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O trabalho precoce no Brasil

O trabalho precoce no Brasil

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Além de venderem a força de trabalho, as crianças e jovens vendem a sua infância, direito fundamental indisponível, que nunca mais será recuperada. Os danos físicos e emocionais, em sua maioria, não são possíveis de reparação, criando uma geração de adultos inapta ao desenvolvimento máximo de sua força de trabalho.

1. Introdução.

O presente artigo tem por objetivo analisar a questão do trabalho precoce no Brasil. Antes se utilizava a nomenclatura “trabalho infantil” para se referir a todo tipo de trabalho realizado por crianças e adolescentes. Contudo, a doutrina vem, gradativamente, alterando a denominação para “trabalho precoce”, a fim de que se deixe claro que se está falando de trabalho indevidamente desempenhado por crianças e adolescentes (até 16 anos), como mão de obra para qualquer atividade produtiva e remunerada.

O trabalho precoce, ao mesmo tempo em que serve como complementação de renda para inúmeras famílias pobres, também contribui para que a pobreza e miséria se perpertuem. Além das crianças e adolescentes serem privadas de frequentar escolas, de brincar e do convívio familiar, são submetidas a jornadas exaustivas, trabalhando como adultos e não tendo a oportunidade de lutar por uma vida melhor, continuando um ciclo que perdurará durante gerações.

O ordenamento jurídico nacional e as normas internacionais, editadas pela OIT, trazem normativo suficientemente protetor para obstar o trabalho precoce. Contudo, cabe ao Estado e à sociedade a implementação efetiva de tais normas, por meio de políticas públicas inclusivas, intensificação da fiscalização trabalhista e responsabilidade social por parte das empresas. Aos cidadãos, cabe exigir o cumprimento das leis, por meio de denúncias e do não consumo de produtos que tenham, em sua cadeia de produção, se utilizado do trabalho de crianças e adolescentes.

A proibição do trabalho infantil está inserida na seara da proteção dos direitos humanos, assumindo todas as características e garantias que estes possuem. Dessa forma, merecem tratamento especial por parte do Estado, uma vez que as garantias até aqui alcançadas somente podem ser aumentadas, vedando-se o retrocesso dos direitos trabalhistas de crianças e adolescentes, em especial, o direito ao não trabalho.


2. O trabalho do menor de 18 anos no ordenamento interno e internacional.

Os direitos dos trabalhadores, elencados na Constituição Federal, enquadram-se no rol dos direitos sociais, classificados pela doutrina constitucionalista como de segunda dimensão. São direitos que visam a consagração da dignidade da pessoa humana, por meio de atuação positiva do Estado, a fim de se alcançar a justiça social.

A atuação estatal será pautada por políticas públicas relacionadas à saúde, educação, assistência social e trabalho, que objetivarão a redução das desigualdades sociais e a concretização do princípio da igualdade. E, na proteção aos direitos dos trabalhadores, a Constituição Federal trouxe inúmeras disposições acerca dos direitos trabalhistas, traçando rol extremamente detalhado sobre a proteção do trabalhador, bem como sobre o direito coletivo do trabalho.

No que tange ao trabalho dos menores de 18 anos, a Constituição traz vedação expressa ao seu trabalho insalubre e perigoso e, aos menores de 16 anos, proíbe qualquer forma de trabalho, exceto na condição de aprendiz, a partir de 14 anos. Percebe-se, portanto, que o legislador constitucional objetivou a proteção integral dos menores de 16 anos, salvo se aprendizes (regulado na Consolidação das Leis do Trabalho, dos artigos 402 a 433, bem como no Decreto 5598/2005).

O artigo 402 da CLT dispõe que “considera-se menor para os efeitos dessa consolidação o trabalhador de 14 a 18 anos”. Assim, da leitura da Constituição e da CLT, percebe-se que o legislador constituinte e o ordinário não fizeram qualquer ressalva à possibilidade de trabalho de menores de 14 anos, o que permite concluir, num primeiro momento, que tal trabalho é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Conclui-se, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro adotou a doutrina da proteção integral da criança e adolescente. Por meio desta teoria, estes possuem direitos próprios e especiais que, em razão da sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, devem ser protegidos de forma especial e diferenciada. Crianças e adolescentes têm, além dos direitos garantidos aos adultos, todos aqueles específicos para a sua condição específica de desenvolvimento.

