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O sigilo de dados telefônicos e sua não oponibilidade ao órgão regulador

O sigilo de dados telefônicos e sua não oponibilidade ao órgão regulador

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Analisa-se o sigilo de dados previsto na Constituição Federal em cotejo com as competências fiscalizatórias da Anatel, sobretudo frente às necessidades de fiscalização da tarifação das chamadas.

Resumo: O presente trabalho busca analisar o sigilo de dados previsto na Constituição Federal em cotejo com as competências fiscalizatórias do órgão regulador, sobretudo frente às necessidades de fiscalização da tarifação das chamadas. Procura-se verificar se os Registros de Detalhes de Chamadas estariam abrangidos pelo sigilo de dados e se tal sigilo seria oponível pelas prestadoras à Agência Nacional de Telecomunicações.

Palavras-chave: Constitucional – Sigilo de dados – Órgão regulador – Administrativo – Fiscalização.

Sumário: 1. Introdução. 2. Do sigilo de dados no âmbito da Constituição Federal. 3. Da previsão constitucional do órgão regulador. Do seu poder fiscalizador. Da não oposição de sigilo. 4. Do dever do órgão regulador de manter sigilo sobre os dados a que tem acesso. 5. Do entendimento jurisprudencial 6. Das conversas entre os atendentes dos call centers das prestadora e seus clientes. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.


1.Introdução.

Se por um lado o ordenamento jurídico garante a proteção ao sigilo de dados telefônicos, por outro garante a proteção do consumidor de ter suas chamadas corretamente tarifas e do órgão regulador de fiscalizar tal tarifação. Nesse quadro, é possível surgir a questão da oponibilidade ou não desse sigilo frente ao órgão regulador, o que será objeto deste trabalho.

Pretende-se analisar o sigilo constitucional, as competências do órgão regulador, bem como seus deveres frente aos dados telefônicos, e a jurisprudência aplicável à questão.

Seja preço (autorizadas, no regime privado), seja tarifa (concessionárias, no regime público), o fato é que as prestadoras vinculam-se a suas ofertas, devendo praticar exatamente os valores anunciados ao consumidor. No caso das tarifas, a necessidade de praticá-las ainda ultrapassa a questão propriamente dos direitos dos consumidores, uma vez que as tarifas, fixadas pelo órgão regulador, impactam, inclusive, no mercado de remuneração de redes, que envolve várias prestadoras e, por assim dizer, todo o setor de telecomunicações.

É nesse contexto que se insere, portanto, a problemática que se pretende abordar.


2.Do sigilo de dados no âmbito da Constituição Federal.

De início, é preciso tecer algumas considerações sobre o sigilo protegido pela Constituição Federal. Pois bem. O texto constitucional garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Esse é núcleo essencial a que uma pessoa faz jus, no que tange à privacidade. Afora isso, a Constituição consagra alguns sigilos, justamente visando à preservação desse núcleo essencial. É o que acontece, por exemplo, com as correspondências e as comunicações telefônicas. Nessa esteira, é de bom alvitre colacionar os dispositivos constitucionais pertinentes:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...) Omissis

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...) Omissis

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Verifica-se, pois, que a situação da questão em tela passa pela análise do inciso XII mencionado. Dessa forma, é preciso fazer a distinção entre os sigilos de correspondência, de comunicações telegráficas, de dados e de comunicações telefônicas. Os sigilos de correspondência e de comunicações telegráficas são entendidos como sendo a inviolabilidade de cartas, e-mails, telegramas, etc. Enfim, são documentos de que as pessoas fazem uso para se comunicarem. Já o sigilo de dados refere-se à inviolabilidade de comunicação por meio de dados, como, por exemplo, dados informáticos. Não se confunde, pois, com o sigilo de comunicação telefônica, que protege contra interceptações indevidas da própria conversa.

