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O positivismo e a interpretação do Direito Privado no Brasil

O positivismo e a interpretação do Direito Privado no Brasil

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A análise do direito privado passa por momento evolutivo de significativa importância, através do qual há a relativização em vários casos, de conceitos e posicionamentos até então tidos como dogmáticos, imutáveis, como o próprio texto positivado da lei.

I - INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é realizar uma análise do momento de evolução pelo qual passa o direito privado no Brasil, buscando trazer reflexões a respeito da influência dos fenômenos sociais não somente na elaboração das normas, mas também quando de sua interpretação, para demonstrar, ou pelo menos trazer a reflexão, como dito, de que os eventos e fatos sociais verificados com as importantes modificações encontradas nas relações sociais têm sido determinantes para um novo cenário no direito privado.

O Brasil é um país que tem forte tradição no direito romano-germânico, portanto, civil law, o que implica na conclusão de que o positivismo sempre exerceu importante influência na criação de normas e mesmo em sua interpretação.

Sempre foi voz corrente no Brasil, e pensa-se que isso também ocorre em todos, ou pelo menos na maioria dos países afetos aos sistemas que têm na lei positivada sua fonte mais importante para a solução dos conflitos, que os manuais, códigos, legislações, sempre trazem a forma de proceder, a autorização ou a proibição para determinadas condutas, bem como as sanções daí decorrentes. Vale dizer, é nas leis que os cidadãos, que a sociedade, encontra autorização ou proibição para determinadas condutas, bem como as consequências daí decorrentes. É a necessidade de se buscar, na letra da lei (positivada, portanto), a solução para os conflitos de interesse que necessariamente ocorrem nas relações sociais.

Nessa linha de pensamento a utilização e aplicação de princípios acaba sendo relegada para segundo plano. Busca, sobretudo, segurança jurídica com a aplicação fria da lei, o que não se coaduna com a conduta dotada de grande grau de abstração que pode decorrer da aplicação de princípios à solução de casos concretos.

Ocorre que não é de hoje a dificuldade de se conseguir, através do texto legislado, escrito, encontrar fórmulas e soluções para todos os problemas decorrentes do convívio social, notadamente nos tempos atuais, em que as inovações tecnológicas mudaram completamente as relações entre os seres humanos, sejam pessoais, sejam negociais. A complexidade dos negócios, a velocidade com que podem e devem ser realizados, e ainda, a rapidez inimaginável da comunicação, fizeram com que conceitos antes tidos como aceitos pela sociedade não mais possam ser considerados como absolutos nas soluções de litígios. Essa afirmativa se mostra ainda mais verdadeira quando se analisa a lei posta, cujo processo de elaboração geralmente leva vários anos e, quando vem à lume, já não traduz, muitas das vezes, os anseios sociais do momento.

Em tempos anteriores, devido à simplicidade das relações jurídicas e pessoais, de um modo geral, era possível que a legislação conseguisse, sem muito esforço dos representantes do povo, prever todas as relações jurídicas e soluções daí decorrentes, pelo que o direito positivado, para esses fins, se bastava.

A verdade é que o cenário de vida social e econômica da época da promulgação do Código Napoleônico não mais existe. Naquele tempo, dada a simplicidade das relações sociais foi possível que não se interpretassem as normas jurídicas nele insertas[1], vindo posteriormente surgir a Escola da Exegese, quase 80 anos após sua promulgação, propugnando ainda pela interpretação literal do texto de lei.

Esse cenário não mais é possível de se verificar no atual estágio de evolução das sociedades. Como mencionado algures, a velocidade da informação e, por conseguinte, a rapidez com que os negócios são realizados, fez com que as normas postas, cujo processo de elaboração, na melhor das perspectivas, pode ser considerado lento, dada sua própria natureza, não mais podem ou conseguem abranger todas as espécies de conflitos surgidos das relações entre os indivíduos. Em outras palavras, devido à mudança verificada no cenário social e econômico mundial, não é raro encontrar situações em que as leis positivadas não mais conseguem fornecer soluções adequadas aos conflitos interindividuais.

Como não se pode conceber uma sociedade em que não haja conflitos solucionados pelo Estado, é necessário recorrer, cada vez mais a princípios, muitos deles não positivados, para que os conflitos possam ser solucionados conforme o entendimento e pensamento de cada momento social, conforme a tábua axiológica vigente.

É uma forma de relativização do positivismo, portanto, que se denota no direito brasileiro com o passar o tempo. É a perda do medo de que a não aplicação da lei posta trará insegurança jurídica e posteriormente o caos. É o reconhecimento de que, acima das leis, há uma gama de princípios que gravitam sobre o ordenamento jurídico, de maior importância, porque inspiradores das próprias leis, e que podem ser aplicados em detrimento delas, desde que seja a solução mais adequada para o momento.

Considerando-se a tradição do direito brasileiro, de forte apego ao positivismo, decorrente da indelével influência do Código Napoleônico, entendemos que se passa por um momento de grande importância do direito privado, de confiança depositada nos operadores do direito, que têm variadas ferramentas para a solução dos conflitos, a maioria delas absolutamente flexível[2]. Mas ao mesmo tempo que se constata essa evolução, com a flexibilização da rigidez decorrente do positivismo, há também uma grande responsabilidade para os operadores do direito em aplicá-lo de forma responsável, com vistas a realizar a justiça distributiva e atender aos valores e anseios sociais do momento, pena de retrocesso.

Apenas a título de exemplo para demonstrar porque motivo o processo de elaboração de leis pode contribuir para sua inadequação quando do início de sua vigência, o Código Civil de 2002 no Brasil, que tinha como objetivo readequar uma série de situações jurídicas que desde o Código de 1916 já eram consideradas prementes, teve seu início de processo de elaboração no ano de 1975, vindo a ser promulgado, portanto, 27 anos depois.

Basta verificar a modificação de cenário no Brasil de 1975 para o Brasil de 2002, notadamente após o disseminado uso da internet nas relações jurídicas e negociais, para crer que mesmo o Código de 2002 traz previsões já ociosas e incompatíveis com o atual estágio de evolução dos negócios atualmente.

Daí a perplexidade que tem provocado reflexões e que motivou este trabalho. Em países, como o Brasil, em que o positivismo sempre deitou as mais profundas raízes, como se colocar diante do cenário de modificação das relações sociais e a constatação de que, não raras vezes, a legislação posta, escrita, não é mais elemento suficiente para solucionar todos os problemas colocados diante do Estado...

O Código Civil brasileiro está prestes a completar 10 anos de vigência e nesse primeiro decênio é possível verificar esse fenômeno de forma bastante objetiva: a legislação posta passa ao largo, na maioria das vezes, da solução mais adequada para os conflitos interindividuais, e ainda, conforme os anseios da sociedade.

Uma importante constatação que se pode fazer é que vários dispositivos do Código Civil de 2002 tem recebido, pela doutrina e jurisprudência, interpretação diversa do que a literalidade do texto da lei indica, justamente porque essa aplicação literal do comando legal não reflete os anseios sociais.