A capacidade jurídica para o trabalho é fixada em função de limites de idade fixados na legislação, podendo ser resumida da seguinte forma: 1) até os 14 anos, proibição do desenvolvimento de qualquer atividade laboral, inclusive aquelas relativas à aprendizagem; 2) 14 a 16 anos, proibição de qualquer atividade laboral, exceto aquelas relativas à aprendizagem;  3) de 16 a 18 anos, desenvolvimento de atividade laboral não considerada perigosa, insalubre ou degradante e 4) a partir dos 18 anos, qualquer atividade laboral.

O trabalho do adolescente aprendiz está regulamentado nos artigos 428 a 440 da CLT, alterados pela Lei 10.097/2000. O contrato de aprendizagem pressupõe que o jovem esteja matriculado em curso de formação profissional, bem como que o trabalho lhe permita o desenvolvimento de tarefas necessárias à sua formação. Assim, as condições para o exercício do trabalho devem respeitar a característica peculiar de pessoa em desenvolvimento, bem como promover a capacitação profissional ao mercado de trabalho.

Além disso, a capacitação profissional adequada do adolescente também deve estar conectada à realidade social e econômica do país. E as políticas públicas referentes ao aprendiz devem promover a realização de atividade laboral que tenha por objetivo a formação adequada ao mercado e ao mundo do trabalho.

Entende-se, portanto, como trabalho infantil, aquele realizado por menores de 14 anos. Modernamente, a doutrina vem utilizando a expressão “trabalho precoce”, uma vez que esta abarca tanto o trabalho das crianças e os trabalhos proibidos aos adolescentes.

No âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o organismo responsável pelo controle e emissão de normas referentes ao trabalho em todo o mundo, determinando as garantias mínimas do trabalhador.  No que tange à proteção do trabalho infantil, a OIT editou duas convenções (Convenções n. 138 e 182), bem como duas recomendações (Recomendações n. 140 e 190). Ambas convenções foram ratificadas e promulgadas no ordenamento jurídico brasileiro, por meio dos decretos n. 4134/2002 e 3597/2000, respectivamente.

A Convenção n. 138 da OIT dispõe acerca da idade mínima para o trabalho. Tal diploma traz normas gerais, de aplicabilidade necessária para os países-membros da OIT, que traçam compromissos mínimos a serem assumidos pelos países, bem como normas flexíveis, que se adaptam à realidade local, a fim de que os países possam atingir os limites propostos pela convenção.

Como regra geral, a Convenção n. 138 fixa a idade mínima de 15 anos para o trabalho. Na verdade, o diploma preceitua que a idade não seja inferior àquela de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, inferior a 15 anos. Além disso, a Convenção também vincula a elevação da idade mínima às necessidades de pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes, garantindo-lhes o acesso ao ensino público e gratuito.

Como norma flexível, a Convenção n. 138 trouxe, em seu artigo 7º, 1, a permissão, por meio de leis regulamentos dos países, ao trabalho em serviços leves a partir dos 13 anos de idade, desde que não prejudiquem a saúde, o desenvolvimento e a frequência escolar.

A Convenção n. 182, criada como disciplina complementar à Convenção 138, trata das piores formas de trabalho infantil e ações para sua eliminação. Cumpre destacar que as ações e prioridades no combate às piores formas de trabalho infantil não excluem a necessidade de eliminação de toda e qualquer forma de trabalho precoce. A Convenção apenas estabelece algumas prioridades de ações que deverão estar inseridas nos programas de combate ao trabalho infantil.

A Recomendação n. 190, da OIT, definiu os tipos de trabalho considerados como piores formas de trabalho infantil, incluindo-se na listagem o maior número de atividades conhecidas como prejudiciais ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, fundamentadas nas normas de segurança e medicina do trabalho.