Assim, resta patente a diferença entre o sigilo de comunicações telefônicas e o de dados telefônicos. Estes guardam relação com os registros das chamadas realizadas, em que constam os números de origem e de destino, a data, a hora e a duração da chamada. Aquele, por outro lado, como já dito, relaciona-se ao próprio conteúdo da conversa. Uma coisa é saber que foi feita uma ligação de tantos minutos para tal número em determinada hora de um dia. Outra é saber o conteúdo dessa conversa.

No caso em tela, a questão refere-se aos dados telefônicos, uma vez que o papel do órgão regulador do setor de telecomunicações (Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel), no exercício de suas funções fiscalizatórias, diz respeito ao acesso aos registros, que são dados. A atuação do órgão regulador não busca, deixe-se claro, ter acesso ao conteúdo das conversas telefônicas. Essa ressalva é importante em razão de a doutrina considerar que apenas para ter acesso às comunicações telefônicas é que é exigida ordem judicial motivada por investigação criminal ou instrução processual penal. Para ter acesso aos dados essa exigência não se impõe.

Na verdade, há uma atecnia na redação do inciso XII do art. 5º da Constituição Federal. É que, diante de uma leitura superficial e meramente literal, poder-se-ia chegar à equivocada conclusão de que os primeiros sigilos são absolutos (correspondência, comunicações telegráficas e de dados). Sabe-se, porém, que nenhum direito possui feição absoluta. Todos são relativos, uns em maior outros em menor grau. Alexandre de Moraes comenta:

Ocorre, porém, que apesar de a exceção constitucional expressa referir-se somente à interceptação telefônica, entende-se que nenhuma liberdade individual é absoluta, sendo possível, respeitados certos parâmetros, a interceptação das correspondências e comunicações telegráficas e de dados sempre que as liberdades públicas estiverem sendo utilizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.[1] [grifo nosso]

O que o texto constitucional pretendeu, de fato, foi tratar com maior rigidez o acesso à comunicação telefônica em si (conteúdo da comunicação), por ser forma mais drástica de invasão da privacidade/intimidade. Daí consagrar o sigilo das comunicações telefônicas com a ressalva de se poder violá-las – ou melhor, excepcioná-las – somente por meio de ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

O sigilo de comunicação de dados, por outro lado, não recebeu o mesmo rigor, podendo se ter acesso a eles caso haja interesse público, mas sempre em atenção ao caso concreto. Sobre a redação do inciso XII do art. 5º da Constituição Federal, mais uma vez se vale da explicação de Alexandre de Moraes:

A interpretação do presente inciso deve ser feita de modo a entender que a lei ou a decisão judicial poderão, excepcionalmente, estabelecer hipóteses de quebra das inviolabilidades da correspondência, das comunicações telegráficas e de dados, sempre visando salvaguardar o interesse público e impedir que a consagração de certas liberdades públicas possa servir de incentivo à prática de atividades ilícitas. No tocante, porém, à inviolabilidade das comunicações telefônicas, a própria Constituição Federal antecipou-se e previu os requisitos que deverão, de forma obrigatória, ser cumpridos para o afastamento dessa garantia.[2]


3.Da previsão constitucional do órgão regulador. Do seu poder fiscalizador. Da não oposição de sigilo.

No caso da Anatel, há previsão constitucional e legal de atribuição para fiscalizar as empresas prestadoras de serviços de telecomunicação. Existe, inclusive, expressa menção ao dever destas de atender às solicitações do órgão regulador, prestando as informações requeridas e submetendo-se à fiscalização.