E nesse ponto ganha espaço o questionamento, a discussão sobre quais os elementos mais importantes a serem considerados em situações como essas. Para os positivistas, como Kelsen[3], a lei é o elemento mais importante na formação da sociedade, pois ela moldaria os comportamentos sociais, através do receio e da aplicação das sanções correspondentes à violação da norma. De outro lado, aqueles que, como Durkheim, entendem que os fenômenos sociais devem sempre inspirar e justificar a aplicação das normas, entendem que a interpretação e aplicação do Direito deve sempre se dar conforme os anseios da sociedade em determinado momento.

Os argumentos dos positivistas, de que esse sistema fornece previsibilidade à aplicação do Direito e, por corolário, para a sociedade como um todo, cede espaço, em nosso entendimento, para a busca da justiça distributiva, para a preocupação com o coletivo e o social, cada vez mais abrangente nas sociedades contemporâneas, o que certamente influi para a aplicação do Direito.

Somos forçados a crer, pela experiência brasileira, que se caminha, paulatinamente, para um sistema híbrido, quiçá mais voltado para a aplicação flexível da lei, com o intento de se contextualizar e adequar, portanto, aos anseios sociais. Vale dizer, caminha-se para a preponderância dos interesses sociais em detrimento do direito legislado quando colocados em situações opostas, pelo consenso de que essa é a forma pela qual pode se aplicar de forma mais eficaz o Direito e se aproximar, na maior medida possível, da justiça.

Não se questiona a importância do positivismo, contudo. Foi importante, em vários momentos da criação e solidificação de sistemas jurídicos, para fornecer segurança jurídica às sociedades[4].

Ao longo desse trabalho serão demonstradas situações no sistema brasileiro nos quais a aplicação da letra fria da lei não mais encontra lugar, cedendo espaço para a necessidade de se buscar uma aplicação mais justa do Direito, o que tem sido feito pela doutrina e pela jurisprudência.

Por conseguinte, pretende-se demonstrar que o positivismo, antes a maior força influente sobre o direito privado no Brasil, não mais ocupa sozinho esse lugar, dividindo espaço com a aplicação mais flexível da legislação, com vistas à realização da justiça distributiva, da realização dos anseios sociais.


II - O POSITIVISMO E A PREVISIBILIDADE

Como se pretende defender nesse trabalho a influência dos fenômenos e fatos sociais na aplicação do Direito, ainda que em contraposição do direito posto, pensamos necessário antes tecer algumas considerações a respeito do positivismo.

A influência do positivismo é marcada por autores que da mesma forma influenciaram a formação de vários sistemas e ordenamentos jurídicos, como Hans Kelsen, por exemplo.

Indeléveis os traços do positivismo de Kelsen no direito brasileiro ao longo de sua evolução, sendo que o apego à letra fria da lei trouxe, não raras vezes, a situações de perplexidades, como é o caso da modificação dos contratos no direito brasileiro que, por ausência de previsão legal (direito positivado), não foi aceita pelos doutrinadores e tribunais pátrios, sendo palco das mais variadas injustiças, ao argumento, simples, de que não havia norma na lei prevendo a sua aplicação.

Em que pese o reconhecimento de que a aplicação da letra fria da lei trazia, em muitos casos, situações de injustiça, ainda assim não se concebia solução diversa daquela contida no texto legal, porquanto ausente a autorização.

Todavia, a despeito das críticas que possam ser feitas ao positivismo nos tempos atuais, notadamente as justificadas, no sentido de que esse sistema não mais seria suficiente para trazer soluções justas aos conflitos existentes entre os indivíduos em suas multifacetárias formas de se relacionarem, é importante analisar um traço que sobreleva em importância e deve ser considerado quando se defende a preponderância dos fenômenos sociais à aplicação da lei.

É certo atualmente que o Direito não mais pode ser visto, interpretado e, por conseguinte, aplicado, de forma isolada de demais segmentos ou elementos sociais, também de considerável importância, como a Economia, por exemplo. Conforme Luhmann, são os diferentes espectros ou segmentos da vida em sociedade (como a economia, o direito, os aspectos sociais) que, não raras vezes, se chocam quando colocados em conflitos, sendo necessário averiguar qual, em cada caso concreto, a solução mais adequada.

Há uma tendência crescente, em que pese a importância do positivismo, de se aplicar Direito não mais isoladamente, como se compartimento estanque dos demais segmentos da sociedade fosse, autônomo, impenetrável e com peculiaridades que o tornassem incompatível de ser analisado com os demais.

Passa-se a se preocupar cada vez mais com os efeitos sociais e econômicos, positivos ou negativos, das decisões judiciais, notadamente quando decorrem decisões que afetem a ordem social e econômica, pela simples aplicação da letra fria da lei. A morosidade do Poder Judiciário na entrega da tutela jurisdicional é tema sempre corrente, porquanto o apego aos formalismos processuais leva, por certo, a decisões escorreitas na maioria das vezes do ponto de vista formal, mas muitas das vezes injustas do ponto de vista social ou econômico.

Há uma preocupação crescente de que a atuação do Poder Judiciário proporcione resultados efetivos e práticos para o jurisdicionado, não somente no sentido de fornecer normas que resguardem seus direitos subjetivos, mas sobretudo que essas decisões se revistam do máximo de eficácia possível quanto aos resultados práticos.

Não é por outro motivo que o direito processual civil brasileiro, desde 1994, vem enfrentando uma série de modificações legislativas, todas com o inequívoco, inescondível e inafastável objetivo de fornecer maior agilidade e eficácia aos provimentos jurisdicionais[5].

E, nessa medida, não se pode negar, o direito positivado, com a aplicação rígida de normas legais, sem muita margem para digressões ou interpretações, proporciona mais previsibilidade para todos os que podem ser afetados pelos conflitos surgidos das relações negociais e pessoais.

Em tendo a sociedade um sistema jurídico no qual seja possível verificar as soluções para os conflitos surgidos entre os indivíduos desde o início, como se um manual fornecesse todas as resoluções para os problemas apresentados para determinado aparelho, é certo que haverá inequívoca previsibilidade para todos. Os economistas, notadamente, defendem que a aplicação do Direito deve se dar, na maior forma possível, com previsibilidade.

A justificativa (dos economistas) se baseia no argumento de que a segurança com relação às decisões judiciais faz com que os investimentos, possam ser realizados de forma mais segura, pois o imponderável passa a não fazer parte das situações que podem ser previstas na elaboração dos planos de negócio. Nesse cenário será possível saber, de antemão, que os conflitos surgidos na implantação dos empreendimentos e negócios conduzirão a situações já previstas no ordenamento jurídico, conhecidas de todos, portanto, diminuindo-se o risco de insucesso dos empreendimentos.

Importante ainda considerar que o respeito aos contratos e ao direito de propriedade sempre foi a força motriz para o desenvolvimento e a consolidação das sociedades capitalistas[6], sendo que quanto maior a previsibilidade das decisões judiciais, em maior medida se estaria proporcionado o cenário positivo para o desenvolvimento social, através da realização do maior número de empreendimentos possíveis.