Conclui-se, portanto, que as normas internas e internacionais, devidamente internacionalizadas, consolidam o arcabouço jurídico sobre o trabalho precoce no Brasil, bem como disponibilizam instrumentos capazes de fortalecer o combate a todas as formas de trabalho infantil.


3.  O trabalho infantil e a violação dos direitos humanos.

Os direitos humanos podem ser conceituados como sendo “o conjunto mínimo de direitos que permitam ao homem viver com dignidade”[1]. E a dignidade é o parâmetro para se definir o que integra ou não o rol dos direitos humanos.

A dignidade é um dos princípios fundamentais do Estado Brasileiro (artigo 1º, III da CF) e pode ser resumida como sendo o complexo de direitos e deveres que asseguram à pessoa condições existenciais mínimas para uma vida saudável. Assim, no âmbito do direito do trabalho, o respeito à dignidade e, consequentemente, aos direitos humanos, somente ocorrerá em se garantindo ao trabalhador condições mínimas de “trabalho decente” (respeito às normas trabalhistas).

O trabalho precoce, por sua vez, causa desrespeito à dignidade da criança e adolescente, já que estão em fase de desenvolvimento de suas personalidades, possuindo necessidades outras daquelas obtidas com o trabalho. As crianças e adolescentes necessitam, para uma vida saudável, dedicar tempo aos estudos, lazer, convivência familiar e social etc.

E, por afrontar a dignidade, viola também os direitos humanos, já que aquela é um dos fundamentos para a caracterização desses direitos. O trabalho precoce afronta direitos fundamentais das crianças e adolescentes, tais como a vida, liberdade, saúde e educação. Tais violações devem ser reparadas pelo ofensor direto, bem como pelo Estado, que tem o dever de garantir os direitos fundamentais do cidadão.

O trabalho precoce tem origem na pobreza e, como não poderia deixar de ser, gera mais pobreza. A sua erradicação está intimamente ligada à escolarização das crianças e adolescentes, bem como à garantia do pleno emprego às famílias desses jovens.

Por meio do emprego, supera-se a pobreza e, consequentemente, a necessidade da renda complementar que é obtida com o trabalho dos filhos. E estes, por sua vez, podem frequentar a escola durante maior período de anos, o que gera a conscientização acerca da necessidade de estudar para atingir uma vida melhor do que a de seus pais.

A leitura das Convenções 138 e 182 da OIT demonstra que há uma proteção da dignidade de crianças e adolescentes, pilar básico dos direitos humanos. Corporifica-se o direito humano ao não trabalho antes de certa idade, como norma geral a ser adotada pelos países. E, por se tratar de direito humano fundamental, está cercado de todas as garantias inerentes a tais direitos, em especial, a universalidade.

Pela garantia da universalidade, os direitos humanos são inerentes à condição do homem, não podendo ser afastados ou modificados em razão das realidades ou costumes locais. Além disso, não podem ser alienados ou mesmo suprimidos ou diminuídos por meio de leis ou emendas à Constituição.

As crianças e adolescentes são entendidas como seres humanos com direito à proteção absoluta à sua fase de desenvolvimento e formação da personalidade. Enquanto o adulto pode vender a sua força de trabalho, como melhor lhe parece, a criança não pode dispor dela, uma vez que, ao fazer isso, estará dispondo de sua infância, que é direito fundamental indisponível.

E não há que se falar em dignidade no trabalho precoce, uma vez que este nunca detém as garantias trabalhistas do empregado adulto. Por se encontrarem em situação informal, às crianças e adolescentes não é garantido o direito às férias, jornada de trabalho limitada, saúde e segurança do trabalho, valor mínimo de salário. Haverá sempre a violação de direitos humanos ao se permitir o trabalho de crianças e adolescentes.

Em interessante artigo, o Procurador do Trabalho Rafael Dias Marques, assim demonstra a inserção da proibição ao trabalho infantil dentro dos direitos humanos:

“Realmente, não é digno nem decente permitir que crianças e adolescentes possam trabalhar antes dos 16 anos de idade, de maneira a se situarem, num segundo plano, os aspectos formativos de seu desenvolvimento biopsicosocial, tão marcante em tal fase da vida humana, sob pena de, em assim se permitindo, colorir-se, novamente, o quadro perverso da exploração do trabalho precoce dos primórdios da revolução industrial.