Nessa esteira, é preciso fazer uma nova distinção, desta vez entre comunicação de dados e os dados em si. Pois bem. A expressão “comunicação de dados” foi introduzida no texto da Constituição Federal de 1988 em razão da evolução tecnológica das comunicações. É que atualmente comunicações há que são feitas por meio de dados, tais como dados informáticos ou dados de mensagens de celular. O acesso aos dados coletados em gravação em hard disk de computador, por exemplo, não ofende o sigilo das comunicações de dados. Gilmar Ferreira Mendes trata do assunto:

Para o STF, ademais, o sigilo garantido pelo art. 5º, XII, da CF refere-se apenas à comunicação de dados, e não aos dados me si mesmos. A apreensão de um computador, para dele se extraírem informações gravadas no hard disk, por exemplo, não constitui hipótese abrangida pelo âmbito normativo daquela garantia constitucional.[3] [grifo nosso]

Eis um trecho da decisão da Suprema Corte em que se baseiam os comentários de Gilmar Ferreira Mendes:

A proteção a que se refere o art. 5º, XII, da Constituição, é da comunicação ‘de dados’ e não dos ‘dados em si mesmos’, ainda quando armazenados em computador. (cf. voto no MS 21.729, Pleno, 5.10.95, red. Néri da Silveira – RTJ 179/225, 270). (RE 418.416, Rel. Sepúlveda Pertence, Plenário, 10-5-2006)

Destarte, poder-se-ia até mesmo dizer que os documentos constantes dos sistemas das prestadoras de serviços de telefonia (Registro de Detalhes de Chamadas ou Call Detail Record – CDR) representam dados em si mesmos, não protegidos pelo sigilo constitucional. Contudo, em razão de tais dados indicarem que uma pessoa se comunicou com outra em determinado dia e hora, o que de certa forma expõe algum aspecto da intimidade, tal interpretação seria frágil. Assim, pode-se dizer que tais dados são protegidos pelo sigilo constitucional, mas não ao mesmo regramento aplicável ao conteúdo da comunicação, cujo acesso só é permitido para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Nesse caso, tais dados são sigilosos, a eles sendo possível ter acesso, como dito, caso haja interesse público, mas sempre em atenção ao caso concreto.

De qualquer forma, para o presente trabalho, o importante é que esse sigilo não é oponível ao órgão regulador do setor, com atribuição constitucional e legal para fiscalizar a correta tarifação das chamadas.

Nessa linha, há de se analisar com mais atenção esse aparente conflito entre o sigilo de dados e a necessidade de o órgão regulador pôr em prática sua fiscalização. Embora a questão do sigilo esteja tratada na própria Constituição federal, destaca-se que o órgão regulador também possui status constitucional. Na verdade, é o único órgão regulador que tem previsão expressa na Constituição Federal. Retira, pois, diretamente da Carta Magna, sua legitimidade, conforme se observa do art. 21, inciso XI:

Art. 21. Compete à União:

(...) Omissis

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95)

Embora o sigilo esteja tratado em norma constitucional decorrente do Poder Constituinte Originário e o órgão regulador encontre guarida em norma constitucional decorrente do Poder Constituinte Derivado, é certo que não há hierarquia entre elas.

Por óbvio, então, que o Constituinte pretendeu atribuir ao órgão regulador que iria ser criado a competência para fiscalizar as prestadoras de serviços de telecomunicações. Faz parte das atribuições do órgão regulador, portanto, a fiscalização das empresas em prol do bom funcionamento do setor das telecomunicações e do respeito aos direitos dos usuários. A Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), ao criar a Anatel, consagrou tais atribuições:

Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:

 I - implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de telecomunicações;

(...) Omissis

VI - celebrar e gerenciar contratos de concessão e fiscalizar a prestação do serviço no regime público, aplicando sanções e realizando intervenções;

(...) Omissis

IX - editar atos de outorga e extinção do direito de uso de radiofreqüência e de órbita, fiscalizando e aplicando sanções;

(...) Omissis

XI - expedir e extinguir autorização para prestação de serviço no regime privado, fiscalizando e aplicando sanções;

(...) Omissis

XVIII - reprimir infrações dos direitos dos usuários; [grifo nosso]

A LGT também dispôs que a concessionária deverá submeter-se à regularização do serviço e à fiscalização da Agência (art. 96, inciso V), prestando as informações de natureza técnica, operacional, econômico-financeira e contábil, ou outras pertinentes que a Agência solicitar (art. 96, inciso I). Não restam, assim, dúvidas quanto ao poder fiscalizador do órgão regulador. O Regimento Interno da Agência também exige que os administrados prestem as informações solicitadas, in verbis:

Art. 37. São deveres do administrado perante a Agência, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:

(...) Omissis

IV - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos.

