ora paciente praticou atos próprios do ilícito imputado, não cabe a absolvição ou a desclassificação fulcrada no princípio da razoabilidade (Precedentes).

III - De outro lado, não é admissível que o Julgador, de forma manifestamente contrária à lei e se utilizando de argumentos de eqüidade, tais como justiça e proporcionalidade ao caso concreto, desclassifique o delito de atentado violento ao pudor para constrangimento ilegal, em razão da alegada menor gravidade da conduta.

 IV – Ademais, o pleito de absolvição ou o reconhecimento de uma nova classificação da conduta do réu implicaria, in casu, o amplo revolvimento de matéria fático-probatória, o que se mostra inviável na estreita via do habeas corpus (Precedentes).

Ordem denegada (STJ- HC 154433/ MG Habeas Corpus 2009/0228174-9. Org. Jul: Quinta Turma. Min Rel: Félix Fischer. Julgamento: 19/08/2010. Dje: 20/09/2010).

PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA.

1. O recurso especial, ancorado apenas na alínea "c" do permissivo constitucional, não comprova a divergência nos moldes exigidos nos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

[...]

5. Vale ressaltar que "é pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que ato libidinoso não é só o coito anal ou sexo oral; os toques, o beijo lascivo e os contatos voluptuosos também o são." (REsp 1.053.083/SP. Min. Rel: Arnaldo Esteves Lima, Dje: 6/4/2009)

6. Recurso especial não conhecido (STJ- REsp 968111 Recurso Especial 2007/0158830-1. Org. Julgador: Sexta Turma. Min. Rel: Og Fernandes. Julgamento: 22/06/2010. Dje: 02/08/2010).

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. DESCLASSIFICAÇÃO PARA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DO VERBETE SUMULAR N.º 83 DESTA CORTE.

1. Este Tribunal já se manifestou no sentido de que os atos libidinosos comportam diferentes níveis de configuração, que podem englobar toques, contatos íntimos ou mesmo beijos lascivos. 

2. A pretensão recursal de desclassificação não pode ser acolhida, uma vez que esta Corte tem entendimento consolidado sobre a tese em análise, atraindo a incidência do verbete sumular n.º 83 desta Corte.

3. Agravo regimental desprovido

(STJ- Ag Rg no Ag 1176949/ SC Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2009/01333208-2. Min Rel: Laurita Vaz. Org. Julgador: Quinta Turma. Julgamento: 11/05/2010. Dje: 07/06/2010).

Partindo do conceito de ato libidinoso explanado acima, o Superior Tribunal de Justiça não admite que o magistrado se valha de argumentos de equidade, razoabilidade e proporcionalidade a fim de desclassificar o delito de atentado violento ao pudor propriamente dito, observa-se a seguir: 

PENAL. HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. BEIJO LASCIVO. FATO INCONTROVERSO. PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA CONTRAVENÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. CRIME HEDIONDO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE TODO O § 1º DO ART. 2º DA LEI Nº 8.072/90 PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. ART. 33, § 2º, ALÍNEA C, DO CÓDIGO PENAL. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

1. Sendo incontroversa a ocorrência de beijo lascivo, não há falar, diante da configuração dos elementos do tipo previsto no art. 214 c/c 224, "a", do CP, na desclassificação do delito ao argumento exclusivo de que a imposição da pena prevista para o crime de atentado violento ao pudor viola, no caso, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Precedentes.

2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 23/2/2006 (HC 82.959/SP), ao declarar a inconstitucionalidade incidental do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, remeteu para o art. 33 do Código Penal as balizas para a fixação do regime prisional também nos casos de crimes hediondos.

3. Na hipótese em exame, não havendo notícia de reincidência e tendo a pena-base sido fixada pelo Tribunal a quo no mínimo legal, ou seja, em 6 (seis) anos de reclusão, justamente por força do reconhecimento das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal como totalmente favoráveis ao paciente, impõe-se a fixação do regime semi-aberto para o início do cumprimento da reprimenda, em observância ao disposto no art. 33, § 2º, letra c, do referido diploma legal.

4. Ordem parcialmente concedida para fixar o regime semi-aberto para o início do cumprimento da condenação (STJ- HC 72425/ SP Habeas Corpus 2006/0274784-0 Org. Julgador: Quinta Turma. Min Rel: Arnaldo Esteves Lima. Julgamento: 03/04/2007. Dje:07/05/2007). 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 214 DO CP. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 619 DO CPP. INOCORRÊNCIA. PENA AQUÉM DO MÍNIMO, EM RAZÃO DA APLICAÇÃO DE ATENUANTES. IMPOSSIBILIDADE. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. DESCLASSIFICAÇÃO. CONTRAVENÇÃO PENAL. ARGUMENTOS DE EQÜIDADE CONTRA LEGEM. INADMISSIBILIDADE.