É preciso reconhecer, portanto, que o marco civilizatório, centrado nos direitos humanos, a que a comunidade internacional conduziu sob o forte embate dos fatos sociais, não pode se compadecer com o trabalho infantil, pois significaria retroceder na formação de seu conteúdo, moldado que foi pelo fenômeno da expansão da amplitude do princípio da dignidade da pessoa, entendido este e, em última análise, como um conjunto de potencialidades inerentes à pessoa humana e sem os quais não se lhe pode permitir um vida digna” (“Trabalho infantil e direitos humanos: um novo e necessário olhar”, in http://gnmp.com.br/publicacao/75/).

Por se tratar de questão relativa à proteção de direitos humanos, o combate ao trabalho precoce deve ser feito por meio da atuação interna e internacional. Como já mencionado, no âmbito internacional, a OIT busca, por meio de suas convenções e recomendações, obter um comprometimento dos países que possuem a realidade do trabalho precoce em suas estatísticas, no que tange à adoção de normas internas protetivas das crianças e adolescentes.

No âmbito interno, os países devem buscar uma atuação, não somente por meio de fiscalização estatal, mas também pela adoção de políticas públicas educacionais e assistenciais, que promovam a inserção das crianças e adolescentes nas escolas, bem como prestem ajuda aos familiares dessas crianças, a fim de que consigam manter o filho na escola, interrompendo o círculo vicioso do trabalho precoce.

Em maio de 2006, realizou-se no Brasil a XVI Reunião Regional da Organização Internacional do Trabalho, cujo tema foi o Trabalho Decente nas Américas e no Caribe. Delegações tripartites (representantes do governo, empregadores e trabalhadores) firmaram um compromisso para adotar políticas específicas para cumprimento das recomendações da OIT, a fim de erradicar o trabalho infantil. Dentre tais compromissos, encontram-se:

a)                  Eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2015;

b)                 Eliminar o trabalho infantil em sua totalidade em um prazo de 15 anos (até 2020);

c)                  Reduzir à metade, em um prazo de 10 anos, a proporção de jovens maiores de 15 anos que não estudam nem trabalham;

d)                 Eliminar, num prazo de 10 anos, as principais causas legais e administrativas que estimulam a existência de economias informais.

Diante de tais metas, cabe ao Estado, à família, à comunidade e à sociedade em geral a responsabilidade em assegurar a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, livrando-os de todo o tratamento desumano, violento ou constrangedor. Somente assim será possível obter o respeito à dignidade e direitos humanos das crianças e adolescentes.


4. O trabalho infantil desumano e degradante.

O histórico do trabalho precoce no Brasil remonta à época da colonização do país, mais precisamente nas embarcações que trouxeram os portugueses a esta terra. O trabalho precoce era desenvolvido por crianças e adolescentes chamados de grumetes e pagens. Os primeiros desempenhavam todas as atividades realizadas por adultos, mas com metade da remuneração, destacando-se que a eles eram conferidas as tarefas mais perigosas e penosas, uma vez que se entendia ser melhor perder um infante do que um adulto.

Os pagens prestavam serviços aos nobres e oficiais do navio, caracterizando-se pela satisfação das vontades da nobreza, no que tange às condições de conforto dos oficiais nas viagens, arrumação de camarotes e serviços de mesa.

E, por ser desafiadora a travessia do Atlântico, aqueles que chegavam vivos à terra, pereciam diante das dificuldades aqui encontradas, especialmente decorrentes dos maus tratos sofridos durante todo o percurso. As embarcações portuguesas trouxeram, portanto, a cultura do trabalho precoce e o desvalor da infância, que originaram uma história de exclusão ao longo dos tempos.

No Brasil Colonial, as crianças da elite e os filhos de escravos conviviam juntos até os sete anos. Após esse período, os primeiros começavam a frequentar as escolas e os segundos, a trabalhar. A criança escrava aprendia a ter um ofício e, aos 11 anos, já desempenhava as mesmas tarefas de um adulto.