Não se pode negar, com efeito, que a certeza, ou ao menos o máximo grau de certeza possível, com relação ao desfecho para problemas surgidos nas relações negociais, torna as partes mais tranquilas e seguras para realizar investimentos, empreender novos negócios, enfim, arriscar-se em prol do desenvolvimento próprio e, ultima ratio, de toda a sociedade.

Ocorre que a despeito da importância dessa análise do ponto de vista econômico do Direito, contrasta com a realidade vivida atualmente.

Como dito, a modificação do cenário mundial após a globalização, ocorrida oficialmente com a queda do Muro de Berlim (1989)[7], trouxe profundas modificações no cenário jurídico, notadamente porque as soluções para os conflitos surgidos, a previsão dos sistemas jurídicos, mostrou-se insuficiente para equacionar todos os problemas daí decorrentes.

A modificação do cenário que então se verificou foi notável, imprevisível e com efeitos ainda desconhecidos, mesmo por aqueles que têm, ou tentam, encontrar elementos para qualquer tipo de análise sobre o rumo ao qual o atual cenário pode nos conduzir.

As transformações por que passaram a comunicação, a forma de se realizar negócios, a supressão de fronteiras físicas entre os países, a interação entre os povos, notadamente para firmarem novos negócios e parcerias, alcançou níveis realmente inimagináveis[8].

Atualmente é comum empresas terem filiais em vários países, negócios em vários continentes, realizar reuniões simultâneas em diversos lugares, enfim, fazerem-se presentes em mais de um local com a mesma eficiência, o que em muito foi permitido pela transferência de dados e de comunicação em altíssima velocidade através da internet.

A informação também assume seu papel de destaque nesse novo cenário.

As profundas modificações por que passaram os meios de se comunicar após o advento da internet são notáveis e trazem um novo cenário, de rapidez, fidedignidade[9] nas informações e no relato de fatos, na maioria das vezes simultaneamente.

Toda essa transformação, social e econômica, dos modos e meios de se relacionarem os indivíduos, inclusive e sobretudo no que diz respeito aos negócios, faz concluir que em que pese o anseio de previsibilidade das decisões judiciais, como cenário para um desenvolvimento econômico mais seguro (sob a ótica dos economistas), não necessariamente conduz às soluções mais justas ou adequadas aos anseios sociais de determinado momento.

E nesse contraponto o positivismo parece estar perdendo força nesse embate com os aspectos sociológicos do Direito.

Isso porque com a evolução e modificação das relações jurídicas é fato que os sistemas jurídicos positivados, dada a dificuldade inerente ao seu processo de elaboração, muitas das vezes vêm ao mundo jurídico já ociosos ou obsoletos, com normas e regras insuficientes para solucionar os diversos conflitos que podem surgir dos complexos e modernos negócios realizados atualmente.

A busca por uma sociedade mais igualitária, justa e com vistas aos aspectos sociais, à justiça distributiva, bem ainda o respeito à dignidade humana, tornam necessária uma nova abordagem sobre os problemas e conflitos intersubjetivos, no sentido de propiciar soluções que atendam na maior medida possível esses anseios sociais.

A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe em seus dispositivos várias situações em que é indelével a preocupação com os aspectos sociais, com o coletivo, em contrapontoao individualismo que dantes imperava como característica marcante dos antigos diplomas, inclusive e principalmente infraconstitucionais.

O art. 1º, III, da Constituição Federal elege a dignidade humana como um dos objetivos mais altos e importantes da sociedade brasileira, demonstrando a preocupação com o indivíduo, não mais do aspecto isolado de seu desenvolvimento, mas coletivo, social. O mesmo se pode dizer a respeito do art. 3º da Carta Magna, que prevê o dever da sociedade de buscar a redução das desigualdades sociais.

Há ainda a preocupação com a função social da propriedade, no art. 184 da Constituição Federal, no sentido de não mais permitir ao proprietário de terras que lhe dê o destino que melhor lhe aprouver, senão respeitando direitos coletivos, como os relativos ao meio ambiente e à produtividade do local. Com relação aos trabalhadores a mesma situação, no sentido de que tem o proprietário de realizar o pagamento das verbas trabalhistas, remunerar seus funcionários com salários dignos, enfim, a inequívoca preocupação não mais do ponto de vista exclusivamente do proprietário, mas sim de terceiros que possam, direta ou indiretamente, sofrer os efeitos da má utilização dessa propriedade.

Essa modificação de cenário no direito constitucional trouxe profundas modificações no direito privado que, conforme se pretende sustentar neste trabalho, caminha no sentido de permitir uma intepretação mais flexível das regras de direito privado, com vistas a se buscar o resultado mais justo possível, entendido esse resultado justo como aquele que atende aos anseios da sociedade em determinado momento.

A aplicação de princípios na solução de conflitos, ainda que em contraposição ao texto frio da lei, passa a ganhar espaço e ser cada vez mais prestigiada. Até aí nada de novo, pois desde ensinamentos muito antigos já era possível afirmar que na linha hierárquica, os princípios gozam de mais prestígio do que a regra. A novidade está em aplicar esses princípios, muitas das vezes contra a norma positivada, em um país com essa tradição.

Justamente por isso concluímos que a visão dogmático-normativa do direito cede espaço para uma visão sociológica, preocupada com os valores que inspiram a sociedade em determinado momento, como o vetor, a orientação para a solução dos conflitos interindividuais.


III - ALGUMAS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NO CAMPO DO DIREITO CONTRATUAL E NA RESPONSABILIDADE CIVIL

Como mencionado, o objetivo do trabalho é analisar algumas modificações realizadas no Código Civil de 2002 no campo da responsabilidade civil e no direito contratual, no sentido de poder concluir que a visão dogmático-normativa do direito cede espaço para a visão sociológica.

Para tanto, necessário, ainda que num passar d´olhos, tratar dessas modificações trazidas não necessariamente com a promulgação do Código Civil de 2002, mas com a sua aplicação e interpretação, pela doutrina e jurisprudência, nesses quase 10 anos de vigor.

No campo da responsabilidade civil o direito brasileiro se ressentia, há muito tempo, de previsões de responsabilidade objetiva, justamente por se entender que as hipóteses de responsabilização com base na culpa eram insuficientes para todas as situações de danos verificadas, notadamente após a Revolução Industrial, momento pelo qual houve transformação significativa nas relações negociais.

Não se pode esquecer que a responsabilidade civil, em especial, é baseada em dois princípios que traduzem sem sombra de dúvida os anseios sociais: da justiça e da reparabilidade plena. Isso permite concluir que a realização dos objetivos da responsabilidade civil somente ocorre quando for proporcionado à vítima, e à sociedade, ultima ratio, a possibilidade de alcançar o maior número possível a reparação (integral) dos prejuízos experimentados.

O Código Civil de 1916 não trouxe hipóteses de responsabilização objetiva, o que fez com que vários autores brasileiros, dentre os quais se destacam Alvino Lima e José de Aguiar Dias, fizessem críticas, justificadíssimas, de um sistema mais efetivo de responsabilidade.

A observação é pertinente porquanto desde a Revolução Industrial verificou-se que a responsabilidade civil com base na culpa se mostrou como ferramenta insatisfatória para a tutela dos interesses individuais das vítimas, em muito por causa das modificações verificadas nas relações jurídicas, que paulatinamente foram se tornando cada vez mais complexas.

