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Cooperações internacionais com organismos em situação de pendência em ajustes anteriores

Cooperações internacionais com organismos em situação de pendência em ajustes anteriores

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Não é possível a celebração de novos ajustes e o repasse de recursos enquanto persistirem pendências detectadas em cooperações anteriores com os mesmos organismos internacionais

Em matéria de cooperações internacionais celebradas por órgãos e entidades da Administração Pública brasileira, surge a dúvida sobre a possibilidade ou não de celebrar novos acordos, inclusive com repasse de recursos financeiros, mesmo havendo pendências relativas a cooperações anteriores firmadas com o mesmo organismo internacional.

Para responder ao questionamento formulado, importa, de início, assentar que a chamada “imunidade de jurisdição” reconhecida em favor das organizações internacionais não representa óbice à submissão de tais entidades às normas administrativas nacionais relativas à celebração de termos de cooperação.

De fato, para o desempenho satisfatório de suas funções institucionais, são reconhecidas algumas imunidades e privilégios às organizações internacionais. Contudo, entendimentos doutrinários e jurisprudenciais distinguem a imunidade de jurisdição dos Estados da desfrutada pelos organismos internacionais: enquanto a dos Estados advém do direito consuetudinário internacional e encontra fundamento histórico no princípio de igualdade de países, não sendo possível, nesse sentido, a imposição de regras nacionais de um Estado soberano a outro sem o seu expresso consentimento, a das organizações internacionais é concedida por expressa e formal vontade dos Estados-membros que as constituem e está limitada às normas do tratado ou convenção que a formaliza.

Nesse sentido, conforme argumentado no voto da Ministra Ellen Grace, no Recurso Extraordinário nº 578543/MT, ainda pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, não se atribui aos organismos internacionais a noção de soberania, nem a imunidade de jurisdição é um atributo inerente à condição dos mesmos. Tem-se, portanto, que os privilégios e as imunidades dos organismos internacionais estão atrelados aos seus atos constitutivos ou aos pactos internacionais celebrados com Estados soberanos.

O Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 1018/2007 – Plenário, enfatizou que os entes e órgãos administrativos brasileiros não podem deixar de observar os normativos nacionais e os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, cabendo à diplomacia nacional adequar os contratos e projetos ao marco constitucional do país.

Desse modo, tem-se que a abrangência da chamada “imunidade de jurisdição” reconhecida em favor de organizações internacionais não importa a não-submissão das mesmas às normas administrativas internas relativas a termos de cooperação e ajustes congêneres que impliquem dispêndio público no âmbito federal, tampouco resulta no afastamento da incidência dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública brasileira na celebração e execução dos referidos instrumentos, em especial os da indisponibilidade do interesse público, da moralidade, da isonomia e da legalidade.

Nesse passo, importa verificar o regramento interno brasileiro a respeito da matéria, a começar pelo disposto na Instrução Normativa nº 06, de 27 de outubro de 2004, da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que trata das transferências de recursos decorrentes de acordos de cooperação técnica, assim dispondo em seus artigos 13 e 14:

“Art. 13. Para fins desta Instrução Normativa entende-se como Acordo de Cooperação Técnica qualquer instrumento de cooperação celebrado entre a Republica Federativa do Brasil e organismos internacionais, que envolva transferência de recursos públicos e tenha como partícipe órgão da administração pública federal direta, autárquica ou fundacional, empresa pública ou sociedade de economia mista que estejam gerindo recursos dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, visando à execução de programas de trabalho, projeto/atividade ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação.”

“Art. 14. A execução descentralizada de Programa de Trabalho a cargo de órgãos e entidades da Administração Pública Federal, Direta e Indireta, que envolva a transferência de recursos financeiros oriundos de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, objetivando a realização de programas de trabalho, projeto, atividade, ou de eventos com duração certa, efetivada mediante a celebração de acordos de cooperação técnica com organismos internacionais, deverá seguir, as disposições da IN STN 01, de 15 de janeiro de 1997, e suas alterações, notadamente no que se refere aos registros no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - SIAFI.

(...)”