Saltando para os dias atuais, percebe-se que a situação não se modificou de forma substancial. Grande parte das crianças pobres é obrigada a largar os estudos (isso quando os iniciam) para trabalhar e auxiliar na subsistência de suas famílias. E, deixando de lado a vida escolar, mais uma vez se repete o círculo vicioso da pobreza e ignorância, que arrasta gerações para uma vida sem esperança de melhoria.

Em grande parte do Brasil, a justificativa para o trabalho precoce é a moralização do jovem, mantendo-o afastado dos vícios e criminalidade. Somada a esses argumentos encontra-se a necessidade de subsistência da criança e do adolescente dentro do seio familiar. Muitas famílias dependem dessa renda complementar para obterem o mínimo indispensável à sua sobrevivência.

Tal situação favorece a iniciação precoce ao trabalho como parte de uma cultura familiar, local e regional. Inúmeros municípios, em especial aqueles com economia rural e com baixa renda per capita, detêm boa parte de suas crianças e jovens no trabalho remunerado, como fonte de renda complementar para a família e para sustento da economia local.

Não raro, inúmeras famílias migram das suas pequenas propriedades para trabalhar em centros do agronegócio. Nestas localidades, ocupam espaços precários e sem qualquer condição de salubridade para moradia. Normalmente, tais instalações situam-se nos grandes latifúndios de plantações de cereais e frutas, nos lixões e nas ruas das cidades.

O trabalho precoce, em sua maioria, é desempenhado nas formas de trabalho desumano e degradante. Embora todas as formas de trabalho infantil sejam consideradas como violadoras dos direitos humanos, utiliza-se a denominação de trabalho desumano e degradante para aquelas formas conhecidas como as “piores formas de trabalho infantil”, descritas pela Convenção n. 182 da OIT:

“(a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;

(b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos;

(c) utilização, demanda e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes;

(d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança”.

Pode-se citar como forma usual de exploração do trabalho precoce: carvoarias, canaviais, pedreiras, sisaleiras, olarias, plantações e lixões. As atividades, em sua grande maioria, são desempenhadas sob o sol escaldante; em ambientes quentes, úmidos e empoeirados; repetitivas e monótonas; de grande contato com produtos agrotóxicos e pesos excessivos.

Maria Adriana Torres, em sua obra “Trabalho Infantil – Trabalho e direitos”, sintetiza a cultura que mantém o trabalho precoce no Brasil, em especial aquela transmitida por gerações familiares:

“O ser adulto caminha junto com as crianças e os adolescentes que trabalham. Aos poucos vão assimilando o discurso dos pais de terem de ajudar nas obrigações do dia-a-dia, na maioria relacionadas ao trabalho, que se confundem com a própria vida desses pequenos trabalhadores. Evidencia-se um modelo de exploração de fora para dentro das famílias, que mostra diversidade, pluralidade e transformações na inserção dos pequenos trabalhadores, tornando mais visíveis as interações entre a realidade local e a global. Nesse entrelaçamento de mudanças vai se perdendo o modelo cultural de trabalho para a constituição do sucessor, o respeito às idades e aos sexos, assim como o tempo de brincadeiras e da frequência na escola”[2].

 O trabalho infantil doméstico também está entre uma das piores formas de trabalho precoce, uma vez que as jornadas são extensas, sem pausas para descanso, sem repouso semanal, sujeito a maus tratos e exploração. Além disso, inúmeros empregadores não remuneram os trabalhadores infantis domésticos, mas apenas fornecem habitação, comida e roupas usadas.

A ausência de remuneração é apenas uma das situações que transforma o trabalho precoce em trabalho exercido em condições análogas á de escravo. Inúmeros trabalhadores infantis são impedidos de deixar o local de trabalho em decorrência de dívidas assumidas com os armazéns que fornecem alimento e vestuário a essas pessoas.