Ressentia-se o direito brasileiro, portanto, de hipóteses de responsabilidade objetiva. Um exemplo importante a respeito da necessidade de se buscar hipóteses de responsabilidade objetiva encontra-se no Decreto n. 2618-12, denominado Código de Estradas de Ferro, que previa, em seu art. 17, uma responsabilidade sem culpa para os casos de acidentes em vias férreas.

Como não havia outro diploma a tratar do assunto no direito brasileiro, notou-se sua aplicação em larga escala, iniciando-se posteriormente nos casos de acidentes em bondes, ocorridos nos centros urbanos, ampliando-se a acidentes rodoviários, que, do ponto de vista exclusivamente dogmático, não guardavam qualquer relação com o evento, mas que, por força dos anseios sociais, da necessidade do momento, acabaram sendo aplicados pelos operadores do direito.

Outra situação que causou perplexidade no Código Civil de 1916 foi a responsabilidade pelo fato de terceiro, que vinha tratada nos arts. 1521 a 1523.

Previa-se, naquele diploma, a responsabilidade subjetiva por fato de terceiro. Assim, os pais, por exemplo, responderiam somente se restasse comprovada sua culpa (art. 1523) pelos atos praticados pelos filhos. Como a regra no direito brasileiro no que diz respeito à prova, é de que compete ao autor a demonstração dos fatos constitutivos de seu direito (art. 333, I, CPC), e nesse caso a prova da culpa tinha sido elegida como fato constitutivo de seu direito, isso implicava, não raras vezes, em negar à vítima o direito de receber a indenização.

A mesma situação se verificava para o caso dos empregadores, que somente respondiam pelos atos de seus empregados caso tivesse sido demonstrada sua culpa, tudo ainda conforme previsto nos arts. 1521, III e 1523, do Código de 1916. A insatisfação com as hipóteses previstas nesse dispositivo era tamanha que autores do mais elevado escol, como Washington de Barros Monteiro considerava o art. 1523 do Código Civil como não escrito, pois não aceitava a responsabilidade subjetiva ali empregada, tendo em vista que obstava em muitos dos casos a concessão de reparação às vítimas, pela inerente dificuldade em demonstrar a culpa do agente ofensor.

Exemplo interessante de como os fenômenos sociais, nesse caso, influenciaram na aplicação do direito, que no caso em análise implicou na desconsideração do texto frio da lei, foi a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal, que previa a culpa presumida do empregador pelos atos praticados pelos seus empregados.

Note-se que pela redação do art. 1523 do Código de 1916[10] não seria possível responsabilizar o empregador pelos atos de seu empregado se não restasse demonstrado (pela vítima) sua culpa (do empregador), pois esse era o texto legal, frio e inequívoco, a não permitir margens para interpretação. Diz-se isso porque em princípio somente há que se falar em interpretação quando há dúvida com relação a determinado texto, de lei ou de contrato. Quando a linguagem utilizada pelas partes, no caso o legislador, foi clara o suficiente para não permitir dúvidas de interpretação, não há que se falar em necessidade de se interpretar determinada regra, basta aplicá-la.

Essa era a situação do art. 1523 do Código Civil de 1916, que não permitia margens para interpretação, tendo em vista que sua redação era inequívoca no sentido de somente permitir a responsabilidade do empregador caso houvesse sido comprovada sua culpa.

Ocorre que essa situação prejudicava a aplicação de dois princípios fundamentais da responsabilidade civil, quais sejam o da reparabilidade plena e da justiça, molas propulsoras da reparação civil. O reclamo social era, portanto, de se criar ou aceitar uma maneira de facilitar a posição da vítima na ação indenizatória, para que conseguisse alcançar de forma mais efetiva a reparação, o que só poderia ser alcançado pela modificação do status trazido pela lei.

Isso se dá com a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal, que permite a culpa presumida – embora o texto legal não permitisse margem para esse posicionamento, se aplicado literalmente – do empregador pelos atos de seus empregados. Modifica-se, portanto, a intepretação do texto legal para que se possa atender ao anseio social de uma forma mais efetiva de responsabilidade civil.

Verifica-se, portanto, pelos dois exemplos acima mencionados, que no campo da responsabilidade civil havia uma crescente preocupação em se criar hipóteses de responsabilidade mais efetiva, mais concretas, que permitissem ao instituto – responsabilidade civil - alcançar seu desiderato de reparar integralmente as vítimas pelos danos injustamente sofridos. Como não havia na legislação espaço para interpretações diferenciadas, dado o apego no Brasil com relação ao positivismo, coube à doutrina e jurisprudência[11] ampliar as hipóteses nesse sentido.

As coisas não se deram de maneira diferente no direito contratual. O apego a postulados e preceitos extraídos do Código Napoleônico, como o pacta sunt servanda, totalmente justificável considerando-se o contexto histórico e social da época de sua promulgação, fez com que no Código Civil brasileiro de 1916 não houvesse previsão para a modificação de contratos em casos de comprovada onerosidade excessiva[12].

A impossibilidade de modificação dos contratos em casos de onerosidade excessiva não se dava, no Brasil, por outro motivo que não a ausência de previsão legal, ou seja, de direito positivado, embora a cláusula rebus sic stantibus fosse aceita como integrante implicitamente de todos os contratos. O apego ao formalismo, à necessidade de que o manual fornecesse a solução para o caso concreto impedia às partes o acesso ao Judiciário para restabelecer o equilíbrio da relação jurídica, ainda que restasse comprovado cabalmente que o desequilíbrio então encontrado na relação jurídica se devesse a fatos estranhos à conduta das partes, a situações imprevisíveis e extraordinárias. Tanto que no Brasil o primeiro caso julgado favorável à modificação de contrato somente ocorreu em 1938, ou seja, 22 anos após o início de vigência do Código de 1916. Quantas e quantas injustiças não acabaram sendo praticadas pelo próprio Poder Judiciário, ao argumento de inexistir norma que permitisse a revisão de contratos em casos de onerosidade excessiva.

Esses exemplos, de responsabilidade objetiva e modificação de contratos, são emblemáticos na forma pela qual o Direito vem sendo visto e empregado no Brasil, para se permitir a conclusão de que, tal como afirma Durkheim, os anseios sociais que moldam a formação e aplicação do Direito e não o contrário, ou seja, o Direito (positivado) que molda a conduta social. Entende-se que o Direito deve, antes de tudo, expressar os anseios da sociedade de determinado momento, e que somente se legitima perante a sociedade quando sua aplicação se der conforme a tábua axiológica do tempo em que estiver sendo aplicado.

As modificações por que passou o sistema brasileiro após o Código de 1916, mas notadamente após a Constituição Federal de 1988 reforçam esse argumento da prevalência dos fenômenos sociais para a formação do Direito, dos diplomas legislativos.

Vem ao cenário jurídico brasileiro no ano de 1990 o Código de Defesa do Consumidor, diploma que quebra paradigmas tanto no campo da responsabilidade civil como no direito contratual.