Ora, uma das espécies de fiscalização dos serviços prestados pelas empresas, justamente visando à proteção dos usuários, é procurar saber se a tarifação das chamadas está sendo feita de maneira correta. É que as empresas podem, por exemplo, tarifar chamadas locais como sendo de longa distância; tarifar de forma equivocada as chamadas com deslocamento; tarifar em desacordo com as regras de determinado plano ou promoção; ou, simplesmente, incluir chamadas não realizadas pelos usuários.

Enfim, cabe à Anatel fiscalizar a correta tarifação das chamadas, já que é o órgão regulador com competência constitucional para tanto. Mas para que isso seja feito, é preciso ter acesso a certas informações, sob pena de suas atribuições esvaziarem-se. É aí que surge o cerne do presente trabalho. Seria possível às prestadoras suscitar dever de sigilo de tais informações frente ao órgão regulador? As prestadoras violariam sigilo protegido constitucionalmente se as fornecessem ao órgão regulador?

Nessa esteira, deixa-se consignado, mais uma vez, que as informações requeridas pelo órgão regulador e fiscalizador consubstanciam dados. Não se trata aqui de acesso ao conteúdo das conversas, mas apenas de registro de chamadas. Não há que se falar, pois, em sigilo de comunicação telefônica, que é a forma mais drástica de se invadir a privacidade de uma pessoa. A questão refere-se tão-somente aos dados em si mesmos. De qualquer forma, seguindo o raciocínio já exposto, mesmo se considerando que as informações solicitadas pela fiscalização do órgão regulador estivessem protegidas pelo inciso XII do art. 5º da Constituição Federal, é de se ter em mente que, diante da ponderação axiológica, haveria de prevalecer, nesses casos, frente ao suposto sigilo, a necessidade de fiscalização do órgão regulador, como será demonstrado a seguir.

A interpretação da Constituição Federal precisa ser feita de maneira sistemática e teleológica, ou seja, além da preocupação com a unidade do texto constitucional, deve-se buscar o fim último da norma. Uma mera interpretação literal de um dispositivo isolado distorce o exato significado pretendido pelo Poder Constituinte. A interpretação constitucional deve necessariamente envolver uma ponderação axiológica. Sobre o assunto, interessante trazer à baila os ensinamentos de Luís Roberto Barroso:

O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhes, portanto, o papel de harmonização ou “otimização” das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas. Também aqui, a simplicidade da teoria não reduz as dificuldades práticas surgidas na busca do equilíbrio desejado e na relação de critérios que possam promovê-lo.

A doutrina tradicional divulga como mecanismo adequado à solução de tensões entre normas a chamada ponderação de bens ou valores. Trata-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como referência máxima as decisões fundamentais do constituinte. A doutrina tem rejeitado, todavia, a predeterminação rígida da ascendência de determinados valores e bens jurídicos, como a que resultaria, por exemplo, da absolutização da proposição in dubio pro libertate. Se é certo, por exemplo que a liberdade deve, de regra, prevalecer sobre meras conveniências do Estado, poderá ela ter de ceder, em determinadas circunstâncias, diante da necessidade de segurança e de proteção da coletividade.[4] [grifo nosso]

Kildare Gonçalves Carvalho, no mesmo sentido, leciona ser necessário “considerar que, preservado o núcleo essencial dos direitos fundamentais, tem-se admitido que não sendo absoluta qualquer liberdade individual, torna-se possível restringi-la com fundamento em direitos de terceiros ou em outros princípios de hierarquia constitucional, em especial quando estiverem sendo utilizados como instrumentos de salvaguarda de práticas ilícitas”[5].