Comprovando a redução à condição análoga à de escravo, tem-se o seguinte relato, extraído de reportagem sobre o trabalho em carvoarias em Minas Gerais:

“A corrente que prende homens e crianças de até 10 anos nas carvoarias do norte e noroeste de Minas é a dívida contraída em armazéns. essa dívida decorre da compra de arroz e farinha, que mal repõem as energias necessárias para começar mais um dia de trabalho, que nunca dura menos de 18 horas. A carvoaria queima a madeira e consome esses homens e crianças. Alguns nunca viram dinheiro. Meninos como Luiz Carlos Silva, 10 anos, que trabalha nas terras da empresa Agroeste, nunca foram à escola.Os "gatos" (empreiteiros contratados para recrutar mão-de-obra de forma ilegal) utilizam o mecanismo de endividamento para manter presos os trabalhadores nas áreas de cerrado e reflorestamento. Isolados das cidades os carvoeiros são obrigados a comprar arroz e farinha nos armazéns dos próprios "gatos". No fim do mês, os trabalhadores recebem a conta: o arroz e a farinha valem muito mais do que 18 horas por dia de trabalho. Os carvoeiros ficam impossibilitados de abandonar as carvoarias até saldar as dívidas. (...) A história se repete em várias outras carvoarias do estado. Durante quatro dias, um repórter dividiu com Valdevino, sua mulher, Jane Ferreira, 26, e os filhos, Janaína, 5, Valdivilson e Josiane, de 11 meses, uma casa de 24 metros quadrados. A casa construída com eucalipto e bambu e coberta com sapê, fica na fazenda do Onça, distante 30 quilômetros do centro de Buritizeiro pelo Rio São Francisco. Enquanto retirava o carvão do forno, Valdivino contou que foi recrutado pelo "gato" Duti Matheus, em Mirabela (MG), há cerca de seis meses. "Viemos na carroceria de um caminhão. Todo mundo apertado. A viagem foi feita à noite por conta dos fiscais do trabalho", conta. O gato se comprometeu a dar a Valdivino 6% da venda DE CARVÃO. Valdivino até hoje, não sabe qual é o preço do metro cúbico do carvão e nem quanto ele e sua família produziram. "O gato diz apenas que é pouco e que não dá pra pagar a dívida do armazém. Se não pagar a dívida, não dá pra sair", diz. A exemplo da maioria dos carvoeiros, Valdivino e sua família se alimentam à base de arroz e farinha: ‘A gente pede pra o gato trazer uma verdura e pôr na conta, e ele nunca traz’”. (RIBEIRO, Jr., Amaury. In: Folha de S. Paulo, 31 de julho de 1994 - edição eletrônica, 1994-1997).

Na agricultura, na maioria dos casos, as condições de trabalho infantil são precárias. Nos canaviais, na cultura do sisal ou nas plantações de fumo, crianças e adolescentes são expostas ao manejo de ferramentas cortantes e produtos tóxicos, carregamento de fardos pesados, uso contínuo de agrotóxicos, uso de equipamento inadequado, além de longas jornadas de trabalho.

Além do trabalho em carvoarias, outras localidades também exploram o trabalho precoce, bem como submetem as crianças e adolescentes à condição análoga à de escravos. Podem ser citados os trabalhos realizados em canaviais, plantações de sisal, beneficiamento de castanhas do Pará, pesca do sururu em Alagoas, abatedouros de carne etc.

As crianças sofrem inumeráveis prejuízos, sejam físicos, psicológicos ou sociais. Dentre  eles, está a deformação dos músculos, mutilações, deformações dos ossos, ferimentos, picadas de cobra e outros bichos, contaminação, ferimentos com materiais cortantes e, até, atropelamentos. Perdendo a infância, tornam-se adultos antes do tempo, o que gera pessoas pouco sociáveis pela submissão ao autoritarismo e à disciplina do trabalho. Adquirem problemas de aprendizagem, abandonam a escola, estando sempre sujeitas à exploração e aos maus tratos.


5. Responsabilidade social da empresa no combate ao trabalho infantil.

A responsabilidade social pode ser conceituada como “a obrigação de responder por suas ações passadas, presentes e futuras, inclusive de todos os atores da sociedade que de alguma forma sofreram ou sofrerão os influxos de seus efeitos”[3].