O consumidor, visto como parte vulnerável[13] na relação jurídica demanda proteção específica para que seus direitos possam ser resguardados de forma efetiva. Nesse sentido e com esse objetivo, foram trazidas novas regras ao direito brasileiro, notadamente no campo da responsabilidade civil e dos contratos, que modificaram completamente a situação então existente.

O novo diploma consumerista trata, com relação à responsabilidade civil como sendo de regra a objetiva, isto é, independente de culpa e os contratos, de forma ampla o bastante para permitir sua modificação, abraçando a teoria da quebra da base objetiva do negócio. Mudanças profundas, portanto, no campo do direito privado e, em nosso entendimento, por causa dos anseios sociais que não mais permitiam as soluções então apresentadas pelos ordenamentos jurídicos pautados exclusivamente no positivismo.

As modificações trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor para o direito brasileiro são inequívocas, porque houve a transformação de um panorama até então existente com relação ao direito contratual e à responsabilidade civil, pautado no individualismo e sobretudo na força da lei posta, positivada, sem preocupação com seu atendimento aos anseios sociais do momento.

Esse mudança foi fruto do novo pensamento trazida pela Constituição Federal de 1988, que quebrou vários paradigmas existentes no direito brasileiro.

Mas, pensamos, não foi só essa a força propulsora da modificação da forma de aplicação de interpretação do direito privado que se verifica no atual estágio de desenvolvimento do direito brasileiro. Temos a convicção de que a sociedade tem feito prevalecer seus valores de determinado momento para que seja aplicado o direito conforme esse entendimento, conforme essa tábua axiológica que muda conforme os valores que inspiram cada sociedade.

Segundo pensamento de Weber, há um sentido social nessas mudanças, pois há a prevalência dos interesses sociais sempre que colocados em choque com normas postas que, justamente pelas constantes e significativas mudanças ocorridas em sociedade, podem não mais atender aos anseios da sociedade.

E a análise do Código Civil de 2002, que está prestes a completar 10 anos de vigência, notadamente no campo do direito contratual e da responsabilidade civil, dá conta de que os anseios sociais, os ideais de justiça, têm prevalecido quando a letra fria da lei não conduz a uma solução que se considera adequada.

Vários dispositivos do Código Civil de 2002 vêm sendo interpretados não conforme a letra da lei, o que implica dizer que no Brasil o positivismo vem perdendo força para que a interpretação da lei conforme os valores sociais ganhe cada vez mais força.

E essa desconsideração, por assim dizer, ao texto frio da lei, se faz justamente porque se reconhece que o trabalho legiferante, como humano que é, vem não raras vezes imperfeito, com problemas de intepretação, ou situações que não podem ser consideradas justas.

No caso dos vícios redibitórios há a questão do prazo para a reclamação desses defeitos ocultos. No art. 445, §1º do Código Civil há a previsão de que nos defeitos que por sua natureza somente possam ser conhecidos mais tarde, o prazo para a reclamação se iniciará quando a parte (adquirente) tomar conhecimento do problema. Ocorre que esse conhecimento por parte do adquirente pode ocorrer muito tempo depois da transferência do bem. E essa possibilidade de reclamação por tempo indefinido, quando a parte tomar conhecimento do problema, a despeito de fornecer maior segurança jurídica para o adquirente, que sempre terá maior prazo para a reclamação, poderá conduzir a situações absolutamente injustas, favorecer o demandismo e, ainda, trazer insegurança jurídica às relações contratuais, tendo em vista o indeterminado tempo a que ficariam vinculados os contratantes com relação às garantias do negócio.

Assim, a despeito do fato de que os vícios redibitórios sejam direcionados para proteger o adquirente de bens e serviços, e conduza a interpretação fria do texto da lei à conclusão de que a reclamação poderia se dar a qualquer tempo quando tomado conhecimento do defeito, propugnaram, doutrina e jurisprudência, para o entendimento de que deve-se contar o prazo do §1º do art. 445 da entrega do produto e, constatado o defeito do produto neste período, somar-se-ia o tempo previsto no caput deste artigo. Dessa forma atende-se ao intento do legislador, que pretende fornecer um prazo maior para a reclamação de determinados defeitos do produto, mas de outro, também das demais partes envolvidas, direta e indiretamente, na relação contratual, que também necessitam de segurança jurídica em suas transações. A interpretação dada, portanto, é contrária ao texto da lei, em mitigação da força do positivismo. Isso, pensamos, deve-se ao fato de ter-se reconhecido que a letra da lei, positivada, a despeito de, em tese, ser a expressão da vontade popular, notadamente nos países democráticos, não preenche, por si só, todos os anseios sociais de determinado momento. E essa sensação tende a aumentar quando se verifica com fenômenos como o da internet, que modificou radicalmente todas as relações jurídicas de maneira irreversível e inimaginável, notadamente quando muito dos diplomas legais atualmente vigentes estavam em fase de elaboração.

Vários são ainda os exemplos do Código Civil de 2002 em que tem-se defendido, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, interpretação e aplicação do direito de forma diversa da que ocorria caso fosse aplicado o texto frio da lei.

O mesmo se dá para o caso da possibilidade de se reclamar vícios redibitórios em hasta pública. Na legislação antiga (Código Civil de 1916), havia proibição expressa com relação a essa possibilidade. O argumento que se utilizava, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência era de que os bens adquiridos nessas condições já estavam expostos há mais tempo, à disposição dos interessados e, por isso, havia a prévia possibilidade de tomar conhecimento dos defeitos porventura existentes[14]. Outro argumento também utilizado era de que como na maioria das vezes o bem era alienado em segunda hasta, portanto, em valores menores[15] e que, por isso, estaria proibida a reclamação de vícios redibitórios[16].

Ocorre que o Código Civil de 2002 não repetiu a mesma restrição prevista no diploma anterior, situação que, por si só, já permitiria a discussão a respeito da possibilidade de reclamar vícios redibitórios de bens adquiridos em hasta pública. Mas não é só isso. Ao tratar da evicção, instituto jurídico que tem a mesma finalidade dos vícios redibitórios (resguardar a garantia necessárias para os negócios bilaterais), ocorre a inovação da previsão expressa da responsabilidade por evicção em casos de hasta pública[17].

Diante desse cenário passa-se a discutir se é possível a reclamação de vícios redibitórios em hasta pública, tendo em vista que a proibição existente no diploma anterior não foi repetida na novel legislação e no que toca à evicção, instituto afim, houve preocupação expressa por parte do legislador nesse sentido. O simples fato de se permitir a discussão nesse sentido já denuncia, em nosso entendimento, a perda de força do positivismo. Isso porque se se entendesse que somente o texto posto na lei poderia ser objeto de aplicação, não seria necessário perquirir pela viabilidade da reclamação de vícios redibitórios em hasta pública.

A conclusão a que chegam, doutrina e jurisprudência, vai de encontro aos anseios sociais que atualmente norteiam as relações jurídica de direito privado: busca pelo equilíbrio, tentativa de realização de justiça distributiva na maior medida possível.

