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Cidadania e ação popular

Cidadania e ação popular

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É válido exigir título de eleitor como requisito para ajuizamento da ação popular?

Muito se tem discutido sobre a limitação ao exercício dos direitos individuais. Dentro desse contexto, cabe indagar: válido é o § 3º do artigo 1º da lei n.º 4.717/65, que exige título de eleitor como requisito para ajuizamento da ação popular?

Para melhor esquadrinhar o tema proposto, cabível o delineamento do conceito da cidadania, pois é através do exercício das prerrogativas inerentes ao status de cidadão, que o indivíduo pode interferir nos destinos do Estado, seja opinando sobre qual plano de governo deve ser seguido, seja fiscalizando o Estado na gestão da coisa pública, dentre outras ingerências.

O fato é que o conceito de cidadania evoluiu ao longo dos anos, distante o tempo em que se confundiam os conceitos de nacionalidade e cidadania. Hans Kelsen era um dos que fundiam os conceitos: "A cidadania ou a nacionalidade é um status pessoal", "A cidadania é com freqüência adquirida pelo nascimento dentro do território do Estado", in Teoria Geral do Estado.

Hodiernamente, reconhece-se a distinção entre os conceitos de cidadania e nacionalidade, sendo a nacionalidade considerada vínculo ao território de um Estado e a cidadania referindo-se à participação efetiva do indivíduo na vida social e na vida do Estado.

O conceito de cidadania comporta, ainda, outra divisão, qual seja, entre cidadania em sentido amplo e em sentido estrito. Em sentido amplo, quer significar a participação do cidadão em diversas atividades ligadas ao exercício de direitos individuais, fundamentando-se, então, no artigo 1º da Constituição da República. "A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o titular de direitos políticos", José Afonso da Silva in Curso de Direito Constitucional Positivo, página 108, 19ª edição. Em sentido estrito é a qualidade de ser eleitor, votar e ser votado.

Dentro do âmbito de nossa indagação, necessário é tomarmos posição e afirmar que o direito positivo atual brasileiro considera cidadão não só o eleitor, mas também indivíduos outros que, mesmo sem estar no exercício dos direitos políticos, podem exercer atos concernentes à cidadania. Exemplo disso é a utilização do termo cidadão ou cidadania, pela Constituição da República, em hipóteses em que não seria inteligível exigir-se a qualidade de eleitor como requisito, como no artigo 58, § 2º, inciso V, artigo 74, § 2º, e, principalmente, artigo 5º, inciso LXXII e artigo 68, § 1º, inciso II.

Quanto aos dois últimos dispositivos arrolados, o primeiro dispõe sobre a gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania, regulado pela lei n.º 9.265/96, que considera como atos de cidadania, dentre outros, os pedidos de informações ao poder público, em todos os seus âmbitos, objetivando a instrução de defesa ou a denúncia de irregularidades administrativas na órbita pública, bem como, quaisquer requerimentos ou petições que visem as garantias individuais e a defesa do interesse público. Como se vê, para praticar ato de exercício da cidadania e, portanto, ser considerado cidadão, não é necessário estar no gozo dos direitos políticos, pois, do contrário, poder-se-ia pensar que os condenados criminalmente não podem peticionar em defesa de seus direitos individuais ou requerer informações a órgão público. Já quanto ao último dispositivo mencionado, há uma melhor distinção quanto aos conceitos de cidadania e direitos políticos, quando afirma que não será objeto de delegação ao Presidente da República a elaboração da legislação pertinente à nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais.

Ressalte-se, outrossim, a condição do analfabeto que se abstém do alistamento eleitoral. Não dispõe, portanto, de título de eleitor. Impedido estaria de praticar os atos supracitados? Deixaria de ser cidadão? Evidente que não, o que reafirma a amplitude do conceito de cidadão.

Dessa forma, data venia, ao contrário do que José Afonso da Silva prega, acompanhado da maior parte de nossa doutrina, na obra já citada, página 350, errônea é a afirmação simplória de que cidadão é quem pode votar e ser votado, ou que se adquire a condição de cidadão com o alistamento eleitoral.