Atualmente, não se pode conceber que as empresas estejam organizadas apenas para atender aos anseios da produtividade, consumidores, empregados e Estado. A responsabilidade de uma empresa deve objetivar o desenvolvimento sustentável e a melhor qualidade de vida da sociedade.

Responsabilidade social não vem a ser o mesmo que filantropia, uma vez que esta tem cunho assistencialista e temporário. A responsabilidade, ao contrário, tem a ver com obrigação e perenidade, pois a empresa deve sempre estar voltada para atender os direitos dos consumidores, empregados, meio ambiente, desenvolvimento e cidadania.

A atuação dos empresários de forma socialmente responsável pressupõe ações éticas e compromissadas com toda a sociedade e seu desenvolvimento produtivo. Assim, não basta que uma empresa gere empregos e arrecade tributos. É necessário que ela participe do desenvolvimento da sociedade de forma sustentável, por meio de ações que inibam a destruição do meio ambiente, que não estimulem o desrespeito à legislação trabalhista e que não incentive a utilização do trabalho infantil e em condições análogas à de escravo.

No caso do trabalho infantil, a criação de restrições aos produtos que tenham, de alguma forma, incorporado o trabalho precoce em sua produção, é uma das formas de atuação socialmente responsável da empresa.

No Brasil, a Fundação Abrinq criou um programa denominado “Empresa Amiga da Criança”. Por meio dele, a Empresa Amiga da Criança é aquela que não explora economicamente a força de trabalho infantil, bem como desenvolve ações e projetos de apoio à formação das crianças e à capacitação de adolescentes.

A viabilização de tal programa se deu com a criação do selo “Empresa Amiga da Criança”. Tal selo é concedido para as empresas que não empregam e nem são clientes de instituições que exploram o trabalho infantil. Esta exploração indireta do trabalho infantil pode se dar por meio da utilização de embalagens dos produtos, material de divulgação ou artigos publicitários que tenham utilizado a mão-de-obra precoce.

Para a obtenção do selo, a empresa deve se comprometer, formal e publicamente, a não utilizar o trabalho infantil, a divulgar o compromisso assumido para os seus fornecedores e clientes, bem como desenvolver ou apoiar programas sociais de formação de crianças e adolescentes.

Assim, “o selo funciona como uma espécie de prêmio, ao mesmo tempo em que legitima e difunde as ações desenvolvidas no âmbito da responsabilidade social da empresa. O segundo motivo está relacionado ao propósito de melhorar a imagem da empresa, especialmente naquelas atividades produtivas que, de certa forma, não eram bem vistas por determinados segmentos sociais, como é o caso do setor sucroalcooleiro.(...) O terceiro motivo refere-se ao atendimento de consumidores mais exigentes. Os empresários estão percebendo que, no contexto internacional, há um tendência do desenvolvimento de uma consciência dos consumidores, no sentido de saber a origem dos produtos disponibilizados no mercado para, então, consumir os produtos associados às empresas comprometidas com programas sociais e ambientais, em detrimento dos vinculados às empresas que exploram crianças ou degradam o meio ambiente”[4].

Além do selo, a Abrinq promove a inserção de cláusulas sociais nos contratos comerciais de redes de empresas. Tais cláusulas são compromissos assumidos pela empresa, no sentido de combater a exploração do trabalho infantil na cadeia produtiva em que atuam. Por meio desses compromissos, há possibilidade jurídica de desobrigação de compra dos produtos e serviços, caso algum estágio da cadeia produtiva tenha incorporado o trabalho infantil.

E a efetivação de tais políticas pode ser demonstrada com a assinatura das cláusulas pelas indústrias de veículos automotores. Tais empresas eram suspeitas de utilizarem mão de obra precoce na produção do carvão vegetal, que compõe uma das cadeias de sua produção. Outro setor mobilizado pela adoção das cláusulas sociais foi o sucroalcooleiro, citrícola e fumageiro.