Como tanto os vícios redibitórios quanto a evicção têm por objetivo fornecer segurança jurídica e, mais do que tudo, garantir o equilíbrio (equivalência de prestações ou sinalagma), tem-se defendido o entendimento de que também pode haver reclamação de vícios redibitórios ainda que os bens tenham sido adquiridos em hasta pública, como forma de se preservar o equilíbrio e a igualdade nas relações jurídicas.

Vale a pena destacar ainda algumas situações encontradas atualmente no direito brasileiro que não tem previsão legal, sendo criações de doutrina, posteriormente acatadas pela jurisprudência e que fazem o direito ser aplicado em desconformidade, em contrariedade expressa ao texto de lei.

É o caso do adimplemento substancial, teoria que não tem previsão legal, mas que influi significativamente na solução de problemas nas relações contratuais decorrentes do inadimplemento.

O art. 475 do Código Civil brasileiro em vigor autoriza que a parte lesada pelo inadimplemento possa pedir a resolução do contrato, cumulando ainda o pleito com indenização por perdas e danos.

Esse é considerado quase que como um direito potestativo, pois a partir do momento em que se considera o contrato como manifestação livre de vontade, que vincula as partes, é de se reconhecer, na mesma medida, que essa vinculação somente pode existir, e obrigar as partes, enquanto todas as demais obrigações do negócio estejam sendo atendidas conforme pactuado inicialmente.

O inadimplemento é elemento patológico do contrato e sua caracterização deve permitir a resolução do vínculo. Essa a redação expressa (positivada) do art. 475 do CC. Todavia, há casos em que o inadimplemento se dá quando uma das partes (inadimplente) já cumpriu grande parte da obrigação. Nesses casos permitir o desfazimento da relação jurídica, com o retorno das partes ao status quo ante pode conduzir a problemas incontornáveis e indesejáveis para as partes, bem ainda servir de ferramenta de pressão por parte do credor para cobrar valores indevidos, enfim, praticar arbitrariedades contra o devedor que depende, na maioria das vezes, do contrato.

Todavia, a despeito dessa conclusão, é fato que o art. 475 do CC (texto positivado, portanto) tem redação expressa no sentido de permitir à parte lesada pelo inadimplemento a resolução do contrato.

A teoria do adimplemento substancial se contrapõe a essa possibilidade, impedindo a resolução do contrato quando restar demonstrado pela parte que houve pagamento expressivo das obrigações assumidas pelo devedor, não mais permitindo a rescisão do contrato, mas sim a cobrança, por parte do credor, de eventuais valores, multas ou indenizações a que tenha direito pelo inadimplemento do contrato. É uma solução interessante porque é contrária ao texto da lei e, mais do que tudo, em um país com traços indeléveis de positivismo, sem que haja qualquer texto de lei autorizando essa solução.[18]

O mesmo se pode dizer para a supressioe para a surrectio. Ambos, no direito brasileiro, são institutos criados pela doutrina e jurisprudência, porquanto não possuem correspondência no direito legislado (positivado). Assim, somente se falar em supressioe surrectio no direito brasileiro implica na conclusão de que o positivismo está sendo relativizado.

A supressiopode levar à ocorrência dos efeitos da prescrição sem que ela tenha ocorrido, ou então, reduzir o valor do débito por culpa da conduta do credor. É a penalização ao credor que demanda muito tempo para exercer sua pretensão, notadamente quando esse decurso do tempo, injustificado, vem em prejuízo do devedor, que tem sua situação agravada. Ora, em havendo pretensão resistida, lesão a direito subjetivo, inadimplemento contratual, conforme o princípio da boa fé objetiva, é dever do credor de tomar as medidas cabíveis o mais rápido possível. Ainda que o prazo prescricional exista justamente para que a parte possa, dentro desse lapso temporal, tomar as providências que bem entender (ou não), cria-se na doutrina e na jurisprudência um entendimento de que a demora injustificada para a ação a ser praticada pela parte lesada, muito mais quando é injustificada e coloca o devedor em situação de vulnerabilidade (no caso por aumentar indevidamente o valor da dívida) viola o princípio da boa fé objetiva. Até mesmo porque a demora para a tomada de providência, quando isso era possível desde o início da violação do direito, pode criar no espírito do devedor a expectativa de que não mais será demandado, muito menos de que terá sua situação onerada pelo tempo levado pelo credor para a tomada das providências.

Esse instituto leva a concluir pela preocupação, de doutrina e jurisprudência, com posturas antiéticas, do credor que, não tendo necessidade premente para o recebimento da dívida, aguarda o maior tempo possível, para aumentar o seu saldo a receber do devedor, o que viola o princípio da boa fé objetiva.[19]

O mesmo vale para a surrectio, instituto que prevê a submissão do contratante a determinado estado de coisas que decorre da prática reiterada em outras situações. Assim, mesmo que o comportamento adotado pelas partes não esteja previsto nas cláusulas contratuais, antes, esteja nelas vedado, a situação de fato, o comportamento adotado, prevalecerá para os fins obrigacionais.[20]

A análise desses dispositivos do Código Civil de 2002, aliada à verificação dos demais diplomas legais mencionados nesse tópico permite concluir que o momento de evolução da aplicação do direito privado é de prevalência dos anseios sociais ao positivismo. Trata-se, em nosso entendimento, de uma relativização da força da lei escrita, do pensamento dominante até então de que a lei posta serviria para condicionar racionalmente a atuação dos indivíduos cede espaço para a conclusão de que é o comportamento dos indivíduos, segundo os valores sociais, a tábua axiológica predominante em cada momento, é que deve moldar a aplicação do Direito.

O aspecto sociológico relevante nesse caso é relacionado à relativização do positivismo, na consciência dos operadores do direito e dos destinatários da norma, de que os anseios sociais devem reger a aplicação do Direito e que esses anseios se modificam, no mais das vezes, do que a própria lei, sendo necessário sempre haver a possibilidade de uma interpretação consentânea com essa tábua axiológica que inspira a atuação do grupo social.


IV - CONCLUSÃO

Não se pode negar que a análise do direito privado passa por momento evolutivo de significativa importância, através do qual há a relativização em vários casos, de conceitos e posicionamentos até então tidos como dogmáticos, imutáveis, como o próprio texto positivado da lei.

É o que se verifica pela solução de conflitos individuais proposta por doutrina e jurisprudência de forma contrária ao texto expresso da lei, por causa da preocupação com a apresentação de soluções justas para o caso concreto.

As modificações trazidas no cenário constitucional, após a Carta Magna de 1988, foram muito influentes para o direito privado, pois fizeram incidir em sua aplicação vários princípios que então não eram utilizados com frequência, como é o caso da boa fé objetiva. Há a criação no Código de 2002 do princípio da função social do contrato, com indelével interferência do art. 184 da Constituição de 1988, que trata da função social da propriedade.

Esses novos princípios, alguns já existentes, outros agregados ao direito privado, criaram um cenário propício, fecundo, para a nova forma de interpretação com a qual ora se depara. E essa nova interpretação, por ser forma relativizadora do positivismo, então dominante e de grande tradição no Direito brasileiro, traz grande margem para a realização da justiça distributiva conforme os anseios sociais atuais, mas em contrapartida traz imensa responsabilidade para os operadores do direito.