De fato, o sigilo de dados busca proteger a intimidade/privacidade do indivíduo perante o público em geral ou terceiros. Impede que os dados telefônicos da pessoa sejam divulgados ou publicados, enfim, impede que a esses dados seja dada publicidade sem autorização do próprio usuário. Por óbvio, contudo, que ao órgão regulador do setor, com responsabilidade constitucional para fiscalizar e zelar pelo bom funcionamento deste, não é possível opor tal sigilo de dados. A finalidade da fiscalização não é a de devassar a vida privada do usuário. Ao contrário, o órgão regulador age em sua defesa, visando justamente à preservação de seus direitos.

A análise da atuação do órgão regulador nesse aspecto guarda relação com a hipossuficiência do consumidor enquanto parte da relação jurídica. De fato, o equívoco de poucos reais ou até mesmo centavos na conta dos usuários não surte nestes a revolva necessária para fazê-los agir contra as prestadoras, em busca dos seus direitos. Muitas vezes, diante do tempo a perder e do stress a sofrer, o esforço nem vale a pena. Outras vezes, registre-se, o usuário nem sabe que suas chamadas estão sendo tarifadas de forma irregular, o que ocorre notadamente nos casos de tarifação de chamadas locais como sendo de longa distância, em claro desrespeito aos seus direitos.

Assim, diante de tal quadro, impõe-se a atuação do órgão regulador, de modo a constantemente verificar a tarifação das chamadas. E isso só acontece por meio de uma fiscalização em que se tem acesso a todas as informações necessárias, in casu, aos dados telefônicos consubstanciados nas cópias dos chamados Registros de Detalhes de Chamada, utilizados pelas prestadoras para realizar o batimento de contas.


4.Do dever do órgão regulador de manter sigilo sobre os dados a que tem acesso.

Nessa linha, é preciso ressaltar que o órgão regulador possui o dever de sigilo sobre tais dados, obtidos em decorrência de sua fiscalização. A LGT, em seu art. 174, aduz que “toda acusação será circunstanciada, permanecendo em sigilo até sua completa apuração”. Já ao tratar das sessões realizadas no âmbito do Conselho Diretor, dispõe que “quando a publicidade puder colocar em risco a segurança do País, ou violar segredo protegido ou a intimidade de alguém, os registros correspondentes serão mantidos em sigilo”. Por fim, em seu art. 3º, inciso V, assegura aos usuários o direito ao sigilo de seus dados, ressalvando, porém, as hipóteses legal e constitucionalmente previstas, conforme se observa: “o usuário de serviços de telecomunicações tem direito à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas”.

A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo na esfera federal, também aborda o assunto, impondo, em seu art. 2º, parágrafo único, inciso V, o dever de sigilo. Após dispor que “a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”, reza que “nos procedimentos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição”. Segue a mesma linha a Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI):

Art. 31.  O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. 

§ 1o  As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: 

I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e 

II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem. 

Além disso, é de se ter em mente que, se algum servidor público quebrar indevidamente o sigilo dos dados a que teve acesso em razão do exercício de suas funções, sofrerá a punição cabível, podendo, eventualmente, cumular sanções nas três esferas, quais sejam, administrativa, cível e criminal. De fato, consoante o art. 116, inciso VIII, da Lei nº 8.112/90, é dever do servidor guardar sigilo sobre assunto da repartição.


5.Do entendimento jurisprudencial.