Como se observa, os dispositivos acima transcritos estabelecem que a transferência de recursos públicos decorrente de acordos de cooperação técnica celebrados com organismos internacionais deverá obedecer às disposições da Instrução Normativa STN nº 01, de 15 de janeiro de 1997, e suas alterações. Esta última, a seu turno, contém, no que interessa à presente análise, as seguintes disposições relativas à celebração de convênios:

“Art. 2º O convênio será proposto pelo interessado ao titular do Ministério, órgão ou entidade responsável pelo programa, mediante a apresentação do Plano de Trabalho (Anexo I), que conterá, no mínimo, as seguintes informações:

(...)

VII - comprovação pelo convenente de que não se encontra em situação de mora ou inadimplência perante órgão ou entidade da Administração Pública Federal Direta e Indireta; (redação dada pela IN STN nº 4/2007)”

“Art. 5º É vedado:

I - celebrar convênio, efetuar transferência, ou conceder benefícios sob qualquer modalidade, destinado a órgão ou entidade da Administração Pública Federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, ou para qualquer órgão ou entidade, de direito público ou privado, que esteja em mora, inadimplente com outros convênios ou não esteja em situação de regularidade para com a União ou com entidade da Administração Pública Federal Indireta;

(...)

§ 1º Para os efeitos do item I, deste artigo, considera-se em situação de inadimplência, devendo o órgão concedente proceder à inscrição no cadastro de inadimplentes do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal - SIAFI e no Cadastro Informativo - CADIN, o convenente que:

I - não apresentar a prestação de contas, final ou parcial, dos recursos recebidos, nos prazos estipulados por essa Instrução Normativa;

II - não tiver a sua prestação de contas aprovada pelo concedente por qualquer fato que resulte em prejuízo ao erário;

III - estiver em débito junto a órgão ou entidade, da Administração Pública, pertinente a obrigações fiscais ou a contribuições legais.

§ 2º Nas hipóteses dos incisos I e II do parágrafo anterior, a entidade, se tiver outro administrador que não o faltoso, e uma vez comprovada a instauração da devida tomada de contas especial, com imediata inscrição, pela unidade de contabilidade analítica, do potencial responsável em conta de ativo "Diversos Responsáveis", poderá ser liberada para receber novas transferências, mediante suspensão da inadimplência por ato expresso do ordenador de despesas do órgão concedente. (redação alterada pela IN 5/2001)

§ 3º O novo dirigente comprovará, semestralmente ao concedente o prosseguimento das ações adotadas, sob pena de retorno à situação de inadimplência.”

Com base nos dispositivos da Instrução Normativa STN nº 01/97 acima reproduzidos – aplicáveis, como visto, por força do art. 14 da Instrução Normativa STN nº 06/2004, aos acordos de cooperação técnica celebrados com organismos internacionais que envolvam transferência de recursos públicos –, extrai-se a impossibilidade de celebração de novas cooperações e de transferência de recursos em favor de organismos internacionais que se encontrem em situação de mora, inadimplência ou irregularidade perante órgão ou entidade da Administração Pública Federal Direta e Indireta.

O § 1º do art. 5º da Instrução Normativa STN nº 01/97, antes transcrito, arrola as hipóteses que caracterizam a situação de inadimplência do convenente e que implicam, ao mesmo tempo, o dever do órgão concedente de proceder à inscrição daquele no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) e no Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal (CADIN), a saber: não-apresentação da prestação de contas, final ou parcial, dos recursos recebidos, nos prazos estipulados na referida Instrução; não-aprovação da prestação de contas pelo concedente por qualquer fato que resulte em prejuízo ao erário; ou situação de débito junto a órgão ou entidade da Administração Pública, pertinente a obrigações fiscais ou a contribuições legais.

Por conseguinte, em respeito às normas administrativas internas que disciplinam os termos de cooperação firmados pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal Brasileira Direta e Indireta com organismos internacionais envolvendo transferência de recursos, bem como em face da incidência dos princípios constitucionais que regem a atuação da Administração Pública na celebração e execução dos referidos instrumentos, entende-se não ser possível a celebração de novos ajustes e o repasse de recursos enquanto persistirem pendências detectadas em cooperações anteriores com os mesmos organismos internacionais.


Autor

  • Kalinca de Carli

    Kalinca de Carli

    Procuradora Federal em Brasília (DF). Coordenadora de Licitações, Contratos e Convênios da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DE CARLI, Kalinca de Carli. Cooperações internacionais com organismos em situação de pendência em ajustes anteriores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3453, 14 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23232. Acesso em: 28 mar. 2024.