I - Restando devidamente prequestionada a matéria, não se fala em violação ao art. 619 do CPP, vez que não se observa omissão a ser sanada (Precedentes).

II - A pena privativa de liberdade não pode ser fixada abaixo do mínimo legal com supedâneo em meras atenuantes (Precedentes e Súmula n.º 231 - STJ).

III - Em nosso sistema, o delito de atentado violento ao pudor engloba atos libidinosos de diferentes níveis, inclusive, os toques, os contatos voluptuosos e os beijos lascivos.

IV - De outro lado, não é admissível que o Julgador, de forma manifestamente contrária à lei e se utilizando de argumentos de eqüidade, tais como ser mais justo e proporcional ao caso concreto, em razão da alegada menor gravidade da conduta, desclassifique o delito de atentado violento ao pudor para contravenção penal.

Recurso desprovido (STJ- REsp 1105360/SC Recurso Especial 2008/0271580-2. Org Julgador: Quinta Turma. Min Rel: Felix Fischer. Julgamento:23/06/2009. Dje: 17/08/2009).

Dessarte, já é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em considerar que uma vez praticado o ato libidinoso, não poderia o juiz desclassificar o crime com base nos princípios da desproporcionalidade e equidade, devendo ater-se a letra da lei.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término do presente estudo, concluiu-se que quando a Lei dos Crimes Hediondos (8072/90) triplicou a pena mínima do antigo crime de atentado violento ao pudor para seis anos, houve um agravamento exacerbado, tendo em vista a variedade inominada de condutas que caracteriza tal crime, indo segundo entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, desde o beijo lascivo à relação carnal.

 Como não bastasse a noviça Lei 12015/09, ao invés de resolver a problemática, achou por bem reunir os crimes de atentado violento ao pudor (antes previsto no artigo 214 do Código Penal) e estupro (antes previsto no artigo 213 do Código Penal) em um só dispositivo, de forma que o agente que comete um beijo lascivo ou um ato libidinoso diverso da conjunção carnal (toques nas regiões pudendas, apalpadelas) receberá a mesma pena, bem como a mesma denominação (estuprador) daquele que comete uma conjunção carnal, felação, coito anal.

No mesmo sentido, não se pode negar que um beijo lascivo ou um simples toque forçado nas partes íntimas de alguém, seja um ato libidinoso passível de punição, porém, é desarrazoada a ideia de igualar esta conduta à de um indivíduo que força outrem a com ele praticar conjunção carnal, felação, coito anal etc.

 Ao se igualar as penas dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor feriu-se o princípio da proporcionalidade, isonomia, individualização da pena, lesividade e até mesmo o da dignidade da pessoa humana, este elencado como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, o que, por certo, requer um aprofundamento do estudo na busca de soluções jurídicas e legais, para se superar tamanha inconstitucionalidade.

O fundamental é que o aprofundamento do presente estudo deve desaguar numa solução definitiva, mormente porque a divergência doutrinária e jurisprudencial antes retratada, embora carregada de boas intenções, mais atrapalha do que ajuda, na medida em que proporciona decisões judiciais totalmente antagônicas para casos similares, culminando, agora também, na violação a outro princípio constitucional, que é o da proporcionalidade.

A par de tais considerações, resta necessário o apontamento de soluções viáveis para resolver as desproporções acima apontadas, principalmente, quando a conduta delituosa não se equipara em grau de lesividade àquela mais grave abarcada pelo mesmo tipo penal.

Sem dúvidas, como o Direito Penal deve ser interpretado de forma literal e restritiva, faz-se necessária uma reforma legislativa da pena mínima cominada para aquele delito que se configura com a prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Com isso, o magistrado poderá dentro dos limites legais aplicar uma pena justa e proporcional ao delito cometido, tendo uma maior liberdade para fixar o quantum da pena, diminuindo a mínima e aumentando a máxima diante do caso concreto e da gravidade da conduta.

Derradeiramente é oportuno reforçar, ainda nas palavras de Cesare Beccaria (1999), que a pena que ultrapasse os limites da real necessidade se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica. E ainda, faz-se oportuno citar mais uma vez: “Se pena igual for cominada a dois delitos a que desigualmente ofendem a sociedade, os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior, se disso resultar maior vantagem” (BECCARIA, p. 39).


REFERÊNCIAS

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BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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______. Constituição federal, 1988.

______. Lei das contravenções penais, 1941.

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SOUZA, Hyanara Torres Tavares de. Da (in)constitucionalidade da pena mínima cominada ao crime de estupro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3426, 17 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23038. Acesso em: 26 abr. 2024.