Tecidos esses comentários, por meio dos quais já resta demonstrada a não oponibilidade do sigilo de dados frente à fiscalização do órgão regulador, é de bom alvitre, para reforçar o entendimento aqui exposto, trazer à tona mais um entendimento do Supremo Tribunal Federal – STF. Pois bem. A Corte Suprema entende que o sigilo de dados não pode ser oponível a órgão que tem a atribuição constitucional de fiscalizar o assunto pertinente. Tratava-se de caso envolvendo o Ministério Público e dados mantidos por instituição financeira, entendimento este que, mutatis mutandis, também se aplica à questão levantada por este trabalho. Colaciona-se trecho da decisão:

O poder de investigação do Estado é dirigido a coibir atividades afrontosas à ordem jurídica e a garantia do sigilo bancário não se estende às atividades ilícitas. A ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar n. 75/1993. (MS 21.729)

Nessa linha, vale lembrar que a Receita Federal tem acesso aos dados financeiros dos contribuintes. Se não tivesse, seu poder fiscalizador restaria esvaziado. O mesmo acontece com o órgão regulador do setor de telecomunicações. Impedido de ter acesso às informações em tela, não teria mais como exercer seu mister constitucional.

A Lei Complementar nº 105/2001, por exemplo, que regula o sigilo das operações de instituições financeiras, dispõe, em seu art. 2º, § 1º, que o sigilo, inclusive quanto a contas de depósitos, aplicações e investimentos mantidos em instituições financeiras, não pode ser oposto ao Banco Central do Brasil no desempenho de suas funções de fiscalização.

Gilmar Ferreira Mendes também traz hipótese em que a fiscalização, de índole constitucional, em atenção ao interesse social, deve prevalecer, no caso concreto, frente ao sigilo assegurado:

No Supremo Tribunal Federal, há acórdãos afirmando que “a administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas” (HC 70.814-5/SP, DJ de 24-06-1994, Rel. Celso de Mello). Ao ver do relator, a inviolabilidade de correspondência deve ser compreendida, “com vista à finalidade ética ou social do exercício do direito que resulta da garantia, tutela desta natureza não pode ser colocada para a proteção de atividades criminosas ou ilícitas”. Por isso, as correspondências poderiam ser abertas “em todas as hipótese que aviltem o interesse social ou se trate de proteger ou resguardar direitos ou liberdades de outrem ou do Estado, também constitucionalmente assegurados.”[6] [grifo nosso]

Destarte, diante do sigilo de dados, que tem a finalidade de proteger a intimidade/privacidade do usuário perante terceiros em geral, e da função fiscalizadora da ANATEL, com previsão constitucional, há de prevalecer, no caso concreto, esta última, porquanto não traz qualquer prejuízo àquele sigilo, conforme já demonstrado. Esse entendimento é a concretização do que a doutrina chama de princípio da concordância prática. Gilmar Ferreira Mendes leciona sobre o tema:

Sabe-se que a restrição de direitos fundamentais pode ocorrer mesmo sem autorização expressa do constituinte, sempre que se fizer necessária a concretização do princípio da concordância prática entre ditames constitucionais. Não havendo direitos absolutos, também o sigilo de correspondência e de comunicações telegráficas são passíveis de ser restringidos em casos recomendados pelo princípio da proporcionalidade.

(...) Omissis

A colisão entre direitos individuais ou entre direitos individuais e bens tutelados constitucionalmente atua como uma restrição imanente que legitima a intervenção na esfera do direito não submetido expressamente a uma limitação, eliminando-se a possibilidade de conflito com recurso à concordância prática (colisão constitucional como justificativa de uma intervenção). Essa orientação tem a vantagem de não impor limitação a priori ao âmbito de proteção de determinado direito, cingindo-se a legitimar, constitucionalmente, eventual restrição. A interpretação sistemática atuaria, assim, de forma corretiva, permitindo tanto a justificação de novas restrições quanto a delimitação do âmbito de proteção de determinado direito.[7]

Alexandre de Moraes também trata do assunto:

Os direitos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.[8] [grifo nosso]

Fica claro, portanto, que o sigilo de dados telefônicos não é oponível à Anatel, órgão com atribuição constitucional e legal para regular e fiscalizar o setor das telecomunicações, visando, em última ratio, à proteção dos direitos dos próprios usuários.