Pode-se até mesmo falar em força criativa da jurisprudência, com interpretações de normas jurídicas positivadas muitas das vezes contraditória ao texto da lei, mas necessária para que seja realizada a justiça no caso concreto, entendendo-se por justiça a realização dos anseios sociais na maior medida possível.

Esse voto de confiança proporcionado aos operadores do direito pela sociedade, notadamente aos magistrados, deve ser tido em alta conta, mormente em se considerando os precedentes antigos, do Código Napoleônico, em que havia desconfiança com a atuação dos magistrados, a ponto de não se permitir a interpretação de diplomas legais para impedir qualquer tipo de abstração, eliminando os riscos de arbitrariedade.

Os reflexos dessa evolução do direito privado, no sentido de proporcionar ferramentas flexíveis aos operadores do direito somente poderão ser sentidos ao longo dos anos, conforme o uso que delas se fizer e será a medida do avanço ou do retrocesso.

Por certo que essa aplicação do direito conforme os valores sociais de cada momento, a busca pela justiça, reclama do operador do direito um posicionamento sempre reflexivo, investigativo dos valores sociais de cada momento, para que o direito possa ser aplicado em conformidade com esses valores de cada momento.

Entendemos que é a força da consciência coletiva mencionada por Durkheim, que se trata do aglomerado de valores, sentimentos e crenças de uma sociedade, influenciando os caminhos da interpretação e aplicação do direito privado.

A análise da evolução do direito privado brasileiro, que em poucas linhas e alguns exemplos buscou-se demonstrar nos itens acima é importante para suportar essa conclusão. A possibilidade de, atualmente, vários dispositivos serem interpretados não conforme a letra fria da lei, mas consoante os valores sociais que inspiram o agir dos indivíduos em determinado momento, é de suma relevância e importância para demonstrar que os aspectos sociais têm prevalecido frente ao rigorismo, muitas das vezes exacerbado e injustificado, do positivismo.

O impacto dessa conclusão para o meio social, da mesma forma, ganha em relevância, porquanto mostra o grau de representatividade da vontade social para a solução dos conflitos individuais.

Possível concluir, portanto, que o positivismo deixa de ter a força preponderante de outrora, cedendo espaço para uma visão e aplicação mais flexível do direito, sem levar em conta apenas e necessariamente o texto frio da lei, porquanto já constatado que essa postura não produz, sempre, as soluções mais adequadas.


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Notas

[1]Se bem que essa impossibilidade de interpretação do texto da lei, naquele momento, era até mesmo imperativo social. Como os magistrados provinham do ancien regime havia nítida, e porque não justificada, desconfiança com sua atuação. Assim, quanto menos margem de interpretação lhes fosse concedida para a solução dos casos concretos, maior seria a probabilidade de que as conquistas da Revolução Francesa não fossem vilipendiadas.

[2]Como a utilização da equidade em vários dispositivos para a solução de conflitos, notadamente de responsabilidade civil.

[3]Certamente um dos doutrinadores que mais influenciou o direito brasileiro nos últimos tempos.

[4]Vale citar os exemplos de países que são que têm sua população constituídas em períodos de grandes imigrações, como é o caso de Argentina e Brasil. Como são várias culturas que se encontram em determinados momentos (nesses dois países houve imigração de povos de vários países da Europa e da Ásia), é necessário encontrar na lei (posta), a solução para os conflitos que possam surgir.

[5]Atualmente está em andamento processo de elaboração de um novo Código de Processo Civil, no qual se pretende compilar as várias legislações criadas ao longo de vários anos, com o objetivo de tornar mais célere e eficaz a providência jurisdicional.

[6]Esse entendimento é defendido por Alan Greenspan, em seu livro a Era da Turbulência, na qual analisa os elementos que fizeram o sucesso da economia americana na era Clinton. Obviamente que posteriormente o país mergulhou em uma crise de proporções semelhantes à de 1929, mas é certo que esses princípios, de respeito aos contratos e ao direito de propriedade, a despeito do cenário econômico norte americano pós 2008, ainda se mantém com a mesma força.

[7]Thomas Friedman já alertava em sua obra O Lexus e a Oliveira para a importância do fenômeno da queda do Muro de Berlim, com a divulgação e propagação da utilização da internet nos negócios e toda a revolução, por que assim não dizer, por que os negócios passariam a partir de então.

[8]Como também menciona Thomas Friedman em seu livro O Mundo é Plano, é notável o avanço das comunicações proporcionado pela utilização da internet de forma mais ampla pelas pessoas, empresas, utilizando-se como exemplo dos call centers das grandes empresas americanas, como o Wall Mart, que desde há muito tempo tem todos os seus funcionários (do call center) situados na Índia, atendendo seus clientes ao redor do mundo. Sem os avanços da internet e da comunicação não seria possível sequer imaginar uma situação como essa.

[9]As dificuldades existentes nos meios de comunicação de tempos antigos proporcionou vários mal entendidos e injustiças, valendo citar o exemplo dos Protocolos de Sião, mencionados em São Petersburgo, no qual se tratava do plano dos judeus para dominar o mundo, documento esse que, apesar de todas as situações em sentido contrário, conseguiu ser tido como verdadeiro e produzir todos os negativos efeitos para o povo judeu.

[10]Art. 1.523. Excetuadas as do art. 1.521, nº V, só serão responsáveis as pessoas enumeradas nesse e no artigo 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte.

[11]No exemplo citado, pela criação da Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal.

[12]Aplicação da cláusula rebus sic stantibus.

[13]O art. 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor trata do princípio da vulnerabilidade, ínsito a toda e qualquer relação jurídica, permitindo e justificando a proteção diferenciada para o consumidor.

[14]Esse argumento é, no mínimo, contraditório. Isso porque se o próprio conceito de vício redibitório já denuncia que se trata de defeito oculto, isto é, imperceptível ao conhecimento da parte que adquire o produto, como então exigir que pelo simples tempo de exposição seja exigível do adquirente o conhecimento prévio do defeito....

[15]No direito brasileiro há entendimento de que a venda em segunda hasta pública pode ser realizada até por 60% do valor da avaliação. Abaixo disso é considerado preço vil e, portanto, anulada a praça.

[16]Esse argumento cede a um único questionamento: e quando a venda for realizada em primeira praça, por preço superior ao da avaliação, quando se tratar, por exemplo, de produto ou bem de grande interesse...

[17]Redação do art. 447 do CC: Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.

[18]AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO (ART. 544 DO CPC) AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE VEÍCULO. SUSPENSÃO POR PREJUDICIALIDADE DE AÇÃO REVISIONAL. PAGAMENTO DE MAIS DE DOIS TERÇOS DO NÚMERO DE PARCELAS DECISÃO MONOCRÁTICA QUE CONHECEU DO AGRAVO PARA NEGAR SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. INSURGÊNCIA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. 1. Incidência da Súmula nº 182/STJ. Ausência de impugnação específica dos fundamentos utilizados na decisão agravada. 2. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato. Precedentes. 3. Agravo regimental não conhecido, com aplicação de multa. (STJ; AgRg-AREsp 122.729; Proc. 2011/0285873-4; GO; Quarta Turma; Rel. Min. Marco Buzzi; Julg. 05/06/2012; DJE 13/06/2012).