A adoção das cláusulas sociais e obtenção do selo Empresa Amiga da Criança faz com que as empresas não sofram boicotes comerciais, uma vez que o mercado internacional, em especial dos países desenvolvidos, não utilizam produtos ou mercadorias que possuam denúncias de exploração do trabalho escravo ou infantil.

Chega-se à conclusão de que a responsabilidade social da empresa não é apenas uma opção, mas deve ser considerada como estratégia e objetivo organizacional da empresa, sob pena de se perder espaço considerável no mercado externo e interno. Ademais, concretiza a atuação econômica de forma sustentável, uma vez que a obtenção do lucro se dará com a efetiva preocupação com os trabalhadores envolvidos na cadeia de produção.


6.  Conclusão.

A erradicação do trabalho precoce é medida necessária para o pleno desenvolvimento do Brasil, uma vez que acabará com o círculo vicioso de famílias que se mantêm sob extrema miséria, durante gerações, alijadas de qualquer direito ou garantia trabalhista e inseridas na completa ignorância causada pela falta de estudos ou perspectivas de melhora da condição sócio econômica.

Além disso, verifica-se que o trabalho precoce é muito mais árduo do que o mesmo trabalho realizado por um adulto. Além de venderem a força de trabalho, as crianças e jovens vendem a sua infância, direito fundamental indisponível, que nunca mais será recuperada. Os danos físicos e emocionais, em sua maioria, não são possíveis de reparação, criando uma geração de adultos inapta ao desenvolvimento máximo de sua força de trabalho.

E tal situação somente poderá ser modificada, com a erradicação gradual (e, por fim, total) do trabalho precoce, com a atuação conjunta do Estado e sociedade. O primeiro, por meio de políticas públicas que efetivamente retirem as crianças e adolescentes do trabalho, mantenha-os na escola, bem como forneça meios para a subsistência plena das famílias, a fim de que estas não mais precisem da complementação da renda com o trabalho de seus filhos e vislumbrem ser possível a sobrevivência independentemente do trabalho de suas crianças. Além disso, o Estado precisa adotar políticas de fiscalização que sejam capazes de inibir a utilização desses trabalhadores pelas empresas.

A atuação da sociedade deve se dar, primeiramente, pela consciência da solidariedade de cada cidadão. Cada um de nós é responsável pela diminuição das desigualdades sociais, por meio de atuação filantrópica e assistencial. Além disso, as empresas devem assumir um papel socialmente responsável no desenvolvimento de suas atividades, por meio de restrições àqueles fornecedores e produtores que se utilizem de trabalho precoce.

Por fim, a erradicação do trabalho precoce contribuirá para o pleno desenvolvimento do país no âmbito interno e externo. No primeiro caso, o Brasil ganhará jovens cada dia mais capacitados para o mercado de trabalho, eliminando-se a triste realidade de pessoas que também colocarão os seus filhos para trabalhar, sem qualquer perspectiva de uma vida digna. E, no cenário internacional, o país poderá ser visto como uma verdadeira nação que luta para o pleno desenvolvimento sustentável, respeitando-se a dignidade de todos de seus jovens cidadãos.

Esther Regina Corrêa Leite Prado, Advogada da União em exercício no Departamento Trabalhista da Procuradoria-Geral da União, em Brasília.


Notas

[1] José Claudio Monteiro de Brito Filho, Trabalho Decente, LTr, 2ª Edição, pag. 25.

[2] Maria Adriana Torres, Trabalho Infantil  - Trabalho e Direitos, Ed. UFAL, pag. 77.

[3] Joel Orlando Bevilaqua Marin e Eriberto Francisco Bevilaqual Marin, Responsabilidade social empresarial e combate ao trabalho infantil in Direito, Estado e Sociedade, n. 34, Jan/Jun 2009, pag. 115.

[4] Joel Orlando Bevilaqua Marin e Eriberto Francisco Bevilaqual Marin, Responsabilidade social empresarial e combate ao trabalho infantil in Direito, Estado e Sociedade, n. 34, Jan/Jun 2009, pag. 133/134.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRADO, Esther Regina Corrêa Leite. O trabalho precoce no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3453, 14 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23230. Acesso em: 29 mar. 2024.