A lei n.º 4.717/65 em seu artigo 1º, § 3º, ao exigir título de eleitor como requisito para o ajuizamento da ação popular pelo cidadão, fundamenta-se na Constituição da República de 1946. Esta, bem como as de 1967 e 1969, não elenca expressamente como princípio fundamental a cidadania, princípio que se encontra de maneira esparsa em seu texto, conforme Constituição Federal de 1988 Comentada, Price Waterhouse. Sendo assim, não havia um compromisso formal do Estado em fomentar a cidadania. Pueril, à época, era a noção de cidadania em sentido amplo e em sentido estrito. Aliás, até mesmo a distinção, já mencionada, entre cidadania e nacionalidade dava, apenas, seus primeiros passos. Somente com as Constituições de 1967 e 1969 é que ficaram nítidas, no direito nacional, as diferenças entre o nacional e o cidadão. Este, tendo em vista a Constituição da República de 1988, tem amplos direitos e deveres, pois agora o Estado fomenta a cidadania em obediência a um princípio fundamental. A lei n.º 4.717/65 precisa ser interpretada à luz da Constituição da República atual, sob pena de negar-se, indevidamente, o exercício de direitos individuais garantidos pela Lei Maior.

Surge como verdade incontroversa a noção de que a ação popular é um direito de todo cidadão, este considerado em sentido amplo, ligado a um princípio fundamental do Estado Brasileiro.

Como ensina Geraldo Ataliba, a ação popular exsurge do princípio republicano, o patrimônio estatal é público, pertence ao povo e por este deve ser fiscalizado. O condenado criminalmente continua pagando seus tributos, não perde, pois, a capacidade de contribuir para a formação do patrimônio público. Não deve perder, por conseqüência, a capacidade de fiscalizar a gestão da coisa pública. Não podemos nos olvidar que o beneficiário da ação popular é o povo, na medida em que tem por finalidade anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, etc.

Consideração central sobre a questão em tela é se ação popular é um direito político. Pensamos que não. O artigo 14 da Constituição da República enumera os direitos políticos e não inclui entre eles a ação popular. A ação popular está garantida aos cidadãos no capítulo dos direitos individuais. Deve, portanto, ser considerada como exercício da cidadania em sentido lato, ou seja, em consonância com um dos princípios fundamentais da República brasileira.

Não se pode ampliar o conceito de direitos políticos, incluindo nele a ação popular, como o faz, por exemplo, Alexandre de Moraes, in Direito Constitucional, página 213, 5ª edição, para extrair-se desse entendimento a proibição de utilizá-la por quem tem suspenso seus direitos políticos. A Constituição em vigor não considera a ação popular como direito político, mas sim como direito individual do cidadão. Devemos lembrar que o artigo 15 da Constituição da República, que suspende os direitos políticos dos condenados criminalmente, é norma vedativa, não podendo, pois, ser interpretada extensivamente, segundo os bons princípios hermenêuticos. Deve a suspensão referida recair apenas sobre os direitos políticos, assim definidos pela própria Constituição.

Por outro lado, o artigo 5º, inciso LXXIII, sendo direito individual garantido pela Constituição da República, deve ser interpretado o mais amplamente possível.

O Estado brasileiro assumiu compromisso de estimular o exercício da cidadania em seu grau máximo. Verdadeiro fundamento de nossa Constituição, a cidadania não pode ter suas formas de exercício restringidas por uma interpretação que relega a um segundo plano uma diretriz básica do sistema constitucional brasileiro.

Por todo o exposto, a legitimidade para propor ação popular não deve ser restrita a quem vota ou é votado, pois não se trata de direito político, mas direito fundamental do cidadão que, mesmo condenado criminalmente ou analfabeto, contribui para a formação da riqueza nacional. Repita-se que não se pode partir de uma lei ordinária, que há muito tempo necessita de reformulação, para contrariar a Constituição da República que, como já se disse, produziu um Estado comprometido, fundamentalmente, com o exercício da cidadania. O § 3º do artigo 1º da lei n.º 4.717/65 não foi recepcionado pela atual Constituição. Pensar de outra forma implica o não reconhecimento da condição de cidadão ao analfabeto que não fez o alistamento eleitoral ou ao condenado criminalmente. Dessa maneira, a legitimidade para ajuizar ação popular deve ser franqueada a todos os cidadãos, exigindo-se, apenas, os requisitos ordinários compatíveis com o ajuizamento de qualquer outra ação. Solução esta que se coaduna com a interpretação teleológica e sistemática da Constituição da República e afirma a condição de cidadão do analfabeto e do condenado criminalmente.


Autor

  • Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim

    Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim

    Juiz de Direito, titular da 2a Vara criminal de Caruaru-PE, Aluno regular do programa de Doutorado da Universidade Federal de Buenos Aires (UBA), Especialista em Ciências Criminais (ASCES), professor de processo penal (graduação e pós-graduação) na Faculdade de Direito de Caruaru (ASCES), professor convidado da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Cidadania e ação popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2348. Acesso em: 24 abr. 2024.