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. 1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". 2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancialadimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancialadimplemento da avença. 4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso Especial não conhecido. (STJ; REsp 1.051.270; Proc. 2008/0089345-5; RS; Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; Julg. 04/08/2011; DJE 05/09/2011).

[19](...) 4. O princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (I) instrumento hermenêutico; (II) fonte de direitos e deveres jurídicos; e (III) limite ao exercício de direitos subjetivos. A essa última função aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios, como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os seguintes institutos: tu quoque, venire contra facutmproprium, surrectio e supressio. 5. A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa. 6. Recurso Especial a que se nega provimento. (STJ; REsp 1.202.514; Proc. 2010/0123990-7; RS; Terceira Turma; Relª Minª Fátima Nancy Andrighi; Julg. 21/06/2011; DJE 30.06.2011).

EMBARGOS À EXECUÇÃO CERCEAMENTO DE DEFESA VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUMSUPRESSIO EXCESSO DE EXECUÇÃO. Não há como se ter por válido e eficaz o pedido genérico de produção de provas, mormente a ensejar o reconhecimento de cerceamento de defesa, quando nem mesmo se pode aferir a pertinência da produção da prova que se queria produzir; O recebimento reiterado de prestações dias após o vencimento, sem pleitear a cobrança dos valores devidos, acrescidos dos encargos moratórios, faz crer ao devedor que houve o perdão da mora (venire contra factumproprium); A inércia do credor torna evidente a renúncia tácita ao direito que lhe assistia (supressio). RECURSO PROVIDO.(TJSP; APL 9294497-88.2008.8.26.0000; Ac. 5874052; São Paulo; Vigésima Câmara de Direito Privado; Relª Desª Maria Lúcia Pizzotti; Julg. 23/04/2012; DJESP 01/06/2012).

[20]DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PACTUAÇÃO, POR ACORDO DE VONTADES, DE DISTRATO. RECALCITRÂNCIA DA DEVEDORA EM ASSINAR O INSTRUMENTO CONTRATUAL. ARGUIÇAO DE VÍCIO DE FORMA PELA PARTE QUE DEU CAUSA AO VÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. AUFERIMENTO DE VANTAGEM IGNORANDO A EXTINÇÃO DO CONTRATO. DESCABIMENTO. 1. É incontroverso que o imóvel não estava na posse da locatária e as partes pactuaram distrato, tendo sido redigido o instrumento, todavia a ré locadora se recusou a assiná-lo, não podendo suscitar depois a inobservância ao paralelismo das formas para a extinção contratual. É que os institutos ligados à boa-fé objetiva, notadamente a proibição do venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio e o tu quoque, repelem atos que atentem contra a boa-fé óbjetiva. 2. Destarte, não pode a locadora alegar nulidade da avença (distrato), buscando manter o contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela locatária, ao argumento de que a Lei exige forma para conferir validade à avença. 3. Recurso Especial não provido. (STJ; REsp 1.040.606; Proc. 2008/0056046-1; ES; Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; Julg. 24/04/2012; DJE 16/05/2012).

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE VEÍCULOS POR PRAZO DETERMINADO. NOTIFICAÇÃO, PELA LOCATÁRIA, DE QUE NÃO TERÁ INTERESSE NA RENOVAÇÃO DO CONTRATO, MESES ANTES DO TÉRMINO DO PRAZO CONTRATUAL. DEVOLUÇÃO APENAS PARCIAL DOS VEÍCULOS APÓS O FINAL DO PRAZO, SEM OPOSIÇÃO EXPRESSA DA LOCADORA. CONTINUIDADE DA EMISSÃO DE FATURAS, PELA CREDORA, NO PREÇO CONTRATUALMENTE ESTABELECIDO. PRETENSÃO DA LOCADORA DE RECEBER AS DIFERENÇAS ENTRE A TARIFA CONTRATADA E A TARIFA DE BALCÃO PARA A LOCAÇÃO DOS AUTOMÓVEIS QUE PERMANECERAM NA POSSE DA LOCATÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. JULGAMENTO DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. APLICAÇÃO DA REGRA DO ART. 20, §4º, DO CPC. INAPLICABILIDADE DO §3º DESSE MESMO DISPOSITIVO LEGAL. PRECEDENTES. A notificação a que se refere o art. 1.196 do CC/02 (art. 575 do CC/02) não tem a função de constituir o locatário em mora, tendo em vista o que dispõe oart. 1.194 do CC/16 (art. 573 do CC/02). Ela objetiva, em vez disso, a: (I) que não há a intenção do locador de permitir a prorrogação tácita do contrato por prazo indeterminado (art. 1.195 do CC/16 - art. 574 do CC/02; (II) fixar a sanção patrimonial decorrente da retenção do bem locado. Na hipótese em que o próprio locatário notifica o locador de que não será renovado o contrato, a primeira função já se encontra preenchida: não é necessário ao locador repetir sua intenção de não prorrogar o contrato se o próprio locatário já o fez. A segunda função, por sua vez, pode se considerar também preenchida pelo fato de que é presumível a ciência, por parte do locatário, do valor das diárias dos automóveis pela tarifa de balcão. Haveria, portanto, em princípio, direito em favor da locadora à cobrança de tarifa adicional. - Se o acórdão recorrido estabelece, contudo, que não houve qualquer manifestação do credor no sentido da sua intenção de exercer tal direito e, mais que isso, o credor comporta-se de maneira contraditória, emitindo faturas no valor original, cria-se, para o devedor, a expectativa da manutenção do preço contratualmente estabelecido. - O princípio da boa-fé objetiva exerce três funções: (I) a de regra de interpretação; (II) a de fonte de direitos e de deveres jurídicos; e (III) a de limite ao exercício de direitos subjetivos. Pertencem a este terceiro grupo a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios ('tu quoque'; vedação ao comportamento contraditório; "surrectio'; 'suppressio'). - O instituto da 'supressio' indica a possibilidade de se considerar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não-exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo. - Nas hipóteses de improcedência do pedido, os honorários advocatícios devem ser fixados com fundamento no art. 20, §4º do CPC, sendo inaplicável o respectivo §3º. Aplicando-se essa norma à hipótese dos autos, constata-se a necessidade de redução dos honorários estabelecidos pelo Tribunal. Recurso Especial parcialmente provido. (STJ; REsp 953.389; Proc. 2007/0115703-9; SP; Terceira Turma; Relª Minª Fátima Nancy Andrighi; Julg. 23/02/2010; DJE 11/05/2010) .


Autor

  • Gustavo Passarelli da Silva

    Gustavo Passarelli da Silva

    Advogado e Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul - UFMS, Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal - UNIDERP, em cursos de graduação e pós-graduação, de Direito Civil na Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul e Escola da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Mestre em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro - UGF/RJ, Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia/ESA da OAB/MS.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gustavo Passarelli da. O positivismo e a interpretação do Direito Privado no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3439, 30 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23110. Acesso em: 26 abr. 2024.