6.Das conversas entre atendentes dos call centers das prestadora e seus clientes.

Por fim, vale registrar que, na mesma linha aqui apresentada, não há que se falar em oposição à Anatel de um suposto sigilo das conversas dos(as) atendentes dos call centers das empresas com seus clientes (ou potenciais clientes). Eventualmente, o órgão regulador pode precisar dessas informações para fiscalizar determinadas condutas.

Também não há que se alegar, obviamente, sigilo frente ao próprio usuário que participou da conversa. Para ele claramente existe o direito de ter acesso à sua conversa com o(a) atendente do call center. Pode-se até mesmo dizer que o usuário é o principal tutelado com a gravação da conversa, seja para que ele próprio eventualmente busque seus direitos seja para que o órgão regulador tome as medidas cabíveis quando necessário, providências estas que, em última instância, visam ao equilíbrio da relação consumerista, de modo a compensar a hipossuficiência do consumidor.

Na verdade, a gravação dessas conversas tem por finalidade resguardar todos os envolvidos – tanto empresas como usuários –, para que seja possível comprovar o que ficou contratado/prometido na conversa. A Anatel, então, como órgão fiscalizador e competente para resolver controvérsias e eventualmente punir o infrator, também deve ter acesso a essas conversas, caso seja necessário.

Quanto ao atendente em si do call center, registre-se por derradeiro, que ele não divulga nessas conversas informações privadas e/ou íntimas de sua vida. O teor das conversas, ao contrário, é de cunho estritamente comercial, assunto que, aí sim, diz respeito ao objeto de regulação da Agência e ao qual, por isso, pode surgir a necessidade de se ter acesso.


7.Conclusão

Considerando a necessidade de o órgão regulador do setor de telecomunicações fiscalizar a correta tarifação das chamadas, em prol dos próprios consumidores, não há que se falar em oposição de sigilo de dados de chamadas (Registro de Detalhes de Chamada) à Anatel, órgão com previsão constitucional e competência para fiscalizar as prestadoras de serviços de telecomunicações.

No mesmo sentido, não há que se falar em sigilo, frente ao órgão regulador, do conteúdo das conversas entre atendentes de call centers das prestadoras e seus clientes (ou potenciais clientes).

De todo modo, em relação a todas as informações obtidas em razão da fiscalização, persiste o dever de manutenção de sigilo por parte do órgão regulador.


8.Referências bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto; Interpretação e Aplicação da Constituição, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003;

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995;

______. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994;

CARVALHO FILHO, José dos Santos; Manual de Direito Administrativo, 17ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007;

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008;

MELLO, Celso Antônio Bandeira de; Curso de Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005;

MENDES, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008;

MORAES, Alexandre de; Direito Constitucional, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2003;

_________ Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2007;


Notas

[1] Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2005, p. 52.

[2] Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2007, p. 177.

[3] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 392.

[4] Barroso, Luís Roberto, Interpretação e Aplicação da Constituição. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003, p. 200 e 201

[5] Carvalho, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 712.

[6] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 392.

[7] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 345 e 392.

[8] Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 60 e 61.


ABSTRACT: This study analyzes the constitutional confidentiality of data and the competences of the regulatory agency to monitor and punish, specially the necessity to supervise the pricing calls. It is verified if the Call Detail Records are covered by the confidentiality of data and if this confidentiality can prevent the supervision of the National Telecommunications Agency.

KEY WORDS: Constitutional – Confidentiality of data – Regulatory agency – Administrative - Supervision.


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SOARES, Paulo Firmeza. O sigilo de dados telefônicos e sua não oponibilidade ao órgão regulador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3456, 17 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23256. Acesso em: 26 abr